Fabrica das Historias

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Casa Jaime Umbelino




VERSO GUARDA


Casa Jaime Umbelino


A Fábrica das histórias: casa Jaime Umbelino | Torres Vedras Coordenação Ana Meireles Carlos Guardado da Silva Apresentação Carlos Manuel Soares Miguel Texto Ana Meireles Carlos Guardado da Silva Cecília Travanca Rodrigues Tereza Moura Guedes Desenhos Simão ??? Grafismo Olga Moreira Edição Município de Torres Vedras Impressão Sogratol, Lda. Depósito Legal ISBN Tiragem 1000 exemplares ??? 1.ª Edição | Setembro 2009 Catalogação AFábricadasHistórias:casaJaimeUmbelino/coord.AnaMeireles,CarlosGuardadodaSilva;ApresentaçãoCarlos ManuelSoaresMiguel;TextosAnaMeireles,CarlosGuardadodaSilva,CecíliaTravancaRodrigues,TerezaMoura Guedes;FotografiaPedroCláudioDesenhos?Simão…-TorresVedras:Município,2009.–200p.:il.;21cm CDU 94 (469.411 Torres Vedras) “1976/2005” 342.84(469.411Torres Vedras)”1976/2005”


K. Popper


Apresentação


Ipexestoodtetwismoloreveldelitalitlorersustodignafaciexesedduiblam,velutpatietemquamcommynumvenibhexeriurever sequiscilesedtemingeram,quatatumvelessiercipsusciessenissimectevelisimvelitwisdolorsisisnonsequisniscipismoderilerat.Ut lutatveldolentectetincildoconseconseconsenitalitloborefeugiamirillanulluptatadersitvulputvenisamet,quamet,sitadmagnisit,si blaconsenimnimvullaautatwisitduntdodignitlaconsequatloboreeaalisamventingeuipsustrudminvullaoreminullafeufaccumvel iuscil ut aliquat inisim quisi tem volorem in ea faccum nibh eros nulla facipit wisi. Agnisaugiametummoddioodipexexenibherciblaaliquamnonhenimdolenismoloreet,siteaconsenitlummolorinhentnimautem quisecteexessitutenimvelisdolentlumdoloreetinulputadmodolorecommodolorineradipit,quatumeufaccumexeroconsequat pratemvulputet,venisnullam,semagnibhexexerostruddelullaoredoloreminutat.Numdoloremnullamdolorperiureconvolestrud eugiat.Sanditaditullanditdipisitatnibhetvenissequitat.Remoluptat.Utingestrudeumvullaoratlanutpatiefeuiscilitautpatumquislin velisim ex et alit volortinisit lor sis dolobore dolent la autpat ipis eugait la con eum erat prat. Dolendiamconectedelitloremagnisciduiscilduntlacoreconsenitamcommynonullamnonullafacitionutnonsectetisisadipsumildeliquiseuismoloreroconsedersumililexerillutpraessevelit,sitexersimnumzzritutatvelutvelinexeroercilisnisnitaciduntwisadipisl eterincilisisnullaadtisimduntnitnimdigniamnonullutpatueripitipeuguerosnumvelexeniamdoodolenisisisimveleniatueriureet iril dolorperosto dolortinci blaore endrerc iduisi. Erillandiamnullandiat.Udectet,veliserosadteveliquatiscipitlafeugaitexerosauguerciliscincincinisnullanditprat,quipsumsanexerat. Delit utatuer cincin hendre feumsandigna faccum venibh eril eugiatio dunt dolum voluptat aute modoloborem zzrit acillutpat. Ommodolorersiblafacillafacilutpatueeufacillumsandredoloreet,coreetaugaitvolumdolorametingexersevullacoremdionutpatin velis am, quis accum zzriure molessi. Iduisi euguero et niam quis nulla faccum il utpatetum quissi. Imdoloreetillametlaoreminimautpatinvenitet,vercilullafeumsanhendreetnonullafacillaoreetiritnitlafaccumeuisimvelingeum zzriuscitionseniatestoectevelitutatnulputpat,consedteestinullaconhenibhexerilisiblaaccumquat.Emaliquatinutpat.Udmodolorper inibh et aliscil dipisl digna facidunt veleniat loreet ad ea faci

O Presidente da C창mara de Torres Vedras

Carlos Manuel Soares Miguel


A F谩brica das hist贸rias

Ana Meireles


Todo o projecto é a expressão de um desejo, de uma intenção, de uma ambição e de um futuro, pelo que muitas vezes se pode considerar um sonho. Ora o sonho é sempre matéria escorregadia, que não se deixa facilmente aprisionar nas malhas da sistematização, mas aquele que está na origem da Fábrica das Histórias – Casa Dr. Jaime Umbelino, firmando-se nas concepções museológicas mais recentes, pretende criar um espaço que tendo uma identidade particular, pois nele existe a memória de quem o habitou e organizou de acordo com o seu gosto e o seu modo de viver, se faz simultaneamente lugar para o exercício da cidadania, permitindo que uma memória pessoal, depois de reflectida no espaço público, se transforme em memória colectiva. Resultado de um vasto e participado trabalho de equipa, este projecto partilha do primado da democratização da cultura e da cultura democrática, que alicerça através da acessibilidade ao património, criando experiências sociais gratificantes do ponto de vista da educação formal e não formal, promovendo a valorização das pessoas para as quais se constitui como elemento indispensável nos domínios da fruição e da criação, em áreas tão distintas como a das artes plásticas, da música e da literatura. Os seus esquemas de acção e os seus modelos de intervenção desenvolvem-se sobretudo no domínio das palavras, eixos que estabelecem relações pró-activas com o mundo das histórias e são um dos principais veículos da liberdade criativa, e talvez mesmo o maior suporte de toda a matéria imaginada. A opção de promover, com especial ênfase e de forma sistemática, actividades ligadas à organização de estratégias e práticas que estimulam o amor pelas histórias e pelos livros, emerge do horizonte de quem propôs o projecto e da própria realidade social que se vive, assente no paradigma de uma sociedade que é, sobretudo, audiovisual, e onde o livro continua a ser considerado um bem de utilidade marginal, apesar das múltiplas oportunidades, planos e programas, que tendo sido criados continuam incapazes de articular a passagem do desejável ao realizável. As suas linhas estruturantes apontam para a criação de um espaço de “coisas”, mas também

de palavras, de objectos mas também de memórias, de imagens mas também de páginas em branco, sem definição de fronteiras entre o presente e o passado, entre o passado e o futuro, vivendo assim num verdadeiro contexto de transversalidade. Ao procurar conjugar a história de um homem com a história local, contributo para a definição de uma identidade, vai depois ainda mais longe, dando lugar às histórias que são de todos porque, como todos sabemos, não são de lugar nenhum. O projecto sem fim que se dá a conhecer, pretende pois criar um espaço-reflexão e um espaçoemoção. E nesse universo iremos encontrar: Histórias tristes para dias de chuva, histórias doces para dias que cantam, histórias de bruxas para dias zangados, histórias de anjonautas quando estamos desesperados. Histórias que dizemos, que vemos, que ouvimos, que tocamos e lemos. Histórias que vivemos. Histórias. Histórias para rir, sorrir e chorar. Histórias. Na Fábrica das Histórias. Que se abra pois este projecto como quem mete as mãos pela folhagem da primavera ou pela folhagem dos livros de histórias.


Tal como o geógrafo amador persegue a textura dos solos, o contraste das paisagens, a contiguidade ou a fragmentação dos caminhos, seguindo o mapa e anotando-lhe isto ou aquilo, para depois voltar, sempre que a saudade lho pedir, também neste livro se vai percorrer o espaçotempo que nos leva da casa à fábrica, abrindo-nos ao prazer de vagabundear por todos os seus caminhos e por todo o emaranhado dos seus atalhos e entroncamentos. A decisão deste vagabundear não é neutra, pois parece absolutamente fundamental para conhecer este projecto, que se percorra o seu traçado, que não é menos importante do que o espaço de cultura em que se edifica, explicitando claramente o conceito gerador que presidiu à escolha de um percurso a vários títulos inovador. É importante começar por explicar que o projecto vem dar cumprimento ao objectivo da Autarquia pretender utilizar um acervo institucional, formado por um bem imóvel, património qualificado de interesse municipal, e ainda por múltiplos objectos, livros e móveis, abrigados por uma situação jurídico-formal de doação, e que exigiam a necessária resposta a requisitos que se prendiam com a sua catalogação, inventariação, conservação e exposição. Pelo exposto se percebe que o seu ponto de partida é uma casa e uma colecção de objectos pessoais, a maioria de uso quotidiano, e que mais do que um valor artístico ou patrimonial, tinham interesse pelo contacto que haviam estabelecido com a pessoa a quem haviam pertencido, o Dr. Jaime Umbelino. Se o aliciante de uma casa é poder oferecer, aos públicos que a visitam, um conjunto de interpretações, símbolos e narrativas, dando a visão, se bem que fragmentária, do mundo de quem a habitou, criando laços de identidade local, a ideia da Fábrica das Histórias vai mais longe, pois pretende criar um sistema mais dinâmico, evolutivo e interactivo, levando a que esse mesmo património se possa vir a incorporar de novos sentidos, ou seja, permitindo que esse património, embora mantendo-se ancorado no passado, se venha a enriquecer com o presente, o que permite ir refazendo uma colecção que à partida seria estática e meramente documental, dando a possibilidade de novas leituras que se tornam mesmo intermináveis, e transformando um acervo meramente institucional num acervo operacional. A recontextualização do património legado num outro tempo e noutros significados, ligados ao mundo das histórias, através da intervenção de diferentes artistas plásticos, que vão reinventando os “objectos museológicos” afastando-os da memória havida, permite o despertar de novos valores afectivos, cognitivos e estéticos, relacionados com o imaginário de uma comunidade que se alarga, abrindo-se à possibilidade de que seja esse imaginário a ter o poder de

