ENTREVISTA COM O DR. JOÃO VIEIRA LOPES
Dia 18 de Junho de 2010 Presenças: João Vieira Lopes, Cristina Ataíde e Pinto, Carlos Ferreira
Dr. Vieira Lopes – A memória já começa a faltar um bocadito… Eu ainda não li a história do MPLA, tenho aí os dois volumes ofereceram-me, já não sei quem… Falta de disposição, falta de sei lá o quê, e não li… Não sabia que havia um livro com os discursos do José Eduardo… Carlos Ferreira – Mas este tipo não tem nada a ver com a história do MPLA até à Independência… Dr. Vieira Lopes – Ah, sim ! Até à Independência não! Mas também, então como é que estás a ver o esquema do trabalho. Divide-se isso em fases, épocas, períodos… Carlos Ferreira – Como o Sr. Dr. quiser… Por exemplo, podemos falar da origem da família Vieira Lopes e da sua importância na sociedade angolana. Dr. Vieira Lopes – Da origem da família, infelizmente temos muitos poucos dados. Ficou tudo com o Pai do Ingo, e o Pai do Ingo que era de facto o mais ilustre dos Vieira Lopes em todos os sentidos deixou isso. Só que os filhos sei lá, deitaram fora, não guardaram. Toda a documentação dos Vieira Lopes estava com o Tio Zé. Fiquei justamente de recolher ainda mais, mas são muito poucos… A ideia que eu tenho é que a origem tem a ver com português vindo do Brasil. Eles foram parar ao Brasil e do Brasil vieram parar aqui. Eu estou justamente, tenho estado a tentar e certamente essa parte vamos ter que deixar para o fim… Cristina Pinto – Isso é século 19?
Dr. Vieira Lopes - Século 19. Há tempos apanhei um apontamento dos nossos Pais, portanto, do meu Avô que foi dado como professor primário, naquele tempo, aqui na zona de Ambaka, e ao mesmo tempo era uma espécie de juiz – exactamente, aquilo que hoje se chamam os julgados de paz. Tinham uma escola qualquer. Consegui apanhar um recorte, não sei já de onde, Mas estou a tentar. Tem também ramificação, uma grande ramificação no Kwanza-Sul, um dos primos dos nossos Pais, primosirmãos foi para lá e lá constituiu uma família que nunca mais acabava. As noticias que eu tinha é que ele chegou a ter 54 filhos, vivia lá no morro como um soba. Aqueles Vieira Lopes da Rádio eram filhos dele. Carlos Ferreira – Mas era um ramo, digamos, pobre, da família? Dr. Vieira Lopes – Ele foi para lá, e cafrealizou-se. Para ter 54 filhos vivia lá como um sobado. Um primo ou um irmão desse, era padre. O padre Lino também lá no Kwanza-Sul. Lá, talvez só a igreja católica é que pode ajudar. Quero deslocar-me ao Kwanza Sul por causa disso. Eu estou a tentar ver essa parte. Deixa-me estudar mais um bocadito. Nasci aqui, nasci nas Ingombotas, mas abro os olhos cá mais para cima, no Bairro Viúva Leal, este bairro onde está hoje o Roberto de Almeida. Já existia a Vila Clotilde, um bocado mais à frente à direita de quem sobe. Havia a Viúva Leal, que era uma certa senhora viúva que tinha lá e foi ali que eu abri os olhos. Entre o Lima e Companhia, Padaria Lima… Com os meus 4/5 anos, já estou na Viúva Leal. Mas esse fenómeno é um fenómeno que vocês já devem ter ouvido falar. O meu Pai, os meus Pais sofreram aquele processo, foram subindo, e então eles, que tinham um status aceitável de mestiços, com o andar do tempo as situações foram piorando e foram obrigados a subir. Então ele foi instalar-se na Viúva, onde já havia outros mestiços. Ali começava uma população mestiça que, anos mais tarde fomos empurrados para o Bairro Operário. Sempre a subir. Aliás, eu ainda fiz uma pausa. Da Viúva, ainda passo para a Vila Clotilde, sou empurrado um bocadito para aquela zona. Aí ficámos uns quatro ou cinco anos. Eu faço a minha instrução primária toda ali na Viúva. Eu entro para a escola primária aos 7 anos. Mas aos 7 anos porque não me
deixaram entrar aos 6. Eu era, se calhar, muito vivo, muito vadio e, a minha Mãe que, parece, segundo reza a história, era neta, não sei ser fidalga, mas fidalga, isso eu ainda ouvi da minha Mãe, ainda viveu com escravas. E a minha Mãe casa com o meu Pai, já ela tinha um filho, um filho de um branco. Um branco que, quando surge a guerra de 14, é chamado para Portugal, deixa a minha Mãe grávida e não sabia. Nasce o meu irmão Valente, que é criado pelo meu Pai, depois. O meu Pai também era filho, tinha também uma parte mais ou menos bem situada no comércio da altura e então casa com a minha Mãe. E isso tudo passa-se nas Ingombotas. Vieira Lopes é Pai. O Castro do meu nome é da minha Mãe. O Pai da minha Mãe era um individuo que nasceu em Vila Pouca de Aguiar. Veio para aqui e aqui tem dois filhos. Ela e um irmão. O Sebastião que eu conheci muito bem. O Tio Castro. Sebastião Gonçalves de Castro. Ela era Eugénia Gonçalves de Castro. Eu uma vez que fui a Portugal, ainda tentei ir a Vila Pouca de Aguiar, mas não sabia bem as coordenadas, mas disso tenho a certeza, porque as minhas irmãs todas conseguiram a nacionalidade portuguesa com essa certidão. Eu sou o único que viveu em Portugal e que não tem a nacionalidade portuguesa. Elas estavam aqui todas quando começou essa história, e então foram à procura. E o único dado que tinham era o Pai da Mãe, que era português, que foi lá baptizado, que está lá registado, na igreja e tudo e elas conseguiram a nacionalidade portuguesa. Mas então, eu estou na Viúva, e começo a ficar muito malandro. O meu Pai era funcionário médio das Obras Públicas. Mas isso depois de ter também uma trajectória de experiência de comércio nos Dembos.. Ele tinha uma Tia que parece que tinha muito dinheiro, era comerciante, e então, deu-lhe um bocado de dinheiro e mandou-o instalar-se nos Dembos. É claro que foi uma coisa fracassada, ficaram lá três ou quatro anos, nasceram duas irmãs minhas nos Dembos. Eles dos Dembos voltam novamente para as Ingombotas. E é nessa altura que ele vai para as Obras Públicas como funcionário. A vida de um funcionário médio… é a ideia que eu tenho do meu Pai, ele trabalhava e chegava à sexta-feira, vinha com um monte de papéis debaixo do braço. Continuava os trabalhos em casa. Isto durante toda a minha instrução primária. Eu assisti a isso. Fazia mais. Não sei se naquele tempo fazia muito calor mas eles vestiam sempre
fato de linho. Mas lá vinha o velho, chegava a casa, sacudia a poeira, os sapatos, abria os papeis… mas chegávamos ao fim do mês e aquilo era… um sofrimento… um sofrimento. Nos meus 7, 8, 9, 10 anos, Havia almoço, mas o jantar era um ver se te avias. Quer dizer, chegávamos à última semana do mês, o dinheiro não chegava. Isso eu comecei a ver desde pequeno. E eu via aquele homem, a trabalhar todos os dia… e dizia a minha Mãe, este teu filho não pode ficar mais aqui em casa, tem que ir para a escola, porque assim que tu sais de manhã para o serviço ele também sai e vai vadiar. E os meus amigos, desde criança, tive uma infância muito misturada. Eram brancos, eram pretos, eram mulatos. Aqui no Kinaxixi. E o Kinaxixi na altura estava povoado de colonos policias. A maior população do Kinaxixi eram brancos policias que tinham vindo com as suas famílias, os seus filhinhos e tudo. Nós morávamos ali ao lado e tínhamos uma amizade muito grande. Os próprios policias faziam amizade com os nossos Pais. Uma amizade muito grande. Mas então a minha dizia e o meu Pai “tá bem”, então vamos mandá-lo para a escola. Mandam o meu irmão mais velho, de 9 anos, vai matricular o teu irmão. Disseramlhe, não, só se entra para a escola quando fizer 7 anos. Ora eu fazia 7 anos em Maio e a nossa escola começava em Abril. Então a minha Mãe teima com o meu Pai, a minha Mãe era terrível, conta a lenda que era tinha uma certa aristocracia, decadente como diz o outro, era uma senhora que andava sempre com vestidos até aos pés, nunca vi aquela senhora sem vestidos compridos. E o meu Pai viu-se obrigado, ele era muito amigo do Cónego Manuel das Neves, aliás, aquela população toda vivia à volta da Igreja. Todos esses indivíduos Então foi falar com o Cónego Manuel e o Cónego mandou levar-me para S. Paulo, foi aí aprendi as primeiras letras. Cristina - Já existia aquela configuração da escolazinha? Dr. João Vieira Lopes - Está uma coisa pequenina lá; eles não partiram, se vocês forem lá dentro, está lá. Ali é que eu estudei Isso em 1938. Em 38, em 39 é que entrei para a escola. Mas então, eu era tão pequenino que para ir para a escola, eu ia acompanhado, não era de uma ama seca, era um damo de companhia, que existia muito naquele tempo. Todas aquelas nossas famílias tinham um afilhado, não eram criados, não tinham meios
para estudar; o individuo que me acompanhava era até filho de uma senhora que tinha sido escrava da minha Mãe, segundo conta a própria minha Mãe. O Augusto. Eu ia com ele para a escola. Mas eu era tão pequenino, e na escola de S.Paulo quem dava a escola eram indivíduos sem formação. Indivíduos muito mais velhos que nós, de 14, 15 anos, que tinham jeito para aquilo, mas eram jovens, eram miúdos. Resultado, o fim de cada aula, havia guerra entre os miúdos, guerra do giz, eu esquivava como podia, mas eu era tão pequenino, não sabia bem, apanho com um giz aqui, apareço em casa com aquela coisa, a minha Mão, ei caramba, foi falar com o Cónego Manuel. Eu fui baptizado aí na Igreja de S.Paulo. Fui baptizado aos 4 anos. Conheci bem o Cónego Manuel também. Os meus padrinhos eram uns portugueses que tinham vindo também deportados. Ramos. Tu deves estar conhecido. Um Ramos que quando eu cheguei em 75, ele estava preso. Cristina - Rui Ramos? Que chegou a ser cunhado do Aldemiro. É casado com a Esperança. Dr. João Vieira Lopes: O Rui Ramos é filho desse meu padrinho. Filho, não, neto. Esses indivíduos vieram do Porto para aqui e vieram com os filhos todos. E como deportados políticos claro que eram segregados pelos portugueses que estavam aqui. E eles fizeram amizade com estes angolanos. E o meu Baptista vem dele. Ele tinha um filho que era Baptista, e o meu nome devia ser João Vieira Lopes Neto. Para ficar neto do avô. Mas o Velho Ramos disse, não, ele tem de ter Baptista. Então a minha Mãe disse que se era para ficar Baptista, então tinha que levar o de Castro. João Baptista de Castro Vieira Lopes. Mas fiquei aí na escola, até que acabou o ano lectivo, um bocado mais cedo por causa daquele incidente e em 39, eu entro para a escola número 8, Emílio Monteverde, que era aqui em pleno Kinaxixi, onde está, onde estava o Mercado, em frente, em frente não, ao lado da estátua, a estátua está virada para baixo. Havia um Instituto de Agronomia, ou Serviços Agrícolas e havia ali umas salas onde nós começámos a escola primária. Então passo a minha escola primária, faço aí, primeira, segunda, terceira classe. Na terceira classe eu reprovo, reprovo porquê porque no ditado só se podia dar um erro, quem desse três erros… então chego a casa e o meu Pai ficou furioso.. os erros
nunca mais me esqueci: era a palavra açúcar, que se escrevia não sei como, arroz. Eu troquei, em vez de um esse pus um zê, troquei não sei como. Mas então, tu vais todas as semanas à loja do sr. Fulano buscar o vale, com o açúcar e com o arroz… Bem, fiquei marcado por essa, nunca mais me esqueci. Então, repeti a terceira, e com a quarta classe, fomos ter ali aonde está a Avenida Salvador Correia, não Avenida Brito Godins, ali onde estão os Correios, ao lado dos Correios,. Aquilo era uma casa que eles adaptaram aquilo a escola, porque entretanto partiram aqui a escola e ainda estavam a construir. Então fiz ali a terceira, a quarta classe e a admissão ao liceu. Durante esse tempo da escola primária, as dificuldades foram-se agravando. Eu lembra-me naquele tempo, nós íamos para a escola de bata, quem ia sem bata a professora não deixava entrar. E aparentemente limpo… Naquele tempo, durante toda a minha instrução primária, posso dizer que éramos praticamente uma grande mistura. Havia metade, cinquenta por cento eram tipos brancos, uns quarenta por cento eram mestiços, e depois havia sempre indivíduos completamente negros, não faziam mais de dez por cento. Mas numa harmonia que era visível. Nunca senti qualquer discriminação, entre os alunos. Mas, os professores faziam-nos às vezes, não sei se é sem querer, faziam-nos sentir que havia uma diferença entre nós. Primeiro, a maneira como a pessoa ia vestida. E depois quem fosse sujo ou despenteado, o professor punha fora. E isso só acontecia sempre connosco, os outros estavam sempre limpinhos, sempre bem penteados. E eu era um individuo que tinha amor à escola, por duas razões: primeiro porque gostava mesmo da escola, depois porque gostava da brincadeira da escola. Eu desde miúdo que gostava de futebol. Eu era o gajo que fazia a bola, aquelas bolas de meia. Eu é que levava a bola, escondia, depois. Isso era uma coisa que fazia com que os meus colegas gostassem de mim. Nunca tive razões de queixa dessas coisas. Mas chegou um dia, a maka grande que nós tínhamos naquele tempo eram os sapatos. Sapato gastava. Gastava, então, o Velho conhecia aí uns sapateiros, ia pôr meias solas, até que já não dava para pôr as meias solas. Então, tínhamos de comprar um sapato que era o quede, quede. Ainda hoje se chama quede. Então, chegava o fim de semana e tinhas que lavar aquilo muito bem e pôr branco, para ficar… mas aquele também a certa altura furava em baixo, um gajo punhas uns
papelões por baixo, e lá ia, porque ir descalço para a escola era um problema, podiam pôr fora. Não é que eu um dia, já estava cansado do sapato, eu… eu vou descalço. Estava já na terceira classe. A Mãe olhou para mim, ela sabia que eu gostava imenso de ir para a escola. (silêncio…) Não é que eu vou mesmo à escola assim. Meti a minha bata e fui para a escola. Ninguém disse nada. Fomos jogar à bola no intervalo, até gozaram comigo, mas tu até descalço consegues jogar… é claro que no dia seguinte, a minha Mãe falou com o meu Pai que foi comprar os sapatos. Fomos fazendo aquela instrução primária. Durante a instrução primária, assisti a cenas de discriminação dos meus professores em relação aos outros indivíduos. Aquilo chocava, mas ninguém podia fazer nada. Castigos a mais… Carlos Ferreira – Sr. Dr. Nessa idade, além desse tipo de situações, quando está em casa, com o Pai ou com a Mãe, ouve falar de alguma coisa, o Pai faz comentários em relação a esse quadro geral? Dr. João Vieira Lopes – Desde pequenino. O meu Pai tinha sido, depois a minha Mãe é que contou, ele tinha sido sacristão, nos tempos da juventude. E ele manteve sempre essa ligação. De tal maneira que o primeiro jornal que eu li, foi o Apostolado. Era um jornal que ele trazia aos fins de semana. Saia ao fim de semana e eu muito cedo, desde a segunda classe comecei, lia aquilo, ele ficava a olhar para mim, havia um outro comentário. Havia outros jornais: havia a Provincia e o Diário, mas isso era muito caro, não dava para comprar. Aquele jornal era semanário… mas toda essa maka desperta em nós, resulta muito da situação económica em que a gente vivia. Quer dizer, nós convivíamos com os outros indivíduos que, não tinham problemas, aparentemente. Em casa, como já disse, chegava a ultima semana do mês, não havia comida. Se houvesse um bocadito para o almoço, não chegava para o jantar. Isso provocava problemas. Nós na escola pagávamos uma quota, uma taxa, aquilo eram dois escudos e meio, ou um escudo e meio, custava imenso. E eu tive colegas que deixaram de ir à escola porque não conseguiam pagar. Não sei, eram filhos… naquele tempo não havia, como é que se diz, na biografia do Zé Eduardo o Pai era quê? Naquele tempo, todos aqueles que
iam para a escola primária eram filhos de pequeninos funcionários, e a maior parte deles onde é que estava, e os que não podiam estar nesses serviços, Fazenda, Finanças, Obras Públicas, Correios, nos correios já havia uns que conseguiam meter os filhos na escola. Mas com muita dificuldade. A maior parte estavam na Imprensa Nacional. Vencimento que ainda era mais baixo. Tive colegas que tinham de desistir porque não tinham para pagar, era uma coisa mensal. Primeiro começava porque não tinham dinheiro para comprar a bata, um ano inteiro, chega ao fim do ano, ela está… e sem bata era escusado, não havia escola. Depois, era essa história de um ou dois angolares e meio, mas esses dois angolares e meio para aqueles velhos era… Então quem tivesse mais que um filho, era escusado, não conseguia. Tanto que o meu irmão mais velho, tem mais nove anos que eu, eu lembro-me que quando eu entro para a escola, aos sete anos, ele tem dezasseis, já ele tinha saído do Liceu para a ir para a escola comercial. Mas na escola comercial era para estudar à noite porque de dia ia trabalhar. Então o meu irmão vai para a escola comercial. As meninas chegavam à quarta classe e nem mais um anito. A única que ainda leva um bocadinho mais, é esta minha irmã, mais nova dois anos. Já consegue entrar para o Liceu. Mas aí já praticamente, é o irmão mais velho que custeia os estudos, porque para o meu Pai já não dava… Eles viam que… nós éramos quatro irmãs e três rapazes, sete. Eu tinha feito a terceira classe, e como digo, eu desde a segunda classe já lia o jornalzito. E um dia a minha Mãe, aparece lá uma senhora que era prima, também daquela toda alta sociedade decadente e tinha uma sobrinha com a minha idade, que não passava da primeira classe. A Rosário, que tu deves ter conhecido muito mais tarde. É a Rosário, que casou com o Mário António. A Rosário era minha prima, era sobrinha dessa tal senhora que era prima da minha Mãe, a minha Mãe fazia aquelas visitas protocolares e tal, e um dia deu-me a incumbência de eu ir dar aulas à miúda que não passava da primeira classe. Ah não, tens de ir, e eu ia lá, uma, duas, três vezes por semana. Só reprovei aquele ano por causa daquilo. Ia passando sempre, os outros miúdos coitados iam ficando para trás. Daquele tempo e dessa população, entravam para a primeira classe, mas chegavam à quarta classe e acabou. Então para entrar para o Liceu foi uma razia que tu não fazes ideia. Eu lembro-me que quando entrei para o
Liceu em 45, 44, as aulas começavam em Abril, Abril de 44, os exames de admissão eram um caso sério, uma razia tremenda. Mas, enfim, lá consegui entrar, e eu lembro-me por exemplo que no primeiro ano, se houvesse em todo o primeiro ano, que eram cinco turmas, A,B,C,D,E, cada turma tinha à volta de trinta e cinco, trinta e seis alunos. Desses alunos todos, tu conseguias juntar numa mão os indivíduos pretos todos. Para tu veres a percentagem que era. Bom, mas desses cinco que conseguiam entrar, eles não passavam do primeiro ano. Não passavam do primeiro. Quando nós passámos para o segundo ano, da minha turma que éramos trinta e seis, só passaram quinze. Desses que ficaram, estavam todos os patrícios. Não sei se era coincidência, o certo é que… Carlos Ferreira – Quem são os amigos do Sr. Dr. Nessa altura? Dr. João Vieira Lopes – No principio do Liceu, os amigos ainda eram só os do bairro. Naquele tempo fazíamos aquilo a pé. Da “Viúva” até ao Liceu. Mas quando a gente entra para o Liceu, a tendência é fazer novas amizades. Então, aquelas amizades do bairro começam a perder importância. E depois, encontrámos aí… eu entrei para o Liceu numa altura em que entrou também o Florêncio Gamaliel Gaspar, ele era muito mais velho que eu, mas entrámos juntos. Éramos amigos. Eu continuo sempre com aquelas notas aceitáveis, que davam para passar. E vou assim até ao quinto ano. No quinto ano, há outra vez um chumbo. E porquê? Porque nessa altura, eu estava com os meus catorze, quinze, continuava a jogar à bola, a fazer toda a espécie de desporto, e se calhar as poucas horas que eu dedicada ao estudo não chegaram para passar. E então, tive que repetir duas cadeiras, não dava para passar. Mas, do primeiro ao quinto ano, quem conseguisse – porque nós tínhamos exame no terceiro ano. Primeiro ciclo era até ao terceiro ano. Quem conseguisse acabar o primeiro ciclo, já era uma barreira pá, naquele tempo, estamos em 46, 47. De tal maneira que eu lembra-me quando eu fiz o terceiro ano, o meu Pai queria-me pôr a trabalhar. Já tinha competência, as dificuldades eram cada vez maiores e então… mas graças ao meu irmão, ele disse, não, não, eu já não estudei, ele conseguiu depois fazer o sexto e o sétimo ano, mas já trabalhando. Praticamente era ele que pagava os meus estudos. Os livros eram caros naquele tempo, havia a propina também. Então, quando
cheguei ao quinto ano era o segundo ciclo, novamente, o meu Pai achou que já era estudo demais, nova guerra com o meu irmão,, e está adiantado um ano não ele vai continuar eu continuo a pagar os estudos. As nossas dificuldades eram muito grandes, nessa altura eram muito maiores. Nessa altura, já estava no Bairro Operário. Nós vamos para o Bairro Operário, estava no segundo ano. Em 46, 45. A renda era mais barata, mas coincidência, a gente no Bairro Operário começa a conhecer pessoas que também estavam subindo, e eu vi que não era um fenómeno pessoal. Mas social, que apanhava uma faixa grande da população. Eu sou aluno do teu Pai no 5º ano, ou no 2º, tenho a impressão que foi no 2º ano. Mas fizemos amizade desde essa altura. Ele devia conhecer as famílias, não é, e depois enfim, não lhe passou despercebido e desde essa altura eu senti uma certa atracção pelo Dr. Eugénio Ferreira. Mas foi segundo, mas depois continuou, segundo e terceiro ano também fui aluno dele. O Paulo Jorge é mais velho três ou quatro anos que eu e está adiantado em relação a mim um ano. É nessa altura. Eu dava-me muito bem com ele… Lá entro para o 6º ano, nós fazíamos 6º e 7º ano, o terceiro ciclo e aí pronto, já estava sob a dependência do meu irmão. Mas quando eu faço o 5º ano, ele ainda faz diligências no sentido de eu ir trabalhar. Então, põe-me a aprender a escrever à máquina. Sabes em casa de quem? Do Velho Vieira Torres, que eram todos amigos naquele tempo. O Pai do Novato, que morava ali nos Coqueiros, primo da Tia Zita, da Tia Nota. Nos Coqueiros, naquelas casas que ainda existem hoje, as poucas casas, junto do Estádio, foi ali que eu aprendi a escrever à máquina. Todas as manhãs, nós estávamos de férias, falou lá com o Velho Fernando Torres, eu disse, estou tramado! Quando o meu irmão soube – o meu irmão estava em Benguela a trabalhar – veio a correr e disse, não, não vale a pena, ele vai fazer o sexto e o sétimo ano e se ele quiser, se puder, vai continuar. O Velho ficou furioso, porque estava tudo cada vez mais complicado. E assim é que eu… quando vou para Portugal, é o meu irmão quem paga as passagens. E diz, eu mensalmente mando-te, não é muito, aquilo era uma mesada das mais curtas que havia em Portugal. Mas enfim, aguentei-me. Fui directamente para Coimbra. Mas aqui no Liceu, eu lembra-me que, já nos últimos anos, já no sexto e sétimo, tu perguntaste quem eram as amizades, a amizade maior que eu tive no Liceu, foi o Mário António. Isto, a gente encontra-se
no quinto ano. Ele é mais novo que eu dois anos, mas ele apanhou-me naquele quinto ano. Então fazemos uma amizade tremenda. Não sei como é que começou aquilo. Mas é a tal história. No quinto ano, já éramos poucos. As turmas do quinto ano eram de vinte alunos e dos vinte alunos, não encontravas nenhum preto. No meu tempo, havia o Pedro Sobrinho, que é irmão do Roberto de Almeida, fomos colegas. E depois estava o Mário António, estava um outro individuo que era ali da Maianga, é que isso talvez nos unisse um bocadito. Havia um individuo que dizem que morreu, ele era epilético, o Charrua. Nós juntávamo-nos, eu, o Mário António, o Charrua e havia um individuo branco muito nosso amigo, o Pinto Pereira. Então, fazíamos tudo para aliviar as despesas em casa. No Liceu, quem tivesse uma média de 12 ou superior a 12, já tinha direito a pedir uma espécie de bolsa para comer na cantina do Liceu. O que era um grande alivio. Então, bom , o Mário António não, o Mário António era muito bom aluno, não tinha problemas. Mas eu e os outros lá conseguimos também e sentávamo-nos todos à mesma mesa A pessoa ir a casa, chegava a casa, quase não havia comida, para depois voltar novamente! Então, um dia acontece uma cena que eu nunca esqueci. Estávamos a comer, nós os quatro, e era um peixe, tipo estufado, saboroso, todos nós a comer, depois há um de nós, ou eu ou o Mário António, olhamos para o prato do Charrua e o prato estava limpo, não tinha nem nenhuma espinha. Ele olha para mim, eu olho para ele, para o Mário António, como quem diz “este gajo vai-nos fazer envergonhar”, onde é que este gajo meteu as espinhas do peixe? Olhámos para o Charrua, o Pinto Pereira também estava connosco e, “Charrua, onde puseste as espinhas”? Quais espinhas, isto é cálcio… isto é cálcio. Ele vivia sozinho. Foi o primeiro individuo que eu conheci a viver em república, sozinho. Morava ali nas Ingombotas, o Pai era um individuo branco, a Mãe devia ser uma negra, o certo é que o Charrua era bom aluno. Quando ele disse, isto é cálcio e o cálcio faz bem aos ossos, a malta riu-se, mas nunca me esqueci dessa. Aquilo era fome. Ele vivia num quarto sozinho, comia lá no Liceu e não sei se ele comia em casa. Ele aproveitava ao máximo. Vocês têm a mania, isto é comida, comida é para comer e isto é cálcio…Mas pronto, fomos vivendo assim.
