Atual 1 - 2013

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Atual - Segunda dentição - número 1 setembro de 2013


atualrevisitada

Quatro anos depois dos dois primeiros números da Atual, estamos de volta para a rua. Uma rua efervescente de vozes & visões. E reproduzimos novamente o editorial da primeira Atual, de maio de 2009, que acreditamos explica nosso projeto e atualidade atlântica: “O Brasil viveu nos últimos 15 anos uma renovação do pensamento sobre arte e cultura, realizada por novos autores que encontraram em revistas independentes e especializadas o espaço para uma reflexão crítica e atuante. Publicações impressas ou virtuais como Azougue, Caramelo, Carioca, Contracampo, Cinética, Número, Sexta-feira, Sinopse, Sobremúsica e Vintém conquistaram importância central no debate, tornando-se referências de qualidade e intervenção cultural. Mesmo com baixas tiragens e distribuição local, influenciaram de maneira decisiva as artes para as quais se voltaram. Nessas revistas foi possível a criação de uma linguagem que, ao se encontrar entre a produção acadêmica especializada e a agilidade da grande mídia, permitiu a produção de textos que uniam fôlego crítico e acessibilidade aos leitores não-especializados. No entanto, as revistas se restringiam a áreas específicas, faltando a constituição de um espaço que permitisse a interação entre as reflexões e as práticas das diveras áreas artísticas e o pensamento contemporâneo. É no sentido de preencher essa lacuna que criamos o tabloide ATUAL, com o intuito de mapear e refletir a produção cultural contemporânea, com uma perspectiva multidisciplinar que visa a interação entre as diversas manifestações culturais. Norteiam a criação e produção de ATUAL os seguintes pontos: GRATUIDADE - desde o surgimento da internet como veículo privilegiado de divulgação cultural, as novas gerações se acostumaram com a ideia de que conteúdo é gratuito. Longe de ser um problema, essa nova característica dos produtos culturais pode ser utilizada como uma força, a partir da substituição de um produto pago, restrito, pelo valor de circulação. Um produto gratuito não compete consigo mesmo, não precisando se restringir a meios comerciais. Assim, pode-se distribuir integralmente o seu conteúdo em diversas mídias, multiplicando-se o acesso. O conteúdo integral de ATUAL poderá ser acessado na página www. oultimojornaldaterra.com.br. ATUAL visa utilizar-se dessas novas características. As revistas culturais no Brasil tradicionalmente utilizaram a ideia de trabalho gratuito, voluntário, para produto pago e restrito. Acreditamos que seja a hora e a possibilidade de invertermos essa perspectiva, criando trabalhos remunerados para produtos gratuitos e abertos.

Atual - Segunda dentição - número 1 setembro de 2013 imagem da capa Edu Monteiro Azougue Editorial issn: 2318-1834 2

INDEPENDÊNCIA - ao realizar um produto de baixo custo e grande circulação, escapando dos espaços tradicionais de distribuição (bancas de jornal, livrarias) e assim não precisando competir pela atenção do seu público alvo com outros veículos, ATUAL cria a possibilidade de independência do seu conteúdo, permitindo um trabalho para além da agenda de eventos e lançamentos das grandes empresas e que se mapeie e reflita livremente sobre as manifestações culturais, sem se ater a nomes e figuras já autorizados e celebrados pela grande mídia.

Editores Camila do Valle César Oiticica Filho Daniel Caetano Edu Monteiro Frederico Coelho Guilherme Zarvos Heyk Pimenta Maurício Barros de Castro Pedro Kosovski Sergio Cohn Projeto gráfico original e logo Elisa Von Randow Editor de arte Tiago Gonçalves

LIBERDADE - os colaboradores de ATUAL não terão suas atuações restritas às suas áreas originais de reflexão/atuação. Este deslocamento busca não apenas arejá-las esteticamente, como promover debates amplos e trocas de informações valiosas para a criação de políticas culturais mais abrangentes, informadas pelas especificidades das diversas áreas contempladas. Cada colaborador terá um espaço aberto na revista, que pode ser ocupado com total liberdade de temática ou conteúdo. Para isso, serão utilizadas duas formas de colaboração: 1) Colunas: o colaborador torna-se um colunista fixo da revista, escrevendo textos mensais, com tamanho fixo. 2) Curadoria: o colaborador (ou um coletivo de colaboradores) recebe o direito de utilização de um espaço determinado na revista, podendo manifestar-se livremente nesse espaço, com imagens (em preto e branco) e textos. Assim, ATUAL visa, no momento em que o Brasil vê o (res)surgimento de coletivos culturais, o diálogo aberto entre as diversas áreas, o deslocamento de perspectivas e experiências e a liberdade de forma e conteúdo.”

Atuais Abrazço - Gonzalo Aguilar Acrobata - Demetrios Galvão e Thiago E Ah Arena dos Bodes - Mariana Patrício e Pedro Kosovski Confabulações - Eduardo Sterzi Corpo Geral - Heyk Pimenta Cultura & Barbárie - Alexandre Nodari e Flávia Cera Era o Dito - Marcelino Freire Folha de Eva & Adão - Guilherme Zarvos Impostor - Ronaldo Bressane Impressões Clandestinas - Maurício Barros de Castro Objeto Sim Objeto Não - Frederico Coelho Pano de Fundo - Alexandre Santini Putaria Enamorada - Felipe Bragança Quebra Pedra - Daniel Caetano Rádio Comum - Cezar Migliorin e Fernanda Bruno Riocorrente - Paulo Almeida Sobre Imagens & Afins - Patrícia Gouvêa


Naval ou um dia que nunca mais esqueci F C red

II No meu ônibus escolar, dirigido pelo seu Eduardo e com a auxiliar-cunhada chamada dona Olga (ou sua irmã, Dona Carmem, esposa de seu Eduardo), tinham crianças de 5/6 anos até os que estavam terminando, entre 16/18 anos. Meninas, meninos, todos juntos. Foi ali que ouvi pela primeira vez meninos

mais velhos narrarem no fundo do busum, de forma marrenta, deslumbrada, susurrada e feliz suas aventuras sexuais em escadas e matagais pelas amplas dependências do grande Colégio Cenecista Capitão Lemos Cunha. Também foi onde tive namoradas de um único beijo roubado na inocência da infância, onde vi brigas físicas por causa de notas de dinheiro e “honra”, onde descobri os estereótipos sociais (o negro chamado de “negão”, o branco de “branquelo”, o menino educado de “mané”, a menina liberta de “piranha”, o rapaz mais calado de “viadinho”, a menina de óculos de “quatro olhos”, o gordo de “rolha de poço” e alhures). Foi onde aprendi códigos fundamentais da malandragem nessa sociabilidade, como, por exemplo, não dizer em hipótese alguma para outra pessoa o que lhe disseram sobre ela, não ser leva-e-trás, não explanar papo de “sujeito homem” etc. Ou seja, aprendi desde pequeno que X-9 não se cria em lugar nenhum, muito menos entre a rapaziada suburbana anos oitenta. III Um dia, um dos rapazes mais velhos do ônibus (provavelmente na casa dos 16 para 17), não apareceu. Ele se chamava Naval, morava na região entre Higienópolis e Bonsucesso, região do famoso colégio Soldadinho de Chumbo. No subúrbio, ao menos na área da Leopoldina, existiam três colégios que eram espécie de colégios para uma elite: Pio XI, Relvas e Soldadinho de Chumbo. O nome do rapaz era Naval. Nunca me lembrei o nome original dele. Apenas Naval. Creio que era porque ele se preparava para a escola militar, ou tinha pai do exército, algo assim. Seu cabelo sempre reco, negro, de óculos, crucifixo no pescoço, uniforme impecável, olhar tranquilo. Ao contrário do apelido, Naval era de plena e absoluta paz. Como desde moleque sempre fui uma pessoa tranquila, Naval era um cara mais velho que eu gostava de sentar do lado ou ficar perto durante as viagens do ônibus. Um dia, portanto, Naval não apareceu. Ao chegarmos na porta de sua casa para o pegarmos, uma pessoa compungida nos avisa o absurdo: ele estava morto. O absurdo da morte de um jovem como ele foi muito maior porque ele morrera estupidamente por uma bala

perdida. Uma troca de tiros entre bandidos e polícia o matou, nas imediações da Igreja São Geraldo. Era 1983 e Naval, um jovem, negro, do subúrbio, perdeu sua vida no confronto armado carioca. Eu tinha oito anos e tinha sido apresentado ao dado estatístico mais cruel da nossa sociedade, o dado que não se cansa de permanecer como regra: jovens negros e pobres são as maiores vítimas de mortes violentas no Brasil. Naval foi a minha iniciação prática no horror desses dados. O que eu nunca mais me esqueço desse dia foi o impacto que a notícia causou em todos no ônibus. Eu mal sabia o que era a morte. Não tinha perdido ainda nenhum parente próximo ou amigo, não refletia sobre a finitude da vida nos meus oito anos. Recebi a notícia, creio, como se fosse um recado opaco da perda de uma referência. Um amigo nosso, Carlinhos, como muitos outros, choravam copiosamente. Carlinhos, provavelmente com seus quinze anos, comia todos os dias no ônibus uma maçã e depois soltava o arroto mais gigantesco que eu já ouvira. Carlinhos morava do outro lado de Olaria, em uma casa que, para nossas perspectivas off-Zona Sul, era de rico. E Carlinhos chorava copiosamente na sua brancura magra de olhos verdes. Provavelmente desajeitado e sem saber o que dizer, balbuciei ao seu lado a seguinte frase: “podia ter sido outra pessoa no lugar dele”. E foi aí, nesse momento, que ele disse a frase que nunca mais me esqueci – e que foi, na verdade, o motivo desse texto. Carlinhos disse entre lágrimas, sentado no banco alto do ônibus do seu Eduardo, rumo ao colégio: “Não! Não podia ter sido ninguém. Ninguém pode morrer assim”. Eu nunca mais esqueci disso. Quando vemos as mortes absurdas do século XXI, mortes por desaparecimento promovido pelo Estado, morte por armas químicas de crianças, mortes por envenenamento de comidas e águas sujas, mortes por defesas de ideias e culturas contra interesses do capital, eu sempre, sempre, lembro de Naval e da frase de Carlinhos. Ninguém pode morrer assim. Toda vida humana – e aqui vai a dose de vitalismo, de catolicismo, de deísmo que posso ter contida em mim – é preciosa e inestimável. A morte, assim, fora do ciclo natural da espécie, seja de quem for, é uma estupidez.•

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I Quando eu tinha entre seis e oito anos (1981/83), morava na Penha e estudava na Ilha do Governador. Isso fazia com que eu cruzasse diariamente a Zona Norte dentro de um ônibus escolar até chegar na minha escola, do outro lado da baía da Guanabara. Passei três anos da vida assim. Minhas manhãs iam da Vila da Penha até Bonsucesso, do Engenho da Pedra até a Estrada do Galeão, sempre desaguando na Avenida Brasil. Esse tipo de transporte escolar cria uma coesão coletiva, pois quem anda de ônibus sabe que, se você pegar a mesma linha, no mesmo horário, todos os dias, você vê sempre as mesmas pessoas. E como somos animais gregários, elas começam a, de certa forma, desenvolver micro comunidades dentro do veículo. Quando morava na Freguesia durante os anos 1990, eu tinha que pegar diariamente o 240 (Cidade de Deus-Praça XV) para ir ao IFCS, no Largo de São Francisco. Eu precisava pegar o mesmo ônibus, entre 6:00 e 6:15. Se não fosse esse, eu nem conseguia entrar – as roletas eram pela porta de trás e tinha um espaço que fazia com que pudéssemos entrar no ônibus e só pagar a passagem na hora de saltar. Era esse, aliás, o espaço poético-transgressor do famoso calote. Nesse 240 repetido todos os dias por meses, por anos, tinham grupos que já tinham sua relação própria, sua dinâmica autônoma. O grupo que jogava sueca em pé, o grupo que comemorava os aniversários, os cupinchas do motorista e da trocadora que sempre entravam pela frente sem pagar, a menina que tinha o direito de viajar sentada no capô, ao lado do motorista (nessa época os ônibus tinham capôs de motores dentro, e não fora do veículo). O transporte público, definitivamente, não é apenas uma questão econômica.

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Noites de São João ou Lékson Fireworks Love Song F B elipe

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Quando eu for velho, pensava Lékson, algum moleque mais moleque que eu vai entrar correndo pela casa com a mão pegando fogo e colocar abaixo o barraco onde eu achava que era rei? “Eu vou quebrar tudo, tio. Eu vou.” Lékson (“filho de Lek lá pras bandas de Estocolmo”) tinha os olhos muito pretos e só os mais atentos viam qualquer brilho brotar em meio ao pano grosso da blusa de lã que ele tinha enrolado no rosto logo após alguns homens com raiva (ou muita raiva) terem quebrado com chutes a vitrine das Lojas Marisa ali no centro da cidade. Com a lã esquentando o rosto, no periscópio da noite, Lékson corria, senhor de si pela Avenida Senhor dos Passos, só os olhos visíveis, indo em direção à Prefeitura da cidade de onde se ouvia o som de muitas vozes, alguns latidos, algumas explosões. “Para onde é o protesto, tio? Por onde ele vai?” Tinha 14 ou 15 anos. A única vez que tinha olhado feio para um policial tinha levado um tapa de mão fechada na cara – mas não gostava de lembrar. Seu irmão mais velho, BobBoy Chapéu de Fogo, costumava dizer que homem de verdade resolve as coisas na hora – não engole, não guarda, não espera: “Zap!” BobBoy Chapéu de Fogo tinha no braço a tatuagem de um urso afeminado em homenagem a uma antiga noiva com quem as coisas não haviam corrido muito bem, e no outro braço, uma caveira pirata inspirada em um desenho dos anos 90 de quem ninguém mais lembrava – só ele. BobBoy tinha também dois dentes falsos 4

e uma namorada ladra, ex-traficante do Morro do Boréu, desempregada desde que o tráfico tinha sido tirado da mão dos pretos e colocada na mão da máfia branca da Polícia Paralela Carioca (os “Paracacá”) e que, por fim, tinha feito o coraçãozinho de Lékson pela primeira vez pensar em seu irmão bem longe, bem pra lá da casa do caralho. Quando os “Paracacá” tomaram o morro com armas vereadores, Gleisy-N, o nome dela, teve que deixar o lugar junto com seus cinco irmãos. Foi quando BobBoy Chapéu de Fogo a pediu pra ficar – “Fica, porra!” – e ela desagarrou da família pra sempre, ficou feliz alguns dias e começou a roubar… Depois largou o roubo, encontrou Jesus, depois desencontrou Jesus, criou um grupo de dançarinos do Passinho e fez sucesso até mandar tomar no cu um apresentador da TV que havia pedido para ela mudar seu nome artístico para algo mais esté-ti-co e foi excluída de um concurso em plena rede nacional de radio e TV. Daí voltou pro morro, pensou que estava grávida, leu sobre o levante popular em um um site de notícia populares e, caótica, rasgou o rosto do namorado com as unhas, partindo pro Estácio querendo gritar. Quando Lékson chegou e viu aquele mar de gente cercando o prédio preto-e-espelhado da dita e dura Prefeitura, alguma coisa muito forte e muito séria começou a suspirar no seu ouvido – os dois ouvidos dentro das orelhas pretas. Não era a morte, porque a morte deixa a gente com a costela arrepiada e ele já tinha sentido isso antes. Não era medo, porque o medo deixava ele de boca seca e ele ali estava mais pra salivando… Lékson, que ainda sonhava ser guitarrista de parada de caminhão, como seu finado pai, Bode Espiado, sentiu seu coração de 16 ou 15 anos ou 14 anos jorrar e parar e depois acelerar e jogar pra fora aquele zilhão de pedacinhos de gente que era ele e eram todos ali, como se cada pedacinho de gente fosse um pedacinho de sangue (o sangue da gente é feito de pedaços vermelhos peque-

nos boiando em círculos, não sabem?). E cada vez que o coração de Lékson batia, mais uma vez o povo gritava, e gritava e gritava. E o mundo era tudo: Tinha umas patricinhas de nariz de palhaço e com cheiro bom de talco, tinha uns mastodontes tatuados que pareciam estar ali pra puxar a cintura das mocinhas de rabinhos empinados, mas tinham também uns moços e moças muito estranhos, uns velhos saídos dos anos 70 com os olhos brilhando muito e gritando coisas em que Lékson, sem pensar, sem precisar pensar muito, acreditava ou das quais, digamos, achava bossa em ouvir. Coisas sobre a cidade ser das pessoas, sobre aquele prédio grande preto e espelhado ser das pessoas, sobre aqueles policiais de preto da Polícia Mandatária Carioca (os “Pómandácá”) estarem trabalhando pro lado errado do grande valão de ferro e fogo… e de tudo aquilo. No meio da multidão, Lékson se esgueirava flexível como uma serpente que soubesse rir, sagaz como um camundongo e atento como alguém que já levou muita porrada pra obedecer. Não queria só seguir o grito dos outros porque obedecer nem mesmo à mãe. Queria chegar perto, olhar nos olhos o dragão. A cara tinha olhos naquele bicho de vidros espelhados que cuspia homens fardados, cães, cavalos e flor alguma? “Vamos invadir”, gritou um. “Fora Senhor Tal”, gritou uma turba. “Fora Senhora Tal.”, gritou um grupo um tanto menor. Era um vendaval de pedacinhos de ódio que nem num mar de Sucrilhos sabia caber na boca mais aberta e forte. Só mesmo quando parou na frente da linha policial parada diante do prédio prateado e preteado foi que Lékson tirou do rosto a cobertura de lã das Lojas Marisa e pensou: Eles tinham muitos cavalos e poucas reações. Um deles, de capacete de vidro, xingava entre os dentes a multidão que só ouvia a si mesma. Alguns fogos, lançados por alguém na turma, estouravam no ar lá em cima e Lékson olhava e olhava e olhava… “Eu vou quebrar tudo, tio. Eu vou.” E então outros fogos estouraram, agora mais perto dos “Pómandacá”, fazendo uns reflexos bonitos no capacete de ódio que eles tinham na cara como se a cara deles fosse um pedaço de “não-não-não-não-não”. Um deles chegou a assustar algumas moças com seus olhos vazados pro breu, e o reflexo da luz criou um efeito confuso nos vidros dos homens fardados que se assemelhava a um arco-íris sem cor alguma como os arco-íris daqueles filmes que nunca vi.


Gleysi-N, nesse devir meio maluca meio Mortal Kombat, não corria nem que as vacas nos tossissem. BobBoy, no chão desacordado, mas longe de Lékson, sangrava de vermelho enquanto era difícil não ouvir o helicóptero da TV a cantar suas verdades circulares. E Lékson seguia lá, diante do fotógrafo com uma marca redonda de bala no meio da testa. Pegou os dois pés dele e começou a puxar enquanto alguns gritavam nomes de partidos, outros gritavam nomes de Jesus (tem alguns nomes o dito) e outros arrotavam silêncio. Tirou o fotógrafo da linha de tiro, pegou sua câmera, pensou em roubar, depois desistiu. Já subiam tochas de fogo em sacos de lixo. Os gritos já tinham se perdido e agora pareciam gritos de susto. Gleysi-N e um outro grupo de meninos e meninas pretos como ela andaram contra um carro blindado que agora aparecera para assustar a multidão. O carro blindado era feito de pedaços de guitarras muito velhas, restos de Robôs de seriados japoneses e pedaços do marca-passo de um político conhecido por só morrer quando já estava morto. O carro recuou. BobBoy foi recolhido do chão por um grupo de homens fardados que lhe deu voz de prisão. Lékson correu no meio da pimenta, do gás, da fumaça e dos gritos ressonantes. Um rapaz magricela, mulato, usando uma máscara de bate-bola, passou carregando uma bandeira da cidade do Rio de Janeiro em chamas e, tentando cantar o hino da nação acabou cantando um samba. Lékson queria saber do irmão: BobBoy Chapéu de Fogo já não estava ali. Lékson ouviu o helicóptero dos Pómandacá e o outro, da TV, sobrevoando o local. Lékson xingou os dois porque não tinha helicóptero. Uma bomba explodiu ao lado do seu pé e um estilhaço fez um corte leve na altura da cintura como se fosse um bambolé de sangue vivo. Os olhos pretos brotavam no meio da lã com muita raiva e uma dor que eles escondiam.

“É tudo inútil”, gritou um. “Vamos embora”, gritou outro. “Eles são muitos”, gritou uma moça, de 42 anos, jeito de professora primária, com o rosto coberto de sangue. Usava uma camiseta com o rosto do Lula, surrada, de 1989 – tempos em que Lékson não existia ou se existia ainda estava em outra galáxia. Bum! Bumbum, passou uma moça bonita. Bum! Outra explosão. Bombas de gás chutadas para dentro do canal da Presidente Vargas. Moços e moças chorando. No meio da chuva, Lékson pulou um muro que dava para um terreno baldio onde antes havia o barracão de uma escola de samba e que hoje abrigava um vazio futuro. Ficou ali ouvindo a barulheira lá fora e se fumasse cigarros ia tatear por algum. Do meio da mata alta, do terreno, viu aparecer um homem magro, mulato, de uns 70 anos, cicatriz de oncinha, que lhe estendeu um copo d’água e um pano todo sujo de vinagre pra voltar a respirar. O velho ali era vizinho do rei. Lékson teve vontade de chorar por causa do gás porque do coração ele recebia poucas novas. Olhou pro alto e viu uma repórter da TV em um helicóptero. Pegou uma pedra e jogou pro alto, com raiva porque não tinha um helicóptero. A pedra voltou, tudo volta?, e lhe machucou o ombro esquerdo sem nenhuma gravidade. De olhos fechados, com dor mas ainda muito mais com raiva – Lékson ouviu a voz de Gleisy-N chamando por seu irmão e a voz de Gleisy-N assim no breu da fumaçona branca parecia ainda mais bonita e ainda mais pró-

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No meio da multidão, um homem grande, tatuado, sem camisa, andava trôpego cuspindo e xingando até Jesus. Lékson logo reconheceu o que lá nas peladas no campo atrás do morro eles chamavam de um “Grande Bosta Universal”. Pois o “Grande Bosta Universal” parecia determinado a criar luta e mexeu com as meninas, e peitou um negão, e beijou o cavalo de um dos Pómandacá como se fosse levá-lo pra casa… Mas Lékson viu quando o negão puxou o “Grande Bosta Universal” em um mata-leão de dar inveja no Zangief, e o levou pra fora da multidão, xingando o dito de maldito e dizendo que estava mesmo ali pra atrapalhar a vida toda. Foi quando um novo estouro aconteceu, agora bem perto dos olhos de um dos homens fardados e mal penteados dos Pomandacá!... Todo mundo se assustou, correu, urrou, suou e perdeu. E Lékson viu, há uns dez metros, seu irmão BobBoy Chapéu de Fogo de mãos dadas com sua Gleisy-N, e viu também quando a primeira bomba de fumaça voou no ar e foi bater bem no peito dele – explodindo fumaça de gás como aqueles bichos do cinema (é Harry Potter?) e fazendo por alguns segundos o corpo grande de BobBoy desaparecer na multidão. Gleysi-N não chorou. Ela era dona de perder amor pro mundo. Lékson tentou se aproximar mas daí todos já estavam correndo. E outra bomba explodiu, e o céu acordou, e ninguém mais estava nas ruas apenas pra sonhar. E Lékson, que não era rápido, mas como já dito, era sagaz, foi desviando da chuva de bombas como se antes fosse melhor a tal chuva de canivetes. Viu os cavalos passando, viu os cachorros correndo, viu as mocinhas com cheirinho talco chorando de dor. Escondeu de novo o rosto com a camisa de lã da Marisa e correu. Diante dele, todos fugiam. Alguns poucos, entre eles Gleisy-N, jogavam pedras na direção dos homens de farda como se já estivessem mortos há umas duas gestações. As meninas de talco sumiram, os rapazes musculosos pularam pra longe, o Grande Bosta Universal desapareceu como desaparecem os Grandes Bostas Universais nessas horas. E o céu tava claro. E Lékson viu o instante em que o Negão levou um tiro de bala de borracha no meio do peito e caiu feito um panda. Depois viu um fotógrafo de barba fina levar um tiro de bala de borracha no meio da testa e desmaiar.

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xima de um Deus sem calça a nadar pelado num riacho desses que existem bem pra lá de Cascadura. Gleisy-N não ouviu resposta, Lékson não ouviu resposta também. BobBoy Chapéu de Fogo estava morto? Lágrima não veio mas o velho mulato abraçou Lékson e os dois ficaram ali sem precisar chorar. As costas do velho eram cheias de cicatrizes horríveis como uma rede de pedaços de carne faltando e se envergando. A noite só ficou silenciosa depois de duas horas mas o cheiro de vinagre ainda estava na boca de todos. Quando Lékson abriu os olhos, o velho estava morto mas seu corpo não tinha nenhum machucado e Lékson ficou achando que estava um pouco louco de ter visto aquele corpo todo cheio de pedaços de pele rasgada. Lékson fechou seus olhos, pegou um último copo de água, desagarrou-se do velho e saiu correndo pela Presidente Vargas em direção à Lapa, a Lapa, a Lapa. Precisava encontrar Gleisy-N. Precisava salvar seu irmão. Precisava entender porque sua boca tinha salivado tanto quando sentiu cheiro de sangue, como se ele estivesse apaixonado por outra ou, porque não, descobrisse-se na altura de seus 15 ou 14 anos, um mero e banal lobisomem vampiresco de best-seller juvenil. Era a primeira vez naquela noite que Lékson não tinha vontade de gritar. E ficou só pensando em versos de uma música que se fosse músico ia inventar. E entrou mais uma vez pela Senhor dos Passos, não mais senhor de si, não mais coração do tamanho da avenida, não mais melhor jogador do campeonato, não mais esperto que ninguém, nem mais burro também e só sentindo saudades do irmão. Em um momento de paz, Lékson achou um resto de cigarro no chão, pediu pra moça da pipoca acender. Viu a fumaça subir na altura da Cinelândia subir, pensou que nunca tinha entrado em um cinema mas na Cinelândia já tinha se apaixonado umas três vezes, tragou o cigarro velho com gosto de cu, viu um ônibus abandonado com um cartaz escrito “Isca”, viu um senhor de 50 anos voando de bicicleta para ajudar um grupo de estudantes encurralados com seus caderninhos em uma praça, viu um Bob’s cercado pelos Pómandacá, com clientes e funcionários vomitando pelo chão aquelas coisas meio plásticas que eles comem lá, viu um casal correndo e rindo – ele puxando ela pela mão.

Viu uma bandeira do Brasil. Algumas bandeiras vermelhas queimando no ar. Um homem vestido de palhaço. Um homem de preto apontando uma arma pra cabeça dele dizendo assim: “Corre, pretinho. Ou corre ou pode se deitar.” E Lékson se deitou no asfalto achando Deus um lugar e não um sujeito de barba, achando os políticos uns bichos raivosos piores que Deus, e achou que ia morrer ali, pensando em Gleisy-N e que era dono também daquele prédio preteado e espelhado e que um dia, no dia seguinte, ia renascer que nem o amor dos homens que a sua vó dizia, e ia invadir o apartamento do homem-forte, enquanto uma turma de intelectuais nas ruas gritava seu nome como vítima do mundo, e ainda fantasma Lékson ia foder, foder muito com Gleisy-N até gozar a porra toda na cama do homem-forte de terninho, e dessa foda fodona assim toda, assim mais que pra lá de World of Warcraft e Creed, fantasmagórica e preta, ia nascer um menino rascante, que eles iam chamar de Lékson-Som BobBoy Marisa II pela honra do irmão e das vitrines coloridas e dos remixes em vinil, e que esse filhote, em uma reunião em praça pública, munido de uma arma raio-laser pós-cromática e roubada da gracinha-cinturade-talco com quem ele queria casar, com mais de duas mil pessoas no meio da cidade, quinze anos depois, ia dar uma ideia bem simples, que ia mudar os rumos do helicóptero formoso da TV, do fotógrafo sem testa, dos homens do Paracácá e dos homens do Pómandacá, do homem-forte de terninho azulado, do velho morto lá na mata do Estácio, do “Grande Bosta Universal”, dos meninos massacrados na Maré, dos poetas bêbados de Copacabana dos quais ele nunca ouviu falar e dos apresentadores narigudos dos concursos televisionados de Dança do Passinho. Então Lékson se levantou, diante da arma do Pómandacá, ainda não morto ou ainda não

vivo, e sentiu a terra sob seus pés, a Guanabara, e naquela solidão imensa e estelar sob os fogos musicais, viu os soldados todos arrancando a própria pele, comendo os capacetes com os dentes, quebrando os cacetetes nos próprios ombros, cuspindo seus nomes na calçada e cantando uma velha ciranda de marinheiros dessas sobre amor e sobre saudade. E Lékson achou que aquilo era bom e que lhe dava até gana de criar o mundo de novo. Ergueu as mãos sobre a cabeça, como se se rendesse diante do disparo, e com um gesto de dedos, o dedo do Pómandacá no gatilho tremendo, não aceitou seu lugar. Fiat Lux, um Big bang! Berlim, Julho de 2013


rádiocomum Junho de 2013, Brasil: como pensar um acontecimento? E de repente tudo parecia sem muita importância diante do que acontecia nas ruas no último mês de junho no Brasil. Assim como em uma paixão, uma tragédia ou uma revolução, o cotidiano que até então nos ocupava se tornara irrelevante. As milhares de pessoas nas ruas nos colocavam diante de algo que nos parecia ao mesmo tempo certo e excessivo. Era certo que acontecia algo de grande intensidade e diante do que era impossível ficar inerte. Mas a certeza deste acontecimento excedia nossas expectativas: ninguém o esperava ou o planejava, assim como ninguém podia prever ou coordenar o que viria adiante. Excedia nossas representações: ele não cabia precisamente em nenhuma imagem, autor, ideia ou conceito. Excedia nossas capacidades de mensurá-lo: “amanhã vai ser maior”, diziam as ruas. Excedia, ainda, nossas ferramentas intelectuais. Diante de um acontecimento, nos perguntávamos como pensá-lo.

1 – O que é, afinal, um acontecimento? Pergunta necessária para que encontremos as pistas sobre como pensá-lo. Digamos que um acontecimento é um entrecruzamento inesperado de uma variedade de processos. Esses processos econômicos, históricos, culturais e subjetivos, em um determinado momento, motivados por elementos mínimos, produzem uma faísca que opera como um grande desvio em cada um deles. “Atenção, a menor linha de fuga pode fazer explodir tudo” (Guattari). O acontecimento seria assim uma fagulha desviante, um shifter que não propõe ainda uma nova ordem. 2 – Se o acontecimento é deflagrado por pequenos colapsos – um vendedor morto na Tunísia, a retirada de algumas árvores de um parque na Turquia, uma passeata contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil – ele não é, entretanto, fruto do puro acaso, como tal tentativa de definição poderia fazer supor. É verdade que um acontecimento pode se dar ou não, mas, se acontecimento há, suas condições de possibilidade estão presentes. Elas só podem ser traçadas após o acontecimento, nunca antes, mas isso não diminui em nada a imanência do acontecimento ao que o torna possível.

3 – Tais condições de possibilidade não são homogêneas, pelo contrário. Por vezes o acontecimento é justamente fruto de um desacordo entre processos (Lazzarato). Enquanto os processo econômicos apontam em uma determinada direção – elitização dos espaços urbanos, redução das formas de circulação na cidade – os processos subjetivos podem maquinar agenciamentos que não cabem dentro desta história que se escreve. O acontecimento assim é desencadeado por um choque entre processos que, depois dele, serão buscados, e aí reside o ponto de bifurcação fundamental, novos acoplamentos, maquinações. 4 – Pois ainda que possamos traçar, só depois, as condições de possibilidade de um acontecimento, ele as ultrapassa, criando um novo campo de possíveis (Deleuze). Movimentos de insubordinação coletiva em todo o país tornam intolerável o que parecíamos acostumados a aceitar indefinidamente. Novas frentes de ação e novas formas de subjetividade que até há pouco pareciam tão improváveis se impõem com extrema urgência, contundência e inventividade. A partir de então, nos perguntávamos como estar à altura do acontecimento, como dar continuidade às descontinuidades fabricadas por ele. Como pensá-lo de modo a continuar a multiplicidade de processos disparados e ao mesmo tempo estar atentos às diversas batalhas que o atravessam – batalhas sociais, políticas, existenciais, subjetivas, estéticas.

Cezar Migliorin

e

Fernanda Bruno

Interrupting all programmes This is radio clash… The Clash 5 – Ainda sem as ferramentas necessárias para pensar o acontecimento, mas sabendo que ele está ligado a uma multiplicidade de processos, nosso gesto, para pensá-lo, não pode portanto ser apenas histórico, no sentido de desenhar uma cronologia pautada por causas e efeitos. Era preciso entrar nas múltiplas linhas que durante o mês de junho pareciam suspensas, em espera, buscando formas de continuar os processos depois do desequilíbrio causado pelo acontecimento; assim estavam os intelectuais, as mídias, os poderes estatais, as forças do capital, os poetas. 6 – Nos pareceu que uma rádio poderia reverberar as múltiplas falas em curso e ao mesmo tempo fazê-las durar, nos ajudando a pensar e agir no que se passa. Falas que já estavam aí, que mudaram de curso ou que surgiram desde então. Pois a ruptura engendrada pelo acontecimento faz proliferar a palavra. E como falamos e seguimos falando desde então! Nas ruas, nas assembléias, nas aulas, nos ônibus, nas padarias, na fila de banco, na praia, nas redes sociais, não conseguíamos não falar e também precisávamos ouvir, ouvir, ouvir. 7 – Uma rádio que nos permitisse habitar coletivamente os processos deflagrados desde então na cidade, na ação política, na vida social e intelectual, nos meios de comunicação, nas subjetividades, nos afetos. E a rádio talvez nos permita estar mais próximos de línguas e práticas plurais, menores, desarmônicas; desta língua comum cuja competência coletiva vai sendo construída no caminho, na ausência de ferramentas dadas. Rádio Comum. (nos próximos meses traremos para este espaço os ecos da Radio Comum: www.radio-comum. com)

Rio de Janeiro, agosto de 2013 7


Dois bodes e uma juke box:

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“Himmelweg”, caminho do céu, era o funesto eufemismo usado por nazistas para se referirem às rampas de acesso às câmaras de gás. Por uma perversão da linguagem o caminho do céu é o que conduz mais diretamente ao inferno. “Himmelweg” é também uma peça teatral escrita por Juan Mayorga, importante autor espanhol contemporâneo, que narra a inspeção de um delegado da Cruz Vermelha em um campo de extermínio em plena Segunda Guerra. O gesto humanitário do protagonista o leva a investigar velados indícios de exploração e maus-tratos aos judeus nos campos nazistas. Entre o fim da Segunda Guerra e hoje (a peça foi escrita em 2002) fomos todos massivamente expostos ao árduo “exercício” de lembrar o irrepresentável das imagens de horror do holocausto. Portanto, o que no passado soava apenas como “velados indícios” hoje não suscita mais dúvidas: a máquina de genocídio exterminou milhões de judeus, ciganos, homossexuais, opositores políticos, entre outros grupos. Esta é uma condição que aparentemente nos destaca daqueles que no passado eram vizinhos dos campos nazistas: antes, estávamos próximos mas não víamos; hoje, estamos longes porém extenuados de tanto ver. Será mesmo assim? O protagonista de “Himmelweg” quis ver e, quem sabe, aproximar-se de nós, leitores/espectadores da atualidade. Entretanto, de modo surpreendentemente engenhoso, Mayorga opera uma radical inversão. O campo de concentração é uma cidadezinha normal. A expectativa do horror dissipa-se no ar do cotidiano modorrento da cidadezinha qualquer – do casal de namorados na praça, da criança que brinca, do velho relógio da estação de trem. Claro que todo este estranhamento gera suspeitas no protagonista e espanto geral em seu leitor/espectador. Sobre o que se ergue esta farsa? O delegado da Cruz Vermelha é recepcionado por um amável comandante nazista; em seguida, é acompanhado pelo embotado chefe da comunidade judaica para inspecionar os quatro cantos da cidadezinha até se deparar com “himmelweg”. É ali que a farsa pode ser desmontada. Nosso protagonista encontrase a poucos passos de cruzar a fronteira onde os indícios se tornariam certezas. Mas ele não cruza – mesmo fustigado pela crescente suspeita. Pouco a pouco, Mayorga revela todo o processo de criação e teatralidade desta obra

política: falhas na representação mecânica dos atores, repetições opressivas até chegar a exaustão, ensaios dirigidos pelo cinismo do comandante nazista. Como tornar um campo de extermínio uma cidadezinha qualquer? Mayorga comenta esta obra: “A primeira vista, ‘Himmelweg’, é uma obra de teatro histórico. Na realidade, é – quer ser – uma obra próxima da atualidade. Fala de um homem que se parece com quase toda gente que conheço: tem um sincera vontade de ajudar os demais; quer ser solidário; lhe espanta a dor alheia. Entretanto, também como quase toda gente que conheço, este homem não é forte o bastante para desconfiar do que lhe dizem e lhe mostram. Não é forte o bastante para ver com seus próprios olhos e nomear com suas próprias palavras. Conforma-se com as imagens que lhes dão. E com as palavras que os outros lhes dão. ‘Caminho do céu’, por exemplo. Não é forte o bastante para descobrir que ‘caminho do céu’ pode ser o nome do inferno.” Do nazismo aos tempos atuais, sabemos como a linguagem e sua função simbólica são instrumentos imprescindíveis para estratégias de dominação e controle gerando medo, opressão e perversas inversões de sentido – como o de “himmelweg”. O objetivo declarado do autor em aproximar esta peça histórica de nossos tempos permite uma interlocução com o pensamento de Giorgio Agamben. O filósofo italiano reposiciona o campo de concentração como acontecimento central da modernidade e como “paradigma oculto do espaço político” na contemporaneidade. O campo de concentração materializa o estado de exceção. Na sombra do estado de direito, a exceção tornou-se regra e a tentativa de dominação total produz cotidianamente a vida indiscriminada – nos campos de refugiados, periferias, ambientes corporativos, favelas e prisões, como de Guantánamo. * Ainda sobre os campos de concentração e todo o espectro funesto que se projeta no modo de vida contemporâneo. Recentemente foi lançado o interessante filme de Margarethe Von Trotta “Hannah Arendt”. O filme narra os dilemas da filósofa judia que atuou como correspondente da revista New Yorker durante o julgamento do ofi-

Pedro Kosovski

e

Mariana Patrício

cial nazista Adolf Eichmann. Os relatos para a revista americana foram reunidos no livro “Eichmann em Jerusalém”, no qual Arendt desenvolve sua tese sobre a banalidade do mal. O testemunho de Arendt desmonta a imagem monstruosa do oficial nazista construída pela acusação, e apresenta um sujeito apequenado pela mediocridade e arrivismo, condicionado por uma linguagem esvaziada, por clichês e jargões burocráticos. Ao ser questionado no interrogatório sobre datas e momentos decisivos da história do extermínio dos judeus, a memória de Eichmann falha e só consegue lembrar-se dos momentos decisivos de sua carreira. A memória individual não coincide com a memória histórica. Eichmann: um carreirista, escreve Arendt, exasperando os que esperavam ver na imagem do oficial a figura de um demônio com três patas, quatro olhos e cheiro de enxofre. Um carreirista, e numa associação livre esse texto é levado imediatamente a uma atmosfera opressiva dos anos 1990, no Rio de Janeiro. Foi árduo experimentar a juventude sob uma ótica apequenada pelos valores de um empreendedorismo competitivo, escravizante, e que atribuía à ascensão social e à autopromoção o sentido totalizante da vida. Posicionar-se – fosse em adesão ao modelo ou na criação de alternativas – necessariamente tangia um sentimento de estagnação e apatia de toda uma geração. Arriscado, porém necessário, pensar no ciclo histórico inaugurado pelo nazismo e que culmina no neoliberalismo, ainda assombrando nossos tempos. No outro polo do homem bem-sucedido, está a vida matável, sem nenhum valor. Chegou a hora de repensar o que é o valor fora das máquinas de contabilidade dos bancos e das bolsas de valores. Hoje a brisa que vem do mar do Leblon sopra novos ventos, instalando com pimenta e lágrimas a abertura de uma nova atmosfera. O hotel Marina quando acende, não fala de nós dois, nem lembra o nosso amor. * O turbilhão diário de marchas, acontecimentos, vídeos, denúncias, atos, fugas, reuniões e projeções do futuro político do Brasil torna qualquer avaliação uma precipitação. Uma análise repetida inúmeras vezes chama a


arenadosbodes nossa atenção, talvez por facilmente se articular com o teatro e as artes cênicas: “este é um momento onde as narrativas estão em disputa”. A redoma de vidro do fim da história do neoliberalismo mundial apareceu, de repente, estilhaçada em uma vidraça de uma agência do Itaú, e a apatia deu lugar à disputa. Em tempos de disputa narrativa, presenciamos os limites críticos de uma estética do esgotamento que regeu o domínio das artes, do pós-Guerra-beckettiano até a arte-para-os-próprios-umbigos do final dos anos 1990. Falar em narrativas em disputa implica em repensar um velho termo: a agonística. Eis o que há de mais belo: no chamado para o combate conferimos, mesmo ao pior dos inimigos, a dignidade do confronto. Dignidade esta que é fruto de um reconhecimento. Como se lhe dissesse: “Você existe. Você é diferente de mim. Você é meu pior inimigo. Mas ainda assim, vamos ao combate”. Uma brutal diferença em relação ao modelo de aniquilamento e extermínio dos campos nazistas. Atenção TUDO é perigoso, tudo é divino maravilhoso! * Hitler e a turma barra pesada da SS foram vistos recentemente circulando pelos teatros do Rio de Janeiro. O muro do Sérgio Porto foi coberto por um enorme painel de fundo vermelho com imagens do grande ditador passando em revista a sua tropa – o que provocou alguma polêmica, muitas reclamações e censura imediata sob o argumento de apologia ao nazismo. É claro que não é por aí! A censura vai sempre na direção oposta da dignidade do confronto. Afinal, não é mais do que óbvia a intenção dos artistas de denunciar a truculência do Estado na repressão às manifestações? Pois, eis que ironicamente, o estado que mata censura a imagem por uma suposta apologia ao extermínio. Prato cheio para quem gosta de pensar o estatuto das imagens na contemporaneidade. Para engrossar o engodo vem a declaração da vereadora Teresa Bergher, presidente da Comissão de Direito Humanos da Câmara: “Esta é uma imagem tremendamente negativa, que tem que ser esquecida.” O que fazer com a história, doutora? Toma doril e a dor sumiu? Não dá mais pra segurar, explode coração! * No Rio de Janeiro as manifestações permanecem aquecidas e mobilizadas, entre as

mais diversas reivindicações, uma pergunta não cala: #CadêoAmarildo? O bordão “Cadê o Amarildo?” foi amplificado na descida do morro pro asfalto, no fechamento do trânsito na Lagoa-Barra e repetido incessantemente nas redes sociais. O modelo de “pacificação” tão cultuado e tão exaltado na propaganda política do governador revelou-se como projeto de um estado policial. Voltando ao início do texto e as perversões da linguagem em “Himmelweg”: o que se entende por “pacificação”? O caminho do céu? Coagula o jorro da noite sangrenta, a tua presença * Estilhaçada a Redoma de Vidro, as narrativas novamente em disputa nas ruas, nas plenárias dos movimentos sociais, e nas páginas do Facebook, surgem novas questões. Como combater sem aniquilar? Como manter aberto o espaço de discussão e crítica? “É preciso focar no inimigo comum e evitar disputas fratricidas”, dizem os mais pragmáticos. “Criticar é o oposto de agir. Critica quem não faz”, dizem os mais pró-ativos”. Nos debates acerca das novas formas de vida, que emergem como alternativas ao modelo único, a crítica é forçada a sair da sua poltrona e repensar qual o seu lugar nessa abertura de outros caminhos. Criticar para abrir passagens e não para criar barreiras é possível? Talvez seja importante pensar sobre essa dicotomia entre crítica e criação. Não é necessariamente negativo pensar a crítica como anti -produção. Ser anti-produtivo, entretanto, não quer dizer o mesmo de ser impotente. A crítica pode ser potente ao oferecer uma força de resistência capaz de desvincular sua própria potência das exigências de produção impostas por uma força externa visando uma finalidade da qual quem produz não usufruirá. A crítica pode estabelecer uma ruptura, e uma resistência a uma potência arrasadora, a uma retroescavadeira removedora subjetiva, que quer lhe impor um jeito de agir, de sentir, de trabalhar. É mesmo geográfica essa discussão. Descobrir o lugar do discurso crítico onde se abre a passagem: em que canto, em que pedaço de chão, em que posição meu corpo pode possibilitar a abertura e a transformação de um espaço? Faz lembrar a pesquisa de Carlos Castañeda em A Erva do Diabo, quando o Xamã lhe fez passar uma noite toda em um terreno

baldio procurando qual o melhor lugar para transformar-se em coiote. Esse lugar de abertura, não é nunca o lugar do poder constituído. Logo, não é o lugar da denúncia em nome de valores morais que organizam o status quo, nem o lugar da autoridade que deslegitima novas formas de produção – a professora que tasca um zero em uma redação. Não é tampouco o lugar do juiz com sua perucona e seu martelo que distinguirá o certo do errado. Seria talvez investigação dos próprios limites, da possibilidade de refletir sobre “até onde é possível suportar?” Mas esse não suportar mais da crítica não é “um basta” enunciado pelxs dondocxs que querem desfilar com seu rolex na Paulista. Não é o “não aguento mais” imposto pelo medo que ameaça o que já está definido. É o oposto. É um não suportar mais ter que existir em um único corpo, uma única função. Uma investigação sobre os limites que leva justamente a confundi-los, transbordá-los, mesmo que esse transbordo acarrete em um risco irremediável para a ilusão de unidade. O crítico por excelência é o Bartleby, que com sua resposta cordialíssima, seu “preferiria não”, desmonta toda uma série de relações opressivas. O gesto de Bartleby foi tão radical que o levou à morte. No entanto, nós bodes, tão pouco corajosos e afeitos aos gestos de heroísmo, gostaríamos de dizer sim também. Mas aonde e de onde dizer esse sim? Certamente fora dos escritórios de advocacia e das relações hierárquicas da organização social do trabalho. Para poder dizer sim é preciso encontrar um espaço de acolhimento do “preferiria não”, da disputa igualitária, que às vezes se expressa em termos menos civis que a gentileza de Bartleby. Poder gritar, berrar e resmungar em uma nova forma de isonomia grega, onde caiba mais gente do que simplesmente homens de toga. Onde adentre com força total a marcha das vadias. Enfim: pragmatismo com os inimigos e conversa infinita com os amigos. A própria ideia de finalidade é posta em xeque. Nosso objetivo comum? Que essa ausência de objetivo tenha espaço em um mundo que transforma tudo em produto a ser comercializado no mercado. Existem mais coisas entre o sim e o não do que sonham a nossa vã filosofia. Ou não? Tô estudando pra saber ignorar/eu tô aqui comendo para vomitar 9


riocorrente Quem? Paulo Almeida Que projeto de nação têm nossos artistas contemporâneos? Que herança pós-tropicalista estamos dispostos a deixar? A questão é relevante. Não são retóricas as perguntas. Parto de uma inquietação que me invade e transborda quando leio entrevistas ou converso com alguns de nossos pares. Raros são os que acenam de dentro desse caldeirão de ricas possibilidades com alguma proposta. Parece que uma apatia generalizada domina nossa produção cultural – não confundam, pois, apatia com produtividade: estamos vivendo um período de imensa produção cultural no Brasil, com diversos personagens criando e produzindo por todos os rincões do país. Mas quem vai orientar o carnaval? Mesmo os coletivos /e esses são muitos/ parecem não ir além das ações de um condomínio artístico que faz vaquinha para custear uma galeria ou locar equipamento para um show. Em 1843, o austríaco Karl Friedrich Philipp Von Martius (que chegara ao Brasil em 1817 no séquito científico da jovem Leopoldina, então arquiduquesa da Áustria) foi o primeiro a ganhar o prêmio máximo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro com a obra ‘Como se deve escrever a história do Brasil’. Cento e setenta anos depois, é fácil identificar uma série de problemas no texto de Von Martius. Mas é saboroso perceber a vontade do autor em prever que a construção do Brasil deve passar pela aceitação de nossa miscigenação. E que nenhuma outra nação teve em sua gênese constituição tão particular e diversa. A linha do nosso destino começaria em mãos indígenas e continuaria em mãos caucasianas e negras – nosso futuro talhado em mãos tão distintas. “Em 22, nós, da Semana, agimos como semáforos. Anunciamos o que se cumpriu depois, o que está se cumprindo a nossos olhos”. A assertiva de Oswald de Andrade, escrita em 1943, dá a medida da importância do Manifesto Antropofágico iniciado 20 anos antes. O movimento, que se impôs como principal de nossa

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história, é a materialização – ainda que por vias tortas – da formulação utópica de Von Martius. Vinte e poucos anos depois, a Tropicália parece se apropriar de outra frase de Oswald – A vida é devoração pura – para assumir a responsabilidade de discutir nosso projeto de nação. A Bossa Nova era foda e o Brasil o país do futuro. Mas que futuro? Fundado sobre quais alicerces? Que réguas e compassos ajudariam a desenhar esse projeto? Anos depois, já na última década do século, o Mangue Beat faz a última reflexão séria, organizada e de grande penetração. As questões eram regionais, mas falavam fundo à formação de nossa alma. E paramos por aí. (Sei que vão me bater apontando aquele ou outro movimento, aquela ou outra organização, coletivos, escolas, propostas. Obviamente há muita coisa relevante, muita produção interessante, muita experiência trocada. Só no Rio de Janeiro há inúmeros intelectuais e agentes culturais se debruçando sobre questões urgentes: Junior Perim, Jailson Silva, Adailton Medeiros, Marcus Faustini, Hermano Viana, entre outros. Sem contar o trabalho do Fora do Eixo – que tenta provocar um diálogo entre as produções das diversas regiões do país. Mas quero algo mais contundente, anseio por algo mais amplo, com objetivos concretos e coerência estética) Aqui vai o chamado. Falta alguém assumir a responsabilidade de apresentar algo realmente potente e atual, que consiga traduzir nossas intimidades e particularidades – e tentar resolver nossos complexos – propondo um novo projeto de Brasil. Alguém que consiga traduzir as vozes roucas das ruas, os chamados dos guetos, os olhos sob a máscara, os passinhos, as aparelhagens, as milongas, os funks, os universitários e tudo mais que somos e ainda queremos ser. Quem virá com a nova brisa que penetra pelas frestas de nosso ninho? Quem?


panodefundo

O discreto charme da classe artística alexandre santini

I Até bem pouco tempo, sentia uma preguiça inconfessável de tomar parte nos debates do setor cultural da cidade do Rio de Janeiro. Meu desconforto tinha uma natureza semântica: eu não tinha assunto, ou paciência, para conversar com um segmento que se autodenominava como "classe artística", ou simplesmente, "a classe". Ora, chamar artista de "classe" é uma estupidez sociológica. Classe é trabalhadora ou burguesa – em suas múltiplas combinações, interseções e reticências. Artista não é classe, e nem uma qualidade especial de ser humano. Cada ser humano, por sua vez, é uma qualidade especial de artista. II Nos últimos 10 anos, a cultura brasileira ampliou significativamente seu repertório de temas e de atores, tornando sua dramaturgia muito mais interessante e diversificada. A gestão “tropicaleninista” do Ministério da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira possibilitou o florescimento de um amplo ecossistema de experiências sociais e culturais que, a partir da arquitetura de redes engendrada pelo Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, ganharam visibilidade, escala, reconhecimento institucional e articulação. O Do– In antropológico preconizado por Gil ferveu um caldeirão de experiências culturais “desescondidas” país afora, possibilitando o surgimento de novos fluxos culturais, dentro e fora do eixo. Entre 2003 e 2010, a imaginação chegou ao poder no Brasil, pelo menos no tocante às políticas públicas de Cultura. III A vida cultural do Rio de Janeiro – e me refiro àquela estabelecida entre o centro e a zona sul da cidade – dançou fora do compasso e ficou à margem da efervescência cultural vivida pelo Brasil profundo, e mesmo na cidade alémtúnel. As favelas, os subúrbios, a baixada, são territórios historicamente mais afetados (para o bem ou para o mal) e antenados com políticas públicas e com a ação do estado, e se deram conta antes do que estava acontecendo. Do lado de cá, nostalgia da corte. Certa noite carioca em meados da primeira década do século XXI, numa mesa do baixo gávea, um poeta marginal – daqueles mais estabelecidos – em sua eloquência etílica, vaticinou: “esse negó-

cio de ponto de cultura é um monte de menino pobre batendo na lata!” IV No início de 2013, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS) levou a Prefeitura do Rio, em uma caça às bruxas contra si mesma, a fechar as portas de sua rede de teatros, alegando problemas de segurança. A medida, de efeito midiático e tomada unilateralmente na semana seguinte à tragédia na cidade gaúcha, interrompeu a programação de vários teatros públicos da cidade. Cancelaram-se estreias, temporadas foram abreviadas, prejuízos calculados. Uma mobilização que começou pela “classe teatral”, direta ou indiretamente atingida pelo fechamento das salas de espetáculos, ganhou contornos mais amplos, reuniu artistas de outras linguagens, estudantes, produtores, pesquisadores, jornalistas, desempregados e precarizados em geral. No dia 06 de Fevereiro, uma manifestação reuniu cerca de 300 pessoas na porta da prefeitura. Um flyer que circulou no facebook trazia em uma tarja preta o slogan que daria nome ao movimento: “Reage, Artista” V Aquele ato antecipava o espírito do tempo das épicas “jornadas de junho”, e marcou o início de algo novo no panorama cultural da cidade. Encontros e debates se sucederam à manifestação, a pauta se ampliou para as políticas públicas de cultura, incorporando temas de territorialidade, mobilidade urbana, segurança e direito à cidade. Autoridades foram convidadas a comparecer aos encontros, diálogos entre Estado e sociedade civil se estabeleceram. As reuniões do “Reage” viraram ponto de encontro, toda as segundas-feiras em algum espaço cultural da cidade. Quando eclodiram as marchas em prol da redução das tarifas que incendiaram as ruas da primavera brasileira, a turma estava em cima do lance, e a ala do “Protesta, Artista” protagonizou momentos lindos naqueles dias históricos, com a Orquestra Voadora embalando a multidão na primeiro de março no dia 20 de junho como se carnaval fosse. VI Reage, Artista. Tinha uma certa implicância com o nome, tanto pelo caráter reativo da consigna (é sempre melhor agir do que reagir) como pelo sujeito evocado (afinal, como quere-

mos demonstrar, artista é o caralho). Mas reconheci, mesmo nas lacunas e contradições do movimento, o interesse e disposição genuína dos “artistas” reunidos em pensar o seu fazer em relação ao tempo, à turba, à multidão, em meio aos dissensos e à voz rouca das ruas. A iniciativa se desdobrou em outras experiências: Age Música, Ocupa Lapa. E tem iniciativas irmãs que se espalham por outros cantos da cidade em movimento: Norte Comum, Cidades Invisíveis, Ocupa Nise, Assembleia do Largo, Fórum das Artes Públicas... VII Em meio ao turbulento processo de convocação e realização da II Conferência Municipal de Cultura, o Reage teve a iniciativa arriscada e generosa de promover uma ampliação do debate para outros campos, segmentos, setores organizados e desorganizados da cidade interessados na discussão, e organizou junto a outros parceiros a “Desconferência Livre de Cultura”. Ao final, a Conferência de Cultura da cidade foi positivamente pautada pela Desconferência, e a lista de representantes da sociedade civil eleita para representar a cidade na etapa estadual das conferências de cultura já refletiu uma ampliação do conceito e do lugar da cultura: menos artistas e mais povos de terreiro, indígenas da Aldeia Maracanã, jovens da favela e da periferia... VIII Sintetizando muito, vejo o Reage Artista como um aplicativo de utilidade pública para o debate cultural na cidade, que tirou da zona de conforto tanto os movimentos e indivíduos da sociedade civil em suas posições estanques e consolidadas, como levou o poder público a reconhecer a importância de travar o diálogo com a sociedade civil. E a principal novidade é que todos estes movimentos foram amplamente difundidos, compartilhados, debatidos, criticados, à luz do dia (ou nas madrugadas insones) e em tempo real. E isso tem o maior valor, e a maior importância, nas atuais condições de temperatura e pressão que vivemos na sociedade. Em meio a toda efervescência do momento, está se construindo um campo de disputa de posições e do imaginário da cidade, e da própria ideia de artista. E quanto mais barulho melhor! Como dizia o Galileu, do Brecht, "Eu quero é movimento!"

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daniel caetano

quebrapedra 12

Atualidade legal Uma informação atual: está tramitando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5992/2013. Esse Projeto de Lei regulamenta um artigo da Constituição – o Artigo 221. O que diz esse artigo que, 25 anos após a promulgação da Constituição, até hoje não havia sido regulamentado? Diz o seguinte: “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.” O que isso significa? Que sempre houve um artigo constitucional que determinava a inclusão de produções independentes e regionais nos canais abertos da televisão brasileira. Mas isso era considerado letra morta, uma lei que “não pegou” desde 1988. No entanto, talvez graças a alguns bons resultados trazidos pela aplicação da Lei 12.485 (que determinou um percentual de programação independente nos canais de televisão por assinatura), o ambiente mudou e a Câmara dos Deputados enfim resolveu regulamentar esse artigo constitucional que havia sido esquecido. Esse estímulo às produtoras regionais e independentes, com algum otimismo, pode dinamizar consideravelmente a produção audiovisual brasileira pelo país afora, criando empregos, capacitando profissionais, gerando obras diversas, abrindo brechas para trabalhos interessantes, enfim, pode ser uma coisa super-bacana. Isso num país em que, atualmente, a emissora pública, a TV Brasil, exibe aproximadamente o mesmo número de filmes brasileiros por ano que a maior emissora privada, a Globo (cerca de oitenta filmes). E as demais emissoras de TV aberta, como a Bandeirantes, a Record e o SBT, não exibem nenhum. Atualmente, essa regulação encara uns riscos de razoável complexidade. Nossos deputados incluíram programações religiosas e esportivas entre a produção independente e regional a ser qualificada, e isso gera uma mistura difícil. A mim, me parece claro que uma obra de ficção com cunho religioso é uma produção audiovisual independente, enquanto uma mera transmissão de missa ou leitura bíblica é apenas proselitismo; mas é preciso lembrar que seria difícil definir a fronteira em casos de, por exemplo, filmes documentais baseados em depoimentos. Do mesmo modo, há uma diferença evidente entre transmitir uma

partida de basquete ou um filme sobre o cotidiano dos jogadores, mas também se pode imaginar que nem sempre as fronteiras seriam claras. Seja como for, se o Projeto de Lei não excluir de alguma maneira o proselitismo religioso e as transmissões esportivas, não é improvável que as cotas para a produção independente sejam cumpridas com transmissões de jogos e discursos de pastores. Não parece ser esse o espírito do artigo constitucional – e isso não significaria nada além de um novo desperdício de oportunidades. Para acompanhar o percurso do PL 5992/ 2013, que ainda está atravessando algumas comissões na Câmara, o link é esse aqui: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=585376 O site afirma que é possível inscrever um email para receber notícias sobre a tramitação do projeto. Infelizmente, a inscrição é inútil: o mecanismo não funciona. * Toda a memória do mundo? Algumas descobertas recentes de cópias de filmes que eram considerados perdidos têm animado as notícias sobre a preservação de cinema. Trabalhos de John Ford, Buster Keaton e Orson Welles, por exemplo, trouxeram bastante destaque para o assunto. Isso tudo no exterior, infelizmente. Quem sabe um dia acabam localizando a mítica e improvável cópia de The magnificent Ambersons por aqui? Na verdade, numa terra que perdeu muita coisa da sua própria história, a notícia animadora foi a abertura do prédio de conservação de filmes do CTAv-MinC, na Avenida Brasil, Rio de Janeiro. Prédio que ganhou o nome de Gustavo Dahl como reconhecimento pelo seu trabalho para que fosse erguido. Enquanto isso, complicações administrativas (talvez inevitáveis) andam dificultando o trabalho da Cinemateca Brasileira. Como a atual administração anda bastante envolvida com as questões da conservação de filmes, seja colhendo frutos como no caso do prédio do CTAv, seja enfrentando problemas como na Cinemateca, cabe lembrar da urgência de um programa de preservação de filmes independentes. Construir o espaço é importante, mas não basta. O mérito dessa construção é sobretudo das administrações anteriores do MinC, mas seria muito lindo se a atual administração criasse um verdadeiro projeto de preservação de filmes recentes. Atualmente, todos os filmes feitos com editais ou leis de incentivo têm cópias de preservação guardadas na Cinemateca. Parece muito e é, mas falta uma coisa: todos, eu disse TODOS os filmes feitos de forma independente

no Brasil estão esquecidos, estão fora dessa equação. Sabe aquele filme legal que uns sujeitos doidos fizeram com dinheiro do próprio bolso e você adorou? Pois é, não existe nenhuma política para preservá-lo. Se esses filmes baratos forem feitos em digital, é preciso ter fé de que "a nuvem" tecnológica preservará. Se um dia os HDs falharem, podem vir a desaparecer da memória diversos filmes recentes (como praticamente todos os que foram exibidos em eventos como a Semana dos Realizadores, no Rio, ou a Mostra Aurora do Festival de Tiradentes-MG), como já sumiram filmes míticos de Humberto Mauro (Favela dos meus amores), José Carlos Burle (Moleque Tião) ou Rogério Sganzerla (Carnaval na lama), entre inúmeros outros. Se hoje em dia já tem um monte de gente que acha que só são feitos no Brasil filmes com incentivo público e filmes da GloboFilmes, é bem possível que daqui a uns anos esses filmes sejam mesmo os únicos preservados e disponíveis. A solução pra isso era a Cinemateca ter um programa pra fazer transfer e cópia de preservação de tudo quanto é filme de longa, média e curta metragem que tenha sido rodado de forma independente de grana pública. Ou pelo menos pedir e armazenar todos esses esses arquivos, além de discutir uma política de preservação deles. E de difusão – até mesmo pela web, por que não? * De Palma e a desconfiança Passion, o novo filme do Brian de Palma, é sensacional, eletrizante. E é um filme com um olhar bem cruel sobre alguns aspectos da sociedade americana, bem aparentado a filmes de outros diretores como Mulholland Drive e Showgirls. É interessante pensar nos três como refilmagens atualizadas de A malvada, cada uma no seu tempo. Todos esses filmes tratavam de mulheres procurando subir na vida, a ponto de derrubar uma adversária mais velha de forma assustadora. As questões do arrivismo e da vulgaridade eram fundamentais para o filme do Paul Verhoeven no meio dos anos 1990, enquanto as dúvidas sobre a capacidade de manter a consciência eram mais fortes no filme do David Lynch no início dos anos 2000. Esse filme atualíssimo do De Palma parece responder aos dois e repetir a velha crença do diretor: desconfiar de tudo. Assim como em muitos outros filmes americanos recentes, não se pode confiar na protagonista (como aconteceu, por exemplo, em A Origem e A Ilha do Medo). Isso está se tornando cada vez mais comum nos filmes recentes vindos dos EUA. Afinal de contas, como ainda podemos confiar no governo Obama, não é mesmo?


impressõesclandestinas O encontro da capoeira com o break dance Maurício Barros

de

Castro

Sempre achei que os movimentos do break dance tinham incrível semelhança com a capoeira. Lembro que um dia não me contive. De passagem pelo Parque do Ibirapuera, me aproximei de um grupo de b-boys que treinava por ali. Não eram negros, mas descendentes de japoneses. Quando falei com um deles que aqueles movimentos que faziam me lembravam a capoeira, ele me olhou com um ar desconfiado. Na verdade, não esperou que eu tentasse me explicar e voltou a se dedicar às suas acrobacias. Depois deste desencontro, cheguei a pensar que minhas conexões não faziam muito sentido, mas como cantam nas rodas da capoeira: o mundo dá voltas. Um tempo depois estava em Nova York, realizando uma pesquisa sobre a globalização da capoeira. Por meio desta pesquisa entrevistei Jelon Vieira, o primeiro, junto com Loremil Machado, a ensinar capoeira nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova York. Mestre Jelon Vieira desembarcou no “centro do mundo” em 1975. Nascido em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, além de capoeirista também era dançarino, e morava em Londres quando foi convidado para participar de um show folclórico em Manhattan. Atraído pelo multiculturalismo da cidade, Jelon decidiu ficar em Nova York, mas não queria trabalhar nos subempregos que normalmente eram reservados aos imigrantes, principalmente os ilegais. Por isso, ao lado de Loremil, se dedicou à dança, apresentando-se em boates e bares, mas também passou a ensinar capoeira e a fazer apresentações em escolas públicas. Numa destas ocasiões, a dupla fez algumas demonstrações em escolas do Bronx, através de um projeto chamado Art Conection. Eram as pessoas certas no lugar exato. Naquele momento, o hip hop surgia como uma importante manifestação cultural dos jovens afro-americanos, que incluía a dança dos b-boys (o break dance), o grafite dos artistas visuais e a música e poesia dos rappers, tudo comandado pelos MCs. E o berço do movimento era justamente o Bronx, um dos mais violentos boroughs nova-iorquinos, onde vive uma maioria de negros e hispânicos. Movimentos da capoeira que Jelon e Loremil apresentaram, como o peão de cabeça, a bananeira, o rodopio, o corta-capim, entre outros, foram incorporados pelos jovens b-boys, encantados com a plasticidade dos capoeiristas. De acordo com Jelon, um famoso dançarino de break chamado Crazy Leg já lhe atribuiu a paternidade da dança, o que ele nega veementemente. Jelon acredita que ele e Loremil influenciaram a dança dos breakers, mas não a inventaram. Ela já existia, estava sendo formulada quando eles a encontraram. Como forma de contestação, os jovens do hip hop criaram um movimento cultural que tomou de assalto a sociedade norte-americana e, mais tarde, mundial. De certo modo, foi o que aconteceu com a capoeira. Depois de muita perseguição e resistência, o jogo estava disseminado na sociedade brasileira e, através de iniciativas como a de Jelon Vieira, ganhou o mundo. Não creio que o encontro tenha se dado por acaso. São duas linguagens corporais que possuem a mesma herança africana, encontrando-se em locais como o Bronx, espaços - como diria o indiano Homi Bhaba - que são entre-lugares das fronteiras pós-coloniais, onde ressoam diversas línguas e transitam os exilados, imigrantes e refugiados de uma história colonial que atravessou os séculos. Os sobreviventes desta história mostraram, com a capoeira e o break dance, os sinais de sua impressionante capacidade de reinvenção. 13


Borbulhantes : A Universidade Indígena Aldeia Maracanã está sendo gestada no antigo Museu do Índio, donde Darcy Ribeiro formulou sua primeira pós de Antropologia. Lugar mágico com representantes de várias etnias. Das tribos urbanas dão uma força, por exemplo um grupo esquarter de Blumenau que vai rodar o Brasil com uma Kombi antiga e uma parte dos anarcopunks, que pela primeira vez os vi de vassoura na mão numa alegria em contribuir para a fundação. Vamos lembrar que já há mais de uma centena de Mestres e Doutores das universidades oficiais prontos para dar aulas e um número que só as etnias podem dizer de sábios para ensinar os não-índios a respeitarem seus semelhantes e a natureza... Ericson Pires estaria rodando a cidade vendo de tudo e de todos. Brazão, com toda razão, teve que ser escoltado devido ao medo frente a 50 jovens, sem arma ou cara de dragão, na saída funcional dos vereadores. Ô Brazão, pede demissão... Na comunidade anarco da Lapa pululam crianças de um ano com uma alegria de quem é cuidado pelos pais e vários pais que se mutualizam... Ivana Bentes voz que entoa alegria na defesa da Mídia Ninja, parabéns f e s s o r a estava inteligente e mui linda no encontro com nobres e um pouco velhos ícones do jornalismo do Rio. Num bar chique perto Sergio Cohn confabulava com jovens jornalistas, inclusive do Estadão e Piauí, os caminhos da Atual – o último jornal da terra... No mais Ciranda de Poesia na Uerj, lançamento da mostra do Jorge Duarte, abertura de mais um Espaço da Gentil, ao lado do prédio do Centro e Jarbas Lopes extrai livros de seu tipógrafo, em Maricá, junto com Catherine e Martin...too to para todos e unté axé.

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Guilherme Zarvos


folhadeevaead達o

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eraodito a última sessão Cadê Zélia Suave? O Velho não sabe, mas a igreja comprou o cinema pornô. E ele nem nota que entrou na casa errada. Onde anda minha poltrona? Está esclerosado, debilitado. Nem vê a iluminação da sala. Atirando luz celeste em todo mundo. O Velho acostumado que estava à penumbra. O travesti Zélia Suave. O meninote do mercado. Os fungos fungando. Passou mais de um ano hospitalizado. Depois da queda, quase morre não morre. O senhor tem família? Minha irmã Quitéria. Nem sabe que a Quitéria é falecida. Até sabe. Mas não aceita. Esquece, fundo, nos esconderijos do peito. Tem medo da verdade. Pergunta: aqui não é o Cine Palácio? O jovem crente abre os dentes: expulsamos o pecado. Insiste: e Zélia Suave? Quem? A sua melhor amiga. Um dia, Zélia convidou o Velho para um almoço caprichado. Frango, quiabo, café. E contou tanta desgraça. Sabe, rapaz, sinto saudade. Dos filhos? Não, que não teve. Nem mulher, nem sobrinhos. Sozinhos na vida, apenas ele e Quitéria. Juntavam moedas. A merda de aposentadoria não deu para luxos. E olha que economizaram: não saíam, não esbanjavam chocolates. Não conheceram a Praia Grande. De vez em quando, iam ao centro da cidade. Eram tão irmãos. Quitéria foi ficando uma nuvem. Perdendo o juízo pequeno. O Velho procurou para ela tratamento. Soube que havia no bairro uma casa de repouso. Limpinha. Para deixar limpinha a irmã de coração. Querida, o dinheiro não dá para internar nós dois. Soprou na orelha da irmã, pela manhã: irá você sozinha, pelo menos. Morrer dignamente. 16

marcelino freire

Meu amor, você merece esse presente, em paz. Lágrima. Lágrima em rosto de velho é chuva. Sai enchendo rios secos. Profundos deslizamentos. E o senhor, onde foi morar? Vendemos a casinha. Quitéria, sempre cheirosa, esperava minha visita aos domingos. Eu procurei uma pensão. Tão vagabunda. Tentei dividir um quarto com um amigo aposentado. Era um aposentado mesquinho. E o Velho não gostava de gente que segura os ossos só para si. Foi quando veio a ideia. Estapafúrdia. Morar dentro de três cinemas. Saía revezando: Cine Palácio, Apolo, Cine Alvorada. Os três abertos 24 horas. Lá o Velho dormia, bocejava. Molhava-se. Não ligava se o mundo à sua volta queimava, se se incendiava: melhor assim. Esse escuro mágico. Foi onde conheceu Zélia Suave. E demais telespectadores. Dizer que ninguém notava: notava. O Velho já dava bom-dia ao bilheteiro. Trazia balas ao faxineiro. Ajudava a recolher camisinhas furadas. Quando cansava a retina, andava à praça. Ia comer churrasquinho. Abusava das gorduras. Por isso o ataque: as gorduras engordaram as coronárias. Caiu à rua, foi socorrido, parou no posto público de saúde. Perdeu quilos. Amanheceu caduco. Lento e febril. Deram-lhe alta. Para onde o senhor vai? Primeiro, visitarei minha irmã. Pegou o ônibus e se perdeu. Procurou o número do telefone. Um oco. Era o bolso um calabouço. Sabemos, pois, que a irmã Quitéria morreu por aqueles dias. Ela que esperou vários domingos o irmão chegar. E sentiu: ele deve ter morrido. É isto. É. Bateu depressão, queda de pressão, vômitos na velha mulher. E Deus chamou. E Deus fez esse favor. O Velho perambulou. Suou. Foi e não foi. Perdido, sem saber a direção. Conseguiu, finalmente, por um milagre, chegar ao cinema.

Cadê Zélia Suave? Zélia Suave? O jovem crente não entendeu nada. Quis chamar o pastor. Esse senhor precisa de cuidados. O casaco marrom fedia a casaco marrom. O Velho fedia a velho demais. Tudo nele a carpete mijado. O Velho está no fim. Um buraco. Hã? O travesti fez suco para mim. Zélia não tinha pai. E viu no Velho uma família. Igual a que não teve. Nordestina. Recordase quando chegou perto do Velho, ali, na última fila do cinema. Um olho do Velho dormia, o outro acordava. Não assediou. Nem atacou o velho morador. Devagar, puxou conversa. Entre um programa e outro, era trocando algumas palavras sinceras com o Velho que Zélia descansava. Ambos, entre eles, descansavam. Só, na tela, é que os músculos não cessavam sua jornada. Repetidas vezes as mesmas cenas. Chupadas xoxotas. Grossas varas. Murmúrios, até, inocentes. Aqueles, de tanta gente que ia ao cinema. Na surdina, para fugir do mundo. Cada vez mais veloz. O mundo, o mundo. Por que gritam tanto por aqui? Perguntou o Velho ao jovem da igreja. Lotada. Os fiéis aos berros. Cara a cara. Pedindo perdão. Alcançando graças. Escancaradas louvações. Eu vou é embora. Mas não ia. Não tinha mais forças para se erguer dali. Se pudesse, correria. Aquele não era o seu lugar. O senhor quer uma água? Não tenho sede. Deixe estar, deixe estar. O Velho foi fechando os olhos para morrer. Tinha fé. Com a ajuda de Deus, pode crer, outro filme logo logo iria começar.


Patrícia Gouvêa Deve ter sido em 1997 ou 1998, não consigo mais precisar. Peguei um ônibus numa sextafeira na Rodoviária Novo Rio, um antigo e desconfortável Cometa e, chegando sábado cedo em São Paulo, fui direto para a casa onde Claudio Feijó daria o curso Descondicionamento do Olhar, dois dias intensivos. Cheguei com o corpo moído e sonada pela noite quase virada. Quando cruzei o portão do local, estava invadida por uma preguiça imensa de passar um final de semana inteiro entregue à proposta de “repensar o meu olhar”. Ainda mais porque em São Paulo tenho uma irmandade enorme de amigos, e estar com esta turma é sinônimo de riso desenfreado, destes que lavam a alma. Não conhecia ninguém no curso e me sentia deslocada. A palavra certa,

na verdade, era incomodada. Intimidade forçada me provoca pânico e a proposta ali parecia meio terapia de grupo. Ao terminar o primeiro dia, no entanto, meu sono tinha desaparecido, minha rigidez idem. Feijó tinha me conquistado. Além de lembrar perfeitamente do efeito que as experiências propostas por ele tinham produzido em mim, tenho gravado na memória uma das dinâmicas em dupla: com pedaços de pano preto atados aos olhos, a dupla vai de mãos dadas se ajudando a “reconhecer” o terreno, tocando nas coisas, no chão, na terra, no vazio. Minha dupla era o Clício Barroso Filho, que eu conhecia só pelo nome e pela fama. O vazio e o silêncio. Eu e Clício. Tão longe e tão perto. Cegueira e visão. Corta. Novembro de 2012. Miguel Chikaoka vem finalmente falar sobre sua trajetória na Sexta Livre do Ateliê da Imagem, e promover sua Oficina de Iniciação à Fotografia Pinhole (Mini e Pin Lux). Nunca havia conseguido fazer a famosa oficina do Chika, como eu gosto de chamá-lo. Desta vez, pensei, o Chika não me escapa. E foi só ouvi-lo falar sobre a “luz” nos primeiros cinco minutos para ter que começar a fazer muito esforço para conter a emoção. Chikaoka é a personificação da luz, esta luz transcendental que reverbera, ilumina e desperta o que há de melhor em cada um. Em um dado momento, ao final do dia, uma das participantes pergunta se poderia dedicar-lhe uma música em japonês. Ela começa a cantar Imagine, de John Lennon, em japonês mesmo, e eu não dou conta. Chikaoka é lágrima, é alegria, é o abrir-se ao acaso. Presença. Corta.

sobreimagenseafins

Feijó e Chikaoka ou como algumas experiências provocam em nós tremores de terra

Para além da fotografia ou do reino das imagens, estes dois episódios marcam minha trajetória. Um contínuo aprendizado de desprender-me de minhas amarras pessoais e das amarras de minha praxis. Isto tudo para dizer: é preciso não perder o encanto e a curiosidade. No período que separa a fundação do Ateliê da Imagem, em 1999, à atualidade, sinto que nunca foi tão necessário existirem pessoas como Feijó e Chikaoka para lembrar aos humanos que existem, muito além dos aparatos técnicos, cabeças, conceitos, pesquisas, maravilhamentos. Em 1999, as pessoas chegavam até o Ateliê com o propósito: “quero aprender fotografia”. Hoje, a maioria afirma: “quero aprender a usar minha câmera”. O que aconteceu neste percurso, para a linguagem ser sobrepujada pelo maquínico? Não há mais volta, decerto. A tecnologia digital veio baratear os equipamentos; democratizar o acesso a este anteparo de ver melhor o mundo; revelar talentos a cada minuto. Não precisamos ser nostálgicos, mas precisamos estar atentos a fórmulas mentirosas que prometem formar fotógrafos em 4 horas, à elegia dos megapixels, ao ritmo frenético da obsolescência tecnológica. Vivemos num país onde desenvolvimento econômico não toma como premissa um real investimento em educação de qualidade. E isso é muito perigoso. Temos um exército de novos consumidores com suas câmeras de última geração que não tiveram, no entanto, educação visual, que deveria começar ainda na escola primária. “Ensinar fotografia”, na atualidade, é preencher este fosso enorme e transpor a crença de que o maquínico, por si só, é que faz a diferença; além de um certo desdém inicial por pensar. A Fotografia como matéria de pensamento, de observação, de ressignificação do que se vê precisa ser plantada incansavelmente cada dia como uma semente até que as amarras se desfaçam. Este “cenário” evoca uma situação, ocorrida não faz muito tempo em sala de aula, com o professor Marco Antonio Portela. Quase ao final de uma aula noturna, onde o incansável Portela havia se desdobrado para vencer o sono dos alunos e entusiasticamente apresentado trabalhos de diversos fotógrafos para estimulá-los sobre as possibilidades de projetos com imagem fotográfica, um aluno tasca o comentário: “Depois de 10 cervejas até eu sou capaz de fazer isso”. Ao que ele responde: “Ou então depois de 10 livros”. Corta.



saturno Edu Monteiro


marcusfaustini “o papel do artista hoje é também produzir ambientes e não só expressões físicas” por

entrevista 20

[Fred Coelho] É impossível não começar essa entrevista sem discutir os últimos eventos que aconteceram no Brasil, com as manifestações de junho e seus desdobramentos. Você tem uma presença importante de fomentador do debate no Rio de Janeiro. E uma coisa que chamou a nossa atenção foi a sua declaração, quando saiu aquele artigo do Peter Paul Pélbart, em que ele falava “eu sou ninguém”. E aí você retrucou publicamente dizendo que, no universo que você está constituindo, a busca é pela construção de uma identidade, e não de “ser ninguém”. A busca é de um corpo, não de uma identidade. Eu entendo o que o Pélbart está tentando disputar politicamente naquele texto. O que ele está querendo construir num campo amplo. Eu fico impressionado como a fantasia tem sido um elemento dessas manifestações, como se fosse uma certa infantilização. Se em Maio de 68 havia um excesso de sensualidade do corpo, do corpo sendo usado, agora você tem uma fantasia de esconder corpo, de esconder quem você é. Isso não é maior ou menor, é uma característica das recombinações que tornaram esse momento possível. Existe um primeiro ponto para mim que é: os intelectuais de um modo geral se posicionaram para explicar, e não para pegar uma tarefa a partir do que aconteceu. Tem uma guerra, por exemplo, rolando no parlamento nesse momento. Por conta das manifestações se instaura uma nova dinâmica dentro do parlamento, e ninguém se debruça para enfrentar o que está acontecendo. De alguma maneira é uma atitude de poder o intelectual ficar dizendo para os manifestantes o que eles são. Então está todo mundo – a grande mídia, os setores hegemônicos, econômicos da mídia, e os intelectuais – se comportando para categorizar quem é o quê. E isso me faz muito mal. Porque eu acho que a postura do intelectual não poderia ser de poder, de classi-

Fred Coelho, Guilherme Zarvos

e

Sergio Cohn

ficar ali do alto. Ele deveria produzir uma ação também nesse momento. Vir trabalhar também, e não transformar a passeata em commodities das disputas que eles já tinham. Porque de certo modo essa questão da multidão, no Brasil, já estava rolando dentro da academia. Eu acho muito fácil, no momento em que vem essa teia nova de recombinações, ficar dizendo “você é isso”, “você é aquilo”... [Fred] O ímpeto classificatório acadêmico... É uma atitude de poder. A questão agora é tentar demonstrar claramente quem está no poder e quem está querendo abrir o poder. Quando você classifica o outro, você está no poder, então tenho que bater. Quem está no poder tem que ouvir, quem não está tem que falar. Se está no poder, aprenda a ter orelhão. Aprenda a escutar o tempo todo. Poder tem que escutar, escutar, escutar... Então só classificar, para dizer que estava certo, não dá. Eu percebi também vários intelectuais dizendo: “tá vendo, eu previ isso!” Mas um trabalho real de intelectuais diante das manifestações é que eu queria ver. Eu não vi uma passeata de intelectuais. Seria bonito uma passeata de intelectuais hoje no Brasil. Quem é intelectual? Quem se dispõe a ser? E assumir publicamente que é intelectual, botar o seu corpo ali. Um Black Block de intelectuais... [Sergio Cohn] É interessante isso, porque nos anos 1960 os Black Blocks eram os intelectuais e os artistas. Eles iam na frente da passeata porque, se apanhassem, a mídia teria que reagir, noticiar. Eu acho que um dos pudores que rolou é que ninguém teve coragem de falar “eu me dou importância ao ponto de colocar o corpo à frente”. Mais do que temer o próprio corpo, teve uma preocupação de não se apoderar do que estava acontecendo. Houve uma timidez dupla...

Eu concordo, mas é um risco também não se posicionar. Então assuma, e diga: “eu não tenho capacidade de compreender”. Como o Luiz Eduardo Soares fez, e achei muito corajoso. “Não temos capacidade, temos que estar juntos, temos que dar voz, temos que dizer o que é, mas primeiro precisamos entender o que está acontecendo”. O que me incomoda é, não o capricho, mas percebendo a potencialidade de tudo isso, vir alguém já querendo classificar. “Eu sou ninguém” faz parte dessas manifestações do campo da fantasia, tem um pouco aí de Harry Porter, Cosplay. A gente está vendo esse corpo na rua. Isso é maneiríssimo, porque o pessoal dizia que era alienação, que esse pessoal estava absorvido pela indústria cultural. E agora está na rua. Banana e folhas, a gente chama de tropicalismo, quando os caras colocam essas máscaras a gente desconfia? Os caras estão reoperando ali. Então não é ninguém. Tem um corpo fantasioso, tem uma geração. Eu acho que você só pode estar em rede a partir do seu território. Senão você vira um elemento que qualquer um pode capturar. Essa coisa de “você é um sujeito em fluxo”... Você precisa ser um sujeito com um corpo que fala, em fluxo, na diferença. Por isso que eu achei que era importante me colocar. Eu tenho um corpo, e o meu corpo é o meu limite e é a minha potência. Eu sei de onde eu falo. Eu não vou ser mais do que eu sou. Eu tenho desejo, que me joga para frente, mas não vou ser mais do que eu sou. [Fred] Isso é muito importante, também, porque dentro desses grupos todos presentes nos movimentos, os três grandes eixos foram justamente aqueles que reivindicaram ausência de uma identificação concreta: o Movimento Passe Livre, que fazia um rodízio discursivo em que cada hora era um deles assumindo o discurso do coletivo, o Anonymous, que o nome já diz tudo, e o Black Block, que cobre o rosto...


Vamos pensar nas turmas de Bate-bolas do Rio de Janeiro, eles precisam se mascarar para serem vistos pela cidade. São homens, de subúrbio, num regime de trabalho. E ali eles botam máscaras para serem vistos. É um outro jogo, é um corpo expressivo. A máscara é uma potência, é um ciborgue. Nesse sentido é que não é identidade, quem sou eu, de onde eu falo. Mas certamente é um corpo querendo presença. Uma grande novidade foi a galera de favela, que teve uma presença enorme nas passeatas. A juventude das favelas dentro das passeatas se auto-organizando, e não alguém levando as favelas como tema. E era tanto desejo de ter corpo presente, que cada um costumizou seu cartaz. O melhor que eu vi, já que eu gosto de Cavaleiros do Zodíaco, foi “Não é pelos 20 centavos, é por Athena”. O cara está reoperando o universo de memória dele, está brincando, está produzindo muita leitura ali. Eu acho pressão. É tanta vontade de participação, do corpo aparecer, dele ser presente, e não mais representação, que ele customiza até o cartaz. E quando ele faz isso, as pessoas dizem: “mas a bandeira contra a corrupção é da direita”. É claro, ele vai buscar num repertório que ele conhece. Ele não vai numa filigrana para dizer “eu quero a diferença, eu sou a multidão”. Esse é o repertório de outras pessoas. Ele pega um repertório que está ali. Não tem nada reacionário nisso. Pelo contrário. [Sergio] A questão do cartaz também é operar o corpo em dois lugares. As pessoas pegavam o cartaz, fotografam com o celular e já postavam em rede social. E é muito por isso que nenhuma música simbolizou essas manifestações. Quem chegou mais perto disso foi o Paulo Leminski, com a poesia. Porque a rede social hoje é muito mais visual que sonora... Isso começou de certa maneira pelo Orkut, que foi a primeira ágora de debate entre a juventude popular e a juventude classe média, se encontrando e dialogando. Quando os moleques começaram a aprender Photoshop, pegar uma foto e colocar um texto em cima, foi ali que começou. Você tem toda a razão, o que nós estamos vendo é uma sociedade expressiva. [Guilherme Zarvos] De início eu fiquei um pouco com pé atrás com a voz única de um milhão de jovens ou não jovens nas manifestações, lembrando muito das Diretas Já e do movimento contra o Collor. Era apenas uma classe média laica, ou assim me pareceu. E depois também tive o susto de uma multidão resignada, que foi a do Papa Francisco. Como você sente a relação da juventude laica e essa juventude católica

O que eu acredito é em uma ecologia

da cidade. Ninguém mais irá conseguir

produzir um discurso totalizante que traga todo mundo. Então a disputa é produzir

ambientes, porque as falas serão diversas.

Num mundo com muitos autores – eu brinco que estamos vivendo a reprodutibilidade do autor –, com muitas vozes, o papel do

artista também é virar um operador. Vou juntar esse com aquele e produzir uma

experiência. Não é juntar para organizar, mas para inventar ambientes.

na rua, quando você mesmo na sua juventude conseguia misturar igreja e punk? Isso continua acontecendo. Conheço muitos jovens que estavam na Jornada Mundial da Juventude que estavam também nas manifestações. O errante não é o outsider. Essa ideia de que o errante é o outsider é uma ideia de poder, que segura as pessoas. Num mundo do controle dos corpos, é dizer: “o errante é o outro”. Eu vejo os moleques fazendo muita errância ainda, recombinando muita coisa diferente como a gente recombinou. Talvez a diferença é que a gente recombinava escondido. Eles já falam. Essa recombinação já é expressiva. Eles não têm medo de um dia estar na JMJ, outro na passeata... A gente refletia para produzir um significado para depois poder romper. [Guilherme] Fiquei muito impressionado de ver essa juventude da JMJ em Copacabana, aceitando com muita naturalidade as prostitutas, os travestis, com um olhar que não era conservador... A gente não pode olhar essa juventude que veio para a JMJ como se fosse igreja. Ela está

construindo seus marcos de juventude. É o Rock’n’Rio deles. E uma coisa são pessoas, outra é a estrutura. Além do mais, a igreja é diversa, ela também é uma disputa. Todos os campos estão em disputas hoje. Setores importantes do capitalismo hoje organizam ambientes, para poder pegar pessoas. Para ver quem mais mobiliza pessoas. E a igreja também decidiu entrar nessa disputa, mostrar que eles também mobilizam pessoas. Tem gente ali de tudo e qualquer tipo. Aquilo não é uma massa única. Assim como nas passeatas. E não é só luta política o momento da passeata, a ocupação, a assembleia, o coletivo, o debate, o projeto do moleque da favela. Essa politização da sociedade vem acontecendo o tempo todo. Eu vi uma cena na JMJ que foi muito forte. Era um grupo sentado na Cinelândia, e eles estavam discutindo política. E uma menina falou: “a minha primeira experiência com a política foi ruim”. E a outra virou e respondeu: “Por que a primeira experiência da gente com a política é sempre ruim?”. Compreensão da ideia da estética da participação política. Eu pensei em grêmio de escola, eu pensei no vereador que

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O papel dos museus hoje não é abrir só os

objetos que eles guardam para visitação dos

pobres. Os pobres irem lá só visitar é uma

forma de controle. É preciso ensinar a galera

de periferia a fazer curadoria, a organizar.

É preciso abrir o software do museu. Abrir o

modo de pensar, inventariar, classificar. Para

que outros também possam fazer isso. Tem um papel novo para o museu, para a cultura, que

é o papel do encontro.

chega prometendo e não cumpre. Eu mapeei todas as experiências políticas da cidade. E realmente é traumático. Porque já vem o rodo dentro do grêmio, entra a lógica dos partidos. E aí eu fiquei pensando que é isso, é preciso mudar a primeira experiência com a política, para que ela seja enérgica, seja sensual. E é impossível que eu tenha visto, dentro da JMJ, justamente o único grupo que estava discutindo política. [Fred] Muita coisa aconteceu na JMJ. Ouvi uma análise dizendo que foi o momento da Teologia da Libertação, junto com os jovens, poder voltar a público e reivindicar uma igreja mais política, do ponto de vista não da política do Vaticano, mas da grande política. Assim como as manifestações foram o momento em que várias subjetividades políticas voltaram à tona, desde as pessoas que querem o retorno dos militares até os extremamente anarquistas, na igreja foi a mesma coisa, voltou a tona um grupo que deseja uma outra igreja. Quando você produz um ambiente de mobilização de muitas pessoas, vêm esses repertórios todos, vêm essas falas todas. Eu não vejo como um perigo, eu vejo como perigoso. Pe22

rigoso é em volta do gozo. Eu vejo como um meio. Eu acho que tem que ir, tem que fazer reunião, tem que conversar, tem que manter esse estado de mobilização, porque ele é necessário. Porque senão o capital controla tudo. E é isso que temos que impedir. Dar limites ao capital. O capital precisa de limites sempre. [Fred] Há claramente nas manifestações e em outras frentes um embate de gerações sobre as práticas políticas em jogo. Como você enxerga isso e como você vê a possibilidade desses embates se desdobrarem em novas políticas públicas de cultura? O que eu acredito é em uma ecologia da cidade. Ninguém mais irá conseguir produzir um discurso totalizante que traga todo mundo. Então a disputa é produzir ambientes, porque as falas serão diversas. Num mundo com muitos autores – eu brinco que estamos vivendo a reprodutibilidade do autor –, com muitas vozes, o papel do artista também é virar um operador. Vou juntar esse com aquele e produzir uma experiência. Não é juntar para organizar, mas para inventar ambientes. É claro que alguns lugares terão repertórios diferentes. Mas esse trânsito entre chegadas e saídas nos mesmos espaços é muito saudável. Porque força quem está há muito tempo a não cair em vícios, a ter

que ouvir. Porque quem está há muito tempo fazendo política tem poder. Às vezes as pessoas falam: “pô, mas essa pessoa é ingênua, ela já devia vir aqui sabendo disso”. Mas tem que ouvir. Porque o que a gente precisa, sobretudo, não é de programa. A gente elegeu nos últimos anos que a luta programática na sociedade era a coisa mais bonita, mais importante, mais pop. Então a gente foi para a luta do meio-ambiente, luta do comportamento, luta da maconha, todas as lutas programáticas da sociedade civil... [Fred] Para as grandes narrativas... As grandes narrativas de mudanças de comportamento. E a gente abandonou a vida comum no território, nos lugares de inventar comunidade. Não estou falando só de favela, não. E esse retorno dos corpos presentes, eles não tão dominando uma fala programática, mas de cooperação, de “vamos fazer juntos”. É uma percepção de que o território não é só um lugar de atendimento, como o mercado quer, mas de invenção da vida. Eu vejo um muito bom trânsito de novos e velhos desejos diferentes. É a diferença, não a identidade. Identidade é todo mundo igual. São os étnicos, as favelas... Por isso são tão importante esses ambientes que misturam as pessoas. [Guilherme] Você sente nessas manifestações alguma tensão em relação à distribuição de renda iniciada no Brasil nos últimos dez anos? Essa é uma pergunta boa, porque a gente ainda não é capaz de discutir nossas diferenças. Eu queria ver isso. A gente exclui os conflitos. Nesse sentido uma infantilização das narrativas nas passeatas é prejudicial também. “Somos todos um”, “nós estamos lutando contra o grande mal”... Esses lemas que o Anonymous captura. A gente ainda não fez uma real discussão da superação da desigualdade social no país. E no Rio de Janeiro então... Enquanto no Brasil diminuiu a pobreza de maneira inclinada nos gráficos, aqui foi muito mais tênue. Com todas as oportunidades, com esse estado de oportunidades, há um projeto político que não pensa nos pobres. Os empregos que apareceram são de mediação, de consultorias, etc. É muito forte esse projeto de não pensar nos pobres. [Guilherme] Nos pobres e nos humanistas, que saem das faculdades com menos espaço que um trabalhador que faz curso técnico. Isso. Tem uma brincadeira que eu escutei e comecei a falar: “Lenin dizia que a revolução se faz com eletricidade e soviétes. A Dilma não gosta dos soviétes”.


[Sergio] Sim, foi o Eduardo Viveiros de Castro que falou isso... Eu acho isso maravilhoso. O que é o soviéte? É a participação, a política, o debate. E o que estamos vendo agora é de novo o soviéte voltando no bagulho. Chegando e dizendo que não é só eletricidade. Só eletricidade faz mal para a sociedade, sobretudo numa sociedade de disputa de narrativas. Não há dúvida que teve distribuição de renda no Brasil. Não há dúvida que os Pontos de Cultura mudaram uma correlação de forças onde os pobres eram apenas commodities da indústria cultural e passaram a ter um espaço de protagonismo no modo de produção. Não há dúvida na importância das cotas. Eu gosto de brincar que virão aí os intelectuais do Pró-Uni e eles farão mestrados completamente diferentes, e isso será muito bom. O mestrado é uma trajetória pessoal com uma tentativa de negociar com o repertório da universidade. Então vão aparecer novas combinações. Só há uma maneira de radicalizar a democracia, é dando visibilidade aos diferentes corpos de uma sociedade. E como se faz isso? Distribuindo renda, para que a pessoa possa circular pelos espaços. E daí não é só salário, é a passagem. Hoje a pobreza no Rio de Janeiro está focada na juventude que larga o ensino médio. E o ensino médio é um destruidor de desejos. Para começar que o estudante continua sendo chamado de aluno. Não é chamado de jovem. É jovem e continua sendo chamado de aluno desde a infância. O moleque precisa trabalhar, e então ou ele arruma um emprego fixo, ou vira mototaxista, que é onde ele encontra o mundo do desejo. Aí, vem o funk, vem a música, a conexão, o gringo, a cidade. E a escola o massacra num repertório horroroso, estático. Claro que tem professores guerreiros que tentam inventar coisas, mas não têm autonomia. E o moleque tem que trabalhar, passa a estudar de noite. A escola é longe, pega um ônibus, demora. Esse corpo vira um corpo cansado, e ele larga a escola. E quando larga, esse cara que chegou até o ensino médio não quer fazer o mesmo trabalho de quem só fez até a primeira e a quarta séries. Ele já tem outros desejos. Então esse cara não trabalha nem estuda. Ele fica na informalidade, vai pra cá e pra lá, não entra nas redes da cidade. E este é o problema, é não entrar nas redes. Eu dei muita sorte na minha trajetória porque eu fui entrando em redes, redes de teatro, redes de política, fui conhecendo pessoas, os punks. Fui fazendo uma trajetória na cidade, e daí fui recombinando, inventando uma narrativa a partir disso, e isso foi me dando conexões. O problema da juventude de origem popular é que ela é potente, cheia de desejos, mas ela não tem redes na cidade. Ela só é colocada na cidade para ser aluna, para fazer um curso. Tudo que o jovem

não quer é fazer um curso. Ele quer se expressar, fazer a parada dele, a banda, o passinho, o baile, o projeto dele. Tem que escutar essa juventude. Não se diminui a desigualdade social apenas com distribuição de renda. Eu vejo uma clareza muito grande nessa juventude que luta por um sistema de transporte público. Porque hoje o transporte não é público, se falarmos com clareza. Mobilidade é democracia. A gente não tem mobilidade na cidade hoje, para poder ir para qualquer lugar, acessar. Então não é uma cidade democrática, que garanta a mobilidade das pessoas. Quando eu vejo essa agenda dos transportes se transformar numa agenda protagonista, percebo que essas pessoas têm um entendimento político que a luta contra o capital não é só uma luta pelo salário. O capital opera todas as esferas da vida. Transforma nossa cidade numa cidade de entretimento. Nós temos mais de 70 coletivos na cidade, numa conta rápida... [Fred] E que antes das manifestações eram invisíveis para grande parte da população... Sim. Coletivos que são da favela, Zona Sul, artistas, anarquistas... Não existe nenhuma política de Estado para dar apoio a esses coletivos. A lógica é que isso é amador, e que um dia eles vão virar produtora. E para se lidar com Estado tem que ser produtora. E a maior energia da cultura do Estado vem de coletivos. [Guilherme] Essa questão da mobilidade é importantíssima para a cultura, porque se um jovem da periferia quiser ir para um museu no centro da cidade, ele acaba gastando quanto, só de transporte? Muito mais do que ele gastaria na noite, para sair e tomar uma cerveja com os amigos... Então o jovem acaba não acessando a cultura. Aqui falta o Estado pensar como Estado, para resolver isso. O Estado, na cultura, parece que só atua para fingir que está fazendo alguma coisa. Faz um edital aqui, outro ali, mas não tem a paixão de analisar a situação, para criar intimidades, conexões, ambientes. Hoje a gente tem circulação, mas não tem mobilidade. Mobilidade é quando existe a informação aberta. É quando existem pessoas inventando tramas e as tramas sendo reconhecidas. Eu só circulei a cidade mesmo porque tinha a camisa do Brizola. Na época a gente tinha feito a luta do Passe Livre, e isso foi um grande retrocesso que aconteceu. No RioCard, hoje, você tem que sair na estação de metrô que você disse que vai sair. É um absurdo! [Sergio] Não se pode mudar de ideia... Não se pode conectar com a cidade, parar um dia na livraria por acaso. Isso é um contro-

le dos corpos absurdo. É não pensar a cidade como educadora, como educativa, como lugar de invenção. O capital dominou tudo. Porque a empresa botou limite. Quem tem que botar limite no capital somos nós, e não ele botar na gente. Porque ter direito a ter uma concessão pública de uma empresa de transportes é um superdireito que a sociedade deu para esses caras. É negócio bom na certa. Então quem tem negócio bom na certa dado pela sociedade tem que ter muito limite. Por isso que tem que ter limite também para o Estado, para quem é governante. É decisiva a luta do Passe Livre. Por isso que na Agência o moleque tem uma bolsa, em dinheiro, de 100 reais. É legal ver a mudança do uso do dinheiro. Ele economiza na passagem e compra um casaco, mesmo no calor, porque casaco é estilo, é uma maneira de chegar. Como em Aristóteles. Estilo para o Aristóteles é interface. Aquilo que eu faço de interface na cidade. É como eu me potencializo para você me ver. E por isso que essa luta pela mobilidade é tão importante. As melhores redes da cidade precisam ser abertas. O papel dos museus hoje não é abrir só os objetos que eles guardam para visitação dos pobres. Os pobres irem lá só visitar é uma forma de controle. É preciso ensinar a galera de periferia a fazer curadoria, a organizar. É preciso abrir o software do museu. Abrir o modo de pensar, inventariar, classificar. Para que outros também possam fazer isso. Tem um papel novo para o museu, para a cultura, que é o papel do encontro. É tão importante ver uma exposição como estar com o curador e conhecer suas tecnologias. Passar uma semana junto, entendendo. Isso não é oficina, isso é vida. E nesse sentido eu respeito muito o Fora do Eixo, que tentou inventar isso. Tentou inventar esse lugar de produção de presença e não produção de representação. [Sergio] Eu fiz uma entrevista recentemente com o Rodrigo Savazoni, que é da Casa de Cultura Digital, e ele tratou sobre a questão da liderança, que é um tema sensível dentro dos coletivos. O argumento dele é que, para tratar com a sociedade, com o estado, com a mídia, com as empresas, é preciso de uma representação, de uma continuidade, e por isso há normalmente a escolha e reiteração de alguns nomes. O que não quer dizer uma menor horizontalidade interna dos coletivos. Como você vê essa questão? Eu vejo assim: o tanto de visibilidade que eu tenho, eu tento dar também para quem está na caminhada comigo. Acho que essa é uma maneira de equilibrar. Claro que vai ter maior visibilidade para uma pessoa que organizou o processo, ou inventou a metodologia, para pensar do ponto de vista da Agência Rede da

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Juventude, que é o projeto que eu toco. Então, vamos dar visibilidade aos jovens. Vamos botar eles falando, para equilibrar isso. Eu não vejo um problema uma pessoa construir um espaço de presença política na sociedade. Como o Pablo Capilé, por exemplo. Acho que tem uma novela de pessoas que tiveram perto, com todos os humores e amores, cobrando muito e demonizando o Fora do Eixo. Isso é muito ruim, a demonização de um processo. O lado ruim dessas manifestações foi produzir demonizações do contraditório. Eu vejo que talvez aí o Capilé pudesse se empenhar em dar mais visibilidade aos coletivos que estão do lado dele, as pessoas que estão do lado dele, para poder equilibrar isso. Mas eu pessoalmente não tenho nenhum problema, acho o Fora do Eixo um projeto incrível. E todo projeto que se pretende ser total, brasileiro, será um corpo cheio de contradições. Eu até escrevi isso, para mim ele está tomando muita porrada porque quis disputar São Paulo, e não é orgânico da intelectualidade cultural de lá. Então ele foi ingênuo de achar que ia conquistar São Paulo não sendo orgânico. [Fred] Ou sendo orgânico de apenas alguns setores. Isso. A vida é dura. O pau come. Disputa mesmo. Aí o projeto ficou grande demais e nego reage. “Olha, esse cara aí precisa parar”. Acho que tem isso não dito, mas é uma sensação de que eles cresceram demais. [Sergio] Sobre isso eu gostaria de colocar uma questão: eu tenho a impressão de que o Fora do Eixo cresceu muito no momento em que sai o governo Lula e entra o governo Dilma, que paralisa todas as políticas de cultura, como os Pontos de Cultura. E eles ganharam visibilidade e força, porque eles continuaram, porque tinham estrutura e garra, num momento em que tudo mais para no Brasil. Sim. E aí é o mundo deles. A gente não pode cobrar do artista essa coerência, e eu analiso o Capilé como artista, um artista que estetiza a produção. Ele não produz produtos, ele cria ambientes. Eu acho que o papel do artista hoje é também produzir ambientes e não só expressões físicas. E o mundo do Capilé é um mundo de empreendedorismo, cultura digital, e as pessoas estão sendo muito rigorosas dizendo que ele é capitalista. Ele cria discursos antropófagos misturando coisas. Esse cara botou em ação um monte de gente. Acho que falta visibilidade para os outros coletivos para suavizar, e as pessoas virem que existe não apenas essa centralidade.

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[Fred] Você começou a falar sobre políticas públicas para a cultura, mas a con-

versa seguiu para outras direções. Vamos voltar? Quais são os caminhos que você vê para isso? É preciso pensar, em primeiro lugar, como criar espaços para o artista produzir com autonomia. É preciso inventar alguma maneira de manter a autonomia do artista. Uma democracia é um lugar de mundos produzidos diferentes. E cada mundo com a sua garantia de existência. Não gosto da ideia de incluir. Eu gosto da ideia de garantir as formas de vida que as pessoas inventam. Em Santa Cruz, se eles falarem em incluir, é pegar um grupo de lá e colocar num edital de teatro no Rio, só para dizer que garantiu a inclusão. Garantir direitos é sentar com o pessoal de Santa Cruz e pensar juntos como é que será feito o projeto. É produzir em comum, o que é completamente diferente, acaba com a lógica da inclusão. Tudo que se faz de teatro de Marechal para cima é chamado de teatro amador. O menino se arrasta no chão no Espaço Sergio Porto é contemporâneo, em Santa Cruz é amador. E a primeira participação expressiva na sociedade é o grupo de teatro, da igreja, da escola, da esquina. Depois vem o hip-hop. E depois o funk. Esses três são a entrada para o mundo das expressões. Então essa lógica de hierarquização dos corpos na cidade a gente precisa mudar. Mas só muda com produção de presença. O teatro da Zona Oeste precisa deixar de ser invisível. O que acontecia com os meninos da Zona Oeste de teatro? Esse cara tinha que virar técnico na cidade do Rio de Janeiro, porque ele não conseguia financiamento, não tinha intimidade com a política pública. Aí os técnicos de teatro são todos malucos que vieram da baixada, da Zona Oeste, tentando ser artista e não conseguiram, mas queriam ficar perto da galera de teatro. Eu queria ficar perto dos artistas, porque a primeira coisa que eu decidi na vida é que eu seria vagabundo. E quem é vagabundo? Artista. Vou ficar perto dessa galera, que é uma galera maneira. [Sergio] E agora trabalha pra caralho... Eu me ferrei! Só trabalho. Mas eu tenho falado muito nisso. O bairro mais longe, embora eu considere que Santa Cruz não é o bairro mais longe, é o primeiro bairro. Do meu ponto de vista, a cidade tem que começar pelas pontas. Tem muito grupo de teatro em Santa Cruz. Tem uma juventude muito potente lá. O que é preciso é dar visibilidade. A visibilidade é um direito que dispara outros. Quando se é visível, é possível se entender as verdadeiras necessidades. Já com o invisível, você não sabe como lidar, você supõe, representa. Então, hoje, territorializar, ou, pensando de outra forma, desterritorializar, porque o orçamento está muito na Zona Sul, espraiar o orçamento,

ter novos trânsitos na cidade, fará bem a todo mundo. Porque o Rio ainda não experimentou 30% do seu imaginário possível. A gente ainda bota o pobre sempre no lugar de personagem. Quando os moleques do Mototaxi começarem a criar as suas narrativas, suas poesias, seus saraus em moto, quando as combinações possíveis aparecerem, existirá mais campo de trabalho, existirá mais expressão. Isso é o papel do poder público, por exemplo. Construir equipamentos, mas também reconhecer o que já existe. A esquina, por exemplo. Entender que se existe um grupo que faz dança na esquina, ele precisa ser valorizado por isso, estimulado. Todo mundo é cultura. A primeira coisa é produzir uma ecologia. A cultura precisa de ecologia, senão o campo cultural não aparece para a sociedade. Porque a cultura precisa se repetir todo dia, o tempo todo, para se afirmar. [Sergio Cohn] Gary Snyder, o poeta beat, afirma que pelo modo que o sistema econômico funciona atualmente, você é penalizado se tentar se fixar em um lugar definido, tentar habitar um território. E com a cultura digital, os Pontos de Cultura, aconteceu um fenômeno no Brasil que foi a diminuição das migrações culturais. O Piauí, por exemplo, sempre produziu grandes expoentes da cultura, mas eles sempre migraram para os grandes centros, como o Mario Faustino, o Torquato Neto. Agora, eles fazem a base lá. Saem e voltam, mas continuam morando lá. Como você vê isso? Então, o que o capital precisa? Controle de território e fluxo de capital. Por isso as UPPs, por isso eles determinarem onde serão as fábricas, por isso não conversarem diretamente com as associações de moradores, colocarem a polícia para fazer isso. São formas de controlar o território. A circulação do lucro pelos países é tudo o que eles querem. E de certa maneira os sujeitos são capital. Eles são enviados de uma fábrica para outra, de um lugar para outro, conforme a necessidade. Então disputar a expressão dos territórios é decisivo. A luta contra o capitalismo não é mais só programática, pelos direitos. É pela existência dentro de um território. Para que o território não seja mais uma commodity, assim como os corpos estão sendo commodities. Lutar pelo território hoje é lutar pelo corpo. Porque não tem território sem corpo presente. Território não é espaço só, é a vida produzida, é a vida inventada. É decisivo produzir uma luta pelo território. E que não é de fixação, é de lugar de fala. De que lugar eu falo? E daí você está assumindo a sua potência e a sua limitação. O lugar de fala não é só o lugar de partida, é o meio. É o lugar que você está sempre acessan-


do, voltando. E é preciso ter comunidades fortes para poder resistir a esse projeto do capital de dominação. Eu gosto de pensar que existem três capitalismos nesse momento disputando a cidade do Rio de Janeiro. O capitalismo não é único também. Ele disputa entre si. Esse arranjo dos grandes eventos é um arranjo que escolhe uma cidade do mundo e vai para lá e com isso atrai todo tipo de capitalismo. Nesse momento no Rio a gente tem o capitalismo de entretenimento, que passa a organizar o turismo, tem o capitalismo que eu chamo de “oleoduto”, que considera a cidade um porto, que quer tubulação, e tem o capitalismo financeiro, que quer endividar todo mundo dentro dos territórios, faz créditos, se associa ao capitalismo imobiliário, suga a cidade e então vai para outra. Se você não tem um território forte, você não resiste a esse capitalismo. A esse fluxo de capital que o capitalismo traz. Então não adianta só caçar oportunidades. É preciso ter força nos territórios para poder negociar, discutir, apontar direções. Por isso que eu falo muito na territorialização dos orçamentos. Que é diferente de regionalizar. Regionalizar é dividir a grana por área. Territorializar é pensar as diferenças. Acho que já existiu a territorialização do orçamento no Ministério do Gilberto Gil. Quando ele faz o DocTV para cidades até 20 mil habitantes, foi uma grande política de territorialização, que identifica que aqueles lugares não tinham produção de imagem, e cria uma proposta sobre isso. Então há a disputa do território e a disputa para que o fluxo da cidade, o pensamento do fluxo da cidade não seja só pela ordem do capital, seja pela ordem dos sujeitos. Por isso o Passe Livre é tão importante. E é importante lembrar que o território não é o outro que você vai lá conhecer. Se olharmos o “Dom Quixote”, é um romance político, onde os monstros estão do outro lado da fronteira. Mas o território não possui fronteiras, ele vai fazendo tramas. O que é diferente de fronteira, país, que é bélico. Disputar e entender o território é a única forma de fazer política nesse momento. [Guilherme] Você é uma pessoa que se formou pela circulação de territórios... Mas eu sou uma exceção. A história não pode ser só dos extraordinários. Vamos ver o que aconteceu com a nossa vida e vamos inventar possibilidades a partir disso. Porque democracia é ordinária, para mais pessoas. É preciso contribuir para isso. Eu me sinto absolutamente artista fazendo esse trabalho. Mas tenho certeza de que estou fazendo um projeto de produção. Porque a ideia de produção no Brasil também precisa mudar. Produção geralmente é pensada como resolver problema para o artista. Mas podemos estetizar a produção. Produtor é aquele que pensa o ambiente. Quem

Lutar pelo território hoje é lutar pelo corpo.

Porque não tem território sem corpo presente. Território não é espaço só, é a vida produzida, é a vida inventada. É decisivo produzir uma

luta pelo território. E que não é de fixação, é de lugar de fala. De que lugar eu falo? E daí você está assumindo a sua potência e a sua limitação. O lugar de fala não é só o lugar

de partida, é o meio. É o lugar que você está sempre acessando, voltando. E é preciso ter

comunidades fortes para poder resistir a esse projeto do capital de dominação.

eu vou misturar. Como vai ser esse momento da dramaturgia, da criação desse processo. É preciso estetizar a produção. É preciso ter artistas se tornando produtores para pensar o campo de criação como estético. E aqui penso o campo de criação como a feitura de um projeto. As escolas de produção treinaram muito as pessoas nas planilhas, na captação e na realização do evento, pensando pouco nessas outras dimensões. O Cinema Novo é uma invenção de produtor. Nós temos exemplos no Brasil disso acontecendo. [Fred] A música popular brasileira foi de certa forma inventada por produtores... E tem uma lógica contrária hoje, de que o produtor é apenas o que resolve pepino. E no nosso meio os coletivos se produzem, os moleques de favela se produzem, vocês se produzem. Então vamos assumir que todos nós somos produtores e vamos estetizar o discurso do produtor. Para disputar ele. E transformar ele num campo de pensamento artístico também.

[Sergio] A cultura digital influiu no seu pensamento? Certamente. O meu trabalho mudou. Eu era um artista analógico, montava peça de teatro político. Eu acreditava na representação, porque eu fui um marxista tardio, que tinha errância na arte. E com a cultura digital, estou lembrando aqui do meu primeiro computador, eu tive acesso a muita coisa. Eu gosto de inventariar. E a cultura digital permitiu esse fluxo não só meu, mas de muita gente, por diferentes territórios não através do capital, mas através do sujeito. Eu brinco que eu só sou capaz de fazer o que me proponho hoje porque eu aprendi com a cultura digital. É fazer na vida a lógica da cultura digital. E não criar dicotomia entre mundo digital, mundo fragmentado, e mundo real. Porque esses são os medos. O poder tenta pautar as pessoas pelo medo. E as pessoas se sentem endividadas. “Quero ser alguém, quero ter uma casa”. O capitalismo o endivida no seu desejo. E daí você deixa de inventar a sua presença. E a gente vai morrer, bicho. Então vamos inventar vidas.

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Acrobacias e alguns desequilíbrios em Teresina

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Todo artista é um acrobata. Precisa executar exercícios de força, destreza e uma musculosa ginástica. Não importa se ele é dançarino em Moscou, videomaker no Chile, ou músico no bairro Água Mineral. A linguagem do artista só será desenvolvida se houver articulação múltipla – sendo o ser que afronta – BUM! com os dois pés na corda-bomba. E o piauiense é essa identidade artrópode: apesar das dificuldades na produção artística (e outros ostracismos), dobra-se e desdobra-se até que, de repente, faz circular esta boa-nova publicação cultural: a revista Acrobata. Editada em Teresina por Aristides Oliveira, Demetrios Galvão, Meire Fernandes e Thiago E, a Acrobata dialoga com diversos campos, em especial o audiovisual e a literatura, podendo ser uma revista, um livro ou um objeto não identificado. Seu projeto gráfico fica flutuando entre a rapidez de uns poemas (ou prosas) e a discussão mais aprofundada dos ensaios – um novo espaço aberto ao debate e à circulação na cultura. O fato de não estar inserida no eixo Rio-São Paulo, a coloca na condição de margem, porém possibilita o deslocamento da criação de modo diferente, original pros padrões mais badalados, com a intenção de seguir apresentando novos nomes do Nordeste, Norte e Centro Oeste. A Acrobata possui o apego ao prazer táctil da apreciação, por isso nasceu impressa. Nesta 1ª edição, o leitor encontra informações sobre o cinema indígena, do pesquisador Charles Bicalho (MG); uma extensa e histórica entrevista com o poeta e editor Sergio Cohn (SP/RJ); os sabores do cinema baiano, por Izabel de Fátima (BA); o Dique, de Adalberto Oliveira (PE); trabalhos literários de artistas de diversas partes do Brasil, como Augusto de Campos (SP), Floriano Martins (CE), Alexandre Guarnieri (RJ), Sinhá (RN), Rodrigo M Leite (PI), Ademir Assumpção (PR), Conceição Lima (São Tomé e Príncipe), Salgado Maranhão (MA), Marcelino Freire (PE); uma visão do cinema de Godard, por Nayhd Barros (PI); a poesia de Teresina no século XXI, por Wanderson Lima (PI); artes plásticas de Cicero Manoel (PI); as revistas literárias no Brasil, na voz de Edson Cruz (BA), etc. Nas linhas do audiovisual, há um mapeamento de estudos, produções e reflexões ligadas a todos os suportes que ajudem a compreender a pulsão criativa dessa linguagem. Cineastas e pesquisadores brasileiros são reunidos e constroem suas experiências com o leitor, intensamente. E, assim, entramos na discussão contemporânea sobre produção-circulação-consumo dos bens culturais. A pauta é extensa e a gente se embrenha. Se você se interessou pela Acrobata impressa, ela é apenas R$ 14,90 + 5,00 de frete. Contudo, está disponível pra leitura e download neste link: http://issuu.com/revistaacrobata/docs/acrobata_issuu_ok. E pode visitar a fanpage no facebook: https://www.facebook.com/revistacrobata?fref=ts. Nunca é demais lembrar que a faísca é a dança da conversa. Discordância pode haver. Que se busque um equilíbrio. Ou um des. Fora isso, o artista segue – aprendendo a ser o que precisa, aprendendo a ser o chão que pisa.


culturaebarbárie Ortego

Poema

de

André Vallias

e texto de

Flávia Cera

Yo soy: no espelho, dá no mesmo. Eis o primeiro lugar (ort) do ego. Um palíndromo que reflete de trás pra frente e de frente pra trás a tentativa sempre fracassada da ortopedia imaginária do ego, do “eu sou”. Yo soy yo. Outro espelhamento inequívoco: “eu sou eu”, retificando insistentemente a imagem que se reflete no espelho. Mas ela, por ser fracassada, pede um suplemento: Yo soy yo y. “Y” que fura a redoma do Ego. Fura sua servidão imaginária. Muda de esfera. Amplia. Transborda. Abre-se para a alteridade. Coloca o ego em movimento. A plasticidade: “yo soy yo y mi circunstancia”, dizia Ortega y Gasset. Eu sou eu e o encontro com o mundo. Eu sou eu e os outros no mundo. Eu sou eu e o mundo. O eu formado pelo contorno do mundo, pelo “y”. Que transforma. A metáfora. Dois círculos. “Circum-stantia”. Dois lugares. Dois espaços. Dois mundos. Duas realidades que, “ao serem identificadas na metáfora, chocam-se uma com a outra, se anulam reciprocamente, se neutralizam, se desmaterializam”. Eu sou eu e a contingência: “La cultura”, diz também Ortega y Gasset, “nos proporciona objetos ya purificados, que alguna vez fueron vida espontánea e inmediata, y hoy, gracias a una labor reflexiva, parecen libres del espacio y del tiempo. De la corrupción y del capricho. Forman como una zona de vida ideal y abstracta, flotando sobre nuestras existencias personales, siempre azarosas y problemáticas. Vida individual, lo inmediato, la circunstancia, son diversos nombres para una misma cosa: aquellas porciones de la vida de que no se ha extraído todavía el espíritu que encierran, su logos.” Ortego é a poética em que se abrem a multiplicidade de nomes e a multiplicidade de lugares (mundos) do eu.

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abrazço

Panel number 1: Poeira de citas G

Los demás eran artistas. Duchamp colecciona polvo.

onzalo

Abrazço é uma página em que imagens e palavras se de-

Aguilar

John Cage,

26 proposiciones Re-Duchamp

Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a

mandan, se muerden, se aparean. Tem duas línguas oficiais

Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade,

erros são admitidos, legais, a contribuição millionária. Textos

Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a bele-

(castellano y portugués) e uma não ofícial (o portunhol). Os

e imagens são procurados ao acaso pelo lance de dados de google e o olho paranoico do organizador (eu). A memória hu-

mana também participa e compite com o cerebro informático

–ainda que saiba que vai perder. Despois o material é jogado

na página como se fosse um atlas ou um mapa de extravios. O poema “Pó” de Augusto de Campos foi o início, depois a poei-

ra: Cage-Duchamp, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Nuno

como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de za dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para

a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos

com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...

Ramos, Hélio Oiticica, José de Alencar, Gregório de Matos,

João Guimarães Rosa,

Néstor Perlongher. Bataille não está mas é o óbvio.

Grande sertão: veredas

Según Raúl Antelo, “la idea es característica de la va-

nitas barroca: todos, hasta los obispos, somos polvo, y por

tanto, nuestra carne mortal no debe ser tomada en cuenta. Pero esa idea subyace también a una concepción de la cultura que estaba en proceso desde el Criadero de polvo (1920), de Marcel Duchamp y Man Ray”.

O primeiro abrazço é clássico, quase sem achados, na-

cional (o que não é a idéia mas o que sairá daqui). O próximo

será mais extraterritorial.

En la conchita de las pendejas

En el pitín de un gladiador sureño, sueño

En el florín de un perdulario que se emparrala, en unas brechas, en el sudario del cliente que paga un precio desmesuradamente alto por el polvo, en el polvo

Hay Cadáveres

Néstor Perlongher, “Cadáveres”

O jovem caçador seguiu o olhar do chefe e sumiu-

se num turbilhão de poeira. Quando os vaga-lumes

começaram a luzir no escuro da mata, ele estava de volta ao campo dos araguaias; e trazia o curumim fechado nos braços.

Que és terra Homen, e em terra hás de tornar-te,

José de Alencar,

Te lembra hoje Deus por sua Igreja,

Ubirajara

Do pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te.

Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te, E como o teu baixel sempre fraqueja Nos mares da vaidade, onde peleja,

Te põe à vista a terra, onde salvar-te. Alerta, alerta pois, que o vento berra,

E se assopra a vaidade, e incha o pano, Na proa a terra tens, amaina, e ferra. Todo o lenho mortal, baixel humano

Se busca a salvação, tome hoje terra, Que a terra é porto soberano.

Gregório de Mattos:

“Continua o Poeta com Este Admirable

A Quarta-feira de Cinzas”

Um pequerrucho rega a trepadeira Duma janela azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira

Ou que borrifa estrelas; e a poeira Encontrava os móveis de novo empoeirados e

sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a

ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamen-

te a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

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Clarice Lispector, “Amor”

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo. Cesário Verde, “Num bairro moderno”


impostor

Se eu é um outro, o outro sou qualquer um Ronaldo Bressane

Mario Santiago Papasquiaro O milagre exige Que via imaginarei para seguir flutuando & atravessar a selva sempre crescente do grosseiro rio O milagre exige De meus ossos flor & de minha mente frutos Neste crepúsculo preciso em que a nuca do sol vai de focinho O ouro sepulta a cinza a praga ao mar a magia a toda pressa * Poema de Mario Santiago Papasquiaro em Labirinto, seleta de poemas do companheiro de Roberto Bolaño no movimento Infra-Realismo [ou Real-Visceralismo, conforme Arturo Belano, Bolaño, e Ulises Lima, Papasquiaro, n’Os detetives selvagens]. Emocionante ler um congênere mexicano de Roberto Piva ou Herberto Helder, um beatnik surrealista cujas ideias fora de lugar foram pela primeira vez publicadas no Brasil em 2009. A ousadia foi da Dulcinéia Catadora, e a tradução, de Beatriz Bajo, que lançou a antologia na Mercearia São Pedro [Vila Madalena, SP], onde o livro cartonero pode ser achado [também vende-se no Sebo do Bac, na Praça Roosevelt, SP]. Mais um: Devaneio Já estive aqui / sem ter estado (nas cordilheiras desta serenidade) (dentro deste relógio de luzes que não estorvam) As torres se iluminam no simples toque o açúcar queimado/ o violino perfumado do seu próprio corpo Bioquímica-freejazz Gruta sem 1 gota de cosméticos Poesia natural/ como o esperma-aguaceiro do Amor Já estive aqui/ sem ter estado *