renovar o espaço e tudo o que nele existe, ou seja, a torná-lo infinito. Assim, da casa se chega à fábrica. E nesta não são os “objectos museológicos” doados que assumem o papel determinante, mas os artistas e todos os que nela trabalham, enquanto recriadores de histórias e de património, e ainda os próprios visitantes, enquanto questionadores do lugar desse património nas histórias, já que o que se pretende é sobretudo que este espaço de cultura, enquanto processo, venha permitir a todos, do público leigo ao mais exigente, estabelecerem uma relação aberta e dinâmica, uma relação dialéctica, apostada num discurso sempre discutido e não num discurso meramente contemplativo. Fábrica de Histórias e do pensamento, pela reelaboração imaginária de todos, nela se irão ultrapassando quer a contingência das coisas quer a contingência do tempo, para que se torne a pátria onde todas as histórias são possíveis, e onde cada um pode encontrar-se estabelecendo com elas uma rede de afinidades e memórias. Assim, num espaço aberto, feito e refeito pelos artistas, pelos técnicos, pelos públicos, se experimentarão novos conceitos e novas práticas, ferramentas que de forma inovadora e audaz permitem a uma comunidade estar à frente do seu tempo. A solução encontrada, porque viabiliza a dinamização do espólio doado, onde o visível da materialidade das coisas dá lugar ao invisível da imaterialidade das histórias, é, sem dúvida, um dos grandes méritos de todo o projecto. Dentro desta conformidade a Fábrica das Histórias pode reconhecer-se longe da vitrinificação dos velhos museus, pois os objectos, os livros, os móveis, deixam aqui de ser entendidos como um fim em si mesmos, afastando-a do museu armazém para a conduzirem a um lugar onde, embora se exponham esses mesmos objectos, livros e móveis, a estes se lhes dá a possibilidade de interiorizarem novos conceitos. É para a Fábrica das Histórias, qual largo de aldeia, que convergem agora todos os caminhos. Nela se pisam as raízes das “coisas”, da casa, do homem que um dia a habitou, e das histórias, como se todas fossem uma única raiz. Sem setas para seguir, nela se aplaude quem começa pelo fim, mas também pelo princípio ou pelo meio, e até quem fica no jardim. Feita em permanente devir, conta as coisas antigas, mas que pelas narrativas que provocam serão sempre novas e diferentes. E sendo fábrica rima com palavras simples, como emoção, fazer. E sendo fábrica, sem cúpulas nem artifícios, permite olhar o céu e o voo dos pássaros migradores, abrindo-se ao horizonte e provocando as viagens. E sendo fábrica estende-se ao sol. E rompe, rompe através do mármore, do vidro, do tijolo e do betão dos velhos museus, fechados, húmidos e tristes.


A Alma da Casa Pedro Cláudio

Sabe-se que se todo o escrito é biográfico. Uma casa com os seus objectos também o é, na medida em que desvenda a vida de quem nela viveu, reflectindo sempre o coração de quem a possuiu e a sua passagem pelo tempo. Sabe-se ainda que é precisamente esse mergulhar no passado e no privado que mais fascina o visitante de um espaço. Assim, antes da casa começar a ser “fragmentada”, “cortada” e “remontada”, como se fosse um puzzle, havia que lhe captar a alma, guardar-lhe a memória, registar como ela foi palco de uma realidade, para que depois se pudessem fazer as correspondências intimas com uma história de vida, a do Dr. Jaime Umbelino, homem que no movimento desordenado das suas escolhas encontrou numa pintura, num objecto, num livro, fosse valioso ou simples, frágil ou robusto, estranho ou vulgar, uma vibração que o levou a integrá-lo no seu espaço, criando assim a sua casa tal como um pintor cria a sua obra sobre uma tela em branco. Nas fotografias de autor, tropeça-se então em ínfimas memórias e afectos, cada qual requerendo atenção única, comentários que se gostaria que fossem interpretáveis, enfim, um acréscimo a uma simples impressão, a uma impulsão, fruto da impaciência no achamento da unidade entre o homem que habitou e o espaço que foi habitado.










































O projecto da Fábrica Simão Leandro

O edifício onde nasceu a Fábrica das Histórias, considerado património qualificado de interesse municipal, caracteriza-se por um imóvel de traçado simples e rigoroso. Apresenta uma fachada de desenho simétrico, com vãos de molduras palacianas em pedra, assim como cunhais, frisos e cornijas. A entrada principal, encimada por um óculo, marca o seu eixo de simetria. O volume da construção apresenta uma forma regular e proporções algo desequilibradas, quando comparadas com a composição da fachada e a inspiração do seu desenho, mas evidencia, pela sua singularidade, a presença de um tempo e a história de um homem, o que tornou imperativo a preservação do imóvel e a sua recuperação. O edifício encontra-se hoje consolidado na malha urbana. Encosta-se a sul a um edifício mais alto, sendo curioso o recuo que apresenta, a norte, a fachada vizinha, deixando que uma fiada de janelas possa espreitar neste sentido, como querendo dizer que em tempos já idos esse território lhe pertenceu. No interior, o edifício divide-se em dois pisos. Um piso semi-enterrado que recebe luz da rua através das janelas situadas a uma cota superior junto da laje. Este piso tem a compartimentação que serve de estrutura ao piso superior, e servia como espaço de arrumos ou zonas menos nobres da habitação. O piso superior é elevado em relação à rua e encerrava os compartimentos nobres da habitação. Este piso revela, ainda hoje, uma grande originalidade interior, o que lhe confere importância no conjunto dos edifícios do seu tempo. Caracteriza-se por um espaço central, iluminado por uma luz zenital difusa, que serve como espaço distribuidor de outros espaços mais pequenos, labirínticos, misteriosos e sedutores. O pequeno pátio, nas traseiras, situava-se a uma cota mais baixa e era acessível através de umas escadas junto à cozinha. Ao longo dos tempos a habitação sofreu algumas alterações: a laje do piso nobre foi alterada e reforçada com materiais e técnicas mais recentes, apesar de ter sido mantido o soalho de madeira; parte da instalação sanitária foi demolida para dar lugar a uma sala com maior área; a cozinha original foi demolida e construída outra num novo compartimento no terreno do pátio, onde também foi construído outro anexo com uma mezanine acessível através de uma escada circular de ferro. O novo programa proposto agora para um espaço de cultura, a Fábrica das Histórias, apelava assim a uma readequação e reinvenção do edifício, com vista a nele poderem ser levadas a cabo um conjunto de actividades associadas à sua nova missão.

A transformação do privado em público é uma tarefa difícil de levar a efeito, exigindo um enorme cuidado a quem a processa, de forma a conseguir metamorfosear o espaço sem, contudo, o adulterar, permitindo usar uma linguagem moderna muito própria que se mantém em diálogo com a já existente. Transmitir uma história de vida e, em simultâneo, todas as outras histórias que cruzaram a vida de uma comunidade, e ainda todas as outras que fazem parte de um imaginário maior porque são do mundo, implica escolhas que se devem saber explicar. Então veja-se: A intervenção física exigiu que num espírito de equipa e empenhamento, se encontrassem soluções para diferentes problemas, como o de se articularem as diferentes zonas entre si, de não se limitar o acesso a públicos com necessidades especiais e de, com uma nova linguagem, se tirar partido das características da casa, que sendo muito singular é capaz de proporcionar uma experiência sensorial, emocional e cognitiva aos seus novos visitantes, pois se reveste de um enorme carácter lúdico. Muito difícil foi tornar os pequenos e labirínticos espaços num lugar funcional, mas que não se quis que perdesse o mistério, optimizar a luz sem que se perdesse um certo ar de neblina, o mesmo que atravessa as histórias, respeitar os tectos em masseira, o soalho em casquinha, as balaustradas em madeira fingida, as portadas das janelas, os estuques…. Muito difícil também foi conseguir coerência entre os diferentes espaços, tendo em conta que esta era imprescindível para dar consistência a uma história de vida, a do Dr. Jaime Umbelino. A tal foram chamados os arquitectos, técnicos e especialistas de diferentes áreas, que trabalham na Câmara Municipal de Torres Vedras, e que puseram em prática as múltiplas adaptações que o espaço exigia, tendo em conta os condicionalismos existentes e as outras soluções de compromisso que já se referiram, mas encontrando respostas que se pontuaram sobretudo por personificar o diálogo entre o antigo e o contemporâneo, nunca perdendo de vista a carga pessoal de todo o edifício e tendo também em conta o próprio enfoque temático da casa, ou seja, as histórias. Pensa-se que esta foi a melhor forma de contribuir para a sua afirmação enquanto lugar de interesse e significado na comunidade. Num sentido mais prático, depois de identificadas as suas necessidades e as limitações, no piso superior, procurou-se re-elaborar o espaço tendo em conta a necessidade de uma boa circulação, dando resposta a questões de segurança e conforto, tudo isto sem deixar de estar em


função de uma história de vida, com os seus objectos, que são sempre um começo de culto e de curiosidade, descendência e sucessão, matéria para aprender e signos para decifrar e interpretar a história de um homem, mas também de uma cidade e de uma comunidade. E porque, e de acordo com o conceito desta casa, os objectos museológicos se assumem não só como pólo catalisador do estudo e da investigação de uma vida, de uma obra e de uma época, mas também pertencem às histórias, que são de todos pois não são de lugar nenhum, apelando a outras memórias e a outros sentidos, abre-se ainda aqui um lugar para as intervenções artísticas. Desta forma as palavras-chave para a readequação do espaço a novas funções foram não só a recuperação e o restauro, mas também alguma invenção para o dotar das exigências necessárias para a função expositiva, interventiva e de recepção ao público. No espaço exterior das traseiras, uma nova clarabóia em vidro conduz agora a luz ao espaço em baixo, e amplia a zona junto da cozinha como espaço de lazer e convívio. Lá fora, o pátio permite outras actividades nos dias mais agradáveis. No piso inferior usou-se um traço mais contemporâneo e rectilíneo, à luz de um outro discurso estético, marcado pela simplicidade e pela necessidade deste vir a ser o espaço capaz de oferecer maior amplitude e liberdade, tendo em conta o tipo de actividades que aqui se desenvolvem. Também se tiveram em conta problemas muito práticos, como o da humidade, e neste sentido, foram removidas paredes e nasceram outras com uma grande plasticidade. Estas novas paredes móveis permitem agora que todo o espaço possa vir a ser repintado, redistribuído, pois este projecto apostou sobretudo no reversível, como se o trabalho de arquitectura se tratasse de uma espécie de instalação nómada que permite albergar e reinventar novas “histórias”. Foram ainda abertos outros “buracos”, por onde pudessem entrar outras “luzes”. Foi também destruído o anexo no pátio e o terreno foi rebaixado para a cota do piso inferior. Neste lugar existe agora um pequeno auditório para quem se quiser sentar para ouvir novas “histórias”, ou mesmo poder contar a sua. Como resultado de toda a intervenção feita, há uma evidente ruptura espacial e estilística entre os dois pisos, uma mistura do prático e do onírico, sem no entanto se perder a ideia de que o público deve “ler” os dois espaços de uma forma simples e neles achar a devida coerência. Depois de concluídos os trabalhos pode seguramente afirmar-se que o desafio foi ganho. Hoje entra-se no edifício, com um acesso directo aos serviços de acolhimento e também à loja, para logo depois se estabelecer um discurso circular com o resto da casa, das suas coisas, da vida e

da obra do homem que a habitou, e também das histórias que nela viajam. Resta esperar que os visitantes, quando saírem, levem as memórias do seu patrono, mas também a sensação estranha e boa de que entraram numa história, e ao entrarem nela se dispõem a voltar para uma e outra história, funcionando perfeitamente no espaço a ideia do Era uma Vez…Outra Vez