Nós quando entrámos para o Liceu em 44, é quando, em 45 acaba a guerra e nós no Liceu, fizemos uma manifestação, no meu segundo ano, desfilámos do Liceu até ao Consulado Britànico, em frente ao Teatro Avenida. Eu não tinha mais que 12 anos. Eu lembro-me que fui nessa marcha. Havia miúdos que não foram. Havia os mais velhos, não sei quantos, cantando, estávamos a festejar o 8 de Maio. Essa, acho que foi a minha primeira manifestação. Os aliados, ganhámos a guerra contra o fascismo. Os mais velhos já sabiam. Mas é de facto com a amizade que eu faço com o Mário António que me começa a…. Ele é que me empresta o primeiro livro que li do Jorge Amado. O Jubiabá. Mas o Mário António era muito mais avançado que nós. Era mais novo que eu dois anos, mas ele já escrevia, nessa altura, então nós conversávamos. Ele procurava saber de mim a vida do musseque. Ele estava impressionadíssimo com a vida no musseque. Como é que eu vivia, o que é que eu fazia nas horas vagas, o que fazia, o que não fazia, Ele estava na Maianga. Ele estava entusiasmado com aquela coisa… mas como é… e eu contava-lhe as nossas aventuras. Ao domingo, íamos para a Praia da Rotunda. A ele fazia-lhe confusão, então, ele começa a emprestar-me esses livros. Esse foi o primeiro. Ele, este poema, Jubiabá,… quando li Jubiabá, me cri António Balduino, meu primo que nunca o leu, ficou Zeca Camarão… quando eu vou para Coimbra, uma das primeiras cartas que recebo é dele. Continuou sempre coiso. Então mandou-me esse poema. “Não achas que este meu primo tem muitas semelhanças contigo?” Mas não o divulgues ainda. Eu tenho guardado esse poema, essa carta. Não divulgues, porque isto não está publicado, não sei quantos… Passados muitos anos, vejo que a coisa está publicada, mas nunca contei a ninguém. Mas isso influenciava pelas conversas que ele tinha comigo e eu com ele. Depois, também, nós no 6º ano, fomos fazer uma excursão ao Lubango, passando por Nova Lisboa. 6º ano naquele tempo éramos doze, então, integramos o Cachupa, o Cachupa de Cabo Verde, foi dirigente, primeiro esteve connosco no MPLA lá fora, só depois é que vai para o PAIGC. Ele estava mais atrasado, mas como tocava violão, e tal, vamos integrar o Cachupa, ele vem connosco. Estava o Mário António, o Charrua, estava eu e não tinha mais nenhum… todos os outros eram indivíduos brancos. Não, estava o Correia Mendes, que tinha a mania que era metade branco metade negro. Esse Correia Mendes
sempre teve essa mania. Mas era nosso amigo. A malta dizia… tens de ter cuidado… e então, uma das primeiras manifestações que nós tivemos foi quando chegámos a Nova Lisboa. Naquela altura aquilo era terrível. Então sentimos de facto. Éramos os ídolos eleitos daquele tempo, estar no 6º ano do Liceu já era super-categoria, tínhamos direito a ir às festas. Convidaram-nos para umas festas, eu já sabia dessas coisas, eu disse eh pá eu acho que é melhor eu ficar aqui. Nem pensar, vamos todos ou não vai nenhum. Lá fomos, à entrada, aquilo não devia ser barato, havia um monte de indivíduos cá fora, a entrar, a maior parte eram indivíduos brancos, os pretos nem sequer se aproximavam, quando nós íamos a entrar… oh! Hoje até os pretos vêm ao baile!... mas coisas insultuosas mesmo. Os meus colegas disseram-me, eu já tinha dito aquilo… não ligues a isso, fomos convidados, nós nem somos de cá, mas aí começámos a sentir a consciência de que havia qualquer coisa que não estava muito bem… Outra vez, foi aqui também em Luanda. Nós já estávamos no sétimo ano. Foi na altura em que veio cá o Orfeão Académico de Coimbra. 1950. Um grande baile no Palácio do Comércio, onde hoje estão as Relações Exteriores. Aquilo era um baile de gala., tinha de se ir de laço, então convidaram os alunos do 7º ano também. Nós não tínhamos Universidade aqui. Eu disse-lhes, eu não vou, não tenho laço nem fato, nem a brincar. Eh pá, que chatice, tu gostas de dançar, pois é, mas não vale a pena. Então cheguei a casa, falou-se disso e o meu cunhado, o Vasco Sopas diz, ó Joãozinho aquele meu fato e aquele meu laço que aquilo vai dar. Mas eu estava de facto interessado em ir, lá pus o fato do Vasco, ficava às mil maravilhas, pus o laço; cheguei no dia seguinte e disse, afinal já tenho fato e coiso, eh pá, vamos embora, a mesma cena se repete. E com luzes, eu nunca tinha entrado naquele Palácio, então, um baile de gala, meninas de vestidos coiso, a entrar, “hoje estamos mal, hoje os pretos também têm direito a entrar”. Mas coisa acintosa, e marcava. Mas marcava não só a nós, marcava aos outros colegas brancos, que estavam ao nosso lado e diziam de facto há aqui qualquer coisa que não está bem… E nós discutíamos, não é? Nunca tive problemas… Eu tive sempre grandes amigos… Carlos Ferreira – O Sr. Dr. era namoradeiro?
Dr. João Vieira Lopes – Era aí que o Mário António ficava coisa… é daí que vem “o meu primo ficou Zeca Camarão, vamos levar duas moças para a praia da Rotunda. Eu contava-lhe das nossas cenas, dos nossos namoricos, mas ele ficava entusiasmado, mas depois é que eu via que ele ficava era a magicar como é que podia passar aquilo para o papel. Desde os meus quinze, dezasseis anos, sempre tive namoricos. Cristina Pinto – Conheceu a Gina já cá? Dr. João Vieira Lopes – Não, conhecemo-nos lá em Coimbra, conhecemonos em Coimbra. Mas há uma coisa que é, eu antes de sair daqui namorei com a Mãe desta senhora. Era muito bonita, a Alba Clington. Carlos Ferreira – As moças na altura tomavam alguma espécie de iniciativa? Dr. João Vieira Lopes – Não. Eram muito pacificas. Mas era uma vida. Eu quando saí daqui e cheguei a Coimbra, durante três meses, fartei-me de chorar. Tu não conheces o Professor Mourão? Conheces. Ele conta, ele é brasileiro, português-brasileiro, ele junta-se a nós, aos (não se entende) por causa dessa história dos banhos. Ele vinha de Lisboa, chegou a Coimbra, e estava à procura duma pensão. Mas uma pensão onde a pessoa possa tomar banho. Ah, então o senhor vai ali aquela casa onde estão os pretos porque eles é que gostam muito de tomar banho. O Mourão conta isto… (gargalhadas) Conhecemo-nos em Coimbra, a nossa amizade vem de Coimbra, logo que ele chegou lá, ….de direito. E foi-se juntar a nós, à Casa dos Estudantes do Império, porque lá os pretos tomavam banho todos os dias. Foi assim que o Mourão se juntou a nós, e depois ficou mesmo nosso dia. Cheguei lá em 52, saímos lá em 61. Muito tempo. Cristina Pinto – Quando há o 4 de Fevereiro, o 15 de Março, vocês estavam lá? Dr. João Vieira Lopes – Rebenta o 4 de Fevereiro aqui e nós estávamos lá. Começámos imediatamente a pensar na fuga. Já estávamos organizados em grupos de estudantes, em círculos, mas quando rebenta o 4 de Fevereiro,, nós dissemos, aqui não vamos poder ficar, porque eles já
tinham começado com o processo de recrutamento maciço, onde englobavam todos. Eu quando cheguei a Portugal, em 52, tinha 19 anos, fiz 20 lá e não se fazia… só faziam serviço militar brancos. Pretos e mulatos não faziam serviço militar. Íamos à inspecção médica e depois ficava isento do serviço militar e ficava a pagar uma taxa militar. Eu tinha uma caderneta, não sei aonde é que está, durante três ou quatro anos andei a pagar a taxa militar. Eles é que excluíram, mas pagávamos para não ir para a tropa. Isto em 52. Depois em 57, as coisas começaram a agravar-se. É. 57. Não. 56. Eles fazem uma outra lei que acabou com essa história, e que toda a gente é igual, todos somos portugueses, já eu estava no meu 4º ano. Então, chamam-me novamente. Então como é que eu agora, numa altura destas, fico dois anos no serviço militar, nunca mais acabo isto. Fui parar ao Hospital Militar da Estrela onde estive um mês. Mas não fui eu só. Primeiro foram os (não se entende) todos, Concentração era no dia 1 de não sei quantos, e tínhamos que estar todos. E quem não se apresentasse… ah, e tinhas de estar devidamente fardado. Eu disse, ainda tens de comprar farda e estar lá já fardado. E disseram-me, se não fores lá és dado como refractário. Lá comprei eu uma farda e no dia não sei quê, já não me lembro, fomos todos a Mafra. Era um monte de gente. E a gente ouvia: eu não vou fazer serviço militar, mesmo os indivíduos brancos portugueses e tudo, já nessa altura se sentia que vinha a guerra. Pois é, mas a pessoa aqui para se safar tinha que ter qualquer doença, qualquer coisa, eu tenho uma coisa, mas é preciso ter cunha, eu não tinha cunha, mas tinha uma hérnia de nascença. Que nunca fiz nada, nunca me operei, fiz o desporto todo que quis, então conversando com os outros colegas eh pá isso dá, isso livra da tropa. É só tu dizeres que não queres ser operado, estás aqui muito longe da tua família, não tens ninguém, mas fiquei, ficámos em Mafra uns quatro dias, ao fim de quatro dias, “aqueles que têm problemas de saúde, um passo em frente”… Eh pá, um monte deles, um passo em frente. Amanhã às tantas horas, o (não se percebe) vai-vos levar ao Hospital Militar da Estrela. Mas um monte de gente… ninguém queria fazer a tropa, só mesmo os infelizes coitados. Sobretudo porque éramos universitários, uns já quase no fim, outros no meio, então fomos para o Hospital Militar da Estrela. Chegámos lá, ficámos lá um mês, um processo complicado, até que chegava a Junta onde estavam cinco
velhotes generais médicos. Tipo julgamento. A malta tremia, eu pensava eu tenho a minha doença, se me livrarem muito bem, se não me livrarem… outros, eu tenho a cunha do general não sei quantos, outro a cunha do general não sei quê. Lá fui eu, então, tenho uma hérnia, então porque não opera, operar, então eu aqui sozinho como é que eu vou operar. Fica livre do serviço militar. Mas em 61, quando rebenta o 4 de Fevereiro, estávamos nós já bem organizados. Fevereiro de 61. Em Lisboa já. Em 58 mudei-me para Lisboa. Já tinha sido Presidente da Casa dos Estudantes do Império, isto aqui a perspectiva é mesmo muito má. Então começámos imediatamente a engendrar como é que a gente podia sair de Portugal. Primeiro íamos sair só o núcleo, mas se vamos deixar os outros, estamos tramados. O maior número possível, mas isto é um problema sério. Recordo-me de quase todos. Depois a gente pode pormenorizar isso. Mas primeiro era saber contactar com as organizações que nos deviam ajudar. Nós sozinhos não podíamos fugir daquela teia da Pide. Foi então que conseguíssemos saber que havia um grupo de protestantes, e aí é que os protestantes nos ajudam imenso, que tinha feito um trabalho semelhante durante a guerra da Argélia. E que tinha levado muitos argelinos para França, para a CIMAT(?). Então, nós temos de entrar em contacto com os protestantes nossos amigos, onde estava o Pedro Filipe. Muito pouca gente fala dele. É um individuo que agora está cá, esteve muito tempo fora, ele formou-se em Direito, depois ficou lá fora, foi trabalhar para as Nações Unidas, mas já está cá há uma dezena de anos. Mas pouca gente fala dele. Ele, como protestante, é que fez a ligação do nosso grupo, nós éramos tudo menos protestantes ou católicos, (não se percebe) Carlos Ferreira – O Dr. vai-se mantendo a par do que se passa aqui? Dr. João Vieira Lopes – É mais por mensageiros, pelos marítimos. Havia as duas grandes empresas de navegação, a Companhia Colonial e a Companhia Nacional de Navegação e que empregava muitos muitos maritimos, africanos, angolanos então em grande número, com quem já tínhamos contactos no Clube Maritimo Africano. Quando rebenta o 4 de Fevereiro, ninguém nos ia dizer… mas a gente, por tudo, a gente não pode ficar aqui nem mais um dia. Isto aqui já estamos a ver mesmo que vamos
ser todos recrutados, quem estiver em idade, e os que não estiverem em idade, vão ser apertados de tal maneira, já se tinha dado o processo dos cinquenta, nós tínhamos conhecimento disso tudo, não não vale a pena e então começamos… isso levou-nos ainda uns meses até que em Junho nós já saímos mesmo. Eu era dos mais velhos, dos mais experientes talvez, eu já tinha, já trazia a minha militância de Coimbra no MAC, o Lúcio era o primeiro angolano com quem me encontro em Portugal, não sei se já te contei. Só que ele fica aí um ano. Depois vem para Lisboa. E eu encontro-o novamente em Lisboa, já ligado ao Eduardo Santos, ao Amilcar Cabral. Eu estava muito ligado ao Eduardo Santos, não queriam outra coisa. Ficamos todos os fins-de-semana. O Humberto Machado está noutro dia. A minha ligação com o Humberto Machado é anterior, logo no primeiro ano que eu estou em Coimbra, chego em Abril, em Dezembro são as férias, aquilo são férias duma semana que a gente transforma em um mês. Um mês, então venho para Lisboa, e vou directamente a casa do Humberto Machado, por indicação de dois indivíduos que eu conheci em Coimbra, também meus correligionários, o Costa Campos e o Lima de Azevedo. O Costa Campos ficou por lá, o Lima de Azevedo morreu há pouco tempo em Benguela. E eles é que me dizem, vais ter com o Humberto Machado. É aí que eu encontro o Agostinho Neto. Só que fico depois praticamente em contacto com o Neto, desde esse meu primeiro contacto em Dezembro de 52. Eu só conheço o Viriato, quando a gente sai. Conheci o Viriato, e quem me falava do Viriato era o Mário António. Porque quando eu chego ao liceu, eu acho que ainda o Viriato estava. Em 54, mas está um ano só. E eu digo que ele estava, porque estava com o Germano Gomes. E eu e o Germano como éramos parentes, tenho uma ideia vaga do Viriato. Mas não temos contacto. Um ano depois, acho que ele sai doente e eu perco-o de vista. Entretanto, quem vai falando sempre nele é o Mário António.
Dia 16 de Julho de 2010 Cristina Pinto - A célebre fuga dos 100. Os grupos seguiram diversos rumos. Uns foram de autocarro…
Dr. João Vieira Lopes – Utilizámos tudo. Autocarro, comboio, carros particulares, um ou dois, havia indivíduos que tinham carros particulares, e ajudaram a transportar alguns elementos de Lisboa até ao Porto. Do Porto até à fronteira, já se tinha de utilizar um outro meio de transporte. Uns táxis que iam lá, disfarçar… Mas aquilo começa, porque logo a seguir ao 4 de Fevereiro aqui, nós estávamos todos na Casa dos Estudantes do Império. Eu tinha sido Presidente e tinha uma certa influência no meio dos indivíduos da minha idade e também nos outros mais novos que iam chegando. Em 59, nós ainda não estávamos agrupados no MPLA. Essa altura o MPLA ainda não tinha chegado a Portugal, a Lisboa, e nós estávamos agrupados naquelas organizações que foram dando lugar ao MPLA. Eu vinha do MAC, antes de ser presidente da Casa, depois, passado um ano, o MAC, que não era uma organização muito vasta, porque aquilo era tudo clandestino. Havia grupos, pequenas células de quatro elementos, cinco era muito, então chegamos a 60 e aquela conferência em Tunis onde aparecem os movimentos que na altura o MPLA tinha os seus representantes já fora de Portugal. Estava o Mário, estava o Viriato, estava o Lúcio, esses indivíduos resolveram que era preciso estabelecer uma relação com o interior, o interior era Portugal. Para essa conferência aparecem representantes das várias …. Acho que o Holden também se faz representar nessa conferência, em Tunis. O grupo de São Tomé que não estava organizado, praticamente eles militavam nas mesmas organizações que nós também aparece em Tunis, inclusivamente o grupo de Goa, com o Aquino de Bragança. Ele começa por Goa, mas demora pouco tempo, porque de facto o projecto de Goa não tinha possibilidades. Aparecem indivíduos de Moçambique, sobretudo com o Marcelino, depois faz vir alguns que estavam fora da Europa e é, nessa reunião que por indicação de amigos estrangeiros, sobretudo os argelinos que na altura pontificavam de facto no movimento revolucionário, eles já tinham uma experiência muito boa, aconselharam os nossos companheiros, vocês vêm aqui como movimentos, isso não dá. Vocês têm de ter um partido, um partido de vanguarda. E nessa altura é que se forma a Frente Revolucionária. O Frain. Nós em Lisboa não sabíamos nada. Então dessa reunião, eles mandam imediatamente, porque havia ligação com os poucos que já tinham ficado em Lisboa. Os mais velhos já tinham saído praticamente. O Lúcio já tinha
saído, acho que o Eduardo ainda estava lá, o Hugo de Menezes já estava lá, não por S. Tomé mas integrado em Angola, e a partir daí, portanto 60, nós temos que refundir aquele movimento em Frente Revolucionária, que agrupava então os vários partidos. E é aí que pela primeira vez aparece o MPLA. Então começámos a fazer separações, se bem que nessa altura a coisa estava tão misturada dentro de Portugal que tínhamos muitos elementos cabo-verdeanos, são-tomenses que estavam tão ligados a nós que eles se integraram praticamente no MPLA. Bom, mas essa organização continuava a ser muito fechada, muito pequena, Aquilo era tudo no sigilo, uma clandestinidade tão grande que as células dificilmente se conseguiam alargar. Entretanto a maioria dos indivíduos as células eram da Casa dos Estudantes do Império. E dessa maioria, o número mesmo grande era de angolanos. Moçambicanos eram poucos, a Noémia já estava lá fora, cabo-verdeanos eram em número razoável. Nós resolvemos, digamos que paralelamente à estrutura politica das células do MPLA, tentar organizarmo-nos em grupos um pouco mais abertos; é assim que nasce o que depois se vem a chamar Grupo de Estudantes Africanos. Que praticamente organiza a fuga. Nesse grupo, que já era mais aberto, quer dizer, se bem que clandestino e fechado, não tinha aquele secretismo do partido, havia indivíduos do Grupo de Estudantes que integravam as células do MPLA, mas nem todos, porque tínhamos receio, tínhamos receio do grau de politização desses indivíduos todos. O certo é que esse grupo se foi alargando. Estendemo-lo a Coimbra, ao Porto, enquanto que as células do MPLA estavam praticamente mesmo em Lisboa. Passámos o ano 60 assim. Fazíamos as nossas reuniões, sempre com o título, com o rótulo de estudantes africanos. Mas que no fim esses grupos eram dirigidos pelos elementos mais preponderantes das células do MPLA. Que eram poucos mas estávamos sempre presentes. Até que chega Fevereiro de 61. Sentia-se, nos meses que antecederam, uma pressão muito grande, mas não se sabia ainda muito bem o que era aquilo, até que se dá o 4 de Fevereiro. Uma agitação enorme em Portugal, aqueles jornais todos, e nós reunimo-nos de urgência porque não sabíamos como é que “isto vai acabar”. Já tinha havido desde 60 uma mobilização excessiva. A mobilização para as colónias até 58/57, os ultramarinos eram excluídos, vocês sabem. Sobretudo os que estavam
com um nível superior, porque tinham que ir para oficiais e eles não queriam oficiais… A partir de 59/60, começaram a fazer integração, a chamar também os que tinham o curso superior. Então, quando chega 61, isto vai ser… nós vamos ser todos recrutados e vamos parar a Angola. Não tenhamos dúvidas nisso. Então, o que é que vamos fazer, nós temos que sair daqui porque os que ficarem aqui e se recusarem a ir, vão para a prisão. E os que quiserem ir, arriscam-se a ir combater e morrer nas mãos dos nossos irmãos. Então trata de, vamos fugir, vamos fugir para onde. Vamos pedir auxilio a quem sabe. E quem sabia eram de facto grupos que estavam em França que já tinham ajudado os argelinos a sair da Argélia para França. Não sei, nessa altura também já estavam fora alguns dos mais jovens. Tirando os mais velhos. Os mais jovens eram o Edmundo Rocha, o Desidério Costa, o Desidério sempre foi ligado aos protestantes. E conseguimos, não me lembro já bem por que meios entrar em contacto com eles. E mostrar o nosso desejo. Eles disseram sim senhora, isso é possível já. Eles entraram em contacto com a cadeia francesa que fazia essas ligações e enviaram-nos um emissário que foi até Lisboa. Em Lisboa eles tinham de contactar com alguém, primeiro contactaram com os protestantes. Nós tínhamos dois que eu me lembro, o Pedro Filipe, licenciou-se em Direito e fazia parte do Grupo de Estudantes Angolanos. Através do Pedro Filipe, eles vieram ter comigo que praticamente coordenava o grupo todo, para dizer que sim senhor, há possibilidade de sair, vocês precisam de nos dar um número mais ou menos certo e também que sejam pessoas em que vocês confiem. Então tratem de começar a fazer uma selecção. Havia muitos indivíduos que estavam connosco na Casa dos Estudantes do Império, já há muitos anos, mas pronto, estavam ali, primeiro nem sequer estavam integrados no Grupo de Estudantes. Depois, nunca estiveram ligados às células do MPLA. Então, lá conseguimos e a brincar a brincar, conseguimos seleccionar 125. Tudo muito em sigilo. Do núcleo central estava eu, estava o Bento Ribeiro (o Cabulo), estava o falecido Gentil Viana, ( o Ingo estava preso em Goa) o André Franco de Sousa nunca esteve, o Graça Tavares sim, e já tinha saído. Esteve sempre ligado a nós, mas é também dos que já tinha saído e estava integrado com o Desidério e com outros lá fora. O Campos Dias nunca esteve integrado nem sequer na Casa dos Estudantes do Império.
Eu conheço muito bem o Campos Dias em Coimbra. Não é do curso do Neto. É mais novo. Nunca teve nada a ver. Eu vinha também do MUD juvenil desde Coimbra. Onde estavam integrados também os Bernardino. Em Lisboa, o Zé e o falecido David. O Luis nunca esteve ligado a nós. O Luis foi sempre um free-lancer. O Zé era deputado do PC. Era mesmo o mais evoluído deles. Trabalhou muito connosco na Casa dos Estudantes, já como militante do PCP. Mas voltando, o recrutamento não foi fácil. Aquilo tinha que ver com as células, tinha de ser com muito cautela, a Gina fazia parte do grupo. Tínhamos uma parte das reuniões na minha casa, eu morava ali na Rua da Beneficência, que fica ali perto da Gulbenkian, em direcção ao Santa Maria, e nós tínhamos reuniões aí. Eu já estava casado, casei-me em 58, antes de acabar o curso. A GIna estudava Letras em Coimbra. A partir daí fizemos a caminhada juntos sempre. Mas dos grupos, éramos tantos que não dava para sair tudo de uma vez. Então fomos fazendo selecções. Havia indivíduos que foram num primeiro grupo, vinte e poucos. Donde saiu o Sílvio de Almeida, um individuo que morreu, negro protestante, o Ismael Martins. Mulheres, nesse grupo de vinte e um saíram pelo menos seis mulheres, a Idalina, a Gina foi no outro grupo comigo. Fiquei para o fim. O nosso grupo, o maior, é o grupo dos 100. O primeiro grupo sai bem, atravessa a fronteira de Espanha em Handaya e vai em direcção à Suíça. Mas aquilo era com intervalos de três, quatro dias, íamos fazendo sair. O Gentil por exemplo sai de comboio com o pretexto de que ia levar a filha, ela teve uma filha que teve paralisia infantil, o Gentil á tinha a mulher, a Ângela Guimarães, o Chico e essa menina. Muito doente, então nós dissemos, ele tinha possibilidades porque ele tinha passaporte, estava a fazer aqueles estágios depois da licenciatura, então podia, porque tinha o seu passaporte, podia ir, sempre eram mais quatro, e foi de comboio. Havia um outro grupo que foi de carro. Já não me lembro, foi o José Araújo, cabo-verdeano, casado com a Manuela Sanches, angolana, irmã do Eleutério Sanches. Ele sai, eu penso que ele sai de carro com a filhinha que também já era nascida. Fizemos sair mais dois grupos de carro. Esses grupos tinham que ir de carro até ao Porto, no Porto tínhamos um grupo que era comandado pela Lima de Azevedo que já morreu. De Benguela. Tínhamos conseguido que ele estabelecesse lá um grupo também grande. E havia o grupo de Coimbra.
