POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE Entrevista com Carlos Lessa
Proposta: Com a prolongada crise que enfrentamos e o agravamento da miséria, as polítiéas públicas - especialmente as de regulação e proteção social - vêm se tornando um tema presente na agenda da sociedade civil e da cidadania. Como você avalia esta tendência? Lessa: Eu acho que esta tendência de identificar a ampliação, a eficácia e a resolutividade dessas políticas como necessárias é uma novidade dos anos 90. Isto quer dizer que começa a haver um nível de confiança maior em determinados sistemas públicos de proteção social como condição do avanço ci vi Iizatório, ou mesmo de coesão mínima da sociedade. Mas há alguns problemas. Quando se fala de políticas públicas com forte cunho social, quase todas as cabeças abanam concordando. Certamente é um avanço em relação ao passado; é um momento da conscientização sobre a realidade social brasileira. Porém, existem lacunas e com insuficiências absolutamente dramáticas. Proposta: Que lacunas são estas? Lessa: A primeira delas é que todas as pessoas que abanam a cabeça concordando com a importância de melhorar os sistemas educacional, de proteção à saúde, de proteção aos grupos de alta fragilidade etc, não concordam com a conseqüência associada a estes investimentos sociais: é necessário aumentar a carga tributária, é necessário aumentar impostos e contribuições 16
"Começa a haver um nível de confiança maior em determinados sistemas públicos de proteção social como condição do avanço civiliz.atório." para financiar essas políticas. Então é um tipo de meia concordância que complica e, de certa maneira, eu diria que revela certos vícios da forma como estas questões foram colocadas nas instituições e na sociedade brasileiras. Proposta: Que vícios são estes? Lessa: A Constituição consagra preceitos de direitos sociais com uma forma que é mais ou menos a seguinte: é obrigação do Estado e direito do cidadão e ponto. Isso aponta apenas a metade da história. Quase ninguém fala que o dever do Estado expressa uma obrigação dos cidadãos. Na verdade, a cidadania só tem direitos porque assume a contrapartida das obrigações. Você não pode construir a relação como uma relação unilateral. Proposta: Você está se referindo à intermediação institucional do Estado em suas relações com os cidadãos? Lessa: Estou me referindo como uma instituição que cria uma referência maior para um processo
no qual o conjunto dos integrantes da sociedade é detentor de direitos e portador de obrjgações. Essa história das obrigações não faz parte da nossa formação política. Do meu ponto de vista, isto produz efeitos espantosos, como a propenção da sociedade brasileira de responsabilizar o Estado pela insuficiência do sistema de proteção social e se autoabsolver e se eximir de qualquer responsabilidade. Mas este cidadão se considera de boa vontade pois ele concorda que é necessário melhorar a educação, a saúde etc. Então, o tema está mal colocado do ponto de vista da sua politização. Proposta: Mas você não acha que essa politização é mais com· plicada, pois muitos segmentos da sociedade vêem o bem-estar ape· nas como políticas de proteção e promoção social? Lessa: Entretanto, não se reduz a essas políticas públicas porque a possibilidade de realizá-las passa por essa prosaica questão de ter um financiamento e passa pela questão não tão simples da solidariedade social, criada para dar suporte ao financiamento destas políticas. Mas, do ponto de vista estritamente econômico, passa por uma outra questão: o financiamento dessas. políticas é necessariamente a fundo perdido; elas não são comer-
CARLOS LESSA - Doutor em Economia, professor do Instituto de Economia Industrial da UFRJ e do Instituto de Medicina Social da UERI.
Proposta n2 59 dezembro de 1993