Não se entende por património apenas as “coisas” que coabitam na Fábrica das Histórias, com a sua existência tridimensional, o que sublinha a sua realidade material, palpável e tangível, mas também a representação que se faz dessas “coisas”, o que está para além da sua materialidade no espaço e no tempo, e lhes permite viver numa espécie de estatuto do imaginário.

O Património Partindo deste conceito de património tomaram-se as “coisas”, umas fascinantes e outras enfadonhas, umas comoventes e outras pueris, já que todas as coisas se apresentam sempre com a possibilidades de gerarem juízos variáveis e impressões diferentes, e partiu-se para a criação de uma Fábrica das Histórias que sendo das “coisas” está sobretudo no coração delas. Assim, numa primeira etapa, o património foi encarado na sua singularidade, classificado e inventariado para que seguisse uma ordem ligada à História, mas também a estilos e léxicos visuais, depois arrumou-se esse mesmo património de acordo com uma nova linguagem museográfica e, finalmente, para não permitir que as “coisas” ficassem parasitadas pela ameaça da sua redução a simples códigos de decifrar, legitimaram-se as intervenções artísticas, fazendo assim com que as “coisas” escapassem a horizontes de pequena dimensão, para se tornarem infinitas no exercício da sua liberdade.


Classificação e Inventariação dos bens móveis

Sabe-se que todo o objecto é um começo, um fragmento de vida. Olhá-lo como signo ou sinal da mão que o sopesou, do ouvido que lhe reconheceu o cair no soalho ou o riscar na pedra, lembrar sabores que poderia ter contido, é o que fará cada visitante da Fábrica das Histórias, levado pelo fascínio de se “intrometer” no espaço íntimo e privado de uma casa e do homem que a habitou. Para isso bastar-lhe-á inventar uma história para o pequeníssimo pedaço de azulejo, inventar uma história para a carteira de escola, inventar uma história para os Lusíadas em formato minúsculo. Enfim, inventar. E para inventar haverá, esse mesmo visitante, de ir interrogando as “coisas” que habitam o espaço, na procura da relação que entre elas, e com ele, poderão estabelecer. Não uma relação estritamente histórica, ou seja, aquela em que se abrem muito os olhos, se dilatam as narinas e se detectam jarras da Companhia das Índias ou o cheiro do pano, da fibra e da cola de uma cadeira Luís XV, acreditando que tal pode dar consistência às “coisas”, mas uma relação principalmente poética, que é a que permite entendê-las na sua singularidade e no seu acontecer. Esta “visão” não passará, contudo, do tecer da imaginação, empobrecida da “verdade” das “coisas”, o que não diminui em ninguém, é certo, o prazer de inventar. Mas a colecção de uma casa que se quer espaço público de cultura deve ser bem mais do que isso, pois não funciona só como um conjunto

de objectos privados que, ao transitarem para a esfera pública ganham sentido no facto de terem pertencido a uma dada personalidade, competindo-lhes depois contar histórias de vida. Para além disso, exige-se que estes sejam ligados a uma época, a um local, a uma comunidade, a acontecimentos, a problemas e a soluções. Era assim necessário ser muito rigoroso, fazer uma observação atenta do acervo, trazer para a “luz”, cada objecto, num decifrar pago pelo esforço de uma classificação, inventariação e documentação minuciosas de todos os bens que de forma legal tinham passado a integrar a instituição. Para isso foi criada uma pequena equipa pluridisciplinar, que sistematizou o conhecimento do espólio, separou os bens que evidenciavam ser portadores de interesse patrimonial relevante, realizou a análise e avaliação da sua conservação, fotografou cada uma das peças, dando a algumas fotografias os detalhes capazes de lhes conferirem leitura, fez depois o seu inventário integral em formato digital, indo ao encontro do Programa Matriz que é uma relevante ferramenta de inventariação e de gestão de colecções, assegurando os normativos e os padrões impostos quer do ponto de vista nacional quer pelo ICOM. Não foi tarefa fácil, tendo em conta que não é só o que é dotado de um suporte físico individualizado que é classificado e inventariado, mas também outros bens com algum carácter

de fungibilidade, como foi o caso de registos fotográficos e escritos que se encontravam dispersos pela casa. A equipa deparou-se assim com dificuldades nos aspectos conceptuais, legais, metodológicos e práticos, sempre inerentes a estas listagens, que acabam por ser morosas tendo em conta que devem ser feitas de acordo com todos os critérios de apreciação tipificados na Legislação, a fim de que os bens possam vir a ser referenciados em diferentes categorias, servindo para constituir uma base de dados a utilizar como futuro suporte dos produtos culturais a concretizar pela Fábrica das Histórias, instituição à qual compete gerir e disponibilizar todos os documentos, toda a informação que ajude a fazer a história de um lugar e do homem que o habitou, o Dr. Jaime Umbelino. Sendo pois uma tarefa gigantesca e de paciência, foi também, sem dúvida, a única capaz de permitir que todos estes bens venham a usufruir de um regime de protecção destinado a evitar o seu perecimento ou degradação, permitindo ainda o apoio à sua conservação e a divulgação da sua existência, como aponta a Lei Quadro dos Museus e todos os diplomas que viabilizam a sua aplicação. Isto só foi possível devido à flexibilidade existente nos Quadros da Câmara Municipal, que sem violar o enquadramento funcional a que cada especialista está acometido, facilitou a nomeação de uma pequena equipa para esta gigantesca tarefa.







A linguagem das “coisas”

Quando se trabalha com uma colecção de objectos a expor, é extremamente importante adequar as obras ao espaço que se abre ao público, e ainda ao próprio conceito e objectivos desse mesmo espaço. Foi assim que se sentiu necessidade de utilizar uma nova linguagem museográfica, tendo em conta a missão da casa, agora Fábrica das Histórias, que para além dos reconhecidos objectos museológicos, pretendia utilizar um conjunto de outros elementos musealisáveis, como as histórias, a poesia, os contos, os ritos e os mitos, alargando com isso a própria noção de património. A entrada destes novos elementos dinâmicos num lugar que até agora os tinha marginalizado, a que se juntou o trabalho dos artistas plásticos, acabou por colocar este espaço de cultura fora da rigidez normativa dos velhos museus, onde os visitantes, partilhando do fascínio pelo silêncio e pelo lúgubre, pelo formal e pela sacralização do exposto, se entendiam como meros espectadores. Por tudo isto houve que renunciar, sem medo, a exposição de alguns objectos, não só para que o conjunto ficasse mais coerente, mas também pela necessidade de se criar uma “mise-en-scène” para as histórias que se pretendiam contar. De facto, ao ter-se como objectivo que o património real e tangível não fosse apenas consagrado ao louvor do olhar, nem tão pouco que ficasse cristalizado num dado contexto, procurando sobretudo que fosse um meio ao serviço das interrogações, capaz de proporcionar várias leituras quando integrado em diferentes contextos, apelava-se à interactividade através do primado do discurso com todos os visitantes, o que implicava percorrer um novo caminho, cheio de riscos, é certo, mas o único que se acredita capaz de abrir novas perspectivas. Assim se percebe que foi, é e será nesta espécie de escrita “desordenada” e “contínua” do espólio doado, que se apresenta sempre com múltiplas possibilidades de leitura, aquilo que permite à Fábrica das Histórias ser um espaço de múltiplas sinergias, um espaço de “actores”, em que o poder do imaginário dos visitantes consegue sempre tomar “uma velha parede envelhecida, ferida pela chuva e gretada pelo tempo, para ver nela um belo quadro de Tapiés.” Num sentido prático, pode afirmar-se que, em equilíbrio perfeito entre o indispensável enquadramento espacial e luminotécnico de alguns objectos de maior valor patrimonial, a outros se confere versatilidade, para que se possam re-contextualizar em novas histórias, sendo o visitante orientado na descoberta, ora de uns, ora de outros. No andar inferior, num desenho expográfico completamente distinto, que permite evitar a sen-

sação de repetição e de cansaço visual, liberta-se ainda o visitante para a leitura de excertos de textos do Dr. Jaime Umbelino. Estes textos, seleccionados e não casuísticos, estabelecem relação com alguns dos seus mais preciosos objectos, a sua máquina Olivetti, fotografias, sebentas de alunos, um livro, uma caneta vermelha…tudo testemunhos que constituem e suportam um “corpo” capaz de explicar o homem. Pela linguagem que se adoptou e pelo conceito em que assenta a casa que agora é fábrica, e que não se quer ver esgotada na lógica dos olhares, nem esvaziada pelos ventos do espírito do tempo, mas espaço de vida em que se convertem as coisas em histórias e em acontecimentos, a Fábrica das Histórias, espaço fechado e labiríntico, alarga-se, dilata-se, e uma pequena exposição “condenada” a ser de uma região, torna-se de todos os lugares e de todo o mundo. E, muito sinceramente, acredita-se que é sobretudo aqui que reside a sua riqueza.


Intervenção Artística

As histórias existiram desde sempre para ajudarem o Homem a enfrentar a solidão, o medo e o frio. Nasceram da palavra, do gesto e da voz, e percorreram milhares de quilómetros, crescendo, mudando, transformando-se, adaptando-se. Hoje são histórias sem dono. Histórias de todos os tempos e de todos os lugares, histórias que continuam em viagem pelo mundo, e que ao cruzarem os seus caminhos com a infância, vão muito mais além do que simples companheiras de divertimento, pois pelo diálogo que estabelecem ajudam a libertar essa mesma solidão, medo e frio, o que não seria possível sem a sua intromissão na vida de cada um. Com elas se aprende como é complexo o ser humano e como vive sentimentos diferentes e inquietantes, mas também como consegue encontrar tantas soluções quantos são os problemas que se lhes vão apresentando. Assim, pegando em histórias de todos os tempos e de todos os lugares, material fabuloso que ajuda a construir os nossos alicerces enquanto pessoas, e é também matéria prima da imaginação, a Fábrica das Histórias convida artistas com linguagens plásticas e universos simbólicos diferentes, a fazerem a sua intervenção no espaço, ajudando a que se crie um lugar mágico, ou seja, um espaço de cultura para ver, tocar, ouvir e brincar e, portanto, de forte componente sensorial. Celebrar as histórias, trabalhá-las não no seu conteúdo mais imediato, não através das ideologias que transportam, mas sobretudo como uma forma de encarar as realidades que afloram, inventando-lhes novos pontos de vista que permitam aos visitantes, segundo a feliz expressão de Gianni Rodari “ver o invisível, tal como os cientistas vêem ondas magnéticas onde mais ninguém as vê”, abrindo-se ao dom de olhar para as “coisas” não de uma lógica puramente utilitária ou de valor patrimonial, mas dando-lhes um valor nunca visto, um significado único e irrepetível, pode ser uma tarefa gigantesca, mas foi e será a que se vai esperar de todas as intervenções que aqui se forem fazendo. Afinal um armário em raiz de nogueira, pesadão e triste, não fará rir nem chorar, porque é só uma “coisa” inerte, independentemente do valor que os peritos lhe atribuírem, mas se lhe abrirem as portas para escutar o rugido do leão de nárnia, ou o som apressado dos pés do coelho branco, já será diferente. E se o armário se apresentar virado do avesso, tornando-se assim um belo “desarmário”, feito de pregos e cola à vista, que se pode transformar em barquinho de Gepeto para depois ser engolido pelo tubarão “como se fosse um feijão”, do prefixo à fantasia é só um instantinho.

Pela transformação dos objectos em “desobjectos”, na tentativa de os recolocar na linguagem terna das histórias, com as suas “trajectórias”, torna-se possível, a todos os que visitarem a casa, trocarem ideias com o Lobo Mau, tomarem chá com a Alice, tropeçarem no nariz de Pinóquio, puxarem as tranças à Maria Rabanete… Pelo caminho, e se tiverem sorte, podem abrir portas e gavetas de armários, e encontrar um sapatinho vermelho, o bule da Rainha de Copas, as dez estrelas da Fada Azul, o sorriso do gato de Ceshire pendurado numa árvore, ou até um sapo coaxando tristezas porque nunca mais conhece o beijo redentor. Tudo para provar que as histórias existem, basta caminhar pelo nevoeiro de uma casa antiga, espécie de caixa para onde converge a infância, não uma infância precisa, esta ou aquela, mas a infância soberana que habita o coração de todos. É assim que esta simples casa, que nos conta uma história, acaba a alimentar um sonho, um plano de encontro entre amigos, uma oficina do pensamento. É assim que esta simples casa se transforma em Fábrica das Histórias. E sendo fábrica não se quer lugar de quietude, de perfeição, de composição e de arrumo, mas o seu avesso. E sendo fábrica não se quer ver esgotada na lógica dos olhares, nem esvaziada pelos ventos do espírito do tempo, mas espaço de vida onde a paixão pode converter as coisas em acontecimentos, porque afinal numa fábrica “produzem-se” coisas e ideias. E quanta sabedoria não é necessária para criar um lugar assim?


Um espaço de encontros Ao renunciar-se a palavra “museu”, grandiloquente e até um pouco excessiva, optando pela palavra Fábrica, aparentemente mais modesta, discreta e apagada, escolhia-se um caminho, construía-se um sentido, assentava-se uma missão, tal como o calceteiro assenta, uma a uma, as pedras da calçada. Na prática apostava-se numa casa/espaço/cenário de intervenção, ferramenta estratégica para o desenvolvimento local, não apenas suportado pela preservação de uma herança cultural, mas sobretudo pelo estímulo ao desenvolvimento pessoal e social dos seus cidadãos, promovendo a criação em condições de igualdade e liberdade. De facto, ao permitir que as “coisas” da casa fossem abertas a diferentes construções de significados, a intenção não era des-construir e des-valorizar o painel do pensamento museológico clássico mas, outrossim, apontar um novo caminho, um horizonte mais vasto e promissor, que proporcionasse à comunidade um novo território e uma nova matriz de cultura. Que não fique a Fábrica das Histórias limitada pela sua localização e pelos seus muros, com as suas “coisas” e o que estas têm lá dentro. O que importa é percebê-la e registá-la como um espaço onde se tecem laços, se cruzam experiências, se partilham memórias e se constroem futuros. Lugar, espaço, território, deverão, na Fábrica das Histórias, querer dizer abertura. Abertura ao novo e ao surpreendente. E esta é, de facto, uma grande Missão.


O Serviço Educativo

A missão educativa, de um espaço público ligado à cultura, há muito que deixou de ser uma mera actividade complementar, passando a constituir-se como vital e integral para o seu sucesso. O serviço educativo da Fábrica das Histórias, tendo em conta a especificidade e conceito do espaço, que fogem à linhagem mais comum de “museu” e de “objecto museológico”, entendido como tesouro ou obra prima que integra uma colecção, e sobre o qual, habitualmente, se centram os olhares, tem por isso mesmo, uma programação menos fechada e tradicional, pois não joga com a dimensão aurática dos tesouros expostos, nem com os pesados constrangimentos da sua conservação e exposição. No entanto, assenta também num fazer que não se submete à lógica do entretenimento pelo entretenimento, nem vive obcecado pela quantidade e pela massificação dos públicos, alicerçando-se, outrossim, na visão renovada do que é educação, e de como os seus novos princípios podem ser transpostos para uma estruturação conceptual ao encontro da nova museologia. Pretende pois valorizar e difundir um interessante espaço de experiências com actividades que mais do que darem respostas, pretendem colocar questões e suscitar o diálogo, estabelecendo também um verdadeiro equilíbrio entre os interesses educativos mais formais e o prazer de aprender, contextualizando para isso o factor lúdico como forma de estimular a imaginação criativa e, em simultâneo, incentivar a aprendizagem. No árduo trabalho de achamento entre a unidade saber/fazer/prazer, a Fábrica das Histórias existe ainda como plano de encontro de uma comunidade. As suas linhas estruturantes, em termos de objectivos assumidos e partilhados por toda uma equipa, são as seguintes: ¶Contribuir para o desenvolvimento social, cultural, cognitivo e afectivo do indivíduo, visando a promoção de uma cidadania responsável, numa perspectiva de fruição, mas também de criação cultural; ¶Inverter a ideia de que uma aprendizagem é exclusivamente racional, dando-lhe como ponto de partida a expressão emocional e o carácter lúdico; ¶Dinamizar actividades experimentais e inovadoras que consigam englobar diferentes tipos de expressão individual, de forma a promover o contacto com diferentes linguagens artísticas, contribuindo para o desenvolvimento da imaginação e da criatividade; ¶Estabelecer pontes entre as pessoas, as memórias da comunidade e as histórias que não sendo de lugar nenhum são de todos os lugares; ¶Extrapolar o espaço físico estruturando acções fora de portas.

Ao constituir-se no conjunto das instituições culturais e museológicas da região, como um caso singular de relacionamento com a educação, faz a sua grande aposta na relação com as escolas, que quer fortalecer, criando laços e colocando-se à disposição dos seus parceiros mais directos, os professores. Contudo reitera que se as escolas são um público muito importante, também na sua política educacional não se pretendem esquecer outras franjas de públicos, sustentando-se na afirmação de que não se trata de um espaço que se destina a um público, mas a públicos diferenciados, com níveis culturais distintos e que, no seu conjunto, são cada vez mais presentes e exigentes. É, neste sentido, que o serviço educativo da Fábrica das Histórias é para todos, o que implica que se criem diferentes estratégias e actividades orientadas para a aproximação e a satisfação dos interesses de todos. Assim se privilegiam também as iniciativas culturais e as actividades lúdicas e pedagógicas que possam intervir no processo de formação ao longo da vida, lançando para isso programas abrangentes e multifacetados. Também se aposta em actividades que dão lugar a um trabalho com as faixas de potenciais excluídos dos espaços culturais, nomeadamente os idosos, os deficientes, os doentes, ou outros grupos frequentemente encobertos pelo silêncio dos internamentos institucionais ou familiares, pois são nestes grupos que geralmente se encontram fragilidades quase insuperáveis, que devem ser resgatadas ao seu silêncio. Esta dimensão de proximidade com a realidade, é um verdadeiro desafio, pois exige uma conquista quotidianamente renovada de informação e apoio. Como resultado de toda esta política, o trabalho que o serviço educativo desenvolve engloba um conjunto de propostas bastante diversificado, que não fica limitado a visitas autónomas ou orientadas, ou a outras iniciativas pontuais, pressupondo ainda o desenvolvimento e a implementação de conferências, encontros temáticos, oficinas pedagógicas, cursos livres, visitas cruzadas em parceria com outras instituições culturais ou com o turismo, visitas ateliers acompanhadas por um mediador, produção de recursos educativos diversos e publicações diferenciadas, criando também um espaço para as actividades que incluem uma reflexão crítica sobre o seu próprio projecto pedagógico e a forma como desperta a curiosidade e a criatividade na comunidade, pois só assim se podem vir a aferir estratégias mais acertadas ou proceder a alterações para, no futuro, se aumentar a sua eficiência. É de realçar que a interactividade que, em permanência, pretende criar com toda a comunidade, assentará sempre nessa ideia base que permite que todos os públicos, dos mais novos aos mais idosos, dos leigos aos especialistas, passem de meros espectadores passivos, a sujeitos activos dos seus conhecimentos e aprendizagens, conferindo à Fabrica das Histórias um lugar importante no seu desenvolvimento pessoal e na sua cidadania activa. É ainda importante voltar a realçar que todas as actividades, projectos, produções, se articulam à volta do tema “histórias”. Também pelo facto da forte consciência da limitação física do espaço, este serviço educativo alicerça muitas das suas actividades fora de portas, entre as quais as exposições itinerantes com os objectos criados pelos artistas plásticos, e que sendo ciclicamente renovados podem viajar pelas bibliotecas e escolas da região e do país, com as quais se irão estabelecendo parcerias.