Em El secreto del mal [Anagrama], último livro em que trabalhava Bolaño – na verdade uma coletânea dos mais recentes arquivos encontrados em seu computador pelo editor e amigo Ignacio Echevarría –, o escritor chileno/ chicano/hispânico, sempre sob a pele de Belano, conta uma visita que fez ao apartamento de Papasquiaro, aliás Lima [aliás José Alfredo Zendejas Pineda, seu nome de batismo], ao retornar à Cidade do México depois de décadas vivendo na Espanha. Toca várias vezes a campainha, mesmo sabendo que seu amigo já está morto – atropelado por um sinistro Impala preto [curioso que, na cena final do Detetives, o carro da dupla seja um Impala branco]. De repente, da porta ao lado emergem três punks gordos e carecas. Apresentam-se como ‘os últimos discípulos de Ulises Lima’ e convidam Belano a entrar em seu apartamento, ouvir o disco de sua banda e beber algo. Este permanece estático a mirar os joõesgordos e os pôsteres de bandas que decoram as paredes do apartamento, onde “garotos mexicanos o olham desde as fotos ou desde o inferno esgrimindo suas guitarras elétricas como se foram armas ou como se estivessem morrendo de frio”. Jamais se saberá se Bolaño continuaria este relato ou se ele termina assim, feito um viaduto inacabado precipitandose sobre a saudade, como quase tudo o que escreveu [uma poética da inconclusão, definiu Echevarría] Assim como a ética da amizade e da sinceridade olho-no-olho, porém em registro mais atmosférico, os vazios bolañescos também parecem se entranhar na poética de Papasquiaro, autor de fluxos de imagens sem juízo final – um autor sem juízo, pelo retrato que dele fez seu bróder: “Ulises Lima era meu amigo Mario Santiago Papasquiaro, que morreu há um ano. Foi meu melhor amigo, meu melhor amigo de longe (...) um ser estranhíssimo, um leitor empedernido com coisas tão estranhas como meter-se sob o chuveiro e ficar lendo. Sempre via meus livros molhados e não sabia que havia ocorrido: será que o México é tão grande que pode chover em certas partes? Me perguntei até que o surpreendi lendo no chuveiro (...) Mario era um personagem fantástico, não tinha nenhuma disciplina. Era um poeta poeta, um ser fantástico, muito valioso”

foto: Infrarealistas: o segundo é Papasquiaro, o quarto é Bolaño Outro: Não creio mais que na queda de estrelas Sobre as pontes que descubro 1 cemitério de vidros : o ex bendito chiqueiro : Dormiu o cheiro de tanto trator sangrento / de onde quebram a cintura dos acampamentos ciganos/ indícios de mim que sustentam & neles que digo: Não creio de imediato nem nas chuvas de ouro velho nem de cabras Nem na irrealidade deste rio em que de santa gana me afogo como se 1 adaga sem rumo partisse ao sol dos meus ecos


confabulações O corpo das palavras Não consigo imaginar melhores autora e texto para abrir os trabalhos desta página, que pretende ser, como seu nome – Confabulações – quer indicar, um espaço aberto para as mais variadas falas e imagens (fabulae), contanto que comprometidas com a tarefa comum (cum) – poética e política a um só tempo, indissociavelmente – de emancipação dos seres e povos. Quem diz confabulação diz conspiração, diz produção de comunidade, diz insurgência, diz afronta ao poder. E o poder, como bem sabemos (no «espírito», mas, antes de tudo, na carne), está em toda parte e recobre todos os expedientes, a começar pela regulação dos corpos, pela atribuição sempre divina (ainda que a escola ou o estado ou o mercado ou o que for sejam os deuses da vez) de destinos supostamente «biológicos» para homens e mulheres. «O coração dos homens», poema de Veronica Stigger que já nasce clássico (sem, no entanto, com isso, perder nada de sua capacidade de inquietação), compartilha com o igualmente magistral Um útero

Eduardo Sterzi é do tamanho de um punho, livro de Angélica Freitas, a insistência na invenção e reinvenção do lugar ainda impossível das mulheres em nossas sociedades presumivelmente tão avançadas, mas sempre, na verdade, tão encarquilhadas. Somente uma mulher sabe, no campo de batalhas que continua a ser seu corpo, que a inconveniência é a única forma verdadeira de santidade, uma santidade que está além de todo puritanismo e mesmo de toda higiene, uma santidade feita de sangue e despudor. O poema aqui publicado é inédito em português, tendo, no entanto, saído recentemente na Argentina, em tradução de Gonzalo Aguilar, como parte do livro Sur, que reúne outros dois textos da autora, «2035» e «Mancha». (Como quem diz comunidade também diz, sobretudo, amor, fiz questão de abrir estas Confabulações, sem nenhuma ilusão de objetividade crítica ou de esvaziamento dos afetos, com um texto daquela com quem, há 22 anos, venho dividindo – isto é, multiplicando – esta aventura que chamamos vida.)

O CORAÇÃO DOS HOMENS I Quando pequena, fui o espelho numa encenação de [Branca de Neve e os sete anões. A peça era toda falada em inglês. E o público, crianças monoglotas da pré-escola. Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês. Aliás, mal falávamos português. Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”. Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo. Ouvia “mascado” e tinha nojo. Este meu colega também sofria de incontinência urinária e não tinha os mamilos: em seu abdômen, só havia o umbigo. Para nos assustar, ele levantava a camiseta e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos. Tínhamos muito medo dele. Não lembro qual foi seu papel na peça. Lembro quem foi o Príncipe e lembro quem foi a Branca de Neve. 30

Veronica Stigger

A Branca de Neve tinha alergia a lã. Só usava roupa de tecido sintético, especialmente um casaco azul e amarelo de náilon. Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes, ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa. O Príncipe era filho da professora da primeira série. Ele se tinha em altíssima conta e todas as meninas queriam namorar com ele. (Menos eu. Eu era apaixonada por outro colega: um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.) Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos. Talvez tenha sido um dos sete anões, embora eu não lembre também quem foram os outros seis. Eu era o espelho. Minha melhor amiga era a madrasta. Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa. Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta [se transformava em bruxa.


Mas lembro que ela dizia: “This is the poisoned apple”. Depois, ela devia gargalhar, muito e alto, como bruxa de desenho animado. Mas a menina que fazia o papel não sabia rir, menos ainda gargalhar. Foi outra colega que lhe ensinou. O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim. Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas. Ninguém mais escutava o que se dizia no palco. A professora de inglês se irritou com a barulheira. Interrompeu a encenação e entrou no banheiro de vassoura em punho. Ela queria bater nas meninas, mas o diretor da escola a impediu. E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar. Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção do figurino e com a elaboração da maquiagem e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens. Mas eu não, porque eu era o espelho, e o espelho seria um espelho de verdade. Eu ficaria atrás do espelho. Um espelho grande, de pé, antigo, com moldura de madeira. Pouco importava a roupa que usaria, quase nada de mim apareceria na peça. Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola. Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido. Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou, e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena. Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira: varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões. E as crianças, que já não estavam entendendo nada, [entenderam menos ainda. Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho [logo no início da peça: “Mirror, mirror on the wall, who is the fairest of us all?”. E o espelho respondia: “Her lips are like blood, her hair is like night, her skin is like snow, her name’s Snow White”. Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava [novamente o espelho: “Mirror, mirror on the wall, who is the fairest of us all?”.

E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve: “She is with the seven dwarfs. She will spend the night. She is the fairest, and her name’s Snow White”. Essas eram minhas duas falas. Todos tinham que recitar pelo menos uma frase. A ideia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga. O problema era que não havia papel para todo mundo. A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim, e nós éramos trinta e cinco na turma. A solução: povoar a floresta. Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões. De coruja a mendigo. Teve até gente que foi árvore, gente que foi banquinho de madeira. (E a professora cogitou aumentar o número de anões.) E todos falavam. Falavam mal. Mas falavam. Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve. Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa: “She is there”. Em geral, nosso inglês era incompreensível. A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada, ela sempre afundava. Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda, em vez de lençóis. E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa [de suas vinte orelhas. Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês. (Afinal, eram monoglotas.) Logo se entediaram. Alguns bocejavam. Outros cabeceavam. Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros. Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente. Primeiro, foram chicletes e bolas de papel. Depois, lápis e gizes de cera. A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir. Corriam como boçais para a beira do palco improvisado e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles [que se achavam ao alcance. A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar. Os anões riram às pampas. E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas. Alguns foram atingidos. Outros, não. E os debochados nos mostraram a língua.

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As professoras da pré-escola se enfureceram: queriam acabar com a peça e mandar a bruxa para o castigo. A professora de inglês não se abalou. Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico: “The show must go on”. Foi aí que menstruei. Era minha primeira vez. Ninguém notou. Eu ficava atrás do espelho. Ninguém me via. Só me ouviam (e olhe lá). Eu também não via ninguém. Meu horizonte era o verso do espelho: uma grande moldura de madeira mofada. Nos ensaios, a ideia era que meu rosto fosse visto acima do espelho. Mas a professora não gostou do resultado e tirou minha cabeça de cena. Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça. Mesmo assim, só as pontinhas. Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos. Todos viam o espelho, e o espelho refletia todos − menos a mim. Por isso, ninguém percebeu quando menstruei. Nem eu mesma. Achava que tinha me mijado. Comecei a exalar um cheiro diferente. Um cheiro desconhecido. Um cheiro que me lembrava podridão. O mijo tem cheiro forte. O sangue tem cheiro forte. Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo. O sangue tem um cheiro adocicado. Um cheiro persistente. Um cheiro de morte. O mijo tem um cheiro ácido. Um cheiro passageiro. Um cheiro de rodoviária.

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A peça não terminava nunca, e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas. Embora ninguém me visse, senti vergonha. Eu devia estar vermelha, como sangue. Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata. Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico. (Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval e não percebeu: suas pernas se tingiram de vermelho.) Imagino que a menstruação excessiva se deva à [ovulação igualmente excessiva. Ou não. Não sei. (Minha melhor amiga um dia me disse: “Eu ovulo muito. Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.) As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária. Por causa da menstruação. Mas não só. Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado. Eu lhes dei, e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula. A professora apertou aquele camundongo morto e ficou com a mão suja de sangue. Era a mesma professora de inglês. Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação. Também na escola. Mas agora sem o espelho. A imigração era o tema. Com comidas típicas, roupas típicas, músicas típicas, danças típicas e suco de uva. A turma havia sido dividida em duas: italianos de um lado, alemães de outro.

Senti minhas calcinhas se ensoparem. Não podia ser mijo. Não cheirava como mijo.

Os morenos eram italianos. Os loiros, alemães. E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única colega negra.

Também não era tão líquido como o mijo. Era mais visguento. E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.

(Ela acabou do lado dos alemães. Não por ironia. Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)

Fiquei agoniada.

Eu fiquei do lado alemão,


porque, além de loira, tenho olhos azuis. Mas queria ter ficado do lado italiano.

Por que não linguiça? Por que não chucrute?”

Não gosto de chucrute, detesto cuca e salsicha não é meu prato preferido.

A professora de história pedia que eu me acalmasse. Nada aconteceria comigo. Ela me prometia.

Queria comer massa, polenta e galeto.

E buscava conter sua impaciência batendo com força sua plataforma de cortiça no assoalho de madeira do hall do colégio.

Todos tinham que levar um prato típico. Um prato que a professora de história considerasse típico. Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.

Sequei as lágrimas com as costas das mãos, lambi o ranho que escorria do nariz e funguei.

Eu não sabia o que levar. Minha mãe também não. Ela nunca gostou de cozinhar.

Se não havia castigo, estava tudo bem. E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção [da minha mãe.

Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado no estrogonofe. Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil de [salvar o prato. Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa [com a comida. Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches [de presunto e queijo. Ninguém gostava, e eu comia todos para que ela não desconfiasse. Daquela vez, ela teve a ideia de pedir a meu avô para preparar [uma polenta. Meu avô era filho de italiano e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza. Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas, toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco. Só tinha um senão: não era nada alemã. Para minha mãe, não havia problema. Ninguém iria notar. Mas a professora de história notou e teve um chilique. Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade. Comecei a chorar. Torrencialmente. Não sei de onde vinham tantas lágrimas. Soluçava alto. Dizia que me arrependia amargamente de ter levado a polenta rústica.

Chegara a hora das danças. Toda a turma estava dividida em pares. Em geral, meninos com meninas. No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo. Sempre fui uma das mais altas da turma. E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas. Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina − invariavelmente, uma varapau como eu (naquela época, também me chamavam Poste). Na apresentação organizada pela professora de história, os italianos dançavam tarantela, os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, [nem alemães eram). Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul. A professora de história tinha uma versão muito particular da história. Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada. Duas grossas tranças circundavam minha cabeça, e meias brancas subiam até meu joelho. Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório. Por baixo, usavam uma camisa branca, e meias brancas também subiam até seus joelhos. Os meninos italianos vestiam um bermudão preto [com uma faixa vermelha na cintura. A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto. Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.

Caí de joelhos no chão e perguntava, repetidas vezes, com os braços erguidos:

As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas. Suas camisas também eram brancas, e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas [pelas longas saias.

“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?

Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas. 33


Os alemães, nada. No máximo, acarinhavam seus suspensórios. Queria muito estar do outro lado. A comida era melhor e parecia ser mais divertido.

Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá. Ficará impuro durante sete dias. Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.

A tarantela era alegre e agitada. A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre. Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.

Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias, fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem, estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo das suas regras.

Saltinho para cá, saltinho para lá, menstruei.

Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar, durante todo o tempo de seu fluxo, como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.

O sangue desceu como uma avalanche. Não demorou para chegar aos joelhos. Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:

Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, [como quando das suas regras. Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, [banhar-se em água, e ficará impuro até a tarde.

corri até a mesa das comidas, saltei e sentei na polenta rústica do meu avô. O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue. Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara. Mas fui suspensa por uma semana. Desde então, peguei horror a ser mulher. Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão: professores se tornavam alunos, alunos se tornavam professores. Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião. Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando. Estávamos nos divertindo com a ideia. Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas. Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe. (Ela nem desconfiava que a sequestráramos.) Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos. E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia: “Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue e que seja fluxo de sangue do seu corpo, permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras. Quem a tocar ficará impuro até a tarde. Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura, todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro. Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes, banhar-se em água e ficará impuro até a tarde. Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, [onde ela tiver se assentado, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água, e ficará impuro até a tarde.

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aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.

Se algum objeto se encontrar sobre o leito ou sobre o móvel no qual ela está assentada,

Quando estiver curada de seu fluxo, contará sete dias, e então estará pura.” “No oitavo dia –” “Basta!”, interrompeu o professor de religião. “Vocês estão pensando o quê?” Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço e nos arrastou até a sala do diretor. (Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.) No caminho, menstruei. O professor e o diretor falavam falavam falavam e eu nem prestava atenção. Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma pequena poça. Uma poça vermelha. Uma poça de sangue. Olhei, cabisbaixa, para os dois. Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim. E eu disse: “Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água, e ficará impuro até a tarde.” II Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter [o formato do meu rosto. Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos. Desde então, passei a ter um sonho recorrente. Sonhava que tinha me acordado. Precisava ir urgentemente ao banheiro, mas não o encontrava. Procurava-o por todo o apartamento. Abria todas as portas com as quais deparava. Mas nenhuma era o banheiro.


corpogeral

A vontade de mijar só crescia. Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor. Até que notava a latrina ao meu lado. Arregaçava a camisola, sentava-me e soltava um jato de urina que parecia não ter [mais fim. Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso [era puro sangue: a cerâmica branca ficara completamente [vermelha e as paredes em volta, também brancas, [tinham manchas encarnadas. Eu me aproximava da latrina. Espiava seu interior agora rubro: sobre as águas sanguíneas, navegava um [barquinho de papel. O barquinho era alvo. Dentro dele, estavam a Branca de Neve [e o Príncipe − não sei se mortos ou trepando. III A Santa chegou hoje aqui em casa. Vai embora amanhã. A vizinha da frente virá pegá-la assim [que o sol nascer. Nunca sei o que fazer com a Santa. Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala do lado do porco de cerâmica. Fiquei olhando para a Santa e ela olhando para mim. Não tínhamos nada para falar. Foi quando percebi uns papeizinhos saindo [de trás dela. Peguei-a no colo. Virei-a de bruços. A Santa era oca e tinha uma portinhola nas suas costas. Dentro, muitos papeizinhos. Abri um deles. O mais amarelado e amassado. Parecia ter sido esquecido ali. Era um bilhete escrito à mão numa caligrafia de volteios:

heyk pimenta

Maritacas

as maritacas rondavam a casa do marcelo maritacas [no outono tempo das baixas a casa de palha e plantas onde os livros adoeciam não cabiam mais na pele a casa onde o marcelo cabia encolhido] com os bicos pretos por fugirem da morte curvos da miséria de não fazer música e nunca fazer música partiam com os gritos os coquinhos ao meio o amarelo deles doce mesmo a distância [um maduro insistente grudado no ar] o amarelo que eles emprestam às maritacas

que berram agora em órbita na minha sacada

[a casa alta e pestilenta de buzinas encharcando jornal velho dando gatos às lacraias] o que as terá trazido ao outro extremo do bairro elas que já não comem coco nem partem nada melancólicas?

versão seis

19/02/13

concorrem entre as flores e a primavera prematura amarela como elas e como as flores alçam asas procedem sua engenharia uma chacoalha os cachos de flor as outras batem as penas duras mais perto do chão apanhando no bico as pétalas antes que o asfalto as apanhe uma a uma ensaiando a destreza das andorinhas discípulas de golfinhos colhendo as pétalas que sequer lhes servem de alimento elas já não sentem fome jogam por não poder esperar jogam para matar o tempo enquanto o tempo [trapezista de circo pobre o picadeiro de titicas] paira entre as árvores com as pernas cruzadas

*

“Minha mãezinha do céu, eu te imploro, me protege.” 35


Fragmento de história futura Gabriel Tarde Tradução de Fernando Scheibe Publicado originalmente em 1896, Fragmento de história futura, de Gabriel Tarde, é um misto de ficção científica e fábula sociológica. O narrador, que vive por volta do século XXXI, rememora a história de uma humanidade que decide habitar as entranhas da terra por causa de uma catástrofe: a extinção do Sol. O cenário serve para que Tarde realize uma espécie de experimento mental, um laboratório ficcional para suas teorias sociológicas. Inédito em português, Fragmento de história futura foi traduzido por Fernando Scheibe, e conta com o prefácio que H. G. Wells escreveu para a edição inglesa de 1905.

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“O tropicalismo é o lance da desestruturação de todos os poderes. Tem até o lema da desordem amorosa ou das minorias. Eu encaro o tropicalismo como um projeto de verificação e de valorização das diferenças, um projeto de radicalidade dessas diferenças, e – enquanto poder – seria também a verificação crítico-analítica desses micropoderes. Você não pode escapar de uma luta pelo poder. Não é de negação do poder, mas de reconhecimento do poder, procurando injetar o veneno do novo – para usar uma expressão de Gil – dentro desse mecanismo de poder.”

mais que uma editora, um pacto com a cultura


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