Conseguimos reunir gente de Coimbra. De Coimbra, para além do Manuel Videira estava o Chipenda. Lembro-me até (isto é um parêntesis) ele vem de Coimbra e dirige-se a minha casa. Ia lá colher informações. Bom, ele não podia fazer isso. Primeiro, ele não podia fazer isso, primeiro não sabia em que posição é que eu estava. Apanhou uma rabecada… Vai lá para o teu lugar, as ordens vão chegar calmamente, não te precipites. Mas então, conseguimos fazer sair esse primeiro grupo, e depois de dois ou de três em três dias, saia outro, isto no espaço de uma semana. Até que marcamos o ultimo dia para saírem cento e um, cento e dois. Iamos em carros particulares, carros de pessoas ligadas ao individuo que tinha vindo lá de França, que era um pastor protestante, o Jacques Beaumont. Outros iam de comboio e encontrávamo-nos no Porto num sitio bem localizado. E no Porto apanhávamos outros carros que nos levavam até à fronteira. Mas esse transporte tinha de ser à noite. Saíamos de Lisboa de maneira que chegássemos ao fim da tarde ao Porto, e só tínhamos umas três, quatro horas para seguir até à fronteira. De maneira que não dava para ser seguido. Mas isto com mil e uma cautelas. O certo é que juntámos na fronteira cerca de cem indivíduos, mulheres e crianças. O Johny tinha 2 anos e meio. O Liahuca saiu com a mulher, o Liahuca era angolano do Huambo, a mulher são-tomense, grávida de oito meses, do Nendela que foi nascer em Julho em Paris. A fuga dá-se em Junho, porque nós depois para sairmos de Paris, tivemos de esperar o 14 de Juillet. Era um feriado, uma confusão tremenda, mas então, na fronteira de Espanha, a travessia era outra peripécia terrível, nenhum de nós fazia ideia como é que ia atravessar a fronteira. Aquilo é uma garganta tremenda, passa lá no fundo do rio, o Minho, aquilo parecia umas nozes, barcaças, mas é que passámos todos, grupos de dois, três, quatro, isto à noite, tivemos que esperar à beira-rio, à noite apareceram os indivíduos que já estavam contactados pelo francês, o Pastor que nessa altura se fez acompanhar de mais dois pastores protestantes, acho que esses dois eram norte-americanos, mas ligados à CIMADE. Desses dois, depois viemos a saber que um deles devia pertencer à CIA, mas só muito depois. Actividades que a CIA tinha de apoio ao CIMADE. Atravessaram connosco a fronteira. Do outro lado é que a coisa se complica, porque houve uma mudança de guarda e o na fronteira de Andaya. Atravessámos muito bem o rio, depois subimos uma
ladeira, o rio fazia uma coisa funda, aquilo praticamente de madrugada. Lá fomos nós todos floresta adentro até chegar a um ponto, onde já estava um, dois autocarros. Que nos levaram até à fronteira de Andaya. E aí nessa fronteira é que houve uma mudança de guarda que não estava prevista. Foram vendo passar tanta gente, como diz o outro de diferentes qualidades, havia tudo, havia tudo, brancos, pretos, mulatos, mulheres, crianças, aquilo começou a fazer confusão, até que não sei como é que foi, vocês tem de esperar, aguardar aí, foi chamar o outro chefe depois o outro chefe e fomos lá para dentro. E fomos para a prisão. Começámos logo a barafustar, porque havia mulheres, crianças, está bem, estejam descansados, diziam eles, as mulheres e as crianças vão ficar separadas. Lembro-me perfeitamente aí começa já a primeira batalha. Porque estavam os tais protestantes connosco. Os norte-americanos. Mas que falavam português correctamente. E aí nós dissemos, vocês têm de avisar imediatamente o vosso governo, eles não vos podem prender, a nós ainda vá lá, mas… e aí há uma série de corredores que eles começam a fazer, soubemos que as autoridades espanholas entraram em contacto com as autoridades portuguesas, que o Salazar estava pronto a enviar o avião, mas, ao mesmo tempo a CIMADE tinha muita influência no governo francês. Mas mesmo muita. Eles também por seu lado entraram em contacto com o governo francês e o governo francês pressionou o governo espanhol. Então ficámos lá um dia e meio. Libertaram-nos e pronto, tínhamos de seguir para Paris. Mas estávamos a ver aquilo andar para trás nessas quase quarenta e oito horas que passámos ali. Há cenas que contam, cada um conta à sua maneira, havia uns que tremiam, outros que sei lá, então há um que diz que, o Chaves, anda aqui também, ó Dr. vocês não faz ideia, porque eles interrogavam-nos separadamente, e cada um ia dizendo que não sabia falar uma língua, porque nós tínhamos que não eram iguais. Eu tinha passaporte ganês, como profissão pedreiro e assim por diante. Havia uns com passaportes senegaleses, e do Sekou Touré também. Então falávamos era francês. Português e espanhol não sabíamos. Argelinos não porque a maioria, como era assim escura – e eles trabalhavam muitíssimo bem, de maneira que adaptaram as pessoas mais ou menos de acordo com as suas características. Então, a gente não sabia falar aquela língua delas. O soldado espanhol e tal como vieram, eu não
entendo, e então dizia um: “hoy no hablan pêro mañana cantaran”… Isso ficou e correu. E lá chegamos a França. Chegámos à CIMADE e aí começa imediatamente outra luta. Eles já tinham aquilo preparado, aquilo era um campo que já existia desde os tempos da luta da Argélia. Era nos arredores de Paris, para além de Versalhes, nos arredores de Paris. Não eram tendas, eram mesmo casernas, mas bem organizadas, bem organizadas. Um refeitório enorme, mas o que é que a gente reparou. Logo que chegámos lá, que os franceses, os que nos tinham ajudado, também queria tirar proveito daquela aventura. Então começaram a fazer manobras, junto dos protestantes, que havia muitos protestantes que tínhamos incluído no grupo. Esses protestantes, nenhum deles era militante do MPLA. Havia um ou outro, este Pedro Filipe era simpatizante da UPA. E nós fizemos uma amizade mesmo muito grande. Mas ele diziame que era simpatizante da UPA. Mas os outros não eram nem da UPA nem do MPLA, quando muito faziam parte do Grupo de Estudantes. Havia uma dúzia daqueles cento e tal, só uma dúzia é que se consideravam militantes, já estavam integrados nas células do MPLA. E os franceses foram conseguindo, com as bolsas de estudos, que era a coisa mais fácil, porque havia uns que á tinham terminado, que eram poucos, outros como eu, estavam a terminar, no último ano, e havia outros que estavam mesmo nos primeiro e segundo anos. Esses tinham de ir estudar e nós dissemos logo: não, isto não é tudo para ir para a guerra, o importante é sair de Portugal, uma vez lá fora vamos ver, os que quiserem continuar a estudar, nós vamos arranjar maneira de … Então nós o que é que fizemos? Aqui só temos que tentar contactar os países africanos capazes de nos dar ajuda. Dividimos o grupo directivo em três, uns iam fazer contacto com a embaixada do Ghana, outros com a Guiné Conackry e outros com o Senegal. Contactos, mais contactos, muitas promessas, mas o único que nos dava garantias era o Ghana, o Ghana dizia não, não há problema, vocês estejam descansados, estejam preparados porque o Osa Giefu vai tratar do problema. Era como lhe chamavam ninguém lhe chamava só Kwame N´Krumah, “O Salvador”. Chegámos em meados de Junho, só saímos de Paris justamente no 14 de Julho. Preparámos as coisas exactamente para sair num dia de muita confusão, muito barulho, de autocarro também, isto já com a embaixada do Ghana, que nos diz vocês
têm que sair daqui para a Alemanha, que na Alemanha é que está o embaixador forte. Em Bona, na Alemanha Ocidental. Arranjou-nos passaportes mais uma vez, mas aí já era mais fácil, atravessámos a fronteira da França, atravessámos a Suiça, mas não puseram problemas e chegámos à Bona. Fomos muitíssimo bem recebidos pelo embaixador do Ghana, postos lá num grande hotel e ao fim de 48 horas tinha um avião à nossa disposição para… Nessa altura já somos menos, há pessoal que fica em Paris, não quer sair, porque á estavam contactados pela CIMATE, entretanto o grupo da Suiça é contactado pela Unita, o Graça Tavares estava na Suiça nessa altura, e são contactados pelo Savimbi, acho que o Savimbi consegue recrutar alguns elementos, ele não tinha era a força necessária mas conseguia aquelas bolsas e muitos deles ficaram na Suiça. O Fernando Octávio saiu connosco, ficou na Suiça também, mas não a convite do Savimbi. O Lihauca quando sai não é da Unita. Fica em Paris, é contactado mas nunca aceita, ele desconfiava muito daqueles indivíduos, tanto é que ele vem depois para Leopoldville, nós dávamo-nos muitíssimo bem, éramos muito amigos. E ele contava os contactos que iam tendo. Ele era muito religioso, acho que ainda era primo afastado do Savimbi. Mas ele dizia que desconfiava muito deles. Mas os contactos eram com a UPA, mas ele nunca aceitou. É depois de estar em Leopoldville que a UPA consegue contactá-lo e levá-lo. E ele chega a ser médico, director dos serviços de saúde e Ministro da Saúde do GRAE. Quando nós estamos ainda em Paris, lembro-me de um casal são-tomense, o Graça, o Carlos Graça, chegou a ser primeiro-ministro de São Tomé, mais tarde, casado com uma portuguesa, conhecíamo-nos e dávamo-nos muito bem, éramos colegas em Coimbra, falámos, vamos descer e ele diz que não, eu fico por aqui, chega muito bem. Outro que também não desce é o Gentil Traça. Casado, com uma senhora portuguesa também, ficou também. Mas desses cento e tal, tenho a impressão que oitenta. Tenho fotografias tiradas disso, na Alemanha, do grupo tudo. Está lá o Onambwé, era miúdo, muito mais miúdo que eu. Nós não tínhamos ainda trinta anos, os mais velhos era eu, talvez o nosso mais velho fosse o Carlos Pestana. O Desidério é um ano mais novo que eu, talvez. Digo isso porque ele foi-me pedir conselho antes de sair. Eu já estava casado, um dia aparece-me lá em casa. Ele não tinha muito êxito nos estudos em Portugal, estava a fazer
o 7º ano, cadeiras em atraso, até que resolve, ele tinha possibilidades, porque tinha os contactos dos protestantes na Alemanha. E eu disse, isto em 60, antes do 4 de Fevereiro, ele vai ter comigo, nós já estávamos a organizar o tal grupo, e ele se calhar veio, mais experiente , e eu aconselho-o a ir embora. Nós tínhamos à volta de 26, 27 anos, e havia esse grupo que tinha acabado de chegar de Angola. Tinham quando muito dois anos de Portugal. Devem ter chegado com 18, 19 anos, portanto teriam 21, 22 era muito. Mas ainda conseguimos ir para a Alemanha cerca de 80. Desses 80 viemos todos para o Ghana, para Accra. Fomos recebidos pelo Osa Giefu, o Kwame N´Krumah, ele ficou todo satisfeito, lá fui eu fazer o discurso de agradecimento, num inglês que eu inventei, nós éramos muito atrevidos, a idade é muito importante, não sei onde é que fui arranjar inglês para falar com o homem, eles queriam um líder, the leader, não queriam falar com toda a maralha, longe de mim estar agora entrosado em leader, mas não não, vais lá tu, tu é que és o… ali não havia possibilidade de pedir tradutor, era um bocado… bom o homem lá nos instalou, fiquem aí, estejam à vontade, podem fazer os contactos que quiserem e depois venham-me dizer o que é que vocês resolveram. E de facto fizemos contactos com a embaixada dos Estados Unidos, houve dois, três ou quatro que foram parar aos EUA, entre eles o Pedro Pires, bolsas que a gente conseguia. Eles não eram militantes, o PAIGC não existia e não eram militantes do MPLA. Os militantes que eram os mais fiéis, nós vamos aumentando, com a saída, fomos engrossando e fomos arranjando mais. Outros foram para a União Soviética. O grupo grande foi para o Leste. Era mais facilmente a forma de se conseguir bolsas. O grosso foi para a União Soviética, o Fernando Paiva foi comandar esse grupo, mas houve um grupo que foi parar, não sei se para a Roménia. A Ana Wilson casou com um congolês e fez lá a vida dela. O Onambwe, como é que vai parar a Cuba. E acho que há outro grupo que vai para Cuba e aí vai o Onambwe. Mas o grosso vai para a Uniao Soviética. O França Van-Dunem vai para a Holanda, para a Holanda vai também o Rui de Carvalho, médico cirurgião, e daqueles países da Europa, acho que a Holanda foi que recebeu alguns, que eu me lembre, do resto, Estados Unidos, Cuba e o resto fica lá em Accra e vamos descendo também devagarinho para Leopoldville. Eu fui logo requisitado no principio está claro que a malta não gostou, porque
iam ficar abandonados, eu disse isto agora já estamos sobre as ordens do partido. Este grupo que ficou aqui, o Partido pede que eu siga e eu segui para Leopoldville. O Partido não manda ir todos porque não tinha essa possibilidade. Isso depois quando a gente chega a Leopoldville é que a gente começa a ver as dificuldades financeiras, económicas, logísticas. Inclusivamente, eu consigo resolver um bocadinho o problema, porque encontro lá parentes que eu nunca mais tinha visto. E fiquei inclusivamente alojado em casa de uns parentes que lá tinha. Há cá uma farmacêutica, mulher do Adolfo N´Sikalango, que foi Secretário de Estado da Cooperação, esse N´Sikalango, eu conheço em Leopoldville. Acho que estudou na Checoslováquia ou mesmo na União Soviética. Aí sou integrado imediatamente como membro do Comité Director. Agosto de 61. O Graça Tavares já lá estava. Quem está em Leopoldville, é o Viriato, o Luis de Azevedo, Matias Miguéis, o Reverendo Domingos da Silva já lá estava, o Lúcio chega depois de mim, o Iko ficou em Accra, fica no Ghana, ele faz parte da fuga, na altura não tinha mulher. O Iko encontra a mulher no Leste, muitos anos depois. O Iko está aqui na segunda região até aquela altura em que há uma grande transportação da segunda região para o Leste, isto em 67. Acho que foi a maior travessia feita por um movimento revolucionário. Foram três Yuchines que atravessaram praticamente do Atlântico ao Indico. Ai o soviético apostou forte e o Agostinho ainda tinha uma certa influência no soviético que depois foi caindo, Isto em 67. O pessoal branco não desce ainda. É muito tempo depois. Eles não estão no grupo. Só há um que está no grupo, que teve um ataque em Benguela e ficou paralítico. Os dois ou três indivíduos mais claros que havia, mas isso já por indicação do partido, eles não podem descer em bando, primeiro porque a gente não tem condições, e depois porque isto e um meio agressivo, mas agressivo em relação aos mulatos, aos brancos e aos comunistas. O próprio movimento, os que estavam lá, têm receio de ver desembarcar de repente…. Isso eu senti e mais ainda quando, meses depois desembarca em Leopoldville, o Eduardo, o Hugo de Menezes, o Américo Boavida, o Boal esta connosco em Accra. O Américo Boavida, o Eduardo dos Santos e o Hugo de Menezes vêm de Londres. O Lúcio ainda esta na Alemanha. O Gentil Traça vem depois. Esse grupo avançado é que cria a CVAAR. Chegam e vão recrutando outros membros.
Então, os que á estavam em Leopoldville, estava eu, o Boal, estava o Pestana, mandam vir o Mário Afonso, o Kassessa, o Edmundo Rocha e assim é que a gente consegue constituir ali um grupo de 11 médicos que também assustou muito os congoleses. O CVAAR estava muito bem organizado, o material veio todo de uma organização não-governamental holandesa, eu tenho aí o nome, que nos ajudou imenso. Deram o grosso do material para instalar. Depois nós, os onze médicos, o grupo constituinte, teve que eleger uma direcção. Foi aí que nós elegemos, estávamos à procura. Aquilo era uma organização que nós pretendíamos capaz de ter uma grandeza que pudesse receber auxilio de todo o mundo, procurando manter uma certa independência do MPLA, então tinha que ter um presidente, nós não devíamos ser porque éramos já dirigentes do MPLA. Fazíamos parte da direcção do MPLA, o Eduardo Santos, eu, o Hugo de Menezes, digo os médicos. Depois, havia o Edmundo Rocha, mas era muito claro,, havia o Mário Afonso, o Boal, o Rui de Carvalho, então, eu lembra-me que eu avancei o nome do reverendo Silva. Ele era pastor protestante, vindo do interior, eu disse, nós não temos outra hipótese, temos que eleger aqui o Reverendo Domingos da Silva… Acho que aqui, neste meio africano… e ele não era parvo nenhum. Tinha sido professor primário, então ficou com ele. Depois estava o Boavida, que não fazia parte da direcção do MPLA, ficou também na direcção do CVAAR, ficou o Mário Afonso Kassessa, dos médicos acho que eles ficaram na direcção. Os outros faziam parte das secções. Mas na direcção era o Reverendo, com esses dois médicos. Havia um enfermeiro que também fazia parte da direcção. Não sei se era o Quarta Punza, se era o Paim. Havia um Paim, chegou a ser administrador aqui da Maternidade. Ele era desse tempo. Mas acho que era o Quarta que ficou como responsável na direcção (não se entende). Mas aquilo assustou um bocadito as autoridades, eu tenho a impressão que tenho aí as fotografias, este movimento de facto, por mais que a gente dissesse que era uma organização não-governamental independente, sabiam que estava directamente ligada. Pedimos que nos dessem instalações, eles deram de facto, um armazém grande que a gente transformou aquilo, criámos depois uma escola de enfermagem e tínhamos muitos donativos que vinham vindo dessa organização holandesa, eu vou-me lembrar do nome, que nos ajudou desde a primeira
hora. Havia um grupo de enfermeiros, a Jovita já foi formada lá na nossa escola, não era enfermeira quando foi. Ela já foi formada lá no CVAAR. Enfermeiros mais velhos eram quatro só: era o Quarta, era o Paim e mais dois, acho que um até era pastor protestante também. Choques entre católicos e protestantes não. Ali dentro da organização, dentro do movimento dentro do CVAAR não. Os choques começaram mesmo desde o primeiro minuto, foi com os congoleses, os zairenses. Porquê? A meu ver, influenciados pela UPA, a gente encontrou-os lá, e eles já estavam lá, não sei se enraizados, mas já espalhados por aquela Kinshasa toda. E traziam isso sim, enraizado, aquele sentimento contra o mulato e contra o branco. Era um caso sério. Eram a maior parte indivíduos que tinham vindo do interior, não é? Daquele grupo que a gente encontrou em Leopoldville, aí 10% eram indivíduos que já lá estavam há muitos anos; esses tinham aquele sentimento racista ou anti-racista devido à colonização que tinham sofrido dos belgas. Os outros que tinham vindo de Angola, os 90% iam munidos daquele sentimento anti-mulato e antibranco que era uma coisa, mas assustadora. Assustávamo-nos. Para os outros mais politizados, nós éramos os comunistas. Ainda por cima, naquela altura nós todos íamos de barba. Então eu lembro-me que, nos jornais lá da terra, Leopoldville, Kinshasa, havia artigos de indivíduos, não eram congoleses, eram angolanos que estavam lá, eles faziam referência, estão aqui a desembarcar angolanos com barbas de Marx, barbas de Lénine, isso não foi fácil. Mas com a chegada do CVAAR, o movimento achou que devia procurar manter-se o mais calmo possível e deixar o CVAAR trabalhar. Então aí convidámos as autoridades governamentais, eles apareceram na inauguração do CVAAR, prometeram dar toda a ajuda e nós prometemos dar toda a assistência não só aos refugiados mas também aos congoleses. E tínhamos um movimento muito grande. Porque éramos todos a trabalhar, todos os dias à tarde, eu que estava no partido, e o Eduardo Santos, de manhã trabalhávamos no partido, mas à tarde, íamos trabalhar para o CVAAR. E lá fomos aguentando, mas sempre com muita, muita dificuldade. Ainda por cima, era preciso fazer vir os outros, que tinham fugido e ainda estavam em Accra e que não tínhamos possibilidades, que o dinheiro era pouco. Nessa altura, o Mário acabou por chegar uns meses depois, e quando chegasse o Presidente, primeiro
era o Mário e depois o Agostinho, aquilo era um sol que tinha chegado, porque eles é que traziam o dinheiro. Que iam apanhando, o Rei de Marrocos apoiou muito, o Velho Mohamed, não é o Hassan, o Pai demorou muito tempo, é avô deste actual, o Mohamed V. O Hassan II vem muito depois, já nós estávamos implantados. O Marrocos desde essa altura que nos ajudava e ajudava com dinheiro. Sem ser eles, eram os dinheiros que vinham, eu acho que os soviéticos nunca nos ajudaram com dinheiro, países nórdicos, era um problema sério porque não tínhamos instalações e antes de partir para a fronteira, tínhamos que ter umas bases. Do pouco que havia, lá se arranjou um grande barracão onde se começou a alojar as pessoas e lá conseguimos fazer evacuar todos. Mas isso levou ainda uns três meses. Já estavam desesperados de lá estar, e os outros a gente conseguiu enviar cada um para o seu sitio. Acho que uns foram para o Brasil, dois ou três. Estava a ver para onde tinha ido o Africano Neto. O Africano Neto tinha saído connosco. O psiquiatra. Mas já não me lembro para onde é que ele foi. Eu não sei se ele não foi para o Senegal, o Senegal também nos deu umas bolsas e foi lá que ele se licenciou. Não foi lá que ele conheceu a Mayra, foi em Marrocos. A Mayra na altura já estava como militante e representante do PAIGC. As dificuldades não pararam por aí. Quando o CVAAR… a nossa missão não pode ficar circunscrita à cidade, que havia refugiados que nunca mais acabava. Na altura podemos dizer que cerca de quinhentas mil pessoas se encontravam refugiadas em Leopoldville. A maior parte estava na fronteira, Bas-Zaire como eles diziam, o Baixo Congo, mas a cidade de Leopoldville, talvez já tivesse um milhão de pessoas já. Então, temos que ir até à fronteira, porque precisamos de fazer recrutamento de pessoal para o MPLA e estes que estão aqui em Kinshasa, já estão muito muito muito sob a influência da UPA, não vale a pena, vamos é para a fronteira, porque lá temos refugiados e temos que prestar assistência. Então, dividimo-nos em grupos. Uns iam para a parte mais ocidental, para a região de Matadi, outros iam mesmo para o sul de Leopoldville, para a região de Songololo, e outros iam ainda mais para a esquerda, para o Leste. Não me lembro como é que se chamava aquela zona. E pronto, normalmente iam sempre um ou dois médicos, um ou dois enfermeiros, e procurávamos manter boas relações com o chefe do distrito como eles diziam da parte do Zaire,
sabiam que a gente ia para tratar pessoas e nas primeiras horas, nos primeiros dias, começavam a aparecer os revoltosos. Não queriam nada com comunistas e não sei quantos, e chegou mesmo, não foi no grupo em que eu ia, não sei se foi do grupo do Kassessa, ele pode melhor que eu dizer isso, que eles foram corridos à pedrada. Eram problemas sérios. Isto tudo instigados pela UPA que a certa altura sabia que nós íamos à fronteira, mas ainda assim conseguimos fazer algum trabalho. E depois íamos formando enfermeiros, uma das primeiras coisas foi criar a escola de enfermagem. Então todos nós dávamos aulas na escola de enfermagem e ao fim de nove meses já tínhamos os primeiros auxiliares enfermeiros que podiam justamente acompanhar-nos também e eles dominavam aquela língua da terra, até a própria língua do Zaire. Mas é isso, não sei. Em fins de 61 que a gente chega lá, o primeiro trabalho que a direcção tinha foi de recensear aqueles militantes do MPLA, ainda havia muitos, mesmo com a confusão toda, mesmo indivíduos que estavam radicados lá, havia muitos e tentar fazer chegar a Leopoldville os outros dirigentes que estavam espalhados, mas sempre com as mesmas dificuldades. Mas o Lara, um mulato, vai vir para aqui, a gente já tem problemas, isso levou a discussões muito acesas a nível da direcção onde eu já participei. Havia indivíduos que achavam que era muito cedo mas o problema é que onde o Lara estava, estava sozinho, sem fazer nada, e fazia falta ali em baixo. Acabou mesmo por vir. Isto já no inicio de 62. Entretanto, o Mário que andava lá fora também veio, o Viriato já lá estava, então chegou-se à conclusão de que era necessário, ah! E então temos a noticia de que o Neto tinha fugido de Portugal. Estava no Norte de África, Marrocos se não me engano e que, portanto, era preciso ele descer. É preciso que ele desça e é preciso que a gente organize as primeiras eleições porque até ali tinha sido assim, apareceram os primeiros e os outros foram cooptando. Temos de fazer eleições. O Viriato tinha muito peso na direcção, o Mário era o presidente, mas o Viriato era o secretáriogeral à moda dos países de Leste. Um secretário-geral que controlava todo o partido. E controlava mesmo, controlava bem, somente quando se chegava a altura de se discutir directrizes todos nós tínhamos uma palavra a dizer. E ele argumentava com factos, mas a gente não pode estar a meter na nossa linha de acção e de pensamento estes factores que até
contrariam o que está escrito no nosso… nessa altura já tínhamos um programa, já tínhamos um estatuto, que eles é que tinham feito lá fora. Não, isso não podemos. Nós temos que combater isso e ganhou de facto a maioria e o Lúcio veio. Quando soubemos da saída do Neto, eh pá nem mais, o Agostinho também tem que vir, mas lá estão vocês, vai vir, com a mulher, e não sei quantos. Vai vir com a mulher, vamos ter de enfrentar isso. Esta luta vai até ao fim assim. E quando ele chegar, a primeira coisa a fazer é mesmo prepararmos eleições que nos dignifiquem. O Neto chegou, está claro que entrou logo em choque. Foi imediato o choque com o Viriato. 62. Não é pessoal. Eles não se conheciam. O Viriato não conhecia o Neto. Ele nunca conheceu o Neto. Foi nessa altura. Entretanto, mesmo antes do Agostinho descer, antes de sair da prisão, nós íamos fazendo uns panfletos a favor da libertação do Agostinho Neto. E um dos principais mentores era o Viriato. Era dos mais acérrimos. E com ideias, podia parecer que ele era só o secretário, juntava… não, não, é preciso fazer isto e uma das coisas foi essa, ele tinha passado pela Alemanha, conhecia bem aquelas prisões e dizia a única maneira que a gente tem de fazer sair o homem, é mexer, é escrever muito… e ele participou directamente nesses panfletos. Mas sem o conhecer, ele não conhecia o Agostinho. Porque na trajectória que fizeram, nunca se cruzam, nem em Luanda, nem em Lisboa. Eu também não o vi em Lisboa. Ele passou mesmo clandestinamente. Os indivíduos que estavam ligados a ele sabiam que ele ia de passagem, tanto que eu já soube quando ele estava lá fora, que tinha passado por lá. Mas o certo é que, aquele cruzamento de ideias, desde logo não deu, à partida. Nós dissemos, aqui só há uma maneira de tentar resolver isto. É fazermos eleições. Por outro lado, o Mário de Andrade, logo que o Agostinho chega, eh pá, eu não quero ser presidente, nunca pedi para ser presidente. Eu era presidente, porque sim senhora não havia mais ninguém, mas agora chegou o presidente, o Agostinho Neto era presidente de honra, ele é que é o presidente indicado, faz favor, quando logo que ele chegar eu vou-lhe entregar a pasta. O Mário era um individuo bastante culto, dominava línguas e tinha também aquela ronha, aquela manha politica e diplomática que aprendeu enquanto esteve em França. Mas fisicamente era muito frágil, e não tinha vergonha de mostrar o medo que ele tinha. Era uma coisa tremenda, ele tinha medo de sair à rua, em
