Atual 2 - 2013

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Atual - Segunda dentição - número 2 novembro de 2013


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1. O Brasil ATUAL. Novembro de 2013. Um país que atravessa o olho de furacões seculares com vozes gritando pela primeira vez, com rostos cobertos e peitos abertos, com dedos nervosos nos gatilhos de balas e bombas, com discursos desconexos e rupturas inconciliáveis em redes virtuais, com a revisão profunda dos campos de força da política nacional. Um Brasil que se vê, em meio a terror e êxtase, frente a frente com novas configurações de problemas e soluções. O Brasil que esta edição apresenta, se coloca no cerne desse espaço em transe. ATUAL n.2 amplia o raio de ação de um novo discurso crítico que se faz necessário nesse momento e continua incorporando colaboradores. Pensamentos críticos que apontam outras possibilidades de práticas e discursos sobre nós e sobre o mundo. 2. O Brasil ATUAL se ressente da falta de informação. Nunca tivemos tanta oferta de informação e nunca fomos tão mal informados. As principais cidades do país vivem com um ou dois jornais apenas. Jornais similares em opinião, cujas ações geram um monopólio que os conduz necessariamente à defesa de seus próprios interesses e demandas comerciais. Os eventos de junho arregaçaram as ruas e as mentes de todos que buscam minimamente a circulação de novos pontos de vista sobre o cotidiano das ruas e do país. Como a Mídia Nina mostrou que um novo olho era necessário, vimos que um novo pensamento crítico também se fez necessário. Essa necessidade não decorre apenas por causa das implicações diretamente políticas dos protestos. A literatura, o teatro, o cinema, as artes visuais e as demais áreas da cultura demandam com urgência leituras acuradas acerca de uma produção cada vez mais robusta e que, ao mesmo tempo, enfrenta os velhos problemas que, no final das contas, também são políticos: financiamento para cultura, artes e ativismo, articulação de demandas coletivas em novas frentes de atuação pública dos agentes culturais, estruturação de mercados internacionais, são algumas das pautas que pedem novas vozes de atuação e novas formas de pensamento no nossos dias de fúria. Pelo que se vê, lê e ouve por aí, elas estão acontecendo, em várias frentes, de várias formas, para vários públicos, vindo de vários lados. 3. O Brasil ATUAL, portanto, é múltiplo. Quanto mais digital, quanto mais conectado, mais profundo, mais ampliado, mais redescoberto. Isso tornou-se inegociável e irreversível nas últimas décadas. É preciso falar da floresta, é preciso falar da agricultura devastadora, é preciso falar das barragens, tanto quanto é preciso falar das favelas, falar das cidades em estado de entropia, falar do pensamento contemporâneo sobre a arte. E podemos falar disso tudo também de forma múltipla, através do ensaio, através do manifesto, através da poesia, através da citação, através do remix, através do arquivo, através do diálogo entre cartas e diários, através de relatos, através de etnografias, através de reportagens. A palavra crítica não tem mais fôrma nem cabresto. Sai da Universidade, aporta na esquina, emerge no bar, atravessa a passeata, quebra vidro de banco, anda de ônibus e vai direta para o jornal, sem filtro, escrita através das várias vozes em São Luiz, em Florianópolis, em São Paulo, em Berlin, em Teresina, em Buenos Aires, no Rio de Janeiro. 4. O Brasil ATUAL é aquele que se espalha por Maputo, Equador, Guiné-Bissau, pelas florestas do Maranhão, pelas barragens de Belo Monte, pelos meandros das manifestações, pelo país como utopia, frustração e devastação. Aquele que apresenta, entre outros, um texto inédito do cartonero Washington Cucurto, uma conversa com Giuseppe Coco e um debate-documento sobre o papel dos antropólogos em relação ao processo de Belo Monte. 5. O Brasil ATUAL: fazer novas apostas na renovação da informação e do pensamento crítico no país. Novas frentes, novos formatos, impressos, digitais, sonoros, visuais. Ir para a rua, chegar nas conversas, ampliar a dúvida. Em tempo de revolta, cada um com seu tijolo.

Atual - Segunda dentição - número 2 novembro de 2013 imagem da capa Calé Projeto gráfico original e logo Elisa Von Randow Editor de arte Tiago Gonçalves Azougue Editorial issn: 2318-1834 2

Editores Camila do Valle César Oiticica Filho Daniel Caetano Edu Monteiro Frederico Coelho Guilherme Zarvos Heyk Pimenta Maurício Barros de Castro Miguel Conde Pedro Kosovski Sergio Cohn

saiba mais em: www.oultimojornaldaterra.com.br facebook.com/atualoultimojornaldaterra

Atuais Abrazço - Gonzalo Aguilar Acrobata - Demetrios Galvão e Thiago E Ah Anotações de Campo - Miguel Conde Arena dos Bodes - Mariana Patrício e Pedro Kosovski Confabulações - Eduardo Sterzi Corpo Geral - Heyk Pimenta Cultura & Barbárie - Alexandre Nodari e Flávia Cera Era o Dito - Marcelino Freire Folha de Eva & Adão - Guilherme Zarvos Impostor - Ronaldo Bressane Impressões Clandestinas - Maurício Barros de Castro Inquietação Guia - Sergio Cohn Maranha - Zema Ribeiro Objeto Sim Objeto Não - Frederico Coelho Papo da Floresta - Camila do Valle Pano de Fundo - Alexandre Santini Putaria Enamorada - Felipe Bragança Quebra Pedra - Daniel Caetano Rádio Comum - Cezar Migliorin e Fernanda Bruno Riocorrente - Paulo Almeida Sobre Imagens & Afins - Patrícia Gouvêa


arenadosbodes cosmocartas pedro kosovski e mariana patrício

#saudaçãodespedida – Queridíssima – Meu muito querido – Para você mil beijos do seu amigo nº1. – Mil abraços. Milhões de beijos. – Minha cara – Meu caro. É preciso escrever espremido e dos dois lados pois o correio para Brasil via aéreo é caríssimo. – Lygia mil beijos, estou há semanas para lhe escrever; a loucura anda tanta (trabalho) que vivo adiando tudo; – Mil beijos e escreva logo antes de viajar. Estou louco para ouví-lo. Beiiijos – Caríssimo HélioCaetaGério – Meu amor – Adoro-a as always, você sabe. Um grande beijos, cinemascope, Love – Caro Hélio – Lygia Baby – Queridíssimo – Lygia mil beijos – I love you, love me. Beijos. – Lygia, finalmente escrevo depois de tanto tempo; e ainda mais com urgência, pois penso que você pode ajudar em algo. – Hélio, acabo de receber sua carta e aqui vai uma resposta ultrarápida, pois é urgente para você os dados que te darei. – Lyginha – Te mando todo o meu de sempre, Clark. – E beijos e até já e já! Love love love, Hélio. – Mil beijos para esse novo HeliCaetaGério! Clark. – Aquele AMPLEX! (não é genial?) Abraçobeijos, Hélio. – Te mando um grande beijos, e para o seus que também são meus, muitas saudades, mas muitas mesmo… Clark. – Penso em você e envio as melhores vibrações. I love you. BEEEIJOS (lembranças todos) Hélio. – Mil beijos para voce e me escreva, pois com você ao menos posso me comunicar. Todo o meu que é intenso, enorme e total… Lygia. – Lygia – Hélio. – Hélio – Lygia. – Lygélio. – Hélygia

#semsairdopapel Silêncio prolongado. – Está ouvindo? – Não. – É isso. – O que? – A fala. – Não ouvi. – Porque não saiu do papel. Novo silêncio. – Está ouvindo? – Não. – É isso. – O que? – A canção. – Não ouvi. – Porque não saiu do papel. Novo silêncio. – Está vendo? – Não. – É isso. – O que? – O filme. – Não vi. – Porque não saiu do papel. Novo silêncio. – Está sentindo? – Não. – É isso. – O que? – A dança. – Não senti. – Porque não saiu do papel. Novo silêncio. – Está lendo? – Não. – É isso. – O que? – O livro. – Não li. – Porque não saiu do papel. Novo silêncio. – O que faz uma artista quando se sente sozinha? – Cria. – Não. Inscreve projeto em editais. – Porque não saiu do papel.

#diálogodepartes – Faço joguinhos para o tempo passar. – E ele passa? – Esbarra! No meu corpo. Que fala a si próprio através de suas partes. Quer experimentar? – Joguinhos de passar o tempo? – Por exemplo: Um seio lê o horóscopo. O que ele diz pro outro seio? –… – Somos gêmeos até que um cancer nos separe; Sua vez! – O que o nariz falou para boca? –… – Sobe pra cima de mim, bichinha; nesta posição não dá. – O que o clitoris disse ao pênis –… – Puxa, como você é desenvolvido! – O que a lágrima disse ao olho? –… – Sou a estrela que cai deixando um rastro na sua pálpebra. – Conversa entre objetos! O que um sapato disse ao outro? –… – Aproveitemos a nossa liberdade antes que o compasso das pernas nos unifique – O que a garrafa disse ao copo? –… – Me esvazia, estou com saco cheio. – O que o joelho disse a geometria? –… – Ajoelhar é a descoberta do ângulo reto. E vou por aí com mil e um joguinhos que amo, me divertem, me encantam.

Alguns fragmentos do novo trabalho, “Cosmocartas”, que pesquisa uma tradução póeticodramática-plástico-musical-performativa para o clássico livrinho vermelho de correspondências entre Lygia Clark e Hélio Oiticica. O trabalho estará aberto ao público a partir de Dezembro deste ano.

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O Brasil como frustração – apontamentos sobre José Carlos Oliveira

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I Frustração: Estado daquele que, pela ausência de um objeto ou por um obstáculo externo ou interno, é privado da satisfação dum desejo ou duma necessidade. (definição do Aurélio) Quantos pensadores e criadores do Brasil viram seus sonhos de futuro para o país frustrados? A derrota de seus projetos políticos e estéticos, a castração de suas ambições vivenciais, a impossibilidade de efetivar seus desejos: Quantos morreram sem ver o país que imaginavam em seus discursos, ensaios e obras? Não falo aqui de derrotas políticas, suicídios românticos ou falências de carreiras. Essas são frustrações de âmbito pessoal, privado. Falo aqui da frustração como catarse de uma derrota macro-histórica, a frustração de planejar, projetar ou sonhar incessantemente um país e esse país desejado nunca ocorrer. A frustração do exílio, a frustração do silêncio, a frustração da impotência. Quando o criador desenha e resenha um país cujas possibilidades são reais, mas os resultados são aquém, muito aquém. Quando se olha o abismo entre o país desejado e o país vivido, resta a frustração. A frustração se alimenta, por exemplo, da utopia. A privação da satisfação de um desejo incide justamente na impossibilidade desse desejo ser realizado. Seus planos mais simples, suas ambições mais comezinhas, elas não se realizam enquanto cotidiano. Elas se eternizam enquanto discurso, enquanto inspiração. Mas você já está morto quando seu discurso utópico cheio de vitalidade e desejo de mudança ecoa mudo, apenas nos papéis e pedaços sonoros dos arquivos das cidades. O pensador do projeto frustrado é um homem morto, porque sua fala só existe para os demais após o silêncio do seu corpo. A frustração, a satisfação roubada de você, essa só pode ser constatada após o balanço de uma vida dedicada à luta pública de ideias. Apenas no julgamento de sua permanência pós-mor-

te podemos entrever o dado rebelde, porém fundamental, de um pensamento frustrado. Sua origem utópica – isto é, de algo que não ocorre em seu tempo – é a vitalidade da sua ausência, a força da sua impossibilidade histórica. O pensador frustrado é, necessariamente, anacrônico. Essa frustração, apesar de todas suas possíveis decorrências psicanalíticas, deve ser instrumentalizada. Ela me serve como ferramenta de análise discursiva em uma seara de textos e obras. A frustração é uma categoria, uma espécie de definição dessa conjunção entre pensamento utópico + história + arquivo ou da conjunção luta política + derrota + permanência e assim por diante. Isto é: a frustração é também um processo histórico em que o frustrado – o criador/pensador – vive com seu pensamento utópico entre o respeito e a rejeição. Ela se instaura enquanto fenômeno após o balanço crítico desse pensamento frente às novas gerações. Mas essa frustração precisa de um objeto, ou melhor, da ausência de um objeto, para tornar-se fenômeno e categoria de análise. E esse objeto é o Brasil. Ou melhor, o Brasil enquanto “comunidade imaginada” ou como um coletivo de cidadãos em prol de um telos histórico de superação do atraso e conquista do moderno. Pensando bem, não é o homem que é frustrado, mas sim seu projeto de país. A frustração é a derrota de seu projeto de Brasil. O Brasil como frustração. II De fato, trata-se de NARRATIVAS DA FRUSTRAÇÃO. O Brasil como frustração é um pouso, um espaço em que essas narrativas ganham contornos mais claros. O Brasil é o objeto em que a frustração ancora e se espalha. As gerações do século XX foram gerações que viram o país agrário, arcaico e monárquico tornar-se urbano, moderno e democrático. Elas foram as gerações que viram escravos tornarem-se arre-

medos de cidadão, que viram operários saírem da indigência e chegarem ao poder, que viram o capitalismo lentamente derrotar e obstruir todas as alternativas econômicas para o país, sejam elas populistas, socialistas, messiânicas, suicidas ou anárquicas. As utopias de Brasil, portanto, eram o prato do dia para pensadores e intelectuais culturais, homens e mulheres que articularam reflexão e ação, crítica e prática. Como não pensar o Brasil como utopia, como redenção de um sonho em aberto no terceiro mundo em transformação? Como não crer que é aqui que O NOVO, como diria a canção, sempre vem? III Em 1952, vindo do Espírito Santo, José Carlos Oliveira (1935-1986) pisava nas pedras polidas da Guanabara. Duro, sem contatos em uma cidade de dois milhões e meio de habitantes e sem pouso certo, foi direto ao que interessava: o bar Vermelhinho, Meca dos intelectuais, boêmios, artistas, jornalistas e políticos no coração da capital, localizado na rua Araújo Porto Alegre, onde hoje espancam professores e jovens. Em pouco tempo, ele era tão íntimo do bar quanto as mesas e cadeiras. José Carlos Oliveira, rapidamente, passa a escrever na revista Manchete e no Jornal do Brasil (onde escreve por 23 anos ininterruptos), além de Cigarra e do lendário Diário Carioca. Escreve crônicas, estilo que, durante sua formação, não vislumbrava. Porque José Carlos Oliveira projetara sua maldita e bêbada trajetória para ser romancista – dos bons. Mas sua vida facilitava a nova frente de trabalho: observador dos bares e das ruas, pensador franco, olho-míssel nas cocotas e nos desvãos da vida urbana. Cronista da linhagem de Bastos Tigres, João do Rio, Emilio de Meneses, Lima Barreto (seu santo protetor), Marques de Rebelo e muitos outros. Após morar com Ferreira Gullar em pensões no Catete, José Carlos Oliveira mergulha de


Fred Coelho

simplesmente uma das peças literárias mais fortes, diretas e fundamentais da literatura anos-70 em Pindorama. As entranhas de um escritor classe-média se contorcendo literalmente (Carlinhos sofria de pancreatite crônica e falência do fígado) em meio a uma ditadura militar que o envolvia e o enojava. Muitos dos trabalhos sobre esse período não conseguem dar conta da vivência cotidiana de alguém que nem foi guerrilheiro, nem foi exilado. Carlinhos Oliveira/José Carlos Oliveira era um escritor torturado não só pela situação política como pelo seu embate com a Literatura, sua sina de ser um romancista “menor”, sem um grande livro, sem conseguir escrever o “romance brasileiro moderno”, algo que ele buscava em suas visões alcoolizadas. Seus romances não ganharam a amplidão que ele almejava, seu grande sucesso fora um folhetim (Terror e Êxtase foi publicado em capítulos no JB). E o seguinte, Um novo animal na floresta, livro engenhoso sobre a ditadura militar, em que autor, narrador e personagem são os mesmos, não ganha notoriedade entre os seus pares e entre o público. Falências, vergonhas, paranoias e sucessos que não o bastavam iam consumindo sua vida no início dos anos oitenta. Morre em Vitória, sua cidade natal, convertido ao catolicismo, desiludido com o Rio de Janeiro, com o Brasil e com o Homem. Em seu Diário, a frustração plena pelo estágio decrépito e carcomido que seu corpo, suas ideias, sua trajetória e o Brasil atingiam, vem à tona sem filtros. A frustração de José Carlos Oliveira é a utopia realizada de Carlinhos. O romancista cerebral sucumbe frente ao cronista frívolo, o intelectual disciplinado é engolido pelo bêbado do Antonio’s. Carlinhos Oliveira afaga e afoga o romancista, dia-a-dia, até sua morte. Trechos do diário:

21 de dezembro, 1977 A propósito de Terror e êxtase: Mesmo com arma na mão, mesmo massacrando, torturando, humilhando o outro, o brasileiro encontra uma brecha pela qual manifesta sua alegria de viver. Assim, o homem cordial seria a besta feroz por definição, por ser o único animal que continua rindo enquanto esfola o seu semelhante. Ainda mais horrível e, ai de nós, maravilhoso: a vítima, sendo brasileira, também encontra jeito de soltar uma gargalhada enquanto a esfolam.

26 de agosto de 1978 Agora vem Danusia Bárbara me entrevistar a mando de M.P. Esse aí não sossega: quer me derrubar de qualquer jeito; indivíduo perigoso por estar friamente cônscio de ser movido por forças irracionais/inconscientes. Não tenho dúvida que M.P. é psicopata. E eu tenho que conviver com essa gentalha, essa merdalhada humana. Os brasileiros me dão asco (Trêmulo de cólera, não posso continuar a escrever).

3 de dezembro de 1978 Tenho que guardar os diários numa caixa, cuidando que traças e outros bichos não os destruam. Posteriormente serão datilografados. Se minha situação financeira estiver boa ano que vem, posso contratar uma secretária. O fato de ser escritor faz de meus cadernos fonte permanente de consulta. Por isso convém que sejam divididos Em assuntos (na medida do possível), tempo e lugar. Por necessidade de progresso espiritual, seriam inúteis se ao me debruçar neles eu não fosse a posteridade mesma. Diário Selvagem (organização de Jason Tércio). Civilização Brasileira, 2005.

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cabeça no eixo Copacabana-Ipanema-Leblon e nunca mais volta. Os bares do Beco das Garrafas, os porres com cheiro de mar no Alcazar e no Castelinho, as bocas e corpos liberados da nova Ipanema do Veloso, do Mau-cheiro, do Zeppelin e do Jangadeiros, abraços e ódios com os maiores heróis da cidade, tudo filtrado em suas crônicas. Tornou-se um dos primeiros colaboradores fixos do antológico Suplemento Dominical do Jornal do Brasil – o SDJB. Tornouse, para o mundo todo, Carlinhos Oliveira. A década de sessenta adentra o ventre do país e rasga as cabeças dos malucos de botecos e dos revolucionários artistas do CPC. Carlinhos Oliveira, na varanda do Antônio’s (Bartolomeu Mitre com Ataulfo de Paiva, hoje um café literário), torna-se o cronista perplexo com a radicalização do homem brasileiro. O pensamento boêmio não casa com a ditadura ou a guerrilha. As crônicas de Carlinhos tornam-se contundentes, diretas, comportamentais, agonizantes, os temas e a linguagem ficam cada vez mais elaborados. O cronista passa, finalmente, a dar lugar ao romancista. Talvez, tarde demais. O romancista José Carlos de Oliveira tornase refém do cronista Carlinhos Oliveira. O cronista publica dois livros antes do romancista: Os olhos dourados do ódio (1962) e A revolução das bonecas (1967). Seu primeiro romance foi O Pavão desiludido (1972). Em 1978, seu grande – e único – Best seller: Terror e Êxtase. O livro narra como saga urbana, ágil e alucinada, a relação entre o bandido assassino 1001 e Heleninha, filha de família rica de Ipanema. O livro vende mais de 15.000 cópias. O romancista José Carlos Oliveira, porém, continua sendo Carlinhos Oliveira. A vida de José Carlos e Carlinhos é extensa demais para escrever aqui. O que não pode deixar de ser lido para se entender algumas das premissas do Brasil como frustração é o seu Diário Selvagem, publicado postumamente pelo seu biógrafo Jason Tércio. O Diário é

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riocorrente L’air Du Temps

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Passei uns meses em Montreal quando mais novo. Cursava direito na UERJ e pintara uma oportunidade de estudar música e francês no Canadá. Tranquei a faculdade e desembarquei numa cidade que começava a desbotar com o fim da primavera. 1992 era um ano confuso. Eu estagiava num escritório em frente à Cinelândia e poucos dias antes de minha viagem a praça estava tomada de estudantes e manifestantes. Ao chegar em Montreal, nada do que eu esperava estava certo. Problemas com meu visto me impediram de estudar música na Universidade da Montreal e eu havia perdido também a bolsa para o curso de francês. Alojado na casa de uma prima resolvi ficar. Mas precisava trabalhar para me manter. Assim fui eu fazer alguns bicos - entregador jornal, ajudante de cozinha numa pensão de comida mexicana, faxineiro num edifício de consultórios médicos. Dureza aguentar o sub emprego, o frio, a distância, a exploração, a falta de grana etc. O dono do negócio das faxinas chamava-se Mário, um português casado com uma brasileira aqui do Méier - não me recordo o nome dela. Vez em quando apareciam para conferir o serviço e fazer o pagamento. O serviço era realizado à noite e eu era responsável por dois dos oito andares do prédio. Quando o cansaço dava trégua, eu ia tomar uma cerveja após o ‘expediente’ numa casa de jazz chamada L’air Du Temps. Boa música e boa bebida. De volta à faxina o serviço não era complicado: recolher a montanha de lixo, trocar os sacos, limpar os banheiros, tirar o pó, passar aspirador nos carpetes e pano no chão. Nada que um cara de 20 anos não desse conta. Nos dias de muito frio, atravessava a rua e tomava um chocolate quente num Dunkin’ Donuts. Após uma semana de trabalho, recebi uma reclamação. Um bilhete deixado em inglês na entrada de um consultório de dentista. Perguntava se haviam trocado o rapaz da faxina e que eu deveria me esforçar mais. Eu achava aquele cara meio bizarro. Dr. Harold tinha três fotos penduradas na parede: uma com George W. Bush, outra com Arnold Schwarzenegger e a

Paulo Almeida

terceira com uma loura que transbordava num vestido verde. Só tempos depois eu descobri que Arnold apoiara George W. Bush alguns anos antes e quem estava naquela parede não era o ator hollywoodiano, mas um político em formação. A loura eu não sei quem é até hoje. Imagino que era sua companheira. Pois bem, tratei de fazer minha faxina cuidando para que o dentista republicano ficasse satisfeito. Dei um trato em sua mesa de madeira nobre e até seus armários eu organizei. Havia um tabuleiro de xadrez ao lado de sua mesa, que tratei de deixar brilhando. Qual não foi minha surpresa quando dois dias depois as reclamações aumentaram. Meu inglês era (e ainda é) péssimo, não respondi. Certa noite caminhei até o centro antigo da ciadde e fui assitir à estreia de Fogos do Kuwait num Imax. A exuberância daquelas imagens naquela tela gigantesca e o esforço conjunto para controlar as chamas no meio do deserto me fizeram ficar acordado a noite toda/ No dia seguinte, ao deixar o consultório que me consumia horas de trabalho, resolvi que deveria acertar as contas com Dr. Harold. Eu estava puto com aquela história toda. Mas meu inglês era sofrível. Como o que faria? Um bilhete, um desenho? Roubaria tudo e fugiria? De repente me deparei com o tabuleiro de xadrez e resolvi mover uma peça. Obviamente era uma brincadeira. Eu sabia apenas movimentos rudimentares - meu melhor amigo de faculdade, Victor Hugo Lagreca Casamasso, campeão de xadrez, tentara me ensinar em vão algumas jogadas. No dia seguinte não havia bilhete, mas meu peão fora reconduzido ao seu lugar. Insisti no movimento. Por três noites seguidas o peão voltou à sua casa de origem. Até que Dr. Harold parece ter entendido o convite e aceitou a provocação. Moveu um peão preto. E toda noite um de nós movia uma peça. Certa noite, Dr. Harold deixara um muffin em sua mesa. Estava claro: agora eu tinha um amigo no Canadá. Durante algumas semanas trocamos movimentos e peças. Até que parei. Minha volta ao Brasil se deu repentinamente. Não pude voltar ao consultório. Não pude me despedir do meu amigo.

Anos mais tarde, ao encontrar o português Mário no Brasil, ele me perguntou se eu havia roubado algo do consultório, pois o dentista perguntara várias vezes por mim. Chegara a ir ao prédio de noite perguntar para meus colegas de faxina o que havia acontecido comigo. Sofri também. ------------------- x --------------------Setembro de 2013. 21 anos depois ainda sonho terminar aquela partida. ------------------- x --------------------Setembro de 2013. Uma multidão invade as ruas do país. Temos um projeto de governo que parece não mais se sustentar. O que acontece com os povos da floresta é uma atrocidade. Os índios não são respeitados em seus direitos mais básicos. Rasga-se a Constituição a cada dia. A bancada ruralista dá as cartas. Em 20 anos, nada mudou nesse país. Mesmas roubalheiras, mesmo desejo de mudança, mesma insatisfação, mesmos atores no jogo político. As políticas culturais também não conseguem apontar para uma direção segura. Estudantes são presos sem explicação. Outros averiguados por terem livros suspeitos em suas estantes. Mascaras são proibidas em várias cidades do país. Professores que ocupam a Assembleia do RJ tomam porrada na cara de policiais mascarados. Cresce o número de homossexuais mortos. Cresce o número de mulheres agredidas e violentadas. Jovens negros lideram estatísticas de mortos pela polícia. Já sabemos que fim levou o Amarildo. ------------------- x --------------------O tempo se foi Há tempos que eu já desisti Dos planos daquele assalto ------------------- x --------------------Sigo movendo minhas peças nesse enorme tabuleiro. Sigo convidando conhecidos e desconhecidos para o jogo. Para jogo de nossas vidas.


rádiocomum conversa com giuseppe cocco Mundo Braz Existe uma outra maneira de se pensar a relação do Brasil ao mundo: um devir-mundo do Brasil e um devir-Brasil do mundo que necessariamente passa por uma transformação dos valores. O que a periferia tem como alternativa ao tornar-se centro? Um devir que é uma capacidade de afirmar uma potência; por exemplo, a potência dos pobres. Junho de 2013 Primeiro, esse evento intempestivo pegou todo mundo de calças curtas, em todos os níveis, e é irrepresentável. Agora, qual é a sua genealogia? É um elemento de um ciclo global que começa na Tunísia, nas primaveras árabes, vai para a Espanha, passa pelos Estados Unidos com o Occupy, que não se massificou, veio para o Sul com os Ocupas, que foram pequenos, mas agora a gente reencontra todo esse pessoal nas manifestações. Esse ciclo continua. Ao meu ver há uma relação direta entre Istambul e o que aconteceu aqui. Qual é esta a relação? Há um mecanismo que é a defesa de uma forma de vida: a cidade, as árvores, um parque – em Istambul – e a resposta consensual, autoritária, de uma repressão desmedida e daí uma reação generalizada, uma mobilização democrática afirmando que essas formas de vida hoje são as formas de organização e de produção de uma outra metrópole, assim como em São Paulo. O que há de singular no Brasil? Em primeiro lugar, uma nova composição social, uma composição de classe se tornou capaz dessa mobilização em boa parte por causa das políticas do governo Lula, incluindo a Dilma. Essas políticas transversais de distribuição de renda e inclusão de jovens no ensino superior e técnico que constituíram uma nova

Cezar Migliorin

e

Fernanda Bruno

camada de jovens. Uma camada nova do proletariado do trabalho imaterial que eles chamam de nova classe média e que na realidade é uma nova composição do trabalho que é capaz de lutar muito mais do que há 10 anos atrás. Nesse sentido, é um fruto paradoxal do governo Lula e que se constitui dizendo: não queremos retrocesso; eu quero é mais!

forte o discurso sobre a assembleia constituinte. O segundo elemento seria parar de pensar a política como dinâmica de pesquisa eleitoral, de marketing de números. Quem acha que uma manifestação de duas, três mil pessoas não tem efeito eleitoral não entendeu nada. A manifestação é uma dinâmica dos corpos em que todos são afetados.

Esquerda Não é só a esquerda organizada de governo que foi ultrapassada. A gente também foi; ninguém lidera nada disso. Ao mesmo tempo, a mobilização estava lá e a esquerda só pensava em mobilização pelo trabalho. A esquerda me parece totalmente incapaz de assumir esse levante para se renovar e se deixar atravessar por ele. Ao contrário, ela tem uma postura que é fundamentalmente conservadora de criminalizar, de dizer que é de direita, de maneira absolutamente irresponsável. A esquerda parece atravessada por um ethos conservador. Como se ela dissesse: como esse pessoal ousa criticar um governo que é tão bom! Como se os críticos fossem necessariamente de direita. É a pior reação que a gente poderia imaginar porque vai levar a um desastre eleitoral em 2014.

A mesma pessoa que diz “sem violência”, no momento seguinte grita “não vai ter copa”, o que não é uma coisa simples no Brasil.

Como a esquerda poderia responder às manifestações? Não é tarefa fácil. Mas, em primeiro lugar, acho que o governo, o PT, deveria estar na rua com declarações sistemáticas que pelo menos retomassem a relação entre a assembleia constituinte e a reforma política. A Dilma aproveitou, fez uma declaração e logo foi absorvida pelo funcionamento do Congresso que claramente não quer nenhuma transformação que comprometa a reprodução dos mandatos. O PT e toda a esquerda, em vez de procurar criminalizar os movimentos, como eles fizeram no Rio de maneira vergonhosa, deveria manter

Multidão O que é o fazer-se da multidão? É a constituição interna de suas lideranças, de seus objetivos, de seus processos de organização. Existe uma multidão no fazer da luta e não fora dela. No caso da Presidente Vargas (20 de junho de 2013), a multidão não era o conjunto da manifestação. Havia uma mobilização de massa e dentro dela elementos do fazer-se da multidão, sobretudo nos processos de radicalização que impediram qualquer recuperação daquela manifestação como episódio ordeiro de um gigante que teria acordado. Não há o fazer-se da multidão sem esse elemento constituinte. O conceito de multidão é um conceito de classe, não da classe determinista e teleológica do marxismo ortodoxo, mas da classe como o que existe porque luta e não como o que luta porque existe. Essa violência que está nas ruas é uma ritualização do processo democrático. Sobretudo nas metrópoles brasileiras onde a polícia todo dia, nas favelas, usa balas de verdade. A única solução da guerra endêmica de extermínio dos jovens e dos pobres passa pela institucionalização do conflito, pelo direito de praticar o conflito. Quando os moradores da Rocinha podem descer e praticar o conflito, se desloca ao mesmo tempo a polícia e o narcotráfico. Rio de Janeiro, 29 de julho de 2013. 7


o mel e as cinzas do carvão do maranhão cynthia carvalho martins e camila do valle

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Indígenas coletam mel. Madeireiros matam indígenas. Ou seja, devastam. O modo de produção da exploração madeireira se nutre de mortes de indígenas há décadas. Cabe refletir nos sentidos da palavra devastação. No Maranhão, na Terra Indígena Arariboia, várias narrativas de assassinatos de indígenas são relatados em cadernos de campo de pesquisadores e, bem mais publicamente, na imprensa. No entanto, essa situação não é nada nova. Os dados de campo revelam que, ao menos desde 1994, a área estava sendo devastada com a retirada de madeira: inicialmente com madeiras raras – jatobá, por exemplo – e, naquela época, 1994, já eram as madeiras brancas, consideradas pelo mercado menos nobres. A Secretaria de Fazenda, no ano de 1994, possuía 490 serrarias cadastradas. Nesse mesmo ano, 16 empresas madeireiras apresentaram plano de manejo ao IBAMA. Pergunta-se qual a origem da madeira utilizada nas serrarias para fazer móveis. Observou-se que nas imediações das serrarias era produzido carvão para alimentar as siderúrgicas. Relata-se que, nesse período, o chefe de posto de uma das aldeias da Área Indígena Arariboia havia fugido com todos os recursos provenientes da venda das madeiras de lei. Registra-se, ainda, em pesquisa de campo, que três indígenas caíram de caminhões madeireiros, quando pegavam carona para ir até Amarante. Também um jovem indígena havia perdido a perna em função de um caminhão de madeira que adentrou a área onde ele se encontrava dormindo. Faz-se necessário compreender a história do município de Buriticupu e saber que a cabeceira do rio de mesmo nome localiza-se nas proximidades da aldeia Canudal, em Arariboia. Alguma memória de Buriticupu. Localiza-se na

parte oeste do Maranhão, pré-Amazônia maranhense. Na década de 1970, foi implantado um projeto chamado de colonização pela COMARCO. Estava previsto que este projeto assentaria 10.000 famílias em uma área de aproximadamente 300.000 hectares em um período de 10 anos, no entanto, foram assentadas apenas 1.050 famílias em uma área de 30.000 hectares que corresponde a apenas 10% do previsto pelo projeto. Na década de 1990, passados mais de 20 anos do projeto, 20% dos assentados ainda não possuíam os títulos das terras. A implantação desse projeto de colonização atraiu muitas famílias para a região, inclusive porque houve divulgação nos meios de comunicação das vantagens desse projeto. Como o projeto não foi implantado em consonância com os interesses das famílias, os que chegavam em busca de terra para trabalhar, não tiveram outra opção a não ser ocupar os grandes latifúndios localizados nas proximidades. Essas ocupações geraram a morte de muitas pessoas em conflito com os grandes latifundiários. Podemos afirmar que o projeto de colonização de Buriticupu é um exemplo de como a implantação de uma política pública não adequada pode ocasionar o afloramento de graves tensões sociais. Essa região sofreu o impacto do projeto Grande Carajás, pois, com as ocupações, a exploração de madeira nessa região se intensificou. Os madeireiros negociavam as madeiras com os posseiros e, inclusive, financiavam algumas ocupações. Dessa madeira, se fazia o carvão para alimentar as siderúrgicas localizadas em Açailândia. A maioria dos envolvidos na exploração de madeira não possuíam áreas disponíveis e adquiriam as madeiras das áreas de madeiras e das áreas indígenas. A madeira era exportada

para os chamados depósitos localizados em outros estados do Brasil, principalmente para Goiânia e Brasília. E de seus restos fazia carvão. No percurso que vai de Mucuíba – atual município de Senador La Roque – até a área indígena Arariboia, foi possível observar, nessa época, vários lugares com toras de madeiras concentradas denominadas batedouros. A exploração de madeira propiciava a abertura de pequenas estradas: as veredas. Há uma relação, nesse período, entre a exploração de madeira e a morte de indígenas. Em julho de1994, quando da realização do trabalho de campo, já eram registradas, até aquele momento, daquele ano, 4 mortes de indígenas. Das 18 áreas indígenas existentes no Maranhão, havia exploração de madeiras em 6 áreas, segundo o CIMI: Alto Turiaçu, AwáGuajá, Arariboia, Governador, Caru, Lagoa Comprida. Apenas na Arariboia e na Caru, os indígenas negociavam as madeiras. Nas demais, as terras eram invadidas. Isso foi na década de 1990. Voltemos ao contemporâneo, aos indígenas e aos novos assassinatos. Um relatório de 2012 do Greenpeace revela que, em 2009, havia 35 serrarias no município de Buriticupu. As estatísticas oficiais feitas pelo Estado acerca dos assassinatos dos indígenas não são precisas. As informações mais confiáveis são produzidas pelo CIMI. Na mídia, encontramos, com ampla divulgação, as seguintes denúncias. Em reportagem publicada em 13 de maio de 2012, na edição eletrônica do Jornal O Globo, não coincidentemente na seção de Economia, a situação de devastação no Maranhão é denunciada: “Na terra indígena Arariboia, criada em 1990, 242,1 km² já foram devastados, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais


papodefloresta (Inpe), que monitora a floresta por satélite. Ali, vivem cerca de 900 índios. Para sobreviver, muitos recebem o Bolsa Família, como ocorre em qualquer bolsão de pobreza brasileiro”. Anacleide Pereira da Silva, 45, moradora da aldeia e professora da escola indígena, conta que os madeireiros tiram tudo o que tem valor da floresta. – Antes a mata era aqui perto da aldeia. Agora, é longe. A mata é nossa proteção contra chuva, doença. Se acabarem as árvores, o que a caça vai comer? E como vamos comer a caça? – questiona Anacleide, enquanto a sogra prepara um moqueado de cotia (assado) para o rito de passagem de um bebê, que está prestes a ser desmamado.” Em texto de agência eletrônica de notícias: “Lideranças indígenas do povo Guajajara da aldeia Zutiwa, Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, denunciam o assassinato de uma criança Awá-Guajá que pertencia a um grupo em situação de isolamento.” E, ainda, “Conforme relatam os Tenetehara, nos últimos anos, a ação de madeireiros na região tem feito com que os Awá isolados migrem do centro do território indígena para suas periferias, ficando cada vez mais expostos aos contatos violentos...” http://www.ecoagencia.com.br. Também em recente vídeo da organização internacional Survival, a situação de ameaça que paira e atua sobre os AwáGuajá, relacionada com a exploração madeireira, é nitidamente exposta. “A ONG Survival International também enviou recentemente um relatório à presidente Dilma Rousseff, sobre um ataque em que os madeireiros amarraram, vendaram e tentaram

decapitar um idoso Awá, e atiraram na esposa dele”. Carvoaria Amazônia: Como a indústria de aço e ferro gusa está destruindo a floresta com a participação dos governos (Greenpeace, maio 2012). Contemporaneamente, a exploração madeireira continua a mesma prática de ameaça à vida dos indígenas da região já mencionada e de outras regiões. A responsabilização do Estado brasileiro quando diante de tantas denúncias, feitas por diferentes entidades, nacionais e internacionais, divulgadas pela imprensa, confirmadas por estudos científicos fundados em trabalhos de campo, não pode ser atenuada. As situações que envolvem desmatamento – a derrubada de árvores para diversos fins, inclusive e muito particularmente para produção de carvão – e devastação – situações muito mais complexas, pois, além da biodiversidade, o que está em jogo é a devastação e o aniquilamento da sociