Dois modos de aprender Ana Paula Caetano de Menezes Soares Extrato da tese de Mestrado(2002): O Modo de Aprendizagem do paciente obeso e adesão ao tratamento
... Após um apanhado geral do contexto da corrente teórica cognitivista, necessário para caracterizar o viés cognitivista do presente estudo, torna-se indispensável, aqui, situar os dois modos de aprendizagem em sua origem humanista, do referencial teórico de Fromm (1987), que passa posteriormente pela descrição de Barnes (1995), e a consequente proposta dos dois modos de aprender dos indivíduos. Por ser ou ter não me refiro a certas qualidades distintas de um sujeito em declarações como: “eu tenho um carro”, “eu sou branco ou “eu sou feliz”. Refiro-me a dois modos fundamentais de existência, a duas diferentes espécies de orientação para com o eu e o mundo, a duas diferentes espécies de estrutura de caráter cujas respectivas predominâncias determinam a totalidade do pensar, sentir e agir de uma pessoa (FROMM, 1987, p. 43). A partir de um referencial humanista cristão e marxista, Erich Fromm, apresenta, em sua obra “Ter ou Ser?”, duas formas de visão de mundo, dois modos de experiência e postura psicossocial, cultural e ideológica diante da vida: o modo Ter e o modo Ser. O autor descreve a sociedade aquisitiva – fruto da revolução industrial, traça um preocupante prognóstico dos rumos desta sociedade, situa o Ter e o Ser nos diversos setores da experiência de vida humana – na aprendizagem, nas recordações, na leitura, no exercício de autoridade, na relação com o conhecimento, no amor e na fé – e propõe alternativas baseadas em uma mudança de postura individual e ideológica, na qual a sociedade, hegemonicamente orientada pelo modo Ser, recicla valores morais e éticos (FROMM, 1987, passim). [...] ter é uma função normal de nossa vida: a fim de viver nós devemos ter coisas. Além do mais é preciso ter coisas a fim de desfrutá-las. [...], tem-se a impressão de que a própria essência de ser é ter: de que se alguém não tem, não é (FROMM, 1987, p. 35). O Ter refere-se a uma forma aquisitiva, de pertença e posse do indivíduo ao se relacionar com as pessoas, com as coisas, com o conhecimento e até consigo mesmo, no qual “a pessoa é aquilo que tem”. Outros autores já citados neste trabalho situam a epidemia mundial da obesidade como consequência da revolução industrial (HERNÁNDEZ & ARNÁIZ, 2005, p. 329-330; ALMEIDA & FERREIRA, 2005, p. 185 et seq.). Evidência que traz correlação com as ideias de Fromm ao propor a sociedade aquisitiva, com seu consumo desenfreado em todos os setores da vida humana, inclusive no tocante à alimentação. Fromm ainda enfatiza as duas manifestações características do modo Ter: o hedonismo radical, com “a satisfação irrestrita de todos os desejos”, e o conceito de incorporar, que indica a necessidade das pessoas predominantemente orientadas pelo modo Ter de “incorporar uma coisa, como por exemplo, comendo-a ou bebendo-a, é uma forma arcaica de possuí-la” (FROMM, 1987, p. 24-44). Por outro lado, o Ser implica um processo constante de transformação gerado pela
autonomia e autenticidade, cuja atitude crítico-reflexiva reverte-se em verdade e evolução. É muito mais do que uma declaração de identidade entre sujeito e predicado. Implica evolução e transformação do indivíduo nos sentimentos e em todos os setores e relações de sua vida. “Significa renovar-se, evoluir, dar de si, amar, ultrapassar a prisão do próprio eu isolado, estar interessado, desejar, dar” (FROMM, 1987, p. 97). Dessa forma, o Ser tem como requisitos primordiais a independência, a liberdade e a razão crítica, e como maior característica, uma postura ativa do indivíduo (o “Ser Ativo”). Não no sentido de estar atarefado, mas sim, uma forma de atividade íntima na qual o sujeito faz uso criativo dos poderes e talentos humanos. No entanto, como não se refere a coisas definíveis como o Ter, Fromm (1987, p. 97-98, grifos do autor) enfatiza que o Ser é, em sua essência indefinível em palavras, mas que emerge na medida em que o sujeito se afasta do Ter, em sua busca por identidade e segurança por meio da posse e do apego, o que exige “renúncia da egocentricidade e egoísmo, ou, nas palavras frequentemente empregadas pelos místicos, tornando-se vazios, pobres”. Na experiência cotidiana, os indivíduos orientados pelo Ter e pelo Ser destacam-se, por exemplo, em situações como no exercício da autoridade, no qual a diferença reside em ter autoridade e ser uma autoridade. Pois aquele que tem autoridade – situação que quase todos nós já vivenciamos – a exerce de forma arbitrária, abusiva e ameaçadora, diferente daquele que é uma autoridade devido à sua competência inata para tal. Trata-se de um indivíduo que irradia autoridade, que não precisa dar ordens, ameaçar ou subornar, pois demonstra autoridade pelo que é e, não, pelo que faz ou diz. Outro exemplo da diferença entre Ter e Ser está na esfera do conhecimento, uma vez que existem aqueles que têm conhecimento e aqueles que simplesmente conhecem. Os primeiros tomam e conservam posse de conhecimento disponível (informação); já aqueles que conhecem, utilizam este conhecimento de forma funcional, como meio no processo de pensamento produtivo (FROMM, 1987, p. 53-55). Conhecer significa penetrar através da superfície, a fim de chegar às raízes, e, por conseguinte, às causas; conhecer significa “ver” a realidade em sua nudez. Conhecer não significa estar de posse da verdade; significa penetrar além da superfície e lutar critica e ativamente a fim de se aproximar cada vez mais da verdade (FROMM, 1987, p. 56). Em 1995, Barnes apresenta e aprofunda as correlações das ideias de Fromm sobre o Ter e o Ser com a aprendizagem (1987, p. 46-48), propondo dois modos de aprender: o modo aquisitivo, ou aprendizagem passiva e o modo interativo, ou aprendizagem ativa. No modo aquisitivo o aprendiz vê o conhecimento como algo a ser adquirido e possuído, todo um conjunto de conhecimento é transformado em um aglomerado de ideias fixas ou teorias armazenadas de forma passiva, ou seja, o aprendiz torna-se tão somente um proprietário de um conjunto de conhecimentos/noções e afirmações feitas por outra pessoa. Dessa maneira, aluno e aula tornam-se estranhos, o primeiro tão somente tratou de se apropriar de alguns conceitos que tenha conseguido levar para o papel, ou seja, a maior parte do conteúdo não se torna parte dele, porque as ideias essenciais, difíceis de traduzir em anotações de aula, acabam sendo ignoradas e banalizadas. O modo interativo – aprendizagem ativa – é observado quando o aprendiz se ocupa do
assunto, ainda que antecipadamente à aula, e se envolve com o conhecimento que está sendo construído durante a mesma. Portanto, o modo interativo proporciona estímulo dos processos mentais do aprendiz, originando novas ideias e mudanças, por intermédio de participação ativa, caracterizada pela compreensão de conceitos e questões, em lugar da pura e simples retenção e apropriação destes. O aluno busca um aprofundamento na essência do conteúdo da aula, persiste, tece analogias, recorda situações do cotidiano, busca interfaces com áreas afins e torna-se parte do assunto, assim como este passa a ser parte de sua vida e história. Agindo de modo interativo, o aprendiz preocupa-se em aprofundar as afirmações e informações com o objetivo de levantar questões, analisar e testar paradigmas, persistindo nas ideias a fim de compreendê-las. Dessa forma, no modo interativo ou ativo, o aprendiz não trabalha com afirmações isoladas, trata-as passivamente ou considera-as como conhecimento fixo. Ele não absorve nada sem processar, fazer interfaces, conexões, confrontar com suas próprias opiniões, refletindo ativamente nas questões levantadas (BARNES, 1995, p. 26-27). Além do mais, o modo interativo facilita a memória, ao correlacionar-se positivamente com a capacidade de lembrar, recordar e recuperar imagens e acontecimentos prévios, que de alguma forma, deixaram uma impressão no aprendiz (FROMM apud BARNES, 1995, p. 2829; PEIXOTO & SILVA, 2002, p. 107). Dessa maneira, retornando ao cerne das ideias propostas inicialmente por Fromm (1987), faz-se necessário enfatizar que o Ter (aquisitivo) e o Ser (interativo) sempre estarão diretamente ligados a diversos aspectos das diferentes experiências inerentes ao desenvolvimento cognitivo, desde a mais tenra idade do comportamento humano. Ou seja, todo indivíduo, antes mesmo de frequentar o ambiente escolar, aprende coisas, hábitos e comportamentos. Inicia sua inserção cultural na sociedade em que vive, desde o conhecimento mais elementar inserido no acostumar-se do universo do senso comum, até as posteriores e sofisticadas questões filosóficas (SANTOS & PEREIRA, 1999, p. 40-47, grifo dos autores). Entretanto, cada indivíduo terá sua forma peculiar de se posicionar diante da vida, das pessoas, dos fatos, das coisas e do conhecimento, na qual emergem os dois modos de aprendizagem propostos: pessoas predominantemente orientadas pelo Ter e aquelas predominantemente orientadas pelo Ser. Assim, torna-se razoável admitir que esse processo abranje também a formação dos hábitos alimentares, das representações sobre o alimento, do “aprender a comer”, e inclusive das concepções sobre saúde e doença, que devem ser observadas, com cuidado, pelo profissional da área de saúde, no sentido de compreender e intervir em situações específicas, tal como a obesidade. Referências: ALMEIDA, B. de & FERREIRA, S.R.G. Epidemiologia da Obesidade. In: CLAUDINO, A.M. & ZANELLA, M.T. Guia de transtornos alimentares e obesidade. São Paulo: Manole, 2005. BARNES, R. Seja um ótimo aluno – guia prático para um estudo universitário eficiente. Campinas, SP: Papirus, 1995. FROMM, E. Ter ou Ser? Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1987.
HERNÁNDEZ, J.C. y ARNÁIZ, M.G. Alimentación y Cultura: perspectivas antropológicas. 1ª ed. Barcelona: Editorial Ariel, 2005. PEIXOTO, M.A.P.; SILVA, R.N.M.B. Aprendizagem: estratégias e estilos. Rio de Janeiro: ABT, 2002. SANTOS, J.M; PEREIRA, A. Cosmovisão, Epistemologia e Educação: Uma compreensão holística da realidade. Rio de Janeiro: Gama Filho, 1999.