Dar a conhecer a fábrica das histórias

A mais elementar forma de comunicação de um espaço cultural reside no seu próprio território, no seu conteúdo e no seu ambiente. No entanto sabe-se que lhe são exigidos esforços suplementares para que possa ainda funcionar como factor-âncora de uma comunidade.

A comunicação À função museológica é hoje fundamental acrescentar um processo de comunicação que, ao ser mediador entre o espaço cultural e a sociedade em que este se insere, consiga explicar e orientar sobre os projectos e as actividades específicas que aí vão ocorrendo, permitindo que se estabeleça uma interacção com as pessoas, e destas com o processo e com os produtos culturais do espaço, conseguindo assim a sua afirmação local, regional e até nacional. A comunicação deve pois constituir-se para todo o espaço cultural como uma das suas funções básicas. Mas para um espaço cultural “comunicar”, conquistando novos públicos e fidelizando-os, tem de se tornar cúmplice, criador de laços e de afectos, e mobilizador de um enorme sentido de pertença, assentando para isso os princípios da sua comunicação no reconhecimento de que cada um tem direito a uma linguagem capaz de despertar o seu processo de crescimento cultural. “Participar” é portanto a palavra chave na comunicação que se pensa para a Fábrica das Histórias, e assenta na variedade e na possibilidade de ser de fácil descodificação, entendida ainda como um processo multidireccional e interactivo, capaz de se manter em diálogo permanente com a comunidade e com os diferentes tipos de públicos que a constituem, activando a curiosidade e fornecendo, de forma sistemática, elementos e conhecimentos sobre o trabalho que realiza. Num sentido prático, quando se concebeu o serviço de comunicação da Fábrica das Histórias, determinaram-se os seguintes objectivos: Democratizar o acesso ao espaço, dando a conhecer e tornando tangível, e de todos, um espólio reunido ao longo de uma vida, a que se juntaram histórias, possibilitando não só que as memórias esquecidas fossem resgatadas, mas também que se trabalhasse o imaginário; Conquistar e fidelizar novos públicos. Estes dois objectivos, sendo simultaneamente educacionais, emocionais, comportamentais e

promocionais, exigem criar, de forma sistemática, diferentes planos de comunicação, para serem desenvolvidos em diferentes vertentes e para diferentes públicos. Considerou-se também muito importante criar uma imagem original, interactiva e inovadora, que mantivesse a Fábrica das Histórias sempre bem viva no aconchego da comunidade que lhe serve de berço. No entanto não se perde de vista que, por muito bem arquitectada que seja essa imagem, por muito criativas que sejam as estratégias de comunicação, por mais amplo que seja o espaço a conseguir nos jornais, nas ondas radiofónicas ou nos ecrãs de televisão ou de computador, se não houver sempre em tudo isso a necessária correspondência com a relação diária e afectiva que os técnicos ao serviço na Fábrica das Histórias estabeleçam com os públicos, o certo é que toda a missão, todos os objectivos e todo o conceito pensado para este espaço cultural deixam de fazer sentido.

A Imagem A criação da imagem institucional de qualquer espaço de cultura é um factor determinante no seu sucesso junto dos públicos, devendo sintetizar e representar os seus objectivos e o seu conceito. Foi neste sentido fundamental fazer uma reflexão sobre a missão da Fábrica das Histórias, da qual resultou um plano gráfico que se pretende transmitir através de uma aplicação aos diversos suportes da comunicação a utilizar. Quando nasceu a ideia de criar também uma mascote, como meio fundamental para incrementar a relação entre este espaço de cultura e a comunidade, nomeadamente na divulgação dos seus recursos educativos, com especial relevo para os que se dirigem ao público infantil e juvenil, surgiu uma palavra: ratinhos. A força de preconceitos milenares, e de anos e anos de instrução e educação, imprimiram nas pessoas a ideia de que um espaço cultural não alberga semelhantes criaturas. Assim se pensa, tal como se acredita que uma empregada doméstica não lê Pessoa e um calceteiro não gosta de Camões, ou seja, demonstra-se sempre incapacidade para acreditar no que faz ruir a estrutura dos hábitos mentais. Mas às vezes o universo conspira e o mundo dá as suas voltas. De facto quando as equipas de trabalho os viram, divertindo-se a passear pelo espaço que aguardava ser Fábrica das Histórias, o que restava desse velho preconceito quebrou-se com um pequeno temor, não de medo, apenas uma espécie de certeza parecida com a adivinhação de que o patrono da casa também gostava deles. A casa albergou-os. Nela se fazia silêncio para que se ouvissem os seus pés brincando no soalho, enquanto o gato grande dormia à luz quente da lua. Na verdade dentes, cauda e bigodes de ratinhos sempre estiveram nas fábulas, nos contos, nas lendas, nas adivinhas e nas lenga-lengas. Encontram-se mais ratinhos nos livros de histórias do que nos campos, nos celeiros, nos sótãos, nos porões dos navios… E são sempre ratinhos sábios, elegantes, ágeis e divertidos. A mascote inspirou-se pois na elegância dos ratinhos que habitaram a casa que se tornou Fábrica das Histórias.


Outros Suportes Informativos Considera-se de grande importância criar materiais de suporte informativo que possibilitem a compreensão da Fábrica das Histórias e tudo o que os seus públicos se encontrem a visitar. Neste sentido ir-se-ão criando cadernos roteiro, brochuras e outras edições que apresentem a história da casa e do seu patrono, ligando-as depois à história de uma época e de uma comunidade. Estas publicações são fundamentais para que o conhecimento se transmita e se credibilize, acabando por valorizar a acção da instituição, estabelecendo entre esta e a comunidade fortes laços afectivos, e permitindo-lhe que se afirme e se torne fundamental no domínio da cultura local, regional e até nacional. A ideia é a de que os trabalhos que se publicaram, e os que se venham a publicar, se escolham como uma guloseima, ou seja, para saborear devagarinho. O visitante quando deixar, com pena, a Fábrica das Histórias, que certamente lhe despertou emoções, poderá sempre levar consigo um livro, e nas suas linhas encontrar o eco dos sentimentos que experienciou.


Jaime Umbelino Ana Meireles


Todo o processo de criação da Fábrica das Histórias foi orientado pelo traçar que se ia fazendo da “cartografia” do Dr. Jaime Umbelino, dos seus bens, da sua vida e obra. Mas um homem não é como um livro de biblioteca que se abre e lê. Por isso mesmo ser biógrafo, inquiridor de uma vida, dos seus projectos, das suas alegrias e frustrações, averiguador astucioso que procura descobrir-lhe os enigmas, os álibis, os relâmpagos criadores e também as suas noites escuras, não é uma tarefa fácil, porque uma biografia é um texto escrito que se quer paralelo ao livro já existente, o da vida, como se numa simples folha se pudessem imitar as dimensões maiores de todos os dias. Na realidade precisa de muito tempo e paciência quem está disposto a executar a tarefa de decifrar e interpretar o “outro”, perseguindo o livro críptico da sua vida, entre papéis e coisas, textos escritos e recortes de jornais, estilhaços de palavras difíceis de compreender pelo seu desconcerto, cacos e pedaços, pistas e pegadas, tentando ainda adivinhar razões para as lacunas e os silêncios de uma “escrita” que sendo infinita está, por isso mesmo, aberta a todos os possíveis. A “perseguir” textos, fotografias, amigos e familiares, num legítimo desejo de exactidão, muitas vezes se abre com respeito infinito e confessável entusiasmo aquilo que se imagina ser uma chave para a descoberta do “outro”, para depressa se perceber, com frustração, a sua opacidade e ininteligibilidade. Contudo, denunciar estas desilusões não invalida a necessidade de fazer o enquadramento dessa vida, na sua época, na sua região, na sua corrente intelectual. Assim, tal como se fazia o estudo da casa e dos objectos que esta continha, havia que conhecer o Homem, juntar ao património material o imaterial, porque um espaço de cultura deve transmitir uma história verdadeira e consistente, sendo para isso fundamental que se faça a convergência entre o móvel (a colecção de objectos), o imóvel (a casa) e o imaterial (a memória, o pensamento e a personalidade do homem que no espaço habitou). Para mergulhar no passado, e fazer o estudo exaustivo da vida e obra do Dr. Jaime Umbelino, criouse uma pequena equipa que utilizou no seu trabalho as mais diversas fontes documentais e orais. De sílaba em sílaba, este pequeno grupo avançou, extenuado peregrino de caminhos vários, até poder construir o mapa de uma casa, a planta de uma região e de uma pátria, a história de uma vida. Mas a vida de cada um, porque ilimitada e única, talvez nunca se deixe aprisionar, condenando o biógrafo a interrogar-se, mesmo quando dá por findo o seu trabalho, tal como a aranha está condenada a tecer a sua teia e a toupeira a escavar os seus túneis. Assim se entende que este trabalho, sendo finito e estando acabado, também é infinito, pois quando chegados à última página todos os leitores poderão entendê-la como uma porta que se abre a outra, e a outra ainda, e continuará a abrir-se num leve cicio de madeira e de gonzos.