Leopoldville. O aspecto era agressivo para nós. Aquele ambiente era agressivo. Mas pronto, a gente não podia ficar fechado dentro de casa, até porque tínhamos mesmo que sair de casa para ir para o Bureau. O Mário saía, mas saía constrangido e cheio de medo, Não tinha ambições. Eu aceitei este cargo, desempenhei-o, vocês é que vão ter de dizer se foi bem se foi mal, sobretudo nas relações exteriores. Ele conhecia muita gente e isso ajudou imenso, esses contactos todos, quer no meio africano. Aqueles estudantes que andavam lá dos países africanos de expressão francesa, estavam organizados numa federação também muito importante e muito grande que era a FENA. Que deu grandes quadros depois das independências. E o Mário conhecia-os todos, tu cá, tu lá, e isso ajudou imenso. Mas ele dizia, agora chegou o presidente que a gente já tinha escolhido, portanto se faz favor … a gente dizia isso só pode ser com eleições, não é assim. Ele disse não, não, não, a partir de hoje, vou-lhe entregar… eu fico aqui, mas… E o Agostinho, que, sei lá, como diz o outro, só estava à espera disso, porque ele podia dizer, não, vamos esperar pelas eleições. O Agostinho não se fez rogado, sim senhor! Começou logo a assumir-se como presidente. Isso não caiu bem em certos indivíduos, não caiu bem, mas pronto, por um lado havia o Mário que dizia que não queria mais, por outro lado o outro diz que sim senhora, dá cá a pasta, não podíamos ficar naquela situação. E ele começou logo a actuar como presidente eleito, mesmo antes de o ser. Está claro, há quem diga que ele tinha vantagem em relação ao Mário porque era negro, o Mário era escuro só, mas não era negro, via-se que não era negro, enquanto que o outro via-se que era negro. E ali no Congo, eles tinham isso metido da cabeça aos pés que era uma vergonha. De facto, ele lá conseguia fazer os contactos, mas sentíamos no interior da direcção que era necessário urgentemente fazer eleições. Os choques com o Viriato eram permanentes desde a primeira hora. Somente, começámos também a sentir desde a primeira hora que o Neto de facto não dominava aquele dossier. Ele tinha aquela experiência da luta clandestina estudantil em Portugal, mas, aquela luta que se estava travando ali em Kinshasa não era igual. Não era igual. A realidade era completamente diferente. Ele não tinha ideia, de facto, do meio em que a gente estava mergulhado. Mas pronto, foi cometendo erros, que chegaram ao ponto de quando foi,
mesmo politicamente, muito criticado, quando foi da criação da Frente Nacional, do GRAE, em que digamos, o MPLA é excluído, o Holden faz de propósito, o Agostinho pensa que a melhor maneira era fazer também uma outra frente. E então vai fazer a frente com uns partidecos que não tinham qualquer peso. E alguns deles eram conotados com ligações a partidos ocidentais, ou países ocidentais. E isso caiu também muito mal em alguns militantes dirigentes como foi o caso justamente do Mário, que isso apanha-o, ele está numa reunião creio que em Adis-Abeba e lá mesmo nessa reunião ele pede a desvinculação do MPLA. Porque nós conhecíamos alguns desses partidos pequeninos com quem o Agostinho tinha feito a integração. E mais ainda. Apadrinhados pelo chefe de estado na altura no Congo Brazzaville, o Albert Foulbert Youlou, o Abade. Coitado, a gente sabia que ele podia ter tudo menos um sentido revolucionário. Tanto é que, meses, não, um ano depois, dá-se a revolução “as três gloriosas”, os três dias gloriosos, ele é deposto e vem então o Massemba-Debat. Isso leva pouco tempo, o Massemba-Debat já era um chefe de estado voltado para a politica que estavam seguindo partidos revolucionários. Mas o Abade não. E é sob a batina, como dizia o Mário Pinto de Andrade, que ele se vai esconder, quer dizer, isso caiu mal e muitos não o disseram, o Mário disse, não sei se mais alguém, o Viriato nessa altura já estava completamente em ruptura, estava a ver se o Dilolwa nessa altura sai. O Dilolwa sai e ia em direcção ao Senegal, quando ele foi repescado. Mas aborrecido com essa direcção do Agostinho. Bom, o Agostinho coitado dizia, a gente tinha que fazer qualquer coisa. Os mais avançados do partido, acharam que aquele caminho não podia conduzir a nada, como de facto, ao fim de meia dúzia de meses aquilo ficou desfeito. Nem o tal Abade dava garantias, nem os partidos pequeninos, nem era por serem pequeninos, é pela conotação que eles tinham. Até que se chega ao Congresso, 62. É no Congresso então que há a grande divisão. Esse Congresso foi um Congresso representativo. Conseguiu-se fazer vir gente das várias partes de Angola, do interior mesmo, depois estudantes que estavam na Europa e o problema era fazer eleições para eleger um comité director capaz, representativo e estabelecer uma estratégia de acordo com a situação. Pronto, aí começa a ruptura completa. Porque nunca o Viriato se entendeu com o Agostinho. E até chegarmos ao
Congresso, as teses, as comissões de trabalho, eu também estava lá metido, trabalharam muito bem. Essas comissões levaram os seus trabalhos ao Congresso, foram aprovadas estratégias, até que chegou ao ponto de fazerem as eleições. Que era o ultimo ponto. Toda a gente no Congresso, incluindo o próprio Viriato, e também é ponto assente que o presidente seria o Agostinho Neto. De resto, era depois compor com os outros. Até que, quando chega a altura das eleições surge a grande maka. Aparecem duas listas, duas listas, em qualquer delas estava o Agostinho Neto como presidente, porque o Mário não queria e mais ninguém queria também. E vamos para as eleições, discussão, os nomes, não sei quantos e o Agostinho diz logo: Eu faço parte duma lista, não faço parte de duas listas. Muito bem. A Deolinda Rodrigues, conciliadora, diz, muito bem, então vamos fazer destas duas listas uma lista só. Faz os seus corredores, para a esquerda, para a direita e consegue apresentar uma lista onde está o Agostinho Neto como presidente e onde está o Viriato como secretário. Vai apresentá-la ao Agostinho Neto, o Agostinho apresenta-se à mesa e diz, eu, numa lista em que esteja o Viriato, eu não entro. É claro que provocou logo um burburinho grande, porque se nós acreditávamos era necessário, naquela fase de luta era de facto a pessoa mais indicada para assumir a presidência, também não estávamos nada convencidos que o afastamento ou a ausência do Viriato não nos ia fazer muito falta. Por tudo quanto ele já tinha demonstrado. Não é? Nós sabíamos que ele tinha sido o fundador, o animador, o impulsionador e que tornou aquele partido até aquele ponto. E aqueles meses todos que passámos em Leopoldville, ele deu provas de facto de organizador e conhecedor da politica africana. Então, tentar convencer o Agostinho Neto, enfim, foi irredutível, aparecem a maior parte dos indivíduos, não, pronto, a gente fica com o Agostinho Neto e vamos tirar o Viriato. Apareceram alguns indivíduos que não aceitaram, eu fui um dos que disse que não estava de acordo com exclusões e, portanto, não votava. O Agostinho diz, bom, se não vota, pode sair da sala, eu vou sair da sala, não tem problema nenhum. Foi a minha primeira maka com o Agostinho. A primeira não, antes já tinha tido uma maka com ele. Eu disse, eu não voto, nós estamos aqui num movimento que nos está a custar os ossos, a carne já foi comida e não temos razões para.. portanto eu não voto nisto assim de exclusões. Ele
disse, então quem não vota faz favor pode sair da sala. Eu saio da sala. Camarada Agostinho Neto, eu me ausento. É e foi votada a lista. Mas antes disso, o Agostinho era muito teimoso, eu lembra-me que um dia estávamos lá em Kinshasa, numa reunião do Comité Director, ele tinha acabado de chegar, aí há uns três meses talvez. Ele assumiu logo a presidência. Nós aceitávamos normalmente. Há uma altura em que, acho que era o aniversário do Partido Comunista Português. Nós já sabíamos das ligações que o Agostinho tinha com o Partido Comunista, do auxilio que o Partido Comunista tinha dado na sua fuga e então o Agostinho põe o problema à direcção uma vez que se ia passar o aniversário do PCP, ele achava que nós devíamos mandar uma menção, discussão, houve uns sem palavra, como sempre, alguns que não diziam nada, outros disseram sim senhor achavam bem, eu disse que não, eu não achava bem, isso era, eu sabia toda a ligação que o Camarada Agostinho tinha tido com o Partido Comunista, sabia do esforço que eles tinham feito para a libertação, mas se atendermos à situação que a gente está a viver – é que vocês não fazem ideia aquilo era como se a gente estivesse no meio de inimigos, para ir para casa – às vezes havia lutas entre militantes da UPA e os nossos militantes, eu acho que não, Camarada Agostinho, não devemos fazer isso, o MPLA não está em condições neste momento aqui em Leopoldville, com todos os artigos que já saíram nos jornais, a gente já viu, isso amanhã vai saber-se, porque não vamos fazer nada às escondidas, não está bem. O que é que eu fui dizer? Mais alguém? Os outros foram-se encolhendo, não disseram nada, mas ele viu que não estavam de acordo. Ele disse, bom, se vocês não mandam, vou mandar eu em meu nome pessoal. A malta disse, esse homem não tem remédio, é teimoso como tudo. Eu tive a coragem de dizer não, mas os outros não disseram, mas também não disseram sim. Ele viu que não tinha apoio, ele não se importou. Vocês não querem mandar, vou mandar eu em meu nome pessoal. É verdade, isso foi a primeira coisa, este Agostinho está de facto… não sei se ele mandou se não, mas aquilo não caiu bem. Eu saio do Comité Director, houve uma minoria que não participou e saem também. Os simpatizantes ou os aderentes do Viriato, eu não era aderente mas achava que aquilo não estava correcto para aquele momento histórico que a gente estava a viver. Sai o Matias Miguéis, sai o Zé Miguel. Que são barbaramente
mortos. É mas isso, o MPLA tem várias histórias. Uma vez estávamos nós na 2ª região e tínhamos lá um colega, um camarada, coitado, um guerrilheiro que nem era povo, como a gente dizia lá, aqueles indivíduos já meio intelectuais, não são povo… povo era mesmo… ele dizia que tinha fugido da cidade de Luanda, e foi lá integrar-se no MPLA, um jovem, não parecia ter mais que vinte, vinte e dois anos. Mas ele tinha medo, aquele medo doentio. Então, punham-no a fazer de sentinela, ele deixava a arma no sitio e escondia-se noutro sitio. E isso era sabido pelos chefes militares. Vinham-me dizer, é pá é preciso ver bem isso. Ele pode não servir para homem de armas, mas pode servir, olhem, até podem mandá-lo vir para o dispensário que eu o ajudo a transformar-se em enfermeiro. Não, não, ele tem de aguentar. Uma vez eu vi, ninguém me contou, íamos nós, eu também ia nessa coluna, íamos lá para uma distância grande, aquilo eram distâncias que levavam um dia inteiro a andar. Saíamos às quatro da manhã, chegávamos lá às quatro da tarde, sempre a andar. Estivesse a chover ou não, ali chovia todos os dias. Só que havia sítios, aquela floresta era tão densa tão densa, que estava a chover, mas a chover torrencialmente e cá em baixo a gente não sentia a chuva. Mas eu nunca vi. Aquela floresta do Mayombe era impressionante. Então íamos nós numa caminhada, e havia sítios em que, a vegetação era de tal maneira, se tu não fizesses atenção ao companheiro que ia à frente, dar a mão não se pode dar a mão, mas tens que fazer atenção. Ele anda e tu três metros depois, já não sabes para que caminho é que ele foi. Esse jovem, já não me lembro do nome, perdeu-se. Ele já era medroso, porque tinha provado várias vezes. Então com aquilo, o rapaz perdeu-se. A gente continua a andar, a certa altura o fulano, o fulano, ah, o fulano já fugiu. Não fugiu nada, estava perdido, perdeu-se cheio de medo. Virámos atrás, vamos procurar, passada uma hora lá encontrámos o homem, estava de facto perdido. Mas que é que foi? Era qualquer coisa Fernandes. Eu não vi o camarada que ia à frente, bem lá fomos. Passaram-se mais um mês ou dois ou três, um dia eu pergunto que é feito do fulano. Não sabemos, é capaz de ter fugido não sei para onde. Aquele gajo foi morto, foi morto, só porque tinha medo. E aqueles nossos dirigentes não tinham era cabeça para ver ele não serve para aí, mandavam-no para outro sitio qualquer, ele quer lutar, ele é que se veio entregar sozinho, ninguém o obrigou. É
verdade, isso eu assisti em pleno Mayombe, lá na 2ª região. Nesse Congresso, saí uma vintena de militantes. O Viriato está na conferência, assiste à Conferência até às eleições. Eu é que nem quis mais isso. Pronto, como eu não posso votar, ele diz que quem não vota sai da sala, eu saí. Mas depois do resultado, o grupo que acompanha o Viriato sai. Matias Miguéis, que tinha sido vice-presidente, que era vice-presidente, um homem muito sério, mais velho que nós, o José Miguel que era Comandante, tinha sido formado na Checoslováquia, o reverendo fica, sai mais tarde, acho que saem esses dois. O Lúcio aí passa a ser do Comité Director. O homem dos quadros. O Iko também. O Ludy vem muito depois. Isto é 62, o Ludy só aparece, já nós estamos em Brazzaville. Arranco para Brazzaville logo depois do reconhecimento do GRAE. 63. Acho que Maio de 63. Logo a seguir recebemos ordens de expulsão de Leopoldville. E os que não quiseram sair, eram perseguidos e não sei quantos. É então que a gente se transfere para Brazzaville, uns voluntariamente outros forçadamente e Kinshasa fica praticamente com dois ou três militantes a aguentar as infra-estruturas. É. Entretanto, eu mantenho-me no CVAAR. Depois do Congresso fico no CVAAR. Depois, quando há a expulsão, eu também sou obrigado, não tenho funções politicas nenhumas. Inclusivamente tenho uma cena com o Lúcio que nunca esqueço porque a pior coisa que podia haver com um militante quando está fora do país, não tens bases, a tua base é o partido, então se tu perdes a confiança do partido perdes tudo, até perdes o pão nosso de cada dia. Não é brincadeira. Eu como vos disse logo que cheguei, eu tinha lá família, mas senti-me desprotegido. Mas fui ficando uns meses lá no CVAAR e um belo dia… ser militante do partido não quer dizer que seja membro da direcção. Então vou lá ao Bureau ter com o Lúcio quer era o membro da organização e quadros, departamento de organização e quadros. Eu dava-me muitíssimo bem , nunca tinha tido nenhum problema com ele, e disse, gostaria de saber qual é o papel que eu posso desempenhar, uma vez que deixei de ser membro da direcção, continuo a ser militante da primeira hora do partido, do movimento, e o Lúcio muito calmamente, tu é que escolheste, agora tens que aguentar. Fiquei assim, bastante triste. Já calculava, mas ainda pensei que pudesse haver… mas, está bem. E fui, continuei no CVAAR. Ali na direcção nem paralelamente.
Até que em 63, quando a gente é expulso, nessa altura já não tinha actividade nenhuma politica. Só estava no CVAAR. Eu disse, isto a continuar assim estamos mal. Isto está muito mal, eu tenho que tomar aqui uma posição senão vou morrer à fome. Eu nessa altura já tinha os meus filhos, a Lygia nasceu em Kinshasa. Em Maio de 62 nasce a Lygia. Eu disse, estou tramado, o que é que eu vou fazer da minha vida com mulher e dois filhos. Se não tenho apoio material do partido como é que eu vou, só com a colaboração no CVAAR não dá. Nessa altura, a Gina ainda não dava aulas. Porque ela chega a Leopoldville está grávida, o tempo de gestação, de ter a bebé, a Lygia nasce em 62. Eu tenho que tomar uma posição. Houve indivíduos médicos, quando se dá essa expulsão, resolveram cada um ir para o seu sítio. Quem não era membro da direcção, não tinha apoio material. São militantes, recebiam uma ajuda para alimentação. Eu compreendo também que o Partido não podia aguentar com aqueles militantes todos. Mas eu aqui não posso ficar, como é que eu vou fazer. O Viriato já foi e foram os outros, alguns médicos também. O CVAAR ficou desfeito, o Américo vai para Marrocos, o Hugo de Menezes tinha sido destacado um bocadinho antes para Accra, ficou lá como representante, o Boal acho que vai para o Senegal, o Kassessa não sei, sei que também sai, sai quer dizer, foi desfeito, tínhamos que arranjar vida. O Edmundo Rocha vai para Argel, eu também vou para Argel. Passados uns meses, cerca de um ano, em 64, em Setembro, nem oito meses, eu comecei a sentir, lá trabalhava muito bem, deram-nos um contrato maravilhoso, e lá consegui inclusivamente começar a especialidade de ginecologia/obstetrícia. Na Faculdade de Medicina de Argel, que era muito bem, estava muito bem cotada, segundo o que eles diziam na altura era a terceira universidade de língua francesa. Vou primeiro, para arranjar as bases, dois meses depois, consegui que a Gina fosse com o Johny e a Lygia. O Lúcio e o Neto já se conheciam muito bem desde Lisboa. O Neto tem mais 10 anos que eu e o Lúcio só tem mais 4. Eu acho que eles estiveram juntos em Coimbra. Eu já não. Eu não encontro o Agostinho em Coimbra. Quando eu chego a Coimbra, já o Agostinho estava em Lisboa, há dois ou três anos. Esse problema racial foi constante, permanente, com menos acuidade o problema racial em Brazzaville, mas havia em relação aos próprios militantes. E aí, o próprio Neto participava
nessa coisa. Ele que também tinha uma mulher branca, mas não se importava ou tinha arranjado uma maneira, não sei, de deixar a mulher lá atrás e a mulher não o incomodava. Enquanto eu por exemplo, lembra-me que a minha mulher e a Ruth queriam estar sempre ao lado dos maridos, ela não aparecia. Não sei se por ordem, ou por conta própria e o certo é que ele começou a embarcar também nisso. Com um certo receio de fazer aparecer nas frentes indivíduos mulatos. Brancos então, nem pensar. Eu lembra-me que já estava eu na 2ª região, em 66, já tinha passado por Argel, em Argel eu já tinha ajudado a fundar o Centro de Estudos Africanos, onde estava como principal animador o Adolfo Maria. Estava a Céu, o Abranches, e depois estava eu e o Edmundo Rocha, que éramos o núcleo principal. E trabalhavam intensamente, a Gina dava bastante colaboração aquilo, a mulher do Adolfo. Quando eu saio de Argel, eles sentem imenso a minha falta. E então, e com uma vontade tremenda de irem juntar-se. Eh pá, vê lá se convences o Dr. Neto a irmos para baixo, eu disse eh pá, podem contar com a minha boa vontade, vou fazer… e eu cheguei a Brazzaville, isto em Dezembro de 64, vou directamente para o interior, não fico em Brazzaville, fico lá um ano, ao fim de um ano, a gente mantém uma correspondência, de três em três meses lá vinha uma carta, cheios de saudade e sempre a renovar o desejo de irem juntar-se. Até que fins de 65, 66, eu também ganho coragem e vou ter com o Agostinho para ver se ele arranjava uma maneira de fazer vir os nossos militantes que estavam lá em cima. Só nos encontramos em Argel, eu fico em Argel até Dezembro de 64. E uns três meses antes, eu também comecei a sentir que não estava a fazer nada ali. Nem com aquele dinheiro todo, porque eles pagavam muitíssimo bem, não sei como é que estes países não conseguiram imitar, eu era um recém-licenciado, consegui inscrever-me na faculdade, as horas eram à noite, era muito trabalho para mim, mas ao fim de seis meses eu disse, eu aqui não me vou aguentar. Tinha que ir lá para baixo e estava sempre ligado com a embaixada, lá em Argel. Acho que era o Luís de Almeida que estava lá nessa altura. Eu disse-lhe eu tenho que voltar. Então vou ter com o Luis de Almeida, eu quero ir lá para a guerra, mas eles tinham medo de mim. Mas quando eu voltar, não quero ser mais politico. Digo isto aqui, vou dizer em voz alta e em bom som ,se for preciso eu escrevo. Eu vou como médico guerrilheiro e não quero mais
nada. Ok., mas tu sabes que só o “Kilamba” é que trata disso. Está bem, então um dia que o Kilamba passe por cá, faz favor. De facto ele passava regularmente. Uma das vezes, telefone, está aqui o Kilamba. Posso falar com ele pelo telefone, sim senhor. Agostinho e tal, olá como estás Vieira Lopes, eu estou bem, estou bem mas não estou satisfeito comigo mesmo. Queria ter uma conversa contigo, muito bem, estou disposto. Podes vir cá, a Gina prepara um jantar a gente conversa, não, não tem problema. Lá veio ele, fui buscá-lo e eu disse, olha eu quero voltar, ah isso tens de escrever uma carta à direcção, eu disse está bem, diz lá como é que queres que escreva a carta diz lá e eu escrevo. Nós dávamo-nos muitíssimo bem e eu tinha confiança com o Agostinho para isso. Diz lá, sr. Agostinho diz lá como é que queres a carta e assim foi, escrevi a carta e passado um mês ou dois, veio a resposta a dizer que sim senhor, o sr. embaixador favor de tratar da vinda do nosso militante. Estava de passagem o Medeiros, são-tomense, Tomás de Medeiros que tinha fugido connosco e depois da União Soviética, ele não tinha para onde ir. Então desceu para Brazzaville e estava lá na mata com os companheiros, mas disse logo, eu estou aqui de passagem. Tanto é que quando eu chego em Dezembro de 64, encontro lá o Medeiros, e ele diz-me não, eu estou aqui de passagem, mas vais para onde, eh pá São Tomé não há guerra, não há nada, nem se entendem, aquilo era um movimento que não era movimento nem era nada, então o Agostinho diz, não temos lá ninguém, era muito bom que fosses, que voltasses. Não, eu volto. Então e a família? A família por enquanto fica aqui, o que é que hei-de fazer, a Gina trabalhava lá, o Johny já estava na escola primário, a Lygia não, arranjámos lá uma senhora que tomava conta dela, muito simpática, a Monique, a família fica, eu vou, e depois vamos ver como é que as coisas se vão passar, eles não vão ficar aqui eternamente. Isto levou uns três meses, lá o Luis de Almeida tratou à maneira dele, arranjou-me um passaporte, salvo-conduto, não era passaporte e lá desci eu para Brazzaville, e de facto encontrei lá o Medeiros, eu fiquei dois, três dias em Brazaville. Fui almoçar inclusivamente com o Agostinho Neto num dia, eu quero ir imediatamente, não estou aqui a fazer nada e disse-me aparece aqui amanhã, o Petroff vai seguir, não conhecia o Petroff, era um jovenzito, ele é um dos Comissários lá da zona, vais com ele, vais
encontrar lá o Ingo, que é o Comissário Politico, o Pedalé que era o Comandante da Zona, o Henda é o Comandante da Região. Sim senhora, lá fui eu. Passado um mês ou dois o Medeiros foi-se embora, não sei para onde é que ele foi, para Espanha, não faço ideia. Depois soube que ele se tinha estabelecido em Espanha a tirar uma especialidade. Durante quatro anos fiquei lá sozinho, não havia mais nenhum médico, mas pronto, aqui era gente muito jovem, aquela guerrilha também era uma guerrilha muito dura. A maior parte dos guerrilheiros não era da região. Essa era uma das nossas maiores dificuldades. Os indivíduos da região, havia talvez dois ou três ou quatro, digamos, naquele grosso não chegavam a um décimo. E se o nosso contingente em toda a região fosse de duzentos homens, talvez vinte fossem cabindenses. Eles não se integravam, não queriam, desconfiavam do MPLA. E tínhamos o Pedalé, que era de Cabinda e era Comandante de Zona, e até outros, mas dificilmente a gente conseguia recrutar. Mas isso para mim não era problema, porque eles eram todos muito jovens, dez anos mais novos que eu. Tenho a impressão que eu era mesmo senão o mais velho de tudo aquilo, havia um ou dois indivíduos um bocadinho mais velhos que eu. Mas adaptei-me bem, aquele meio hostil, aos mosquitos e aos miruís, o miriui é que era… não sabia que aquilo existia. Banho era no rio. Vamos banhar. Vamos. Aquilo era um calor tremendo, a farda que me deram era aquela farda soviética, a pessoa tinha de andar com aquilo com tudo tapado. Então haviam uns que tinham a mania que lavavam a farda de dois em dois. Eu disse, fim de semana tudo. Higiene. Metias aquilo na água… o peso daquilo. Eles ficaram com pena de mim, Camarada Dr. a gente lava, eu tinha um enfermeiro sempre que andou comigo. Tive vários enfermeiros, o Assis, estão todos a morrer, Havia outros, são todos generais, o Paim também foi meu enfermeiro lá, o Quarta é que não, o Quarta andava noutras zonas. O Paim acho que já morreu também. O certo é que chegavam ao pé de mim., não Dr. a gente lava. Eu lá fingia e tal, metia aquilo no rio. Tou tramado com isto. Só tínhamos duas aquela farda, agora para a semana vamos vir ao rio outra vez. A pessoa tinha a tendência de chegar ao rio e tirar a farda, Camarada Dr. não faça isso, quando chegar lá mesmo dentro do rio é que tira a farda porque eles ficavam mesmo à beira-rio. Uma vez estava lá uma equipa, conseguimos que uma equipa soviética fosse lá dar-
nos uma ajuda. Eu tinha estabelecido uma campanha de vacinação antipólio. Foi a primeira vez que isso se passou no Congo. Nunca eles tinham visto. Está claro que não podiam pedir doses, duzentas, trezentas, para famílias que tinha ali, entre refugiados e guerrilheiros e é claro que eles nem iam mandar uma coisita pequenita. Então combinei com o médico congolês vacinar aquela região toda. Muito agradecidos e tal… mas vem uma equipa de dois médicos soviéticos, loirinhos, vinham não sei de onde. Eu esqueci-me de os avisar. Eles também cheios de calor, foram ao rio, um deles quando veio, ficou cheio de febre, aquilo tudo encarnado no corpo todo. Que chatice a minha! Eu é que era o responsável deles, mas esquecime daquele pormenor. Eles também só me avisaram no dia em que eu fui mesmo à beira do rio, não não tira a roupa quando chegar lá no rio. Aquilo é uma nuvem, não sei se já viste aquilo, não se vê, e provoca uma reacção alérgica tremenda. Não transmite paludismo como o mosquito. Para o mosquito eu estava prevenido. Eu andava sempre de mangas bem compridas, apertado até ao pescoço, mesmo assim não me livrei de apanhar uma crise de paludismo ao fim de um mês de chegar lá. Vinha gordinho da Argélia, bem comido e bem bebido, felizmente, senão…em três meses eu perdi quinze quilos. Primeiro era a comida, que de facto… primeiro que eu me adaptasse aquilo… não foi fácil mas acabei por me adaptar. Então, vem a primeira crise de paludismo. Eu bem tratava, com medicamentos, já havia cloroquina, eu gostava do meu café, arranjava maneira de que, sempre que saísse um camarada pedia para me trazer café, tinha o meu cachimbo. O café não me sabia a nada, o tabaco não me sabia a nada, fiquei só com o rádio pequenito com que eu andava sempre. Passado um mês, nova crise de paludismo… não vou aguentar isto… Fiquei mais duas semanas, febres sobretudo, a pessoa não pode andar, fica fraca, eu disse, se me dá a terceira crise eu vou dizer ao Agostinho, eh pá, tenho muita pena, mas não posso ficar aqui senão vou morrer… Nunca mais tive paludismo. Foram duas crises de paludismo que me iam deitando por terra. Mas eu, que não tive problemas de adaptação, eles eram jovens, eu sentia uma admiração de ver aqueles miúdos. Aquilo eram miúdos entre dezoito e vinte e cinco anos que estavam ali… Bavil vem de Baptista Vieira Lopes. E eles sentiam admiração por mim, por ver um médico, um doutor, metido naquela mata, mas o doutor é mesmo doutor, estudei mesmo em
Portugal. Em Portugal? Ficaram muito admirados! Mas eu estabeleci muita amizade, muita amizade. Isto é 66, 67, eu estou lá desde Dezembro de 64. 66/67 começa-se a pensar em enviar reforços para a 1ª Região. O Ingo era um dos escolhidos, em 67 só que nós não tínhamos material nenhum do outro lado, em Kinshasa. Então era difícil transportar material de Brazzaville para Kinshasa. Todos os meios eram utilizados e até eu… o Agostinho disse… temos agora uma missão, não sei se é mais difícil que as outras mas esta precisa da tua ajuda. Nós tínhamos lá um Volkswagen daqueles antigos, o carocha antigo, tu tens que levar armamento para o outro lado. Aquilo era arriscadíssimo, se apanhassem o armamento… Eu disse, bom, mas como é… bom, como tu tens de levar medicamentos, eu ia regularmente para tentar abrir os postos que a gente tinha deixado em Kinshasa, tu vais lá, tens a tua guia de médico, e levas medicamentos. Então, por baixo das almofadas, vamos meter armas e munições. O Azevedo Júnior, que era membro da direcção, era adjunto do Neto, ele trata de tudo, vai subornar aquela gente, sabes como é que é o congolês, não deve haver muito perigo. Eu disse, está bem, é uma ordem, está bem. Então, lá ia eu sempre, os miúdos ficavam muito assustados. A única coisa que eu levava era uma pistola. Que eu metia atrás, nunca se sabe… e fiz várias viagens com aquele Volkswagen com a minha carta de coiso médico, levava armamento para o outro lado. Até ao embarque do esquadrão. Que eu assisti, ainda fui me despedir deles. Fui dos poucos indivíduos que se foi despedir na hora da partida. Eu estava lá, o Neto requisitava-me para ir a Brazzaville fazer o transporte. De Brazzaville para Leopoldville, atravessando o rio. Actividade politica, nada. Isso foi a primeira coisa que eu disse ao Agostinho, eh pá, eu já te disse que não quero mais, não quero politica de espécie nenhuma. Nem sou chefe de nada. Fico cá, como médico. Passado um ano, ele fez uma note de serviço que eu era nomeado Médico-Chefe da 2ª Região politico-militar. Bom, de qualquer modo, isso equiparava-me a Comandante da Região, porque era o único médico e fazia parte das reuniões que eles entendiam que eu devia fazer parte.
