Edição 59, dezembro / 1993

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A TRAJETÓRIA E O SIGNIFICADO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS: UM DESAFIO DEMOCRÁTICO Harold.o Abreu

As políticas públicas no "ocidente" Sempre que se fala em políticas públicas, a primeira referência que vem à mente é a de uma decisão ou de medidas políticas implementadas pelos aparelhos estatais e/ou agências governamentais. Esta referência está presente em quase todas as teorias e análi ses sobre as políticas públicas. Estas são pensadas como iniciativas políticas dos governantes que incidem sobre os governados, do Estado sobre a sociedade civil e/ ou a economia, do poder político sobre as relações sociais, do público sobre o privado etc. Mas, para além deste aparente consenso, podemos encontrar múltiplos e diferenciados modos de interpretar as chamadas políticas públicas. A ortodoxia liberal com sua defesa do "Estado mínimo" - de Locke à Stuart Mill, passando por pensadores políticos como Hume e economistas como Smith e Ricardo - não formulou qualquer teoria ou concepção de políticas públicas. Ao contrário, entendia e valorizava o Estado em seu sentido estrito de garantir os direitos (naturais ou civis/adquiridos) de indivíduos possessivos e empreendedores, o livre funcionamento do mercado e dos contratos privados dele derivados, bem como a produção e circulação da moeda como valor de troca universal. O ente público, inteiramente subsumido aos interesses individualistas ou privados e às "leis naturai s do mercado", fica va axiologicamente reduzido a uma dupla meProposta n2 59 dezembro de 1993

diação política: de um lado, representando os interesses dos indivíduos proprietários e realizadores e, de outro, mantendo a ordem e o livre funcionamento do mercado capitalista através do monopólio legal do uso da força e de emissão/regulação da moeda. Os reformadores positivistas do final do século XIX foram os primeiros a pensar as funções reguladoras do Estado. Estas eram os meios de garantir o progresso com harmonia e alguma forma de coesão da ordem estabelecida. Este tema traduzia a necessidade de reprodução da ordem vigente em seu enfrentamento com os movimentos das classes subalternas e com as idéias socialistas. Com base nessa racionalidade conservadora, desenvolveramse teorias e políticas com finalidades (funções) de socialização (adequação intelectual e moral dos indivíduos à ordem social), controle (domínio e previsibilidade) e coerção (uso efetivo da força física legal). Associadas a esta visão de reformas conservadoras, surgiram teorias sobre burocracia estatal e empresarial, elites políticas, concessão de benefícios econômicos, assistência social e educação laicas e públicas, reconhecimento dos direitos positivamente existentes etc. Durkhcim, Pareto, Weber, Mosca, Alfred Marshall, Schumpeter e Kclsen , entre outros, são grandes expoentes desta visão de mundo. Ainda que nem todos sejam formal e estritamente positivistas, contribuíram para a formulação de uma estratégia racional-legal de refor-

mas funcionai s à ordem capitalista. O reformismo conservador pode ser interpretado, de um lado, como uma resposta das elites dirigentes e classes dominantes, sobretudo na Europa, às ameaças representadas pelas reivindicações e insurreições de massas proletarizadas, pelo crescimento dos partidos socialistas e pela crescente difusão da crítica de Marx à ordem capitalista, ao longo da segunda metade do século XIX. De outro, também pode ser compreendido como uma necessidade do desenvolvimento capitalista que alcançou, no último quartel do século passado, um forte incremento da produtividade (e da mais-valia relativa), da tendência à monopolização dos mercados, da circulação de capitais financeiros e das disputas inter-imperialistas. Por ambos os lados, os Estados nacionais e suas elites dirigentes foram progressivamente exigidos a formular novas estratégias políticas e um reordenamento das "funções estatais". O incremento da mais-valia relativa propiciou um crescente excedente econômico que pôde ser parcialmente tributado pelo Estado. O produto excedente foi politicamente redirecionado para o fomento de atividades econômicas, garantindo o acesso do capital às fontes de matérias-primas e mercados consumidores e dando suporte para infra-

HAROLDO ABREU - Professor <la Escola

de Serviço Social da Uff e Consultor da FASE.

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