Jaime Umbelino: O registo biográfico Carlos Guardado da Silva, Cecília Travanca Rodrigues

Os Umbelino

Genealogia Um dos meus bisavós foi mercador; Outro foi de alfaiate oficial;

Outro tendeiro foi sem cabedal;

E outro, que juiz foi, foi lavrador; O meu paterno avô foi professor

De latim, que ensinou ou bem ou mal; E o materno viveu no seu casal,

De que inda agora eu mesmo sou senhor. Meu pai médico foi, e homem de bem; Minha mãe Dom teria, porque enfim

Muitas menos do que ela agora o têm. Abade eu fui; e se saber de mim

Alguma coisa mais quiser alguém,

Saiba, que versos faço, e os faço assim. Paulino António Cabral1, Genealogia

A Revolução Francesa cultivou, como nunca antes acontecera, os valores da liberdade, igualdade e fraternidade, promovendo a sua circulação para além das fronteiras de França, em muitos Estados que acolheriam essas ideias enquanto sementes de regimes liberais. Em Portugal, chegariam através dos iluminados e dos soldados da Guerra Peninsular, contribuindo para a agonia do regime absoluto, que chegaria ao fim com a proclamação do Liberalismo a 20 de Agosto de 1820 e, sobretudo, com a promulgação da Constituição de 1822. Promoviam-se novas ideias sobre a educação, multiplicando-se as edições de periódicos e de livros, quer em Portugal quer no estrangeiro. Em 1829, publicavamse, em Paris, as Observaçoens do General Saldanha, no mesmo ano em que os Jesuítas eram readmitidos em Portugal, e Almeida Garrett publicava a Lírica de João Mínimo e Da Educação. Também a 13 de Novembro do mesmo ano de 1829, Felícia Roza dava à luz uma menina, baptizada solenemente dez auroras mais tarde, tendo-lhe seus pais dado o nome de UMBELINA! Assim o escreveu com sua pena, em livro de baptismo, o vigário João de Noronha, para memória dos vindouros, cujo registo tal é:


Foz Umbelina Filha de Felippe Ferreira

Nodia23deNovembrodemiloitocentosevinteenove,baptizeisolemnemente Umbelina,quenasceuemtrezedoditomez,filhadeFelippeFerreiraeFeliciaRoza,

dolugardaFoz,destafreguezia,ondeforamrecebidoseellabaptizada,ellenade SãoJoãodavilladeÓbidos,netapaternadeJoãoFerreiraeIgnaciaMaria,dolugar

doArelho,maternadeManoelFrazãoeRozaMaria,daFoz.ForampadrinhosLuis

Rodrigues, de Val benfeito, e Anna Roza, da Foz. O Vigario João de Noronha.

A origem do nome teve certamente uma inspiração na natureza, seja ela divina ou terrestre, quer identificando-se na recém-nascida a própria beleza que jorra da flor, na forma do diminutivo, quer por influência do culto da beata beneditina Umbelina (1092-1135), irmã mais nova de São Bernardo, celebrada a 12 de Fevereiro, quer ainda pelo gosto dos pais ou padrinhos, a que a onomástica não é alheia. Certo é que assim fixou seu nome o Vigário João de Noronha: UMBELINA. A bebé tornar-se-ia mulher – a Umbelina Roza - e também ela daria à luz e viria a ser a bisavó de Jaime [Jorge] Umbelino. Em Idade adulta, Umbelina acolheria o amor, encantando-se pelo jovem Jorge António, dois anos mais novo, de cujo matrimónio nasceu José, a criança que acrescentaria, já em idade adulta, mais dois nomes ao de baptismo, os nomes próprios de seus pais: Jorge e Umbelina. Tornar-se-ia então, de nome completo José Jorge Umbelino, que o facto de ter nascido homem obrigara a grafar o nome de sua mãe no género masculino. Se sua mãe, num gesto de partilha, ofereceu o nome a seu filho, José estendê-lo-ia a toda a família, num gesto de união, dando origem ao apelido da família UMBELINO.

José Jorge Umbelino casar-se-ia com Carolina de Jesus e, fruto deste matrimónio, tiveram um filho de nome igual ao do pai – José – e assim se manteria, quando completo: José Jorge Umbelino. José, que nasceu em 1891, tornou-se proprietário vindo a falecer em 1944. Contraíra matrimónio com Josefina [Anacleto] Domingues, também conhecida por Jesuína, e fruto desta união, entre primos, nasceram 9 filhos. José Jorge era «remediado» e, quando casou, a 10 de Maio de 1915, era “herdado de pai e mãe”, o que lhe permitia uma certa autonomia financeira, acrescida de um dote trazido pela mulher, na altura do casamento . Nas palavras do filho era «analfabeto», mas um “bom agricultor». Entre os filhos do casal, encontrava-se Jaime Jorge Umbelino, o primogénito, nascido na Foz do Arelho, a 5 de Março de 1916, vindo a falecer em Torres Vedras, a 17 de Fevereiro de 2007, sem ter contraído matrimónio e sem ter deixado descendência. Depois, também na Foz, nasceram José Luís (29 de Agosto de 1917 – 19 de Junho de 1982) e Francisco Jorge (11 de Agosto de 1919).



Da Foz do Arelho…

A povoação fica junto ao extremo Norte da lagoa de Óbidos apesar de muitos ainda hoje desconhecerem a origem do nome da lagoa, como referia Jaime Umbelino na obra que dedica à sua terra de origem, A Foz do Arelho na Lenda e na História: “muitos focenses, a grande maioria dos veraneantes, ou simples vizinhos, ainda hoje desconhecem que a lagoa que se estende à beirinha da Foz, é o que se chama a Lagoa de Óbidos, denominação que lhe proveio do facto de, há muitos anos, chegar mesmo a essa Vila, onde parece que, no sopé poente do monte, ainda existem restos do ancoradouro que lhe prestava serviço” . Na introdução da mesma obra, escreve o arquitecto Bénard Guedes: “este estudo sobre a Foz do Arelho, que podemos definir como um lugar com quase quinhentos anos de história, vivida discretamente entre a terra e o mar, é a narração de uma lagoa, admiravelmente emoldurada pela vida daqueles dois elementos da natureza. O homem cava a sua horta com as mãos a cheirarem a mar e pesca com as mãos calejadas da enxada” . Acrescenta, que “o autor desta pequena - grande obra, dispensa apresentação. Tem raízes profundas nesta admirável terra que, com um jeito não menos admirável, ele retrata. Tem aqui a sua casa, onde passa parte da vida, com um jardim de sonho carinhosamente tratado a rigor, ao longo de todo o ano, e que, pela sua implantação no terreno, lembra uma cascata de flores, onde vamos subindo sempre, como que a par do crescimento das plantas” . Nascida à sombra da Quinta da Foz, a então aldeia fazia parte da freguesia da Serra do Bouro, concelho das Caldas da Rainha, tendo sido desanexada em 5 de Julho de 1919 . A maior parte das casas eram construções de gente pobre, sem condições de saneamento. Existiam, no entanto, edifícios como o solar da Quinta da Foz (“núcleo central” de um morgadio instituído em 1580) , o Palácio do Visconde de Almeida Araújo e a Casa das Palmeiras. A aldeia possuía uma escola , denominada de Bernardino Machado, inaugurada no ano da implantação da República, e mandada construir por Francisco Grandela, o conhecido comerciante e filantropo que, desde finais do século XIX, passava largas temporadas na Foz, tendo aí mandado edificar um palacete, extravagantemente rodeado de muralhas . A Rua Direita era a principal artéria da povoação e nela se situavam “as tabernas” “e as lojas de vende-tudo” ; existia, também, o ambulante “azeiteiro ou petrolino” . Este fornecia o alimento para as candeias de azeite ou candeeiros de petróleo. Os focenses abasteciam-se de água na Fonte dos Namorados, remodelada em 1916 . O pão era, como no resto do país, a base da alimentação. Havia moinhos, entre outros, os das Bruxas, dos Narcisos, do Leirão, do Real e do Aleixo. Os focenses “tinham como recursos certos

ao seu alcance, os produtos da lavoura, as batatas, o milho e as hortaliças (o trigo era pouco) e, na lagoa, os mariscos e o peixe”. Por vezes, as refeições eram apenas uma ”panelada de batatas” cozidas ou, noutros dias, “uma grande berbigoada”; também se alimentavam de papas de milho e de “misturadas” (“de couves, feijão, batatas, ou outro qualquer vegetal, a que se juntava um pouco de massa, normalmente os cotovelinhos”). Havia algum leite, proveniente das cabras e, nas casas mais abastadas, da vaca leiteira; criavam-se coelhos, galinhas e porcos . O pouco tempo de lazer era passado a jogar ao chinquilho e às cartas, nomeadamente à bisca; os mais jovens, e não só, iam aos bailes, quando se realizavam; o fandango era dança de referência. Não havia médico nem enfermeiro mas, em contrapartida, existia uma “curiosa”, que fazia de parteira, alguém com conhecimentos que dava injecções ou tratava de resfriados, fazendo “exfricções” com azeite quente ou enxúndia de galinha; também tratava cólicas com um tijolo aquecido ou um saco de areia. A espinhela caída, o buxo virado ou entorses eram tratados pelo endireita . Enfim, nada que não acontecesse pelo resto do País. Os senhores da referida Quinta da Foz, fizeram ao longo dos tempos o que também era usual, isto é, cediam parcelas de terras aos focenses para cultivo e habitação, sendo retribuídos com o pagamento de foros. Depois da implantação da República, começaram a surgir problemas entre os foreiros e os proprietários e, já na década de 20 do século XX, houve mesmo crispação entre os foreiros, tendo chegado a tribunal uma acção contra o pagamento dos foros, a célebre “demanda”, que chegou a originar perseguições políticas . Esta situação provocou conflitos, instabilidade, mas parece não ter sido fundamental para o facto de José Jorge Umbelino decidir sair da Foz, depois de ter cedido os direitos foreiros que detinha. No entanto, alguma deterioração económica, fruto da época que se vivia, bem como as desinteligências que se faziam sentir na aldeia, levaram-no a vender a sua casa de habitação a José Padeirão e a vir para os arredores de Torres Vedras, onde adquiriu o Casal dos Arneiros (um pouco a norte do edifício do antigo matadouro municipal) .


…a Torres Vedras

Em 1920, ano da chegada da família Umbelino a Torres Vedras, o concelho tinha um pouco mais de 40.000 habitantes; não há registos precisos para a vila, mas sabemos que a freguesia de São Pedro e Santiago tinha 4.699 habitantes a que acresciam os moradores de Santa Maria e São Miguel (zonas rurais incluídas) contabilizados em 3.714 habitantes ; o executivo camarário era dirigido, desde 16 de Junho do ano anterior, por Francisco Tolentino Baltazar. Os principais problemas que preocupavam as autoridades e os munícipes eram, no início do ano, a “questão do pão” e a “carestia de vida” relacionadas com aumentos dos alimentos bem como a falta de alguns produtos, com relevo para o carvão, a carne e o açúcar. O Torreense relatava uma “manifestação ordeira, imponente e significativa”, realizada no final de Janeiro e, em Abril, a Associação Comercial informava o Administrador do Concelho das existências de diversos produtos e da sua “duração provável”,“para que não venham a faltar os generos” . Já mais para o fim do ano, começou a ser insistentemente discutido o novo imposto municipal de exportação, “ad valorem”, que um semanário local denominava como um “novo imposto camarário anti-económico e até perigoso” . O aluguer de carros, tabelado pela Câmara Municipal, era igualmente alvo de recriminações, já que, por exemplo, “por uma ida e volta aos Cucos levam os alquiladores 8$00” . O tempo não estava para festas e o Carnaval não era o de hoje e, por isso, se noticiava que “os dias de folguedos carnavalescos passaram quasi despercebidos . De qualquer modo, nem tudo corria mal e O Torreense anunciava, em 30 de Maio, que “as amostras das próximas colheitas neste concelho são esplêndidas e prometem ser abundantes”. Nem todas as expectativas se concretizaram e, no dia 1 de Agosto, o mesmo periódico informava que corria “epedemico o ano para as vides”. A construção de um novo hospital merecia a atenção dos jornais e das populações; a visita do Presidente da República, António José de Almeida, em 26 de Setembro, foi condignamente comemorada. Neste mesmo ano, iniciou-se a publicação, em O Torreense, de um “folhetim”, de cariz histórico, coordenado por A. Vieira da Mota e intitulado Memorias de Torres Vedras. Torre Vedras estava ligada à capital por

comboio , desde 1887 ; a primeira ligação telegráfica (Mafra -Torres Vedras -Caldas da Rainha) já tinha sido instalada em 1865 e, dez anos antes, funcionava a primeira linha telefónica (particular) entre Torres e o Casal da Lapa; essa ligação a Lisboa, que ainda não existia, foi, durante o ano de 1920, motivo de diversos artigos em O Torreense (órgão do Partido Republicano Liberal). Em 1915, começou a circular uma carreira diária de camioneta para Lisboa . Vendiamse “automoveis europeus” no Spyker, no Largo da República e, desde 1912, a vila era iluminada a electricidade. Existiam já algumas das emblemáticas instituições de cultura e recreio da vila - o Grémio Artístico e Comercial, fundado em 1891, a Associação dos Bombeiros Voluntários, em 1903, a Tuna Comercial Torreense, em 1904, o Sport Club União Torreense, em 1915; o Casino tinha as portas abertas. Em 1894, ouvira-se publicamente, pela primeira vez, o fonógrafo, e, em 1901, no Grémio, o gramofone. Em 1911, fora inaugurada a primeira sala de cinema, o Salão Avenida Animatographo; nas sociedades recreativas anunciavam-se, em 1920, bailes, soirées e peças teatrais. A praça de touros, em alvenaria , abriu a época no dia 13 de Maio, com dez touros e a presença do aplaudido cavaleiro José Casimiro; o espectáculo foi abrilhantado pela Filarmónica Torreense. Em 1924, foi inaugurado o Rádio Club, logo rebaptizado Rádio Sport Club . Funcionavam as Termas dos Cucos, inauguradas em 1893, e as Águas Medicinais da Fonte Nova, que abriram ao público dois anos depois. Médicos conhecidos eram, entre outros, Justino Xavier da Silva Freire , José de Bastos, Afonso Vilela e Dias Sarreira (os três últimos integraram as fileiras portuguesas durante a Grande Guerra), “pioneiros dos médicos de família” que, “para além da profissão, souberam tornar-se amigos, confidentes e conselheiros, não só dos doentes que tratavam, mas também de todo o agregado familiar” ; havia, igualmente, um cirurgião dentista, Carlos Monteiro. Os jornais anunciavam dois produtos para a saúde: o “lactosymbiosina” para a azia, a tomar “com um copo de agua assucarada” e, ainda, “dinamogenina”, um “enérgico tonico reconstituinte”. Já laboravam então as casas industriais de António Hipólito (desde 1900, serralharia mecânica e civil, sete anos mais tarde, transformada em fundição de metais) e a de Francisco António da Silva (1907); Florêncio Augusto Chagas tinha oficina de segeiro e serralheiro, João Grazina “oficina de correeiro, seleiro, estofador e albardeiro” e Ângelo Custódio Rodrigues vendia gasolina Shell, “a melhor do mercado”. Entre outros estabelecimentos publicitados nos jornais, encontramos a Havaneza, de João Guimarães Júnior, com “o melhor sortimento de mercearia de primeira qualidade” e o Rendez


Vous des Amis, “café, bilhar, cervejaria e pastelaria”, ambos no Largo da República, bem como a Pastelaria Confiança, na Rua Dias Neiva e a Brazileira, de Luiz Pinto, na Rua Serpa Pinto, com “mercearia”, “vinhos”, “leques e carteiras”, “papelaria” e “tabacos”; ainda o “armazém de mercearia, cereais e legumes” de Fragata & Bandeira, o “estabelecimento de lanificios e fanqueiro” de Martins, Lafaia & Irmão, a casa Trindade e Cª com “modas, machinas de costura e perfumarias”, a Sapataria Trigueiros, a Papelaria e Tipografia Cabral, a alfaiataria de Anselmo S. Torres, o Armazém de Móveis de Jaime Capelo, a maior parte na Rua Serpa Pinto. Desde 1915, a vila contava com a Caixa de Crédito Agrícola e existiam agências do Banco Nacional Ultramarino e da Casa Bancária Nunes & Nunes, Lª, além de outras instituições bancárias como o Banco Popular Português (representado por Joaquim dos Santos Vaquinhas, comerciante na Rua Serpa Pinto) e o Banco Espírito Santo (representado por Santos Bernardes & Cª, na Rua Miguel Bombarda). Os seguros tratavam-se nas Companhias Tagus, Aviz, A Colonial, Previdência, A Luzitana, Fidelidade e Lisbonense representadas, respectivamente, por Trindade & Cª, José Inácio da Silva e Joaquim Vaquinhas, José Joaquim de Miranda, Venceslau dos Santos, Joaquim José de Bastos e Victor Cesário da Fonseca. Anunciava, igualmente, na imprensa local, a Comércio e Indústria, na Rua Paiva de Andrada. O Hotel Natividade, na Avenida 5 de Outubro, publicitava a sua excelência, bem como o seu congénere nas Termas dos Cucos. Existia, também, para os menos abonados, a Casa de Hóspedes de Maria da Conceição Miranda (Sabe Tudo). Finalmente, e graças a um grupo de cidadãos preocupados com o ensino no concelho, fora inaugurada, em 1919, a segunda Escola Secundária Municipal . No seu número de 28 de Agosto, o jornal Ecos de Torres, referia-se ao “facto de ter a nossa escola secundaria municipal apresentado este ano 14 alunos do 2.º, 3.ºe 5.º anos a exame em Lisboa, com os mais animadores resultados. Não houve uma unica reprovação e registaram-se tres distinções de alunos do 5º ano!”; continua o articulista: “sobretudo porque receávamos que o numero limitado de quatro professores , não podésse realisar todo o vasto programa de ensino”. [FOTO C/PAIS] Já em Torres Vedras, a família Umbelino aumentou em número, tendo nascido novos filhos ao casal: Joaquim Jorge (Quinó), (17 de Outubro de 1921 – 28 de Outubro de 1988), Carlos (19232000), Maria Jesuína (29 de Outubro de 1924 – 10 de Junho de 1931), Abel Jorge (4 de Outubro de

1926 - 7 de Setembro de 1997), Maria Margarida (n. 7 de Fevereiro de 1936) e Afonso Maria (n. 11 de Setembro de 1938). O Casal dos Arneiros servia para habitação, exploração agrícola e criação de pequenos animais. Ainda hoje podemos ver, junto da estrada, perto de um hipermercado aí existente, algumas casinhas térreas, que estavam na extrema do Casal. [FOTOS casais dos Arneiros e da Raposeira] Para a região torriense vieram viver, na década de 20, os avós maternos, António Anacleto Domingues e Maria da Nazareth, bem como os seus filhos João e Luís, tendo permanecido até ao início da década seguinte. Compraram o Casal da Raposeira , mais a norte do Casal dos Arneiros; seguindo pelo Bairro da Boavista/ Olheiros, para além do Túnel, antiga cerâmica de tijolo, atinge-se o que, hoje, são apenas ruínas e abandono, tendo sido casa de habitação e adega; o casal ficou, depois, como terra de cultivo para a família Umbelino; esta nunca aí habitou mas havia lá um trabalhador permanente, também com a função de guarda. O avô António Anacleto [Domingues] era também conhecido por António do Casal, Berquó ou Bandarra; era um homem abastado e o próprio Jaime Umbelino, que fez alguma investigação sobre a família, achava plausível que ele fosse filho bastardo de um fidalgo, afinal, coisas comuns em muitas famílias, ao longo dos séculos. Não é fácil encontrar o Casal da Raposeira, mas Jorge Umbelino, sobrinho do biografado, dános uma breve descrição: “deve sair-se de Torres Vedras pela estrada que conduz a Peniche, seguindo as instruções anexas: ao passar-se por um marco que anuncia a distância de 9,5 km para a povoação de Carrasqueira, deve virar-se imediatamente à esquerda, por entre duas casas que aí existem. Após 400 a 500 metros avista-se, em frente, um outro «Casal»; aí deve virar-se à esquerda, sendo que, uns 200 metros adiante, se podem ver as ruínas do «Antigo Casal da Raposeira». Tomem-se como referências, para além das ruínas, o poço e um pinheiro manso de grandes dimensões” . Mais tarde, na década de 30, a família mudou-se para a Vila, tendo residido, durante algum tempo, perto da Capela de Nossa Senhora do Ameal. Logo depois, os Umbelino passaram para o centro histórico, no extremo do Largo do Grilo (Largo Frei Eugénio Trigueiros), num prédio situado em frente das Escadinhas do Quebra-Costas; tempo passado, nova mudança, para a Rua das Flores, à direita de quem sobe, quase à esquina, onde se situa um dos cinco “passos”;


finalmente, e na mesma rua, encontramo-los a habitar um amplo primeiro andar, no n.º 40 da actual Rua França Borges, frente às antigas oficinas de Francisco António da Silva (FAS) e actuais instalações da Universidade da Terceira Idade. A casa, de dois pisos, à época propriedade da família Crespo, encontra-se bastante degradada mas, julgamos saber que, no horizonte, poderão estar melhores dias. A família Umbelino aí viveu largos anos tendo saído, sucessivamente, alguns dos seus membros, fosse para casar, trabalhar ou viver fora (África, Portalegre, Lisboa). A propriedade, que se alargava à Rua 1.º de Dezembro, foi adquirida por Galileu Bernardes, em 1969, tendo, posteriormente, sido acordada uma indemnização para saída de Jaime Umbelino, então já o signatário do contrato de arrendamento do andar em que vivera toda a família, pois a mãe falecera em 1960. A casa incluía um bom quintal que permitiu, entre outras coisas, o cultivo de flores e até a criação de faisões, “prateados, dourados, além dos vulgares” , actividades que também manteve, nomeadamente a primeira, na casa da Porta da Várzea. Os faisões, sendo aves selvagens, podem habituar-se a viver em cativeiro e a sua carne tem grande reputação nos meios culinários. Umbelino tratava-os e cozinhava-os de forma superior . [FOTOS casa da Rua das Flores (actual rua França Borges) – escolher uma da pasta] Entre a saída da Rua das Flores e a mudança para a Várzea, Jaime Umbelino viveu alguns meses na Rua Guilherme Gomes Fernandes, na casa dita “dos carvoeiros” por existir no piso inferior um negócio relativo a essa actividade que encerrou na década de 70. Residiam aí Francisco Caseiro e sua esposa, D. Adelaide, prima de Jaime, que vivera durante alguns anos na casa da Rua das Flores, tendo saído para casar. Jaime Umbelino adquiriu uma casa a João Luís de Moura, na Porta da Várzea, junto a uma das entradas medievais da vila; ele próprio nos relata que “está geograficamente situada numa “linha de água por onde, há muitos séculos, passam as águas das chuvas que descem das encostas circundantes, antes de se precipitarem no Sizandro. Como consequência natural dessa descida, acontece que a erosão das terras, operada nessas encostas, as faça arrastar na impetuosidade das correntes, depositando-as nos baixios onde a sua inevitável sedimentação se encarrega de, continuamente, lhes subir o nível” . [Imagem Várzea ANTIGA] No dizer de Madeira Torres “a porta da Várzea toma o seu nome d´um bello e grande baldio, ou logradouro do Concelho, que logo se lhe seguia, á sahida da villa e sul d’ella, pela estrada real para Mafra, chamada nos tempos antigos a Várzea Grande, e modernamente a Várzea do Curro,

por que se correram nella touros em algum tempo (…) Foi em outro tempo muito cubiçado este campo por alguns poderosos da villa para o reduzirem a cultura, mas o povo oppôz-se sempre a esta pretenção” . No “grande baldio” realizava-se a Feira de São Pedro, passando, em 1999, para o Parque Regional de Exposições. Jaime Umbelino gostava de recordar “a pitoresca alameda e explanada da Porta da Várzea” que conhecera, o amplo espaço que se abria com vista para as encostas do Varatojo, da Serra da Vila e do Barro, onde se fazia feira de gado, acampavam nómadas, brincavam crianças e jovens, mas também onde existia “um gracioso fontenário que estava no ângulo norte, esquerdo (…) e que, muitos anos, abasteceu os habitantes da área (os marroquinos) com água de uma nascente, que ainda existe, nos baixos da construção pombalina do lado nascente, e que é hoje orientada para a valeta, em virtude de ter subido consideravelmente o nível da rua. Esse fontenário foi estupidamente derrubado quando se fizeram as obras que contornam o Palácio da Justiça. Andou vários anos aos tombos de canto para canto, até que, por imperdoável incúria, desapareceu”. Diz-nos também: “quando conheci a Porta da Várzea era ela habitada por pessoas de simpática afabilidade, muito ordeiras e respeitadoras. As casas que formavam o bairro eram modestas, quase todas de um só piso, e os seus moradores gozavam de um privilégio que convém assinalar: o espaço hoje ocupado pelo Palácio da Justiça e que se estendia entre a ribeira do Alpilhão e a rua Maria Barreto Bastos até, mais ou menos, ao pavilhão municipal, era destinado aos mercados mensais, onde se vendia de tudo. Daí para baixo, o terreno estava dividido em talhões onde, os que queriam, faziam as suas hortas e criavam coelhos, galinhas e patos ou até o porquito que dava muito jeito às donas de casa. E é ainda mais de assinalar o facto de nada dessas coisas ser roubada” . Ele mesmo nos descreve a sua casa numa carta dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras, Jacinto Franco Leandro, datada de Janeiro de 1999, a propósito das conversações para a “cedência à Câmara”: “Sou, de facto, possuidor de uma casa pombalina, com cerca de trezentos anos, situada nesta Cidade, na Rua Maria Barreto Bastos, n.º 36. O facto de essa casa ser do século XVIII e de apresentar características especiais de construção e de conservação, é motivo para se poder considerar que ela é de interesse local e comunitário. (…) A casa é constituída por dois pisos: uma semi-cave e um primeiro andar. A semi-cave tem cinco divisões, o primeiro andar tem quatro divisões, mais uma cozinha e uma casa de banho. Nas traseiras tem uma casa de uma só divisão, com uma galeria, para arrumações, e um pátio - jardim, com


serventia pela cozinha” . A Câmara Municipal já tinha, porém, manifestado interesse na sua aquisição há muito tempo. Com esse propósito, o então Presidente da Câmara Municipal, António Teixeira de Figueiredo, propunha, em 1967, que a Comissão de Arte e Arqueologia Municipal «se pronunciasse sobre a possibilidade de aquisição, por parte da Câmara…», desse edifício, já então propriedade do «Senhor Doutor Jaime Umbelino». Umbelino dedicou grande parte da sua vida a adquirir móveis e objectos para preencher cada um dos espaços da sua casa. Mais do que um lar, preparava uma casa-museu, repositório de peças, de vária índole, valor e proveniência. Esse espólio foi objecto de descrição e inventariação pela equipa do Museu Municipal. O espólio da casa da Várzea apresenta um acervo variado, em alguns casos valioso, constituído por mobiliário, espelhos, candeeiros, quadros, peças escultóricas, colchas, louças, relógios, armas e outros que nos mostram o seu gosto e nos definem o homem, através dos objectos de uso de um quotidiano de viver e coleccionar. De entre eles, merecem destaque algumas peças de mobiliário, nomeadamente um armáriovitrina, pintado, inspirado nos modelos setecentistas, talvez do séc. XIX; um armário-copeiro de dois corpos, “de formato paralelipédico ao alto, com duas portas meias-almofadadas separadas por friso saliente”; um baú em madeira, do período barroco (fim do séc. XVII - princípio do séc. XVIII), “para uso doméstico e permanente”, que teria pertencido à família dos condes de Atouguia e “servido para transportar os ossos de familiares do conde, falecidos na Índia”; uma cómoda em madeira, com três gavetões frontais e a indicação JMSC, provavelmente do séc. XIX, “oriunda do extinto Convento da Cadriceira”. Na pintura, um óleo sobre tela, de 1917, representando um cego, de Abel Cardoso (1877-1964), da “segunda geração naturalista” em Portugal, datado de 1906 e um quadro assinado por Leopoldo Battistini (1865-1936), também professor e ceramista na Fábrica Constança, da Rua das Janelas Verdes, que foi amigo do rei D. Carlos e de quem pintou um retrato. Além de um tapete de Arraiolos de “geometrismo simplificado e simétrico”, com “motivos de ramagens estilizadas e elementos florais”, há uma valiosa colcha indo-portuguesa “monócroma, de cetim creme bordada com fios metálicos, [prata] e com decoração vegetalista e animais”, ambos com datação provável do século XVIII. Nas louças, destacam-se um prato em porcelana, branco, com vidrado transparente, e “decoração temática floral”, “policroma, em esmalte de três cores” (azul-cobalto, vermelho ferro e ouro),

com um “esquema iconográfico habitual na porcelana chinesa de decoração “Imari Chinês” (dinastia Qing, reinado de Kangxi, 1662-1722); um prato em porcelana branca da Companhia das Índias, com decoração floral, policroma, “com esquema iconográfico habitual na porcelana chinesa de decoração com esmaltes “família rosa” (dinastia Qing, reinado de Qianlong, 173695). Também um “prato fundo em faiança de esmalte branco, com decoração monócroma a vinoso, vidrado transparente” que “segue o esquema iconográfico das faianças saídas da Fábrica de Louça de Viana”, do último quartel do séc. XVIII. Na escultura, referência para uma “Virgem com o Menino”, da transição tardo-gótica para o manuelino-renascimento, do séc. XVI, em calcário, (“após esculpida, a imagem foi pintada, dourada, e nas mãos e rosto recebeu uma carnação mate”); uma “Nossa Senhora da Conceição”, em marfim, proveniente da ilha de Ceilão, em estilo cingalo-português, do séc. XVI ou XVII; ainda, um bispo (S. Marçal?), em madeira, da escola portuguesa, possivelmente de meados do séc. XVII. Deixamos ao leitor uma futura ida ao Museu Municipal Leonel Trindade ou à Fábrica das Histórias - Casa Jaime Umbelino onde poderá admirar estes e outros objectos; ficará a conhecer melhor o homem e a sua história de vida. Ao visitar a casa encontrará, também, azulejos a revestirem alguns recantos; conheceu como poucos os azulejos da Cidade, não só os visíveis, pequenos apontamentos dispersos, mas também os de interior, muitos já desaparecidos .





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