Aquilo era um problema muito sério porque ninguém queria estar lá na mata. Nas frentes. E era uma coisa que era notória. Como disse, a maior parte daqueles guerrilheiros eram jovens, muito jovens. E jovens, mas bem conscientes e, eles viam, sentiam que a direcção estava em Brazzaville. E de vez em quando aparecia um membro da direcção que vinha num dia, ficava um dia e no dia seguinte, ia-se embora. Fi estava sempre lá, ficavam mais quinze dias, um mês, apareciam um outro individuo… não sei se isso, a mim não me coiso, porque eu de direcção politica não queria saber nada. Mas eu sentia que, não era bom para os guerrilheiros haver esse afastamento, esse distanciamento entre a direcção e a base. Até porque em Brazzaville eles não estavam a fazer nada. Tirando o grupo das Relações Exteriores, que sim senhor, se compreendia que devia estar, os outros não. Mas, não iam. E isso era uma das razões para desmobilização de certo número de guerrilheiros. Digo de certo número, aqueles mais intelectuais, mais conscientes, mais… outros nem davam por isso, nem ligavam. Estava lá o comandante, o Henda estava sempre de um lado para o outro, o Pedalé também estava sempre lá, o comissário politico, acho que o Dibala era comissário politico de uma das zonas, também. Está o Ingo e mais dois ou três. Em Brazzaville estava a direcção toda, o que não era bom. Ainda por cima, porque as condições materiais eram muito más. Como sempre. O movimento, desde que eu o conheci, sempre viveu em crise. Não havia dinheiro suficiente para alimentar aqueles guerrilheiros. Os trinta dias do mês. Tudo o que era direcção ficava em Brazzaville e como digo, se uma vez por mês, duas vezes por mês aparecia um, mas aparecia por dois, três dias e ia embora. A dificuldade, isso talvez passasse desapercebido se aquilo fosse um mar de rosas. Quer dizer, guerra é guerra, mas desde que houvesse comida ali todos os dias, mas não. Nós chegávamos a ter alturas em que, nos últimos dias, a última semana do mês, havia aquilo mínimo de subsistência para uma pessoa. Para uma pessoa que tem de estar a despender esforço físico, não é? Não, não havia ostentação na direcção. Estavam era na cidade, tinham aquele mínimo que a direcção dava, era pouco, mas pronto, e estavam na cidade. Enquanto que ali não. Essa coisa de dizer que na guerrilha tem de se ir buscar ao meio em que vive, ali em Cabinda não funcionava porque o meio era também hostil. Como já
expliquei, guerrilheiros, se houvesse um décimo daquela população era muito. Não é que as populações, uma vez contactadas, fossem hostis, ou fossem denunciar, mas também não colaboravam… acusar que denunciavam ou dizerem... olhem, estão ali os turras não, isso eu nunca verifiquei. Só que também, entregar os filhos e dizer está aqui este, não. Uma vez, acho que fizemos uma incursão numa daquelas aldeias, trouxemos a aldeia toda, e dois ou três jovens vieram sem resistência e integraram-se. Mas foi a única vez que eu vi. Um desses indivíduos até era mulato. A malta ficou muito espantada de ver, perdido naquela selva, é. Ficou nosso guerrilheiro durante muito tempo. Cresceu praticamente. Ele era jovem. Portanto, não eram hostis, mas também colaboração não. E isso dificultava imenso. Por outro lado, sempre que a gente viesse para a fronteira, o congolês de Brazzaville era muito simpático. Não havia razão nenhuma de queixa. Eles até sentiam, o povo, dirigentes sim senhor não havia problema nenhum mas o povo, eles sentiam que nós estávamos com dificuldades, mas que estávamos ali, “essa gente deve ser um bocado (não se entende) para vir aqui perder a vida e faziam tudo para amenizar o nosso tempo.” Até Dezembro de 68. Porquê? Com a minha estadia lá, ao fim de dois anos, eu não tinha experiência cirúrgica nenhuma. Tinha começado aquela cirurgia de mulheres em Argel, mas tipo cirurgia geral, de guerra, de urgência, não. O problema, eu comecei a sentir dificuldades em resolver tudo o que era problema médico… isto ao fim de dois anos. Eu comecei a ver, de vez em quando aparecia um ou outro ferido grave, ferido de minas, sobretudo. E eu disse, há aqui qualquer coisa que falta. Faltava-me um cirurgião geral. Falei com o Neto e disse, Agostinho, nós temos necessidade de um cirurgião geral porque felizmente há poucos acidentes, mas já houve dois eu tive que os evacuar para Brazzaville e em condições… Eu logo que cheguei lá uma das minhas primeiras funções foi montar um hospital. Que não havia nada quando eu lá cheguei. Então, criei uma pequena sala que dava para cirurgia, onde mais tarde se veio mesmo a realizar cirurgia e o Neto diz-me, mas então como é que vamos fazer. Eu disse, eu não sei, eu é que não me atrevo a fazer experiências em camaradas… Então, vamos
ver se um daqueles países amigos nos pode enviar. Eu disse, seria óptimo, e de facto ao fim de seis meses, ele aparece-me com um soviético, dois soviéticos, muito simpáticos, eles vinham por um ano e prestaram-nos muito auxilio. Sobretudo porque se adaptavam aquela vida, não sei, acho que eles vinham da Ucrânia. Muito simpáticos, adaptando-se aquele meio de vida, e eu disse, olha, o que eu montei aqui foi esta sala, isto na cidade não dá, mas aqui no mato tem que dar, não, vai dar, que qualquer deles era militar. E cirurgiões militares. Vai dar, sim senhor. Havendo algum problema, a gente vai operar. E de facto, durante dois anos, iam uns vinham outros, até que 68 já não vinha mais ninguém. Entretanto, também, uma boa parte da nossa malta já tinha seguido, 67. Para o Leste. E eu disse ao Neto, eu não vou ficar aqui mais nesta angústia de ver um camarada esvair-se em sangue sem eu poder fazer nada. Enquanto estiveram aqui os soviéticos muito bem, vê-se pela estatística, eu apresentava mensalmente, uma estatística para Brazzaville, aqui só tem uma coisa, eu vou fazer também cirurgia. Ah, isso era óptimo, mas queres ir para onde? Eu, para um sitio qualquer. Eu quero fazer cirurgia para poder servir aqui. Então, se fosses para a União Soviética, ali a gente facilmente arranjava… Eu não me importo, mas só com uma condição, para onde eu for, vou com a mulher e filhos. Eh pá, isso é que vai ser mais difícil, tu deixas-me ir lá, à própria embaixada, a minha mulher não é aleijada, pode-lhes ser útil, os miúdos, eles dão escola aos miúdos como dão a outros quaisquer, e não preciso de mais, a bolsa que derem para mim, vai servir para nós os dois. Lá falei, não está previsto e tal, e eu disse ao Neto, eu sair daqui, já estive muito tempo fora, viste que eu vim para de Argel para aqui a mulher ficou lá com os filhos durante um ano e depois lá consegui fazê-los vir e tal. Eu conhecia aqueles dirigentes congoleses, consegui que a Gina conseguisse um bom contrato em Brazzaville, que foi bastante útil para o MPLA, porque mês sim, mês não, o Agostinho Neto ia lá pedir empréstimo à Gina. O movimento viveu sempre em crise, eles que estão aí podem dizer, ele vinha pedir, mas a Gina empresta, então não empresta, tu dás-te bem com a Gina, vai lá, pede a ela. E ela perguntava-me, mas achas que vou emprestar, olha, são aqueles empréstimos dados, né? Se ele te devolver muito bem, se não tiveres, não emprestas, se tiveres… Eles pagavam bem. Até que, 68 ele diz-me tu
com a mulher e os filhos não se vai conseguir. Só se tu quisesses ficar em Brazzaville. No hospital lá de Brazzaville. Eu disse, desde que haja possibilidades, tem lá umas equipas, eu já me estive a informar, tem lá uns cirurgiões vietnamitas, para além dos franceses, tinham uma cooperação. Ele lá foi falar, da parte congolesa, os congoleses disseram que não havia problema nenhum, eu ficava lá como médico assistente e pagavam-me como tal, e era preciso era falar com o médico vietnamita, de facto, para saber se estava disposto a dar-me um braço direito. Muito simpático, Gu Yen Cham Uong, nunca mais esqueci o nome dele, um gajo pequenito, mas operava… Tinha umas mãos pequeninas, uns dedos fininhos, operava que era uma maravilha. Aprendi imenso com ele. Mas depois também fiz amizade com os franceses, eles ficaram meus amigos, viam que eu tinha jeito para aquilo, servia para eles de mão-de-obra. E então, também aprendi com os franceses. Mas com esse vietnamita, foi praticamente o meu chefe. E então fui ficando. Em principio era para ficar dois anos, entretanto as coisas no movimento começam a complicar-se, 68, 69, 70, começam os movimentos de reajustamento, desentendimentos, praticamente a 2ª região, Cabinda, ficou um bocado despovoada, bastante despovoada. Estava a tentar concentra-se tudo no Leste, mas no Leste a coisa começou a complicar-se porque não andava; não andava como também não andava a parte de Cabinda. A parte de Cabinda, a certa altura, nós não conseguíamos avançar muito. Não tínhamos confiança, certeza de que pudéssemos ter reabastecimento da população, e se esperássemos o reabastecimento da fronteira, nós nunca mais lá chegávamos. Então, éramos obrigados a ficar, sei lá, dez quilómetros da fronteira para dentro porque não podíamos avançar mais que isso. E isso fez com que a guerrilha estagnasse. Ficou estagnada. No Leste não sei como é que se passou, o certo é que - quando, ah ! em 68 quando se abre definitivamente a Frente Leste, eu ainda participo no embarque dos camaradas todos. O Agostinho veio ter comigo e disse-me, olha, dou-te uma boa novidade, chegou o Américo Boavida; eh pá, óptimo! Pois, mas agora eu tenho um problema. Tu já estás aqui, não é? Mas alguém tem que ir para o Leste, porque lá no Leste não temos ninguém (não se percebe) Estava lá o Mário Afonso, acho que o Mário Afonso já estava lá, o Kassessa. Não sei se o Videira também já lá estava ou se apareceu depois.
Mas é que nós temos falta no Leste, um de vocês tem que ir para o Leste. Ou tu, que estás aqui, ou o Américo que chegou. Como tu já estás aqui, tens prioridade de escolha. Se quiseres ir, vais já amanhã. Se não quiseres ir, vou mandar o Américo. Eu disse, não, eu já estou habituado aqui à 2ª região, não vou. E depois, já sei como é, e depois a família como é? Outra vez deixar a família toda. Não, eu prefiro ficar aqui. E então lá foi o Américo para o Leste. Coitado. Parece que estava escrito. Ia mas não voltava mais. Ao fim de um ano de lá estar… Mas a falta de acompanhamento dos dirigentes continua, por um lado. Por outro, como digo acompanhado da falta de meios materiais de subsistência. Porque se houvesse alimentação mínima, as coisas talvez se passassem um bocado despercebidas. Agora, sem alimentação e saber que os dirigentes estavam todos em Brazzaville, se a comer bem ou não, ninguém sabia, mas pelo menos estavam numa cidade onde tinham mais hipóteses, isso ia criando descontentamento, entre sobretudo, aqueles mais vivos, mais esclarecidos, o “calcinhas”, não era o povo, a maior parte dos guerrilheiros talvez não se apercebesse muito disso, mas aquela meia dúzia de indivíduos que tinham vindo das cidades, de Luanda e outras, começaram a sentir que a coisa não estava bem. E como isso tudo fazia com que a guerrilha não avançasse, criava um mal-estar ali na fronteira. A pessoa está ali, não há missões, não há missões porque não há reabastecimento, porque tu para poderes ir numa missão que te leva uma semana, tens que levar comida para ir e para vir. Não havia, espera, está à espera, não há dinheiro, isso tudo junto criou de facto um mal-estar. Quem é que paga? Cai em cima de quem? Naquele que mais vezes estava no Bureau. Que era o Lúcio. Porque o Neto andava muitas vezes de um lado para o outro, quase que não parava. A figura principal era mesmo o Lúcio. Que ainda por cima era muito claro. E isso, quando a fome ataca, então vêm aqueles ódios todos ao de cima. E a meu ver, tudo isso junto é que motivou aquela revolta que foi mesmo uma revolta. E não sei se a coisa não teve mais consequências, porque podia ter consequências graves. Não havia mais ninguém. Os outros, havia lá o Marcelino que era o homem das finanças, havia o Iko, o Reverendo estava lá pelas ruas da amargura, ele não tinha praticamente função, era vice-presidente mas naquela fase de luta ele não tinha hipóteses de dar um trabalho, o que
não acontecia quando a gente abriu o CVAAR, que ele era praticamente o individuo que aparecia para representar, não é, pronto, isso dava perfeitamente bem. Naquela fase de luta não, era preciso que o vicepresidente se assumisse como vice-presidente mas ele não tinha hipótese nenhuma. Porque o Agostinho não dava hipóteses. Ele guardava tudo, o pouco que havia para guardar, ele guardava no seu bolso. Só ele é que sabia, como andavam as contas, se altas, se baixas, ele é que sabia. Só quando ele chegava é que ia distribuir aquele bocadito. Entretanto, ele ficava não mais que quinze dias, ao fim de quinze dias, partia. E só daí a u mês ou dois é que aparecia novamente. Era o Lúcio. Caiu tudo em cima dele. Todo aquele ódio, as queixas e lamúrias caíram em cima do Lúcio. E ele aguentou. Ananias e Valódia, são os dois os cabecilhas do grupo. 69/70., onde é que o José Eduardo estava. É que ele é muito pálido. Eu recordo-me da primeira vez quando ele chega a Leopoldville. Um jovem miúdo, que vinha com mais três, quatro ou cinco. Eu já não me lembro quem eram. Só sei que eles estavam juntos. Eu é que o recebo, porque eu é que estava como secretário do bureau politico encarregue de fazer o recenseamento de todos os militantes. E lembro-me perfeitamente que eu é que foz o recenseamento deles. Primeira vez que eu vi o Zé Eduardo. Depois nunca mais o vi. Desapareceu. Vou vê-lo, portanto isto é 62, em 68, no Festival Mundial da Juventude, na Bulgária. Eu fui comandar o grupo da 2ª região, éramos cerca de trinta guerrilheiros e o Agostinho achava que eu é que devia ir, e veio um grupo grande da União Soviética, um grupo de cinquenta estudantes, então vinha o Zé Eduardo. Mas vinha integrado como músico. Quer dizer, como politico, não! Politico era o Fernando Paiva, é que era o N´Zaji, que depois aparece com a Ana Wilson e o Loy. Vinham esses todos, foi aí que eu vi a segunda vez o Zé Eduardo. Depois deixei de o ver, volto a vê-lo em 70 quando ele desce, já acabado o curso e ele vem para Brazzaville. Vem para Brazzaville e o Neto tem uma conversa comigo, estava com problemas, o soviético não queria deixar vir a mulher. O que é que ele ia fazer, bem estava a tentar, estavam renitentes, passado uns dias aparece-me ele. Apareceu lá em casa, foi-me cumprimentar, nessa altura eu já estava em Brazzaville. Entretanto, pois, o Fernando Paiva é que era o chefe das telecomunicações, e o José Eduardo também é colocado nas telecomunicações. Só que telecomunicações era
entre Brazzaville e as nossas bases na 2ª região e depois eles conseguiram fazer a ligação com o Leste também. Então, na 2ª região, acho que mandaram o Zé Eduardo lá para baixo, para ficar lá. Eu tenho o número 1 do boletim, era Vitória ou Morte, né? Mas nós chegamos a tentar uma coisa grande mesmo, um jornal, como é que vocês dizem, em A4, ou A3, pelo menos um número eu tenho. Estas fotos são do CVAAR. Este é o Quarta Punza, este é o Américo, este é o Hugo de Menezes, este é o Boavida. Este é o Eduardo Santos, e o Azevedo. Este sou eu e este não estou a ver. Mas isto parece uma reunião da direcção. Bom, mas então continuando, onde é que a gente ia, o Lúcio, eu penso que aquilo foi consequência daquele amontoado de situações, de dificuldades e é a tal história, a certa altura, ali não havia eleições, não havia eleições e aqueles mais esclarecidos achavam que também começavam a ter direitos, então qual era o processo de ascensão, não havia, era cooptação, tinha que ser a direcção que chamava um ou outro. Como isso também não se verificava, a única maneira era o meio violento. De mudar aquilo que eles achavam que não estava bem. Não era o Lúcio o culpado, a meu ver, dessa situação, quando muito a direcção toda, mas a direcção estava concentrada no presidente que também dirigia à sua maneira, é possível que, naquela situação, não houvesse outra, mas não era a melhor maneira de dirigir e foi essa amontoado também de situações que acabou na Revolta Activa. Aí foram os mais esclarecidos do movimento que nessa altura, isto dá-se em 73, fins de 73, princípios de 74, mas em 73. Aquele movimento não se faz de um dia para o outro, como a direcção pretende dizer que foi depois do 25 de Abril. O Lúcio hoje já não pode falar, mas o Lúcio foi contactado e não éramos todos, quem o contactava também já morreu, era o Fernando Paiva. Justamente. Mas isso resulta daquela situação em que estávamos a ser encurralados. Indivíduos que estão ali há três, quatro, cinco, seis anos, para fazer a luta armada, mas a luta não avança. Porque a certa altura a partir de 70, começa antes, quando a direcção resolve retirar praticamente mais de metade dos elementos valiosos daquela 2ª região para o Leste. Muito bem, era necessário. Mas a partir daí, não houve uma reposição então a coisa foi-se afundando. Devagarinho, devagarinho. Quando chegamos a 70, dá-se essa primeira manifestação, a coisa vai-se agudizando. E os militantes começam-se a
sentir cada vez mais revoltados pela inércia, pela ineficácia, a pessoa sentia que já não estava a fazer nada. Estávamos lá a queimar tempo e era revoltante, até que chega a 73. Em 72 começam as mesmas manifestações no Leste. Com as grandes revoltas. O Neto passa mesmo muito a correr por Brazzaville. Passa muito a correr. Quem me vai dando noticias são os outros companheiros de antigamente. Que vindos do Leste passavam sempre lá por casa. O que é embaixador em Cuba, o Toca. Éramos muito amigos. Sempre que passasse, trazia-me noticias do Leste. O próprio Bento Ribeiro, o Kabulo, antes dele vem o Eduardo Santos, ele esteve também lá cerca de dois anos, no Leste. Quando ele vem, vem para minha casa, em Brazzaville, então aí é que ele, coitado. Era um rosário de lamentações, em que ele diz que aquilo não ia avançar, ia piorar cada vez mais. Eu acho que chega em 72. O pessoal do Centro de Estudos já está em Brazzaville. Eu consegui muito tempo depois, a partir de 66, eu não larguei mais o Neto, senti que não havia razão… podiam não ir lá para a fronteira, mas em Brazzaville havia muito trabalho que eles podiam fazer. E mesmo na rectaguarda, onde eu já tinha criado o hospital, tinha criado a escola de enfermagem. E nós sempre tivemos lá um grupo de pioneiros grandes, hoje estão aí muitos deles, esses Tetas, eu conheci-os lá como miúdos do internato, o Nelumba, sempre houve uma escola, desde a primeira classe até onde a gente podia ensinar. Com aqueles que tínhamos lá. E esse até onde ensinar não passava da quarta classe adiantada. Eu pensei justamente que se a gente conseguisse mandar vir aqueles indivíduos aquilo podia dar um salto. Porque de vez em quando, antes deles chegarem, quem fazia isso era o Gika, era o Dilolwa, que se propunham a dar aulas, uma coisa mais ou menos individual, aula de Fisica, Matemática. Tinhamos a escola regular de instrução primária. Com muitos pioneiros mesmo, que faziam aquilo da primeira à quarta classe. Mas a partir da quarta já não tínhamos possibilidades. Então, havia um ou outro que também queria estudar um bocadito, então, era o Dilolwa, era o Gika; eu pensei se eles viessem, eles podiam…. E de facto, foi o que aconteceu. A partir de 68, conseguimos com que eles viessem, eles praticamente ficaram em Brazzaville muito pouco tempo, ficou o Adolfo que ficou imediatamente a tomar conta da emissora, do Angola Combatente, mas a Céu (Carmo Reis), o Pestana, o Abranches, esses
seguiram para o CIR que ficava tudo num conjunto grande onde estava o Hospital, a Escola de enfermagem e aí eles desenvolveram o ensino secundário condensado que ajudou imenso. E fizeram muitas cartilhas. Foram bastante bem aproveitados. De vez em quando vinham a Brazzaville para ajudar a programação do boletim que também saia. Foram mesmo bastante aproveitados. Mas não me foi fácil. Não foi fácil.
Dia 17 de Julho de 2010
Aquilo creio que era um colégio, um colégio que ficava um bocadinho afastado do centro da cidade, e aí tínhamos alojamentos que chegavam para todos. As refeições, nós, no principio, nos primeiros dias, comíamos lá num hotel mesmo no centro da cidade, mas de facto nós não estávamos habituados aquele tipo de alimentação. Eles cozinham muito à base de óleo de amendoim. Não usam óleo de palma como nós aqui. Assim como nós aqui usamos e abusamos do óleo de palma, eles usam o óleo de amendoim. Então, dá um sabor diferente à comida. De resto era o mesmo tipo de alimentação que aqui, só que os nossos camaradas não… então nós pedimos, quando mudámos para o tal colégio, se era possível dar-nos os ingredientes para nós próprios cozinharmos. Então arranjámos lá equipes, as nossas senhoras mas sempre com um camarada para ajudar, lavar aqueles panelões e bom, não tínhamos outros problemas. Nessa altura, ainda éramos uns oitenta que chegámos ao Ghana. Uma parte tinha ficado em Paris, depois foram distribuídos, mas ainda sobraram cerca de oitenta, estou convencido, é possível estabelecermos esse número. Mas não tínhamos problemas, porque, bom, nós quando estivemos em Paris, o embaixador do Ghana, justamente primeiro os indivíduos da SIMATE, com o pastor, aperceberam-se que nós não levávamos roupa nenhuma, só levávamos aquela roupa com que tínhamos fugido, aliás eles tinham dito, não levam nada para evitar despertar atenção. Então, primeiro foi o pastor Beaumont que nos levou aos centros de Paris para fazermos pequenas compras. Vestuário. Toda a gente foi contemplada com aquele mínimo. Chegados à Alemanha, o próprio
embaixador do Ghana, não me lembro do nome dele, mas posso ver nos meus apontamentos, também se apercebeu que nós estávamos um bocadito… então também ofereceu sobretudo às senhoras que tinham crianças e fomos fazer… de maneira que quando chegámos ao Ghana não havia necessidades desse género. Mas à medida em que, saídos do Ghana e chegados a Leopoldville, mas isso foi logo no primeiro contacto, eu apercebi-me que de facto o movimento, primeiro, estava mesmo em fase embrionária. Havia três ou quatro dirigentes a nível máximo e depois havia os militantes que já estavam lá em Leopoldville há muito tempo e eu apercebi-me logo que ali o movimento não tinha condições para receber aquele grupo grande de uma vez, era impossível, aliás isso veio a confirmar-se depois nas conversas que eu tive com os membros da direcção, confessado por eles próprios que o movimento estava numa fase muito embrionária, estávamos a viver de ajudas exteriores, organizações, uma ou duas europeias, alguma ajuda financeira que vinha dos países do Norte de África, nomeadamente Marrocos mas que isso não chegava. Os países de Leste, com a União Soviética à cabeça, toda a ajuda que eles davam, até àquele momento pelo menos, era em pequeno material de guerra e depois uma alimentação que se traduzia em carradas de feijão só. Então vinha um barco que trazia, metade do barco era feijão, a outra metade era óleo de qualquer coisa. E não passavam disso. Havia mesmo muita dificuldade. Tanto é que quando eu cheguei sozinho, a Gina e o Johny tinham ficado, eu disse bom, é preciso que eles venham, dizem eh pá, tem que ter calma porque nós não podemos, não temos possibilidades. Eu disse, bom, como tinha familiares lá eu próprio disse não, vocês só têm que mandar vir, bilhetes; quanto à logística eu arranjo. Então e os outros companheiros? Eles não podem ficar indefinidamente, há uns que estão mesmo destinados a vir cá para baixo. Há uma parte desses setenta ou oitenta, uma boa parte ainda vai continuar os seus estudos. Estamos a tentar arranjar lá bolsas, mas sei lá, posso dizer que uma vintena era mesmo para vir cá para baixo. Ah, podes tirar o cavalinho da chuva, porque não é possível, não temos condições. Estamos a preparar, arranjar aí uns casarões onde vamos meter as pessoas, estamos a fazer face a refugiados que chegavam diariamente do interior, vinham às dezenas e que, mesmo sem ser militantes do MPLA, eles iam acolher-se lá
onde era possível. E os congoleses é escusado, não tínhamos apoio nenhum. E então, nós nessa altura já tínhamos o CVAAR, que se tinha proposto justamente a ajudar os refugiados, e então o movimento não tinha hipótese nenhuma. Posteriormente, quando nós passámos para Brazzaville, a situação não mudou absolutamente nada. Bom, o movimento tinha por obrigação manter pelo menos, a nível de direcção, direcção alargada, eram não só os membros da direcção e seus familiares, mas também aqueles membros que eram muitos dos comités de acção. Não é? Esses estavam, eram militantes, estavam mesmo ao serviço do movimento. Depois, está claro que havia os outros militantes, que tinham as suas vidas lá, mais ou menos, mais ou menos organizadas, trabalhos precários mas que dava para se aguentarem. Tínhamos um subsídio que era pequenininho, mas pronto, dava para comer. Mas esse subsídio, comecei a ver com o tempo que era curto, portanto, para aguentar o mês inteiro era preciso mesmo viver como refugiado, tínhamos que viver como refugiados, fosses doutor ou fosses professor, ou fosses não sei quanto, é membro da direcção sim senhora, a direcção dá-te um subsidio, mas esse subsidio nunca pensar que vai ser suficiente para viver com… depois, chegava ao fim de três, quatro meses, começava-se a sentir que ele começava a faltar. Bom, lá ia, as pessoas todas iam à direcção, onde havia um secretário-tesoureiro que era membro da direcção, e ele coitado dizia eu não tenho dinheiro, estamos à espera do presidente. Mas era nestes termos que falavam. O presidente é que tinha que vir, e tinha que fazer… está para chegar, têm que ter paciência. Nesse intervalo, que era muito frequente, de quinze dias a um mês, o que distribuíam era a tal ração que vinha da União Soviética. Eu lembro-me perfeitamente que eles tinham uma ervilha que tinham mandado de lá da URSS, que nós fazíamos daquela ervilha tudo o que era possível e imaginário. E com óleo, um bocado de óleo e mais nada… o resto cada um procurasse desenvencilhar-se como podia. Isto ainda na rectaguarda, em Brazzaville. Quando eu vou para o interior, portanto, a gente está na fronteira e tínhamos os postos avançados no interior do país, a crise ainda era maior porque aí todos os elementos que estavam ligados ao partido, ao movimento, eram militantes e militante era aquele que de facto, não tinha qualquer outra ligação de trabalho, qualquer que fosse, estava mesmo
sobre a “coisa” do MPLA, o MPLA é que tinha de subvencionar pelo menos a habitação e a alimentação, porque o vestuário isso era de ano a ano que surgia um bónus qualquer. E aí os problemas eram mensais, permanentemente havia. Não é revolta, mas aquelas manifestações de desagrado… À medida que fomos para o interior então eu vi que a coisa era mesmo muito grave. Porquê? Isso ao fim de seis meses de eu lá estar, no interior. Nós tínhamos a nossa grande rectaguarda estava em território congolês, onde tínhamos uma grande base com internato, com hospital e tínhamos uma série de postos avançados que estavam já no interior de Cabinda, com postos médicos sobre a fronteira. Num posto médico, havia sempre um enfermeiro, que, algumas vezes tinha familiares. Em suma, ele fez filhos, ora nós naquela zona, na 2ª reunião, como a gente dizia, aquilo estava dividido em duas zonas se não me engano, zona a e zona b, e cada zona, ainda estava dividida em postos. Tanto a zona a como a zona devia haver pelo menos três postos médicos ao longo da fronteira. Toda essa população estava completamente dependente da ajuda exterior que o movimento teria que enviar. Não podiam trabalhar porque nem sequer havia trabalho para eles. Depois, os guerrilheiros que estavam nos postos avançados, nós também tínhamos aquilo distribuído em duas zonas, cada zona tinha aí pelo menos três postos, uns seis postos avançados. Com, sei lá, uma trintena, entre vinte a trinta guerrilheiros em cada posto avançado, completamente dependentes de toda a ajuda que vinha do exterior. Porquê? Pensava-se guerrilha, guerrilha, o guerrilheiro tem que viver no meio, mas isso ali, eu nunca verifiquei. Então, ah, e as acções militares, isso depois em conversa com responsáveis militares, disse, não, nós não podemos fazer uma pequena emboscada que seja, que as emboscadas eram feitas em direcção ao interior aí, sei lá, dez quilómetros do posto avançado. Então, era uma situação que exigia pelo menos sei lá, dois dias de marcha para lá, e depois dois dias de permanência e depois dois dias de regresso. Uma semana. Então, eles tinham que levar alimentação para uma semana. Quer dizer, se não houvesse, nos postos avançados, alimentação para cobrir essas investidas, não havia acção nenhuma. Acção militar. E isso acontecia com muita frequência. Isso, em 65, 66, 67. Uma das razões que desmotivou, desmobilizou os nossos guerrilheiros. Estava-se ali no meio ambiente hostil, inóspito, muita chuva,
muita humidade, muito frio à espera de ir para o combate. Era a função deles, era ir para o combate. Mas ir para o combate como, se a gente não tem reservas para aguentar uma investida? Então, ficava-se à espera. Está claro que essa espera, que às vezes demorava um mês, dois meses, três meses, isso condicionava toda e qualquer acção. Então, ficavam, eles ficavam a fazer exercícios durante esse tempo. Mas isso acaba por… então o que é que eu estou aqui a fazer? Uma das razões, a falta de alimentação e falta de acção militar. Isso foi um descontentamento que se foi acumulando e deu na primeira revolta, em 67, a tal história do Lúcio Lara. Isso foram coisas que se iam acumulando. Por um lado. Por outro lado, era a falta de adesão das tais populações. Aquele povo todo de Cabinda, uma boa parte dessa população tinha-se refugiado no Congo. Fugindo das investigas da tropa portuguesa. Bom, mas eles vinham, instalavam-se ao longo da fronteira, uns conseguiam reconstruir umas lavrazitas e não sei quantos, iam sobrevivendo, outros que não conseguiam tentavam uma ajuda junto do movimento, o movimento não podia responder. Por isso, por um sentimento, sei lá, não se sentiam ligados aquela luta…o certo é que nós, eu pelo menos estive quatro anos consecutivos, 65, 66, 67, 68. Eu posso dizer que o número de cabindenses recrutados, e nós tínhamos a nível da cúpula militar e politica dessa região indivíduos de Cabinda. Portanto, nem se podia dizer que não estavam representados. E bem representados. Mas nesses quatro anos, o número de militantes e havia muitos militantes… diziam-se militantes… e militantes bastava ser o quê? Ele dizia que queria ser militante do MPLA, muito bem, passava-se-lhe um cartão de membro, ele passava a ser militante. Ele pensava que com esse cartão já tinha direito a não sei quantos, o que não acontecia… Mas então, dentre desses militantes, havia outros simpatizantes, mas mesmos militantes ainda assim conseguia-se recrutar bastantes. Mas, para passar da fase de militante a guerrilheiro, esse número é que não se conseguia. À vontade, toda aquela nossa tropa, era composta eu não eu não exagero se disser que em 90% de cada um daqueles esquadrões, era tudo gente que não era daquela região. Autóctones de Cabinda se houvesse 10% em cada grupo já era muito. Nunca cheguei a perceber bem. O certo é que eles não se sentiam suficientemente motivados para dizer sim senhora, eu larguei aqui a minha família, os meus familiares, e vou para esta luta, que estes
homens estão-me a mostrar que é uma luta séria, uma luta digna. Porque naquela altura, sempre houve o tal movimento da FLEC. Mas não tinha, eles não tinham expressão. Aquilo era mais um grupo de indivíduos de Cabinda, tinham constituído… mas dizer que havia um movimento, eles também não conseguiam porque senão eles teriam mobilizado aquelas pessoas todas e dizer, pronto, vocês não querem ir lutar com o MPLA, mas então venham e vamos nós também lutar contra o coiso… Isso nunca se verificou. Movimentação militar da FLEC, eu pelo menos, nunca tive conhecimento. Fico sem saber se era só mesmo um sentimento da terra que os levava a um afastamento para a Angola grande, como eles diziam, aquilo era a Angola pequena, o certo é que tudo isso motivado em parte por essa dificuldade material que eu verifiquei desde o primeiro momento em que desembarquei em Leopoldville. Nesses quatro anos que eu vivi ali dentro, foi mesmo essa, o resto eram pequeninas manifestações, mais ou menos individuais, de reclamações justamente de meios de subsistência, mas que não chegava a ter repercussões de grupo. Agora, como grupo mesmo organizado foi esse. Outra coisa que, nós, os mais esclarecidos, os chamados intelectuais, começámos a sentir – a ver não, porque ver tínhamos visto há muito tempo – mas começámos a sentir que não era um bom comportamento por parte da direcção. Centralizar, digamos, o poder, que naquela altura se traduzia na questão material, financeira, nas mãos de um individuo, individuo esse que era o presidente do movimento, mas que não estava permanentemente connosco. Devido às suas funções era obrigado a viajar constantemente para um lado e para o outro, portanto pode dizer-se que, em cada três meses, o presidente ficava um mês connosco. Então, nesse mês em que ele ficava, era o mês em que ele trazia o dinheiro. E, digamos que havia uma maré baixa e tudo começava a correr mais ou menos. Ele saía, começavam as dificuldades. Isso começou a criar um sentimento de que alguma coisa não estava bem na organização. Foi-se acumulando, porque isso condicionava, como já disse, acção militar; então se o presidente estava, até se davam acções militares. O presidente saía, dava a impressão que os restantes membros da direcção que ficavam sempre, mesmo em Brazzaville, mesmo que não estivessem lá dentro, não faziam nada quando o presidente estava fora. Dava a impressão que eram figuras decorativas. Que de vez em quando
aparecia por um período que ia a muito menos de uma semana. Aparecia sempre um membro da direcção mas que não vinha trazer nada. Apoio moral, mas nem sequer apoio moral. O que a gente precisava era qualquer coisa material que se traduzisse em meios para a acção militar. Isso só quando o presidente estava presente. Isso era mau… Eu acho que fundamentalmente foi isso. Talvez aliado a um pequeno sentimento também de ascensão, de tomada do poder. Pensando eles que, se tomassem o poder, as coisas iam melhorar para eles. O que era um erro. Um engano. Porque aqueles que ficavam em Brazzaville, os membros da direcção, eles não tinham possibilidades de fazer nada. Não tinham nada. Sim senhora, um era o membro da direcção para os quadros, o outro era o membro da direcção para a defesa e segurança, o outro era membro da direcção para as relações exteriores, mas tudo isso estava dependente da chegada do presidente. Estava o Lúcio Lara, que era o chefe da organização e quadros, estava o Iko Carreira, que era o chefe da defesa e segurança, o Luis de Azevedo Júnior, das relações exteriores… A revolta foi liderada pelos tais dois indivíduos, o Ananias e o Valódia. Foi a ideia com que nós ficámos. Porque uma boa parte tinha chegado de Leopoldville. Não eram indivíduos que estavam connosco lá nas frentes de combate. Nem sequer na fronteira. Eram indivíduos que tinham vindo já da 1ª região, através de Leopolville e eles vinham sobretudo reclamar também condições que não tinham na 1ª região. Pensando que o movimento não enviava porque não queria. Primeiro que eles dessem conta daquela realidade, e foi a partir daí que depois em 66, 67, então o presidente Neto decide enviar os tais reforços para a 1ª região. Porque eles chegaram com a ideia de dizer nós estamos muito mal ali em baixo. E pensando que se tomassem o poder daqueles membros da direcção de Brazzaville que podiam melhorar as coisas, mas era um erro. O Bolingó estava, mas estava connosco lá no interior. Eu acho que ele não estava metido nisso. É possível que esse grupo, comandado pelo Ananias e pelo Valódia, acho que o Monstro Imortal também estava, esse grupo é capaz de ter arrebanhado meia dúzia de indivíduos que estavam na 2ª região. Que sentiam já esses problemas, esses problemas eram sentidos. A falta de meios para subsistir e para poder permitir acções militares. Não havia 3ª região. Havia indivíduos isolados que o movimento tinha enviado para lá,
o caso do Henda e do Chipenda que tinham ido para tentar a abertura, mas tinham sido presos, essas aventuras todas, mas não, é quando ao fim de, isto já entre 67, 68 a crise começa a acentuar-se muito na 2ª região. Crise motivada por essas razões todas. Não há acções militares. As acções militares começam a baixar de intensidade o que era já notório mesmo no meio congolês, nos nossos amigos, que a 1ª região manda esses emissários, 67/68 a dizer que lá em baixo aquilo era impossível porque não havia nada. Então o presidente Neto diz, bom, nós temos que reforçar a 1ª região. Mas esse reforço salda-se num meio fracasso. Das três colunas que nós conseguimos enviar, acho que meia coluna conseguiu chegar lá, que é a coluna do Ingo. As outras todas foram dizimadas pela UPA. A Operação Macaco é na 2ª região e dá-se na 2ª região. Uma tentativa de levantar o nível da acção guerrilheira. As colunas que nós enviamos de Brazzaville, passando o rio, indo a Leopoldville, atravessar a fronteira para vir para a 1ª região, Nambuangongo e Dembos. Foram, senão me engano, três colunas. E a única que conseguiu chegar lá completamente desmantelada, foi a do Ingo. Onde iam as camaradas. Isto foi em 68. De tal maneira, isso também salda-se por um fracasso, que é a partir daí, que o Presidente Neto, certamente com os outros camaradas da direcção resolvem que, se Cabinda estava praticamente parado, não se avança nem se recuava, o português também não avançava, fez uma investida enquanto eu lá estive nesses quatro anos, fez uma investida grande, chegou até à fronteira isto foi em 66/67. Mas nós também não conseguíamos avançar porque não tínhamos meios para grandes incursões. Se a 1ª região não tínhamos conseguido meter as tais colunas, então tínhamos que ir para o Leste, dizia o presidente com razão. Aquilo era uma região virgem de guerra, não havia lá nada, e é assim que decidese abrir a 3ª região. Abrir a 3ª região como? Havia muito militante naquela zona leste. Mas são os tais militantes que depois vieram provocar as tais revoltas do leste. Então o presidente Neto pensa e bem, certamente, nós não podemos contar só como militantes aqueles que estão lá no Leste. Isso ele certamente viu. Eu nunca estive no Leste, a não ser quando foi do Congresso de Lusaka. Ele viu, viu bem, que, pronto, aquilo era uma zona nova, nós não tínhamos conhecimento exacto daquilo, principalmente camaradas que tinham sido enviados para lá não tinham sido bem
sucedidos, foram presos, não sei se vocês sabem dessa história. Vamos ter que levar uma boa parte dos nossos melhores quadros, dos nossos melhores militantes, dos nossos melhores guerrilheiros, da 2ª região, de Cabinda. E assim é que há aquela grande transportação, o soviético aí ajudou bem, porque pôs à disposição 3 ou 4 Yliuchines que transportaram…aquilo foi transportar guerrilheiros com as suas famílias. Foi uma travessia que os congoleses diziam que nunca tinha sido feita, pelo menos em África, muito menos por um movimento de libertação. É que transportou-se famílias inteiras que estavam na 2ª região juntamente com os melhores quadros, os melhores guerrilheiros que a gente tinha. Foi mais ou menos um abandono da 2ª região, mas um abandono propositado porque de facto ali já não se podia fazer nada. Aquilo continuou, a 2ª região, mas sem aquele nível que tinha atingido nos primeiros dois ou três anos. Então, foi essa viagem longa…Não foram todos mais aí três quartos dos melhores quadros politico-militares da 2ª região. É aí que também sai o Lúcio, o Iko, da direcção, os melhores quadros foram todos transferidos para lá. Os melhores quadros militares, nossos comandantes, foram todos para lá. Tirando aqueles que já tinham ido para a 1ª região e que tinham sido quase que dizimados. Como digo, um terço dessas três é que conseguiu chegar lá. Os principais comandantes foram todos para lá. Por isso é que muitas vezes quando se fala na guerrilha em geral e justiça se faz dizer que o berço dos guerrilheiros do MPLA foi a 2ª região, aqui a zona de Cabinda. Aí é que se formaram esses todos que durante, pelo menos uma meia dúzia de anos conseguiram de facto fazer grandes investidas no Leste, que constataram uma grande ofensiva portuguesa, mas isso é outra conversa. Mas durante meia dúzia de anos, eles conseguiram impor-se. Enquanto a meu ver, lá está, tiveram possibilidades de materialmente ir aguentando. Porque o fenómeno lá no Leste, também se passava como se passou na 2ª região. Dificuldades em encontrar apoio material junto daquelas populações. Aí segundo o que eu ouvia, havia um forte sentimento tribal, porque o que é que acontece. Todo esse grande grupo, uma boa maioria que foi para a 3ª região, eram indivíduos do Norte. A maior parte. Não havia indivíduos do Leste nessa altura. Um problema regional. Tanto é que segundo o que me contaram, as primeiras revoltas que houve no Leste assumiram mesmo
um carácter regional/tribal. Esta revolta do Jibóia, mas isso eu não conheço , era o que eu ouvia. Mas eram nitidamente de carácter regional. Mas resultantes das dificuldades que começaram a surgir ao fim de meia dúzia de anos, as dificuldades que nós tínhamos passado na 2ª região. Repara que se nós na 2ª região tínhamos dificuldades, a nossa rectaguarda era mantida por Brazzaville, ficava relativamente perto, Ponta Negra que ficava também perto, os barcos que vinham com a ajuda exterior desembarcavam em Ponta Negra e uma parte ficava já perto da nossa 2ª região, a maior parte ia para Brazzaville mas depois voltava. No Leste, as coisas eram multiplicadas por não sei quantos. Porque a rectaguarda principal estava na Tanzânia, repara bem no mapa, eles tinham que atravessar não sei quantos mil quilómetros, atravessavam a Tanzânia, atravessavam a Zâmbia, para chegar à fronteira de Angola. Muito mais complicado. Que era o único meio que eu saiba, que nós tínhamos para receber auxilio. Quer em armamento quer em alimentação. Porque no interior, se houve uma primeira recepção amistosa, nunca direi calorosa, sinceramente, mas amistosa, nos primeiros ano, segundo ano, ao fim desse tempo começaram a surgir dificuldades porque começou a haver dificuldades na transportação do abastecimento e veio ao de cima aquele sentimento tribal. Isto, 69/70/71 começaram a ser imediatamente os problemas. Que se agravaram de tal maneira que foi daí que começaram as tais reuniões de reajustamento. Porque o presidente Neto chegou à conclusão de que era preciso restaurar, remodelar, reformular. E segundo o que me contou, eram conversas que eu tinha com o Eduardo Santos no mato, depois mais tarde com o Gentil Viana, o Agostinho não estava muito, o Agostinho e a equipa directora toda, não estavam muito dispostos a fazer reuniões desse género porque sabiam que isso ia enfraquecer o (não se entende) a direcção e ia necessariamente permitir a ascensão de novos dirigentes para a cúpula, que repara bem, desde que nós chegámos a Leopoldville em 61, chegámos até 70 e nunca se fez – fezse aquela reunião de direcção alargada conferência em 62 e depois nunca mais se fez nenhuma reunião, sei lá, tipo regional, não era possível, não havia… Foi o Gentil Viana. Ele era o mentor dessa ideia. Ele tinha chegado da China, onde tinha passado uma dezena de anos ele tinha estado connosco em Leopoldville logo no principio mas saiu logo porque o
Agostinho Neto chamou-o para adjunto e ele foi… ele vai para a China depois. Depois da nossa conferência de 62 que ele vai para a China. Quando há a crise com o Viriato, ele não está alinhado com o Viriato, mas o movimento quase que se fragmenta bastante sobretudo com o conhecimento do governo de transição lá do Holden. Somos expulsos, e ele sai também, e vai até Argel. De Argel é que ele vai para a China. Isto em 63, se não estou em erro. No reajustamento o Gentil é a cabeça principal. Os indivíduos que estiveram no Leste é que podem contar bem essa história. Eu só sei pelo que me contam. Esse movimento depois estende-se aqui à 2ª região. O mal estar tinha apanhado todo o movimento, quando digo mal-estar o que é é a paralisação das acções militares, que era o motivo principal da nossa presença nas fronteiras. Tínhamos a parte médica que era para dar assistência aos refugiados, mas a parte guerrilheira era para fazer acções militares. Essas acções militares tinham paralisado praticamente em todas as regiões. Então, a grande ideia sai do Leste mas ela vem até à 2ª região. E na 2ª região também há um movimento de reajustamento. Nessa altura eu já não estou na guerrilha, eu saio estou em Brazzaville, no Hospital de Brazzaville, cirurgia. Mas são os colegas que me contam, eles estão constantemente e aqui na 2ª região também se dão cenas não digo de violência física, mas de violência verbal acesa. Aí, a Céu está presente. Ela é capaz de ter uma boa visão do que se passou neste movimento. Já está a Céu, está o Adolfo, não sei se está o Pepetela também, o Ludy vai para o Leste, o Ludy sabes como é que o Ludy vem parar, o Ludy vem parar ao movimento, o Ludy primitivamente não era militante do MPLA. Ele foge de Kinshasa e vem para o MPLA. Depois, como ele conhecia um pouco a regiºao norte, ele vai com um dos esquadrões, acho que é no do Ingo para o interior, para a 1ª região. A certa altura, chegam à conclusão que não conseguem avançar mais sobretudo porque as camaradas estavam muito muito fragilizadas então o comando do grupo dá ordem ao Ludy para levar as seis camaradas de regresso a Brazzaville. É no regresso que eles são atacados pela UPA, ainda dentro de Angola. Entretanto o Ludy consegue escapar-se, elas são feitas prisioneiras, levadas para a base de Kinkuzu, que estava na fronteira, na parte congolesa. O Ludy aparece-nos, ele é que nos vem dar a noticia, meses depois, consegue sozinho e ir atravessando aquelas zonas
todas, e vem parar novamente a Brazzaville. 67, talvez. Inclusivamente, a minha amizade com o Ludy que ele até hoje tem uma gratidão muito especial, resulta que quando ele está para regressar o Ingo dá-lhe um bilhete dizendo, olha, tu vais ter com o meu primo, o Dr. Vieira Lopes, tu quando chegares lá, vais estar num estado que eu não acredito que consigas ir imediatamente para a frente de combate. Ele aparece-me em Brazzaville, onde eu estava com a Gina e com os miúdos e de facto num estado… se eu tirasse de casa, ele caia e morria na primeira esquina. Ele ficou lá em minha casa, coisa que eu não fazia com ninguém, porque eu andava sempre lá na mata, ele ficou lá em casa, um dois ou três meses. Ele estava tão fraco que a Gina tinha que o levar à cama, ele ficou no quarto com os miúdos, nós tínhamos o nosso próprio quarto, e deitá-lo porque ele não tinha forças e levar-lhe à cama o leite e coiso porque ele não tinha forças para se levantar e ir para a mesa comer.. Quando conseguiu recuperar, é claro que o movimento o queria mandar imediatamente para a frente, mas eu disse, não, não é para a frente. Mas ele vai ficar aqui no dispensário e vai ficar a estudar enfermagem, porque ele não está em condições de ir para nenhuma frente de combate. Ficou lá, fez lá também o curso de oficiais de enfermeiro. E só depois é que então, foi. Ele ficou imensamente grato, nunca mais esqueceu, até quando foi depois a prisão dos camaradas da Revolta Activa, acho que fui eu, o Joaquim Pinto de Andrade e Eduardo Santos, os únicos que não fomos incomodados, cada um pela sua razão. Eu nunca cheguei a saber porque é que não tinha sido incomodado. Eu citei estes três, porque éramos… fizeram parte do primeiro documento, o grupo dos dezanove. O primeiro grupo que fez sair o manifesto eram 19, e entre eles estava eu, o Joaquim e o Eduardo Santos. Os outros todos foram parar à cadeia, inclusivamente indivíduos que nem sequer tinham feito parte do grupo dos 19. Mas pronto, prenderam todos. Há muitas razões que me deram. O certo é que eles prenderam muita gente que nem sequer fazia parte do grupo dos 19. Bom, mas isso para dizer que, eu lembra-me que quando começou essa vaga de prisões, eu telefonei ao Ludy, continuei a dar-me sempre muito bem com ele, e eu telefono-lhe porque os familiares e os amigos dos camaradas vinham… estavam a prender, para eu tentar saber de alguma coisa. Em 78, eu telefono para o Ludy, e disse o que é que se passa, estão
a prender os meus camaradas todos, da Revolta Activa, não, não, o camarada esteja descansado consigo por enquanto não há nada. Por enquanto? Isso era a linguagem dele, o português dele. Quer dizer, não há nada consigo. Eu disse, está bem, mas eu não me sinto comodamente aqui na minha casa a ver os meus camaradas todos presos sem uma culpa formada, não depois vamos ver, mas contra si não há, fique descansado, ninguém lhe vai fazer mal nenhum. Foi tudo o que eu soube. Mas isto para dizer como é que o Ludy… o Ludy sai, fica lá na 2ª região um tempo, mas depois vai para o Leste. A tal história. Os melhores quadros, militares e políticos da 2ª região foram todos parar ao Leste. Ficaram meia dúzia de indivíduos que tentaram repor aquilo mas nunca mais aquela 2ª região foi como antes. A Revolta de Leste nasce com o Chipenda que já estava lá e que é acusado de tribalismo. Baseada na sua fundamentação, mas no fundo era sempre a mesma história. O problema é o seguinte:, aquela gente, 80% eram daquela zona, daquela região, eles é que se sentiam pouco apoiados, na tal história do reabastecimento, que foi gerando esse conflito. Era normal que a maior parte dos revoltosos fossem daquela zona. Então, mas os kimbundus da 2ª região que lá estavam não se meteram nisso? Não. Por fidelidade ao presidente, porque já tinham passado por fases semelhantes aqui na 2ª região, e sabiam que, enfim, a guerrilha era mesmo assim, não sei, as pessoas que estiveram no Leste podem talvez melhor que eu, dizer isso. Como digo, nunca estive lá, eu só estive no Leste quando foi já em 74, no Congresso de Lusaka. Que pretendia encontrar um meio de entendimento entre a revolta do Leste, a direcção e a revolta activa. Onde eu sou escolhido, que ali não havia eleições, sou escolhido por unanimidade e consenso entre os três, por indicação do Agostinho Neto. Ele manda-me chamar, um dia há noite, aquilo era um descampado enorme, aquilo fazia medo. Com umas tendas enormes, onde ficámos instalados, as três facções. Era muita gente, mas pronto. Os congoleses acompanharam a coisa até convencerem o presidente Neto de que sim senhor, era necessário fazer essa reunião. Portanto, havia representantes do governo congolês, acho que também havia do Congo Democrático e da Zâmbia. Mas depois, quando entrámos para o tal congresso que ficava afastado da cidade, num descampado, não sei como é que eles escolheram aquilo, ficava ainda a uns trinta
quilómetros do centro da cidade, tanto é que nunca, enquanto estivemos lá, ninguém de atrevia a sair dali e ir para a cidade. Estava cercado por militares. Militares zambianos. Mas então, uma noite, estou eu lá na minha tenda, com os meus camaradas, aquilo estava dividido por grupos, não é, a revolta activa, a do leste e a direcção. Vem um emissário dizer que o Agostinho Neto queria falar comigo. Chamou-me e perguntou-me se eu aceitava ficar presidente do Congresso… Eu disse, só posso aceitar se houver consenso entre todos. Porque, se a proposta da direcção, e eu ponho o problema à revolta activa e diz que sim, mas o outro diz que não, não tem interesse, se não houver… Está bem, vou fazer diligências, se o teu nome, a tua pessoa, é aceite. E assim que mandou chamar outra vez disse olha, toda a gente está de acordo, vais ficar presidente do congresso. Lá fui eu. Isso é Agosto de 74. Aquilo acabámos por ficar ali cerca de três semanas. Muita gente. Em cálculo, nós pela revolta activa, éramos cerca de cento e cinquenta. Da direcção, eram uns trezentos. Da revolta do leste, acho que eram uns duzentos e cinquenta. Era muita gente. Conseguiu juntar-se muita gente. A Zâmbia ficou responsável pelo apoio, pelo abastecimento. Mas, aquilo foi um fracasso. A direcção não estava interessada de facto… não estava interessada. Não há documentos porque a própria direcção, pelo que me pude aperceber durante estes anos todos, tentou varrer da história essa história do congresso de Lusaka. Eu não vejo em nenhum documento do MPLA… Tem que se dizer que foi um congresso falhado. Mas que houve um congresso houve. Estiveram lá os principais membros militantes do MPLA, de um lado como doutro, mas a direcção nunca… eles não fazem referência a isso. Então há pouco que se diga, é preciso estudar bem isso. Está claro que uma das acusações que a direcção fazia, para não entendimento, é que a revolta do leste comandada pelo Chipenda tinha integrado na sua equipa, uma série de zairenses, quer dizer, militantes zairenses. Nunca chegámos a saber de facto, se eram militantes, se não. O certo é que ele apresentou como congressistas duzentos e cinquenta ou duzentos e tal. E como uma forte influência do Mobutu, na altura. O Chipenda estava convencido que, com essa influência podia ganhar uma certa preponderância, protagonismo e chegar mesmo à presidência que ele ambicionava já há muito tempo. Então a direcção, se para connosco tinha outros sentimentos, para
connosco eles receavam muito que dizíamos que éramos um grupo de muitos intelectuais, só intelectuais, o que não era verdade. Se de facto, os dezanove primeiros elementos que assinaram o manifesto eram intelectuais, mas guerrilheiros, todos eles guerrilheiros, mas depois conseguimos juntar para cima de cento e cinquenta assinaturas, esses cento e cinquenta não eram todos grandes intelectuais como eles pretendiam dizer. E pequeno-burgueses, né! Então, a maka, digamos assim, com a revolta activa era uma, a revolta do leste era outra, aquilo era de facto uma revolta tribal, e uma revolta que ainda por cima tinha trazido uma componente zairense muito grande que nós tínhamos que ter cuidado. De facto, o Chipenda estava instalado já nessa altura em Kinshasa, com honras de presidente. O Mobutu estava-lhe a dar um protagonismo que de facto ele não tinha. Mas pronto, em politica é assim e a direcção dizia que não era possível. De maneira que ao fim de muita dicussão, primeiro porque para que se encontrasse uma mesa da presidência do congresso levou pelo menos uma semana. Vinha um, propunha um nome, o outro recusava, vinha outro propunha um nome, andámos nisso uma semana, até que o Agostinho teve essa ideia, luminosa ou não, e lá conseguimos. Depois, era preciso estabelecer a ordem de trabalhos. Outra semana. E no fim, acabou por… O 25 de Abril já se tinha dado e por isso é que nós fomos apelidados de pós-abrilistas. Quando, a direcção sabe perfeitamente que aquele movimento que nós fizemos não se podia realizar numa semana, em quinze ou num mês. Aquilo nós levámos meses, primeiro a juntar indivíduos que não estavam todos em Brazzaville. O Mário de Andrade estava num sitio, o Eduardo Santos estava noutro, o Edmundo estava em Paris, outros estavam em França, outros no Gabão, outros estavam não sei aonde e bom, conseguimos juntá-los todos. E discutir, chegar também a um consenso, entre intelectuais às vezes não é fácil, né? Isto foi o acumular de uma série de descontentamentos, que nós achávamos que sim senhor, era possível, era possível, nós tentarmos tirar o movimento daquela letargia, se conseguíssemos que o presidente Neto modificasse um certo número de gestos, condutas, que ele tinha que não eram correctas. Não sabíamos se podíamos ou não pôr outra vez o movimento como tinha sido no principio, mas pelo menos era o nosso dever, a nossa obrigação, isso é o
que nós sentíamos, que tínhamos que fazer qualquer coisa, porque estávamos a ver de facto o movimento a recuar. Todas as frentes estavam semi-paralisadas, já não havia quase guerra, as dificuldades continuavam a acumular-se, na medida em que a guerra ia parando, as ajudas também iam parando, não é? E nós ficávamos numa situação embaraçosa de dizer e nós estamos para aqui a olhar. Temos o dever, temos a obrigação de fazer alguma coisa. Foi nessa altura que nós resolvemos reunir, nós dissemos mesmo, isto é perigosíssimo para nós, porque se não resulta, então, sabemos muito bem como é que a direcção tem agido noutros casos, corremos risco de vida. Mas aceitámos isso. Mas nós tínhamos a cobertura do Congo-Brazzaville, onde a direcção do movimento tinha um grande apoio. Eles apoiavam de facto a direcção do movimento, a cem por cento, mas quando nós expusemos a situação que se estava a viver, eles viram que nós tínhamos razão e tínhamos de facto o dever de fazer isso. Marien N´Gouabi. Não deu apoio completo. Nós não tínhamos dinheiro para fazer esses papéis todos, foi o governo congolês quem nos facilitou isso tudo. É mesmo em 74, em Janeiro, a gente começa a conseguir juntar o grupo. Janeiro de 74. Só que reuniões e mais reuniões, reuniões clandestinas porque se a direcção soubesse que nos andávamos a reunir era um caso sério. Umas vezes reuníamos no hospital onde eu trabalhava, levava lá os camaradas a maior parte das vezes, uma ou outra vez em casa de um de nós, mas em casa dava muito nas vistas, de maneira que o melhor sitio que encontrámos foi mesmo o hospital. Mas isto foi Janeiro, Fevereiro, Março, até chegar a Abril. Estávamos nós com o documento concluído, quando se dá o 25 de Abril. E nós dissemos, e agora, o que é que vamos fazer? Novas reuniões, eu acho que devemos continuar, são os militares que deram o golpe de estado, a gente sabe lá como é que são aqueles militares, ninguém sabia, ninguém fazia ideia nenhuma, como é que aquilo podia virar. Entretanto, é claro, começou logo a haver uma correria de movimentos em direcção às tropas portuguesas que lá estavam em Angola. Isso começou a complicar, mas fez com que o MPLA também não, a direcção não se atrasasse. Eu acho que a direcção do MPLA foi o último movimento a fazer essa aproximação aos portugueses. A UNITA foi logo a primeira, depois foi a FNLA e só depois é que foi o MPLA. Foram os acordos de Lunyameji. No Congresso, uma vez falhado,
uma boa parte do grupo, a maior parte do grupo ainda veio para Brazzaville, ainda tentou com a direcção convencer o Agostinho Neto a unir as forças, tanto é que o Joaquim e o Gentil Viana, acho que integram uma reunião que houve em Nairobi. Logo a seguir, há várias reuniões, umas em Nairobi, talvez outras em Kinsaha, é, os presidentes desses países que estão a tentar ainda um esforço último para reunir para que não entrássemos separadamente. Mas tudo isso foi fracassando, foi fracassando, pronto, aí é que uma parte dos elementos da revolta activa cada um foi para o seu canto, o grosso ficou em Brazzaville e depois houve a entrada também para Angola. Quando entraram, foram muito mal recebidos, quando aí já não havia razão nenhuma, porque inclusivamente o Joaquim, como presidente da revolta activa já tinha feito uma declaração a dizer que, pronto nós depúnhamos todas as armas, armas não físicas, porque nunca tivemos. Mas que não participávamos mais em nenhuma disputa. Isso não convenceu os camaradas. E foi ficando, até que acabou por chegar 78, 78 não, 76/77 com as prisões. O Joaquim foi dos que não foi preso. Eu, o Joaquim e o Eduardo Santos. O Eduardo Santos porque tinha feito auto-critica, eles andavam sempre atrás de nós, nós continuámos a ser amigos, então cada vez que eu encontrasse um daqueles velhos amigos, o Carreira encontrei-o por duas vezes, então quando é que tu fazes a auto-critica, faz lá aquela coisa, aquilo não tem importância nenhuma, aquilo vai parar a uma gaveta, não sei quantos, eu olhei para ele, disse, francamente, não disse nada! Está bem, está bem. Mas então, eles queriam que se fizesse auto-critica. E só assim é que podia ficar outra vez puro. Nós éramos os impuros. E então o Eduardo Santos fez a auto-critica e então, ele ficou, ficou novamente militante, eu acho, não tenho bem a certeza que o Hugo de Menezes também fez autocritica, mas a maior parte não fez auto-critica. Achava aquilo tão ridículo, deselegante… nunca fui incomodado. Mas eu também dizia e sempre que possível em voz alta e bom som que eu não queria cargo nenhum. A nível mesmo do Ministério da Saúde. Muitas vezes. O Ministro na altura era o Mendes de Carvalho. Nós dávamo-nos muito bem, sempre nos demos bem, que eu fosse director não sei de onde, eu disse, eu regressei a Angola, com a ideia de vir trabalhar como médico. E só como médico. Quando muito, organizo os serviços que me derem para organizar e fico
chefe desse serviço. Médico. Mas daí, nem mais uma coisa. Ah!, mas não faça isso, olhe, você se quiser pode nomear, no dia em que me nomear, no dia seguinte eu fico em casa, não vou mais trabalhar. Cheguei a dizer isso ao Mendes de Carvalho. Sim, o Lúcio chegou a ser contactado. Porque nós nunca pretendemos fazer da revolta activa nenhum núcleo fechado, queríamos ir abrir, tanto é que bom, no principio somos os tais dezanove, mas íamos estendendo aquilo na medida do possível. E gostaríamos mesmo, porque sabíamos que havia elementos da direcção que não estavam de acordo com a maneira como o Agostinho Neto estava a conduzir, tinha vindo a conduzir o movimento. Sobretudo, com a falta de reuniões alargadas regulares. Nem regulares nem irregulares. O problema dos fundos do movimento. Por mais secretismo que pudesse haver, devia haver, a nível de direcção, sei lá um secretariado, tesoureiro. E um núcleo da direcção que pudesse ao menos dizer, a quantas é que o movimento andava e porque é que aquilo andava assim. Porque isso, estava a condicionar muito, toda a actividade do movimento. Nós sabíamos que dentro da direcção havia muita gente que sabia que isso era verdade e que era pelo menos preciso discutir para ver se conseguíamos chegar a um… entre esses indivíduos, nós sabíamos, porque tínhamos muitos camaradas que se davam muitíssimo bem com o Lúcio Lara, frequentavam a casa, e nós achámos que… foi posto em reunião, sim senhor, devíamos pôr o problema. Quer dizer, confiávamos no Lúcio, como um homem que, sabendo do que se estava a passar, não iria, sei lá, trair ou dizer, olhe, atenção Sr. Agostinho, estão tentando fazer um movimento contra ti. Essa confiança nós tínhamos. Era um risco. Até essa altura, o Lúcio era considerado o braço direito do Agostinho. Embora, sem o poder que um braço direito pudesse ter. Isso também era outra coisa que nós criticávamos. Ele passava por ser o braço direito do Agostinho Neto, mas não tinha poder. Tirando aquele departamento de organização e quadros que ele dirigia e foi mandando muita gente para fora, os quadros e tal, dentro da direcção do movimento, o Lúcio não se sentia que tivesse a força que devia ter. Como um dos membros fundadores do movimento. E homem de confiança do presidente. Então, nós achamos, sim senhora, era de pôr o problema ao Lúcio, ele que se decidisse, mas pronto, nós tínhamos confiança que ele
não iria… se ele não quisesse muito bem, mas não era ele que ia dizer ao presidente, atenção que estão indivíduos a… Foi o engenheiro Paiva, o Fernando Paiva é, infelizmente já morreu. E que tinha muito boas relações com o Lúcio Lara. Ia lá muitas vezes a casa. Assim, não todos os dias… e ele aceitou, sim senhor, eu posso, mas, não há receio, ele diz que não, depois entra numa birra, não nós temos, pelo que conhecemos do Lúcio, sabemos que ele não vai… quando muito vai dizer eh pá, eu não entro nisso, vocês continuem a vossa coisa. E de facto foi o que se passou. Não, não. Da direcção não houve mais contactos. O Iko nessa altura, andava mesmo lá pelo Leste. Nós não tínhamos nenhum acesso ao Leste. O Pepetela sai da 2ª região para o Leste. Não, mas depois, acho que a Céu não vai para o Leste. A Céu e o Adolfo Maria não vão para o Leste. Por isso eles ficam lá e eles também são os primeiros a ser contactados. O Pepetela não está, não. Depois, acho que o Pepetela vai, mas o Adolfo Maria e a Céu não vão. O Katyana está no Leste também. Tudo o que a gente podia contactar foi contactado. O Dibala também estava no Leste. Pelo menos aqui na 2ª região a OMA teve muito trabalho. E mesmo enquanto estivemos aquilo curto período de tempo em Leopoldville, havia muita mulher angolana que tinha vindo também do interior, refugiada em Leopoldville. Que foram encontrando outras mulheres angolanas que já estavam emigradas há muito mais tempo em Leopoldville. Com a chegada das nossas mulheres intelectuais, a Gina e outras mais, conseguiram organizar, em Leopoldville ainda , um grupo de mulheres angolanas, onde havia a Deolinda, a Engrácia era muito jovem, a Deolinda sim, as outras eram muito jovens, a Maria Carneiro, a mãe da Armanda, e outras senhoras que havia lá. A Maria Mambo nessa altura não era mulher de ninguém. Era uma jovem que foi mandada estudar para a União Soviética imediatamente. Ela está ali em Leopoldville uns meses, se tanto. Quem lá estava mais das senhoras, a Gina, a Ruth nunca se quis meter muito nisso, a Gina convidava-a muitas vezes, ela dizia que não, ficava em casa a trabalhar, tudo o que precisassem dela… mas, não, nunca a vi directamente metida no exterior. Todo o trabalho que ela fazia era em casa. Não creio que fosse o Lúcio, ela própria é que achava naquele ambiente hiper-hostil que se vivia contra mulatos brancos ela achava que, (não se entende).
Eu conheci o Albuquerque e a Alda em Coimbra. Quando eu cheguei lá para o primeiro ano já eles estavam no 3º avançado, eles estavam na antiga reforma, eles acabavam no 5º ano. Quando eu entrei, já eram seis anos. Eles estavam no terceiro, terceiro ou quarto. Mas eram frequentadores da Casa dos Estudantes do Império. E foi ali que nós fizemos conhecimento. Ele também, escrevia, e escrevia muito bem, era um verdadeiro intelectual. Eu conheci-os lá, está claro que eu era miúdo, o caloiro ao pé deles que já eram veteranos, estavam a acabar. Estavam no quarto ano, tanto é que ficaram um ano e depois saíram logo. Mas deu para fazermos amizade ainda. Mas depois não voltei a vê-los mais. Ela morreu em sessenta e tal. Eu não estava cá. Não sei. Eles eram muito amigos Urbano Frestas. Eu só volto a ter noticias do Orlando Albuquerque e da mulher, em setenta e cinco, cheguei eu a Luanda, 77 eu estava a trabalhar no Maria Pia, quando eu chegou eu fico colocado no Maria Pia. Cirurgião. Chego em Julho de 75. Venho com a família. Eu nunca deixo para trás… essa foi uma das makas que eu tive com o Agostinho, também. Quando ele me quis mandar para a União Soviética… eu vou para onde quiseres, simplesmente eu não largo mais a família, porque eu já deixei a família quando da Argélia vim para aqui, quando saí do Congo para ir para a Argélia, eu tive que deixar a família, porque não tinha meios materiais para levar tudo de uma vez, tive que ir eu primeiro. Nós somos muito amiguinhos, então, vamos todos ou não vai nenhum. Bom, ele fez tudo, mas o soviético era muito chato… Tinha lá as suas coisas traçadas. Isso eu compreendo. Eu era cirurgião no Maria Pia. Director, o Urbano Fresta. E o Urbano Festa também o conheci em Coimbra, nessa altura, quando eu chego lá. Eu no primeiro ano, ele já estava no terceiro, na nova reforma já. Mas demo-nos imensamente bem, tanto é que nós fizemos parte de uma direcção, concorremos às eleições da Associação Académica de Coimbra, que era uma coisa grande, em que ele era presidente e eu um dos secretários, ou um dos vice-presidentes. Foi num período de grande crise da academia, e então, nós os ultramarinos, eu acho que nós já criámos peso suficiente, aí eu já estava no segundo ou terceiro ano, o Fresta estava no quinto ano, já criámos muito peso aqui em Coimbra, dentro desta academia, para nos propormos. Não vamos propor-nos como ultramarinos, vamos integrar justamente todo o mundo, portugueses e
tudo, mas a lista vai ser encabeçada por um de nós. Na altura, a politização dos nosso compatriotas era muito grande. Ali em Coimbra, o meio era pequeno, e daqueles ultramarinos que lá estavam de todas as colónias, talvez pudéssemos excluir vinte por cento, mas a grande maioria eram politizados. Com um grau de politização bastante grande. Participávamos activamente em todas aquelas discussões da academia e depois, ficavam muito espantados connosco, como é que nós vínhamos aqui da selva e chegávamos lá ao fim de três, quatro anos. Eu depois quando fui para Lisboa constatei que essa mobilização não era assim tão grande. O meio era muito maior e não havia aquela posição que havia em Coimbra. Mas voltando aqui então, fizemos amizade com o Urbano Fresta. Muito amigos mesmo. Lá em Coimbra. Ainda ficámos lá uns três anos, eu depois fui para Lisboa. Mas então, a Gina um dia fica doente, daquelas doenças de senhoras, tinha um mioma, já estava identificado há alguns anos, mas ultimamente estava a crescer muito e ela incomodava-a. Assim como está, já não dá para esperar mais. Tem de ser operado. Eu vou falar aí com um dos meus colegas – não éramos muitos. O Azancot de Menezes em ginecologia e depois na cirurgia geral havia o Jaime de Abreu. Que éramos os mais velhos. Os outros não, os outros eram muito mais inexperientes do que nós. Ela foi aos arames. Como é que estás a dizer? Eu disse, vou pedir a um dos colegas, vou falar a ver se pode operar. Nem pensar, dizia ela. Então tu tens a fama, tens a mania, disse eu não tenho mania nenhuma, tens a mania, fazes, aconteces, operas todo o mundo, todo o mundo está muito contente contigo, está na hora de operar a tua mulher… vais dizer que me vais entregar a outro. E se me acontece qualquer coisa? Que é que te vai acontecer? Eu disse, fui remoendo, ela tem a sua razão, acidentes qualquer um pode ter em qualquer altura. E se acontece nas mãos de um outro… se eu disser ao povo que eu é que fui pedir para operar, não sei como é que vou ficar… Bom, lá ganhei coragem, está bem, vamos operar. Fui preparando tudo, exames, análises, eu tinha bastante influência ali no Maria Pia onde trabalhava, conhecia aquela gente toda, dava-me muito bem com eles, falei com o Administrador, o homem que tratava daquilo. Hospitalização, arranjaram lá um quarto bonitinho, eu dava-me muito bem com umas madres, não sei de que, a Irmã Dominique, ficámos muito amigos desde que eu cheguei cá. Operei
mais de cinquenta madres, no tempo em que estive… Depois disse-lhe a ela, irmã, eu vou ter que operar a Gina, ela fez-se amiga também da Gina, não faz mal, esteja descansado que eu vou lá, tomo conta dela, e dia marcado, na véspera ou ante-véspera, eu vou a entrar, a entrada era às 7.30 h. vem lá um contínuo Dr., Dr. o Director quer falar consigo. O Director quer falar comigo? Está bem. Eu vou só meter a minha bata… e vou… lá fui, chego, o Fresta sempre muito bem disposto, ó meu caro Vieira Lopes, então prazer em ver-te. Nós já nos tínhamos encontrado várias vezes, lá. Então mas qual é o problema, meu caro Fresta? Eh pá, senta-te aí, eh pá, tenho aqui um problema, eu estive a remoer, eu acho que tenho de te contar. Disseram-me que tu vais operar a tua mulher. Sim, pá. E eu contei-lhe a cena, ela está com um mioma, eu disse-lhe que ia falar com uns colegas, ela ficou furiosa, não aceitou, diz que não senhor, naquele tempo nem pensar em evacuar ou contra-evacuar… ela de facto tem de ser operada, aquilo está muito grande, já está incomodativo. Está bem, pá, está bem, também tenho confiança em ti. Mas algum problema? Eu estou aqui com uma coisa que eu tenho de te contar. Tu lembras-te do Orlando e da Alda? Muito bem, então, estivemos lá em Coimbra juntos… Pois é, sabes que depois eles vieram aqui para Angola. Sim, eu soube disso. Eles casaram, na altura eram só namorados em Coimbra só eram namorados, depois casaram, tiveram filhos, muito bem, até que um dia a eh pá, a Alda parece que estava grávida, o Orlando fez-lhe uma …. O certo é que a senhora morreu. Ele a contar-me isto com um ar muito sério e compenetrado. Eh pá, então e sabes o que é que aconteceu? O Orlando, tinha aí uma amiga, todos nós sabíamos, éramos contemporâneos. Acho que ela tinha muito dinheiro, isso o Fresta a contar que eu não sabia dessa história. Sabes o que é que começaram a dizer? Que o Orlando tinha morto a mulher para ir ficar com a outra senhora. E agora? ele assim para mim, eu disse ó Urbano, estás-me a pôr problemas que eu… eu nem sabia dessa questão do Orlando e da Alda. Pois não, mas eu quando soube que tu ias operar a tua mulher, eh pá, não sei bem a minha cabeça, desculpa lá, mandei-te chamar; eu disse não, fizeste muito bem. Mas no ponto em que a coisa está eu não posso mais recuar! Vou operá-la amanhã, quando muito vou pedir a um colega para ficar comigo a assistir, um colega cirurgião, pedi ao Jaime de Abreu, ele é que foi… mas eu é que vou operar.
Não. Está bem. Boa sorte, diz-me ele. Eu fiquei… eu não sabia disso… O Orlando passou mal, porque as pessoas começaram a dizer que ele tinha feito de propósito, e ele Fresta estava a dizer, não senhor, aquilo são daquelas coisas que qualquer cirurgião sabe eh pá, correu mal… e dizer que ele não devia ter feito, pois é a tal história e se ele dissesse à mulher que ia pedir a outro, também era capaz de dizerem, então uma coisa dessas banal, tu não fazes… é verdade Lá correu tudo bem, mas jurei não repetir a cena. É uma tensão muito grande, a pessoa não fica de facto com todos os seus sentidos, é claro, se a pessoa está numa terra onde não há mais ninguém, como diz o outro, eu não vou deixar morrer um familiar, mas em principio. Aliás, foi uma coisa, que os meus mestres, os nossos mestres lá em cima nos ensinaram. Diziam, não faço isso. Se não houver mais ninguém, está bem. Mas se houver, chamo um colega. Não faça… Eles ensinavam-nos assim. Mas então eu conheço o Pedro miúdo, ele depois faz amizade, sem saber que os pais éramos amigos. Com o meu filho Johny e com mais outro jovem, o Nendela. Apareciam-me lá em casa, jovens, 17, 16, 18 anos eu não o conhecia. E um deles disse este é que é filho do Orlando de Albuquerque filho da Alda. Então, olha, eu conheci muito bem o teu pai e a tua mãe. Tinha ele 17 ou 18 anos, quando o conheci. Depois, acho que ele seguiu para a União Soviética, e nunca mais… Encontrei-o já agora, crescido…
Zé Eduardo, Loy, Belli Bello, eles destacaram-se? Não. Não. A trajectória do Zé Eduardo acompanhei-a até à altura em que ele regressa dos estudos. Eu sou inclusivamente o individuo que como secretário da direcção para os assuntos políticos, que éramos dois secretários, eu era secretário da direcção para os assuntos políticos e havia um outro secretário da direcção para os assuntos administrativos, que era o…. Chegou a ser depois integrado na FNLA, membro do governo de transição… para o comércio… Graça Tavares. Eu estava encarregue justamente de receber todos os indivíduos que vinham do interior. Fazer um inventário para apresentar à direcção, para saber quantos é que tinham… e num dos grupos de jovens vinha o Zé Eduardo, todo ele enfezadinho. Ele ficou em Leopoldville o tempo suficiente para nós
tratarmos dos assuntos que era daqueles jovens que estavam na faixa dos 18, 19 anos, menos de 20 e que, era mesmo plano da direcção, não sacrificar esses jovens que tinham possibilidades de continuar os seus estudos. Então ele foi num desses grupos directamente para a União Soviética. Ele fica em Leopoldville o tempo suficiente para arranjar os papéis, identificação, contactos com a URSS, isso pode ter demorado, três, seis meses, portanto ele aí não teve actividade nenhuma. Estava lá, aqueles nossos jovens militantes. Está claro que o que a gente fazia, era integrá-los na juventude do MPLA. Onde eu, sob comando da direcção, por orientação da direcção, era uma espécie de presidente. É a tal história, nós não tínhamos eleições, mas pronto, era preciso criar também um núcleo do MPLA, a juventude do MPLA. Eu fui encarregue pela direcção para constituir, porque era dos mais jovens da direcção, era dos que estava mais ligado, eu já tinha uma tradição de organização de juventude e então começo a organizar a juventude do MPLA, onde o Zé Eduardo quando chega, pronto, é integrado também. Nem sei que volta é que eles deram, a direcção, eles, mentores da história do MPLA, que querem propor o Zé Eduardo como também fazendo parte da direcção da juventude do MPLA quando isso não é verdade. Como digo, ele não teve tempo sequer. O tempo que ele fica em Leopoldville é muito curto para poder… então, eu lembro-me sim, que ele é integrado na juventude do MPLA, mas não me lembra nunca dele ser nenhum mentor da juventude naquele altura. O certo é que ele vai. Volto a vê-lo novamente, na conferência mundial da juventude na Bulgária, isto em 68. Leopoldvile, ele aparece em 61, fins de 61. Apanha 62. Neste grupo do Zé Eduardo acho que vai também o Loy, acho que vai também a Mambo Café, acho que vai também, há um outro individuo que me escapa sempre, são uns quatro, cinco ou seis, nunca mandavam um só, mandavam grupos de dez, quinze. Então, vejo-o nessa altura, ele integrado no grupo musical do MPLA, o N´Zaji. Na altura, o chefe da juventude dos estudantes na União Soviética era o Fernando Paiva, com quem eu mantinha muito boas relações, nós tínhamos fugido juntos, ele foge também connosco de Portugal. E ele vai a essa conferência mundial. Conversamos muito, muito, matar saudades, nunca mais o tinha visto. E ele tenta traçar-me um retrato, porque eu ia como chefe da delegação da 2ª região, a 2ª região arranjou, éramos cerca
de 50 elementos e o Agostinho achou que eu é que devia chefiar a delegação. O Fernando Paiva vinha chefiar a delegação dos estudantes na União Soviética que eram muitos, na altura já havia muitos. Mas nunca ele me falou do Zé Eduardo como um dirigente da juventude. Isso eram as noticias que eu tinha. Sim senhora, militante do MPLA, era muito activo no grupo musical, era dos mais activos no grupo musical. Mas como dirigente politico da juventude. Nunca ouvi falar nisso. Isto em 68, entretanto eu estou em Brazzaville já no Hospital geral de Brazzaville, isto é, 70, 71, mesmo 72, e aparece o Zé Eduardo, vindo da União Soviética, já com o titulo de engenheiro. Em Brazzaville já está o Fernando Paiva, que é o chefe das nossas operações de telecomunicações. Na altura, eles tinham conseguido, ele, e mais o Lopes Teixeira, o Tutu, faziam parte, mas o Fernando Paiva é que era o chefe das telecomunicações. Então, chega o Zé Eduardo, e ele é integrado nesse grupo das telecomunicações. Não me perguntes como também, nós não tínhamos maneiras de furar poços de petróleo naquela altura certamente, ele era engenheiro de petróleos que é o que diziam. Mais tarde, eu venho novamente… entretanto, perco-o de vista, não era das minhas relações, e ele foi sempre muito, não sei se é, pouco expansivo, ia empregar a palavra apagado mas talvez não seja, ele é pouco expansivo não é? E mesmo nas relações, de maneira que não… porque os outros ainda apareciam lá em casa, apareciam muitos, porque as dificuldades continuaram mesmo depois de eu sair lá da mata, quando eu vou para Brazzaville, então aí, a Gina sempre trabalhou, era professora, ela tinha um bom vencimento, eles aliás davam casa e e depois quando chego a Brazzaville, o Agostinho é que tratou da coisa, para eu ficar lá, fico como interno de cirurgia, eles davam um pequeno vencimento mas que também era… de maneira que estávamos muito bem. Tu não fazes ideia, a casa, eu já sabia, já tinha vivido aqueles momentos, eles apareciam para vir cumprimentar, não vinham cumprimentar, era um pratinho de sopa ou uma sandes . Então, eu comprava o pão aos sacos, e depois comprava uns chouriços grandes e umas gasosas. Apareciam todos, mas o Zé Eduardo não aparecia. Que eu saiba, nunca me apareceu… Até que um dia, em conversa com o Agostinho Neto, eh pá, estou com problemas aí, o soviético não quer deixar vir a mulher do Zé Eduardo, disse, ó diabo, está lá, tem uma filha pequenina, ele está-me sempre aqui a chatear, com
razão, dizia o Agostinho, não sei o que é que hei-de fazer, já fiz tudo, diligências, ela parece que é engenheira de petróleos também, que eu conheci depois muito bem. Finalmente acabou por chegar e então nessa altura eles apareceram lá. Ela foi cumprimentar, eles foram cumprimentar e foi aí que eu conheci a miúda. Ela ficou desde essa altura, a miúda, a Isabel… porque quando eles casaram, eles mandaram-me um convite. A Isabel deve ter dito, vê lá se tem alguns amigos antigos teus, foi toda a gente, da parte do governo, mas eu não era do governo, quando muito era parlamentar. Não sei, também não iam convidar todos os parlamentares. De maneira que eu penso que foi mesmo desse tempo de Brazzaville. Eu fui lá ao casamento, a Herminia disse, ai vamos lá ver e lá fui. Ficamos lá um pedaço de tempo. Mas então, um belo dia, está-se em Brazzaville e há um outro companheiro nosso, o Fernando Assis… não sei se tu ouviste falar, morreu há pouco tempo, o Fernando Assis era uma figura pitoresca, conhecemo-nos desde pequeninos aqui de Luanda, ele também veio com a mulher e com a filha, e estavam lá sempre em casa, não tinha onde cair morto, primeiro que arranjasse emprego, mas já éramos amigos daqui e continuámos. E um dia, ele aparece-me lá em casa aflitíssimo, não sabia como que se sentar, Fernando, fica quieto, o que é que se passa, é pá deixa-me em paz, deixa-me em paz, até que ele já não podia mais, eh pá, eu tenho que te dizer uma coisa se não eu rebento: o que é? Eu tenho o Zé Eduardo, está lá escondido em minha casa, debaixo da cama. Mas que história é? Isso não é para contar, não vale a pena. Ó Fernando, eh pá,… estou-te a dizer, está lá já há uma semana, eu já não aguento, ele fugiu lá da mata, fugiu, disse que lá já não aguentava mais aquela bodega,, pá, e foi-se esconder, tu sabes que eu tenho uma grande amizade com o Agostinho Neto, se o Agostinho Neto um dia sabe que eu escondi aqui o … caiu nas desgraças dele. O que é que me aconselhas? Eu é que te vou aconselhar? Não sei, ele é que teu amigo, vocês conhecem-se lá da União Soviética, eh pá, não pode ser, há uma semana que está lá, escondido debaixo da cama, não sai, porquê há algum problema, não o problema é que ele diz que não quer mais, está cheio daquilo. A tal crise, um individuo que vem da União Soviética, passou lá sete, oito ou nove anos, a mulher ficou em Brazzaville ou ainda não tinha chegado, porque ela levou muito tempo a chegar. Eu soube que ele estava ligado às
telecomunicações, e depois, vai para a fronteira, mandam-no certamente, ficou lá não sei quanto tempo, o certo é que ele diz que não aguentava aquilo. Mas veio-se esconder-se lá em casa, agora, tens que me dizer o que é que eu faço. Eu é que tenho que te dizer. Eh pá, só sei que isso é uma situação de facto… se o Agostinho Neto sabe disso, não vai gostar. Pois não, pá, mas eu também não vou trair o rapaz, pá. Se ele não quer estar lá em baixo, então ele que vá dizer ao Agostinho Neto. Não sei como é que aquilo acabou, certo é que ele ficou lá ainda quase um mês, escondido na casa do Fernando Assis, porque o Assis estava quase todos os dias, passava lá em casa, estávamos lá a conversar, a tocar viola, piano também. Ele deu lá um recital em Brazzaville quando lá estávamos, de uma música que ele compôs duns versos do Agostinho Neto, “Havemos de Voltar”. Nunca ouviste? Uma versão que ele inventou. Uma beleza. Então, depois não sei, não sei como é que eles desfizeram aquele nó, mas ele ficou mais de um mês escondido em casa. Pouca gente sabe disso, porque ele não tinha nada que contar a ninguém e o Assis coitado, cheio de medo, não contava a ninguém. Não sei se foi o Assis que convenceu o próprio a ir falar com o Agostinho Neto, não sei. Isto é 72. O certo é que ele também desaparece da 2ª região. Eu tenho a impressão que ele vai também para o Leste. Eu depois não soube, mas eu só o volto a ver quando há o Congresso de Lusaka, ele está lá. Ao lado da direcção, mas como figura banal, não está como figura de proa dentro da direcção. Tanto é que eu fico muito espantado quando, isto é 72, depois o congresso dá-se em 74. Em 75 vem a independência, e eu vejo o José Eduardo nomeado não sei para onde. Não sei onde é que ele foi descobrir militância. É que ele não dava nas vistas. Estava muito… fazia uma vida… mas entretanto aparece como um dos principais membros do governo, logo no primeiro governo. Fiquei muito espantado, mas nunca mais tive qualquer contacto com ele. Fui assistir à independência sozinho, com a minha mulher e os meus dois filhos, ali na Praça da Independência. Morávamos na Praia do Bispo, quando eu chego, tinha um irmão que tinha lá uma casa, foi para lá que eu fui. Então, chegou a noite, eu disse à família, eu disse que queria ir para ver a independência. Nós temos que ir lá. Não fui convidado por ninguém mas pelo menos quero ir ver como é que se vai dar a independência. Lembro-me como se fosse hoje. Lá nos
metemos no carro, deixámos um carro um bocado longe, fomos a pé o mais possível, ficámos e assistimos toda aquela cena. Foi assim que eu assisti à independência. A partir daí nunca mais fiz parte da organização. E, foi depois do fraccionismo,, eu acho que foi em 78/79 eu estou na maternidade, e, é, há uma médica, a Tina Dibala, é muito má ela, não tem nada a ver com o marido. É muito má ela, e eu conheço-a desde miúda, de Leopoldville. Aliás, o Dibala casou-se em minha casa, em Brazzaville. Estava eu na mata, a Gina é que organizou tudo, coitada, eu pedia-lhe a ela, atura lá esses meus compatriotas. Mas ela sempre foi muito mazinha. Bom, fez o curso, não sei como nem porquê, isso é outra conversa, então ela é directora ou sub-directora da maternidade. Então não é que um belo dia, eu não era director, era apenas chefe de serviços, de ginecologia na maternidade, recebo um emissário do Ministro da Saúde, na altura era o Coelho da Cruz, até é fácil de ver em que a altura foi, do Coelho da Cruz. Pedia muito a minha presença lá no Ministério. Lá fui eu, ao Ministério, e ele também todo encavacado, Camarada Doutor desculpe, mandei-o chamar, tenho aqui uma coisa para comunicar, faz favor; é, mas são coisas desagradáveis, são ordens superiores que eu recebi, é que o Camarada tem de sair da maternidade, tem que deixar a maternidade. Eu disse, se são ordens, eu saio, estou aqui para obedecer. Pois é, mas eu custa-me imenso, que eu sei que está a fazer um bom trabalho, mas são ordens, compreende? Eu disse, este MPLA está-se mal. Não, nunca cheguei a saber porquê. Então, está muito bem, nem disse para onde é que eu ia nem nada. Disse que tinha de sair dali. Ali estava a fazer muita sombra já, certamente a alguém. Eu era apenas um chefe de serviço, estava a organizar os serviços, e prestava a minha contribuição como médico noite e dia e certamente estava a desgostar alguém. E foram queixar-se certamente ao Agostinho Neto e o Agostinho Neto mandou ordens para eu sair. Nessa altura, eu estava de muito boas relações com uma parteira, a Maria Pimenta Lemos, ela é mulher – está muito doente – de um Lemos que foi Ministro não sei de quê, sem saber ler nem escrever. São todos protestantes, catetes. Mas a senhora engraçou comigo, com o meu trabalho e foi na altura em que estava-se a tentar reabrir o N´Gangula. A Maria Pimenta, que conhecia os meus dotes na profissão, de ginecologista, veio ter comigo, Sr. Dr. não quer ver ajudar a abrir ali o
coiso, mandaram-me abrir mas não me deram médico nenhum nem nada, diz que abre só, eu disse com todo o prazer. Inclusivamente, eu recebi ordem para sair da maternidade, não sei para onde. Venha, vamos fazer daquilo uma grande maternidade. E na verdade, eu é que abri aquilo, sozinho, durante seis meses ou um ano eu fiquei ali sozinho como médico. Só trabalhava com parteiras. Parteiras antigas, que eu conheci e que já trabalhavam lá, eu é que fazia os bancos, não ficava lá, dizia a elas, eu não posso fazer banco todos os dias, senão eu vou morrer. Mas, como eu vos conheço muito bem, cada uma fica aqui, qualquer problema vocês telefonam a qualquer hora do dia ou da noite e assim eu fiz guardas na Maternidade N´Gangula durante um ano, sozinho. Só ao fim de um ano é que consegui arranjar acho que eram dois cooperantes, que eram do Leste. Pronto, então, isso foi porque estavas a perguntar se eu nunca mais tinha assumido nada. Fui abrir o N`Gangula, restaurei aquilo, e ao fim de dois anos, já estava no Ministério o Ferreira Neto, também manda-me chamar outra vez. Ó diabo, não, nós precisamos de abrir um serviço de ginecologia no Américo Boavida, o Américo Boavida no tempo colonial tinha um serviço pequenito de obstetrícia e ginecologia, parece que era muito exemplar mas era uma coisa pequena. Tanto é que ainda conheci um individuo que trabalhou lá, um Amadeu Rita. Nunca ouvi falar mais dele. Acho que ele era português mas ficou aqui muitos anos. Mas então o ferreira Neto queria que eu fosse abrir o serviço, eu disse, está muito bem, então lá saio eu ao fim de dois anos de abrir aquilo, estava um mimo, toda a gente gostava muito de mim, porque não havia muita confusão ainda, mas fazíamos muitos partos. Eu levei para lá uns enfermeiros que eu conhecia da cirurgia do Boavida e da maternidade, a Pimenta também tinha muita influência, que ela é prima do Agostinho Neto, são catetes, protestantes. Ela ficou muito contente comigo, fizemos uma grande amizade. Entretanto, quando se dá essa coisa de sair da maternidade, eu fiquei um bocado triste, mas disse, bom, paciência, já estou habituado. Mas eu falava com vários antigos, amigos, antigos companheiros de luta entre eles o Paulo Jorge, eh pá, mas o que é que se passa, deram ordens para eu sair da maternidade, falo com mais outro, o próprio Iko Carreira, eh pá, mas porque é que não vais falar com o Agostinho Neto. Eu disse, eu vou falar o quê, eu não tenho nada que falar com o Agostinho Neto, a
ultima vez que nos vimos foi no Congresso de Lusaka, nunca mais… pois é mas tens que ir lá falar com ele, vai lá explicar isso, eh pá, tenho mais que fazer. Vai lá, não custa nada, pedes uma audiência… na altura eu andava muito com o Kabulo, que é vizinho do Paulo Jorge. Então, o Paulo Jorge também aparecia, eh pá, já pediste a audiência. Eu? Eu tenho mais que fazer, tu me conheces há muito tempo também, não… eh pá, não custa nada, eu vou pedir a audiência em teu nome. E disse, faz lá o que quiseres… E ele parece que pediu… passou u mês, dois, três, quatro, cinco meses, ao fim de um ano, aparece-me lá uma funcionária, a dizer que tinha uma audiência marcada para o dia seguinte ou dois dias depois. A funcionária lá da presidência: o Dr. pediu uma audiência para o Camarada Agostinho Neto, e ele recebe-o amanhã às tantas horas. Lá no Futungo mesmo. E eu disse, esta agora! Já nem me lembrava, tinha passado um ano, já eu estava no N´Gangula a trabalhar, eu disse isso a um ou dois amigos, na altura acho que o chefe de gabinete do presidente era o Domingos Van-Dúnem, ele não foi qualquer coisa na presidência durante muito tempo? Também andava muito com ele. Eu não sei se foi o Paulo Jorge, se foi o Domingos Van-Dúnem porque eu andava com ele certamente devo ter desabafado, de facto o MPLA tem uma maneira de trabalhar que… às vezes desgosta as pessoas. Então, eu estava ali a trabalhar muito bem, tiraram-me, não pode ser, eu vou falar com o Agostinho, eles também se davam muito bem, porque eram contemporâneos, da mesma idade. Mas ele disse aquilo, eu não liguei mais. Aparece-me aquilo ao fim de um ano, eu sem saber, eu pensei, agora é que eu estou tramado. Também não ir é muito deselegante. Lá meti o meu fatinho, lá fui. Então, mas e ali não é difícil de entrar, naquela altura. Não, não, o camarada diz só que tem audiência marcada, eles lá vão ver o nome. Sim senhor. Lá fui, atravessei aqueles corredores todos que me foram indicando, à medida que eu ia avançando ia encontrando pessoas conhecidas. Então, uma das pessoas conhecidas que eu encontro, foi o Cândido Costa Carneiro, que também era qualquer coisa lá na presidência. Um que, não sei se é advogado, se foi procurador, não, é o irmão mais velho. Jaime Madaleno da Costa Carneiro. Ele trabalhou lá na presidência durante muito tempo. Eu conhecia-o através de uns amigos mas mal. Mas logo que ele me vê entrar, aproxima-se de mim, “Dr. eu não
tenho nada com isso, não fui eu, ? Eu fiquei assim a olhar para o homem, que eu mal conhecia, ele estava a querer dizer que não tinha sido ele quem tinha obstaculizado que o Agostinho Neto me recebesse durante um ano inteiro. Passou um ano, sem exagero. Mas vê só a nossa gente como está a … mas eu fiquei tão parvo. Mas ele disse, Camarada Dr., não tenho nada com isso, não fui eu. Eu fiquei sem saber o que era, depois fui pensar, só pode ser isso. Esta gente está a pensar sei lá o quê. Lá fui entrando, caminhando, lá me puseram numa sala. Passados uns minutos, aparece o Agostinho. Todo satisfeito, ó Vieira Lopes, há quanto tempo! É verdade, eu sei que o Camarada Presidente tem muito que fazer de maneira que… mas houve qualquer coisa que se passou na minha vida que eu achei que lhe devia comunicar. Mas isso já se passou há tanto tempo, que eu já nem me lembro. Pois, é, vamos falar de outras coisas. Temos tanta coisa para falar dizia ele. Temos temos. Então ficámos uma hora e um quarto, é verdade. Falámos de muita coisa, ele disse, não, eu agora já… lembra-me que eu retive no fim da conversa: eu agora já vi bem quem são os meus amigos, quem são os meus inimigos. Quem é que de facto quer o bem desta terra e quem não quer. E eu, digo-te que eu vou tomar medidas. Passado um mês, o homem morre… Um mês antes dele morrer…É verdade. A ultima vez que eu vi o Agostinho Neto, depois de tanto tempo. Nunca mais o tinha visto. Uma conversa interessante. Recordámos tudo, não é, e “eu já vi que tem muita gente aqui que não… eu já vi e vou tomar medidas…”. Não teve tempo… Disse-me ele isso. Conheci o Nito Alves de passagem lá no Congresso. Foi uma das coisas que nos irritou profundamente. O Agostinho aí não agiu bem, acho eu, era preciso ler um relatório de actividades que tinham-se passado desde a conferência de 62, já estávamos em 75, 12 ou 14 anos, nunca mais tinha havido nada, havia que fazer um relato disso tudo, dessas actividades todas e se possível, um balancete das contas deste movimento. Este movimento viveu estes anos todos, tem contas , fez contas, fez dividas, fez despesas, recebeu receitas. Numa conferência era bom expor isso tudo. E era o que nós pensávamos. Que devíamos começar por aí para depois discutir outras coisas. Ele, em vez de ser ele a fazer isso, arranja lá um relatório qualquer e é o Nito Alves que vai ler isso, em nome da direcção e do presidente da direcção. Nito Alves que não sabia de nada, que estava
aqui, nem sequer estava na 1ª região, ele não esteve na clandestinidade aqui em Luanda com os outros. Que eu saiba. Naquela altura, pelo menos. E ele vai, nós ficamos todos muito espantados, mas como é que o Agostinho Neto põe um elemento que é desconhecido de tudo e de todos a ler um relatório da direcção. Isto é uma falta de respeito, de consideração, e ele não está a dar importância nenhuma a este Congresso. Para ele, isto… é claro, levantou-se logo um burburinho, os do Leste não estavam de acordo, eram os da Revolta Activa que não estavam de acordo… e depois, ele apareceu com um tom raivoso próprio dele. O Nito Alves foi assim que o vi. Arrogante, raivoso, não se percebia bem naquela altura contra quê… depois fui seguindo a trajectória do homem, logo que ele entrou para o Governo, e ficou célebre um discurso que ele fez não sei aonde, em que ele dizia que, como é que era, “a democracia só podia entrar em Angola, quando os brancos, os pretos e os mulatos fossem varrer as ruas da cidade”. Eu disse, este homem de facto, esta politica do MPLA está a baixar… Mas nunca tive nenhum contacto com ele. Nem antes nem depois disso. O Hélder Neto conheci-o em Argel naquela minha curta estadia de um ano e meio em que eu lá estive, ele apareceu lá. Ele não se integrou totalmente. Eu saí, deixei-os lá, mas o tempo que eu lá estive, não me pareceu que ele tivesse um interesse grande em se integrar. Aliás, o grupo encontrou dificuldades de todos os lados. Uns porque diziam que aquilo estava muito branco. Outros, porque, eram elementos que vinham de muitos sítios, uns acusados de ter pertencido à Fua, de ter pertencido não sei aonde e, portanto, não se queriam ligar. Então, foi assim que a gente encontrou um bocado de dificuldades no principio. Argel,. Setembro de 63. Fiquei um ano e pouco. Eu regressei em Dezembro de 64. Não me lembro do Piricas. O Omar sim. O Omar lembrame dele. Henrique Abranches fazia parte do núcleo central do Centro de Estudos Africanos. Eu já o conhecia desde os tempos de liceu aqui em Luanda. Tínhamos sido colegas. Depois eu segui para Portugal e nunca mais o vi. Voltámo-nos a ver justamente em Argel. Fizemos uma grande festa e ficámos muito amigos desde essa altura. Eles ainda ficaram mais amigos meus, porque fui dos poucos indivíduos que, entrou sem pôr condições e sem preconceitos. Era um grupo de indivíduos que queria trabalhar para Angola, por Angola, eu nunca grandes problemas de preto,
mulato, branco, sinceramente, então nem sequer via isso, e entrei de cabeça e fiz parte desde o primeiro momento do núcleo principal. Não sei, por isso talvez, acharam essa minha atitude muito digna. Quando eu saí para vir para aqui para a mata, eles ficaram muito tristes. E, enquanto eu estive aqui na 2ª região, de vez em quando mandavam-me umas mensagens. Para eu não me esquecer deles. O Abranches até fez uma vez um poema, não sei onde é que isso está, com metáforas… manda-nos um bocadinho das espinhas do peixe que sobrar… Mas uma coisa interessante, eu tenho isso tudo, por aí… Com o Neto não, não se falou em lugares. Ele disse-me só que já tinha feito um balanço, e que ia tomar medidas, tinha visto quem eram os verdadeiros nacionalistas, patriotas, quem eram os amigos, quem eram os inimigos. E que ia tomar medidas. Depois, infelizmente, nem passou um mês, ou passou um mês, e ele morreu. Do Belli Bello nós fomos amigos, com uma diferença de idade muito grande, mas o Belli Bello a primeira vez que eu o vejo foi em Leopoldville, já lá estava o Belli Bello. Ele não podia ter mais que 18 anos, suponho eu, naquela altura. 18, 19, enfim. Mas, ficou lá muito pouco tempo e é daqueles também que parte para estudar. Para a Checoslováquia. Entretanto, na Checoslováquia, ele não era parvo nenhum, bastante esperto mesmo, ele conseguiu impor-se e chega a Vice-Presidente da União Internacional dos Estudantes que era uma organização naquela altura fortíssima a nível mundial. Como VicePresidente, era como se fosse vice-presidente do país. Ele tinha honras e alojamentos, as comodidades todas que tem um membro do governo. Vice-Presidente da União Internacional dos Estudantes. Com esse titulo, ele percorre o mundo. E ele sabia fazer amizades, foi aí que ele fez amizades com muitos antigos estudantes africanos que estavam em França da (não se entende) mais tarde a regressar dos seus países, tornam-se membros de governos, ele continua a manter as mesmas relações de amizade e faz grandes amizades sobretudo que eu saiba, porque vi, com os governantes congoleses de Brazzaville. Eu acho que ele chegou mesmo a ter um passaporte diplomático dado pelo CongoBrazzaville. Entretanto, ele também integra a Revolta Activa. É daqueles indivíduos que estão lá fora, e que nós escrevemos, vem, não é num dia nem numa semana, e quando eu estou em Brazzaville ele aparece-nos lá
em Brazzaville, porque a União Internacional de Estudantes realizou uma Conferência, foi patrocinar uma conferência de estudantes angolanos que se realizou em Brazzaville. E ele, aparece lá. Nós encontrámo-nos novamente, ficámos muito tempo juntos, muita conversa e ele ficou sempre ligado a mim e aos indivíduos que me rodeavam, por isso é que foi fácil, quando foi da Revolta Activa, nós contactarmo-lo. Porque ele estava ao corrente de tudo o que se passava. O Videira também sempre esteve connosco. Ele fugiu connosco. O Jota. Onde é que o Jota está nessa altura. O jota não está em Portugal. Eu conheço o Jota já eu estava em Brazzaville e acho que ele aparece num grupo dos estudantes fugidos não sei donde, que se vieram integrar no MPLA. E então, eu, como médico em Brazzaville, é que dava assistência aos militantes que iam chegando e que era para fazer umas análises, foi aí que acho que conheci o Jota. Depois, o Jota vem parar, encontramo-nos em Brazzaville outra vez. É aí que ele namora com a Amélia. A Amélia já estava em Brazzaville. Também não me lembra como é que ela foi lá parar. Entretanto, a Amélia sai para ser operada lá fora. Depois, quando volta, estão os dois lá, e são os dois integrados na Revolta Activa. Os dois. Do Viriato, eu sempre disse a esse propósito, que aquilo era uma aliança que ele tinha feito contra-natura. Nunca acreditei, e eu não militante do Viriato, mas nunca acreditei que o Viriato pudesse ficar ali muito tempo. Porque eu conheci a UPA que eu encontrei, e eles de facto, não davam hipótese nenhuma. Um individuo intelectual como ele, pudesse ser, sem militante quando mais dirigente. Entretanto, ele quando sai do MPLA, sai ou é expulso, integra-se lá na FNLA, mas aquilo não dura mais que três meses. Não dura mais que três porque quando eu vou para Argel, em Setembro de 63, ora, essa grande crise dá-se ao reconhecimento do Grae, dá-se a nossa conferência em 62, entretanto ele não se integra logo. Está um tempo no ar, passados dois ou três meses integra-se na FNLA. Ele talvez tenha estado lá cerca de um ano. Mas em Leopoldiville ele não está mais de três meses. Há muita gente que diz que a entrada do Viriato terá condicionado a saída do Savimbi. O certo é que o Savimbi, eu quando regresso de Argel em 64, Dezembro de 64, eu vejo o Savimbi em Brazzaville. Ele já se tinha separado da FNLA, isso é Dezembro de 64, portanto, isso coincide de facto com a entrada do Viriato. Coincidência ou
não… É que o MPLA estava a fazer namoro ao Savimbi para ele entrar para o MPLA. Eu chego em Dezembro, e ele devia já lá ter estado um ou dois meses antes. Porque o Savimbi era amigo do Pai do Nendela, do Lihauka, de quem eu era muito amigo. Então, é numa visita que eu faço em Dezembro, quando chego, ao Lihauka, que eu me cruzo com o Savimbi. De propósito, simples coincidência, não sei. A entrada de um coincide com a saída do outro. Daquele grupo dos cem que saíram, alguns foram para a UNITA. O Jerónimo Wanga, mas tem mais. Ele sai connosco de Portugal, mas não era o único. Há um outro, que vai para a FNLA. Ele era casado com uma jovem moçambicana que eu também conheci muito bem, desde os tempos lá de fora. Não me lembro agora do nome dele. O Mateus Neto! Acho que é assim que ele se chamava. O Jorge Valentim, se não estou em erro, também sai connosco. Mas sai com o grupo dos vinte e um que vai para a Suiça. Ele também vai directamente para a UNITA. Mas tem mais indivíduos que foram para a UNITA. Isso agora só vendo a lista. A lista deles todos. Quando se dá esta fuga, os que estavam fora que apoiaram foi também o Edmundo Rocha, o Desidério e um outro individuo que estava na Bélgica. Ele é muito falado nas cartas que o Viriato escreve para o Lúcio, e o Edmundo Rocha também o retrata no livro que ele faz do Viriato. Esqueço-me agora do nome dele. Então os três é que faziam toda essa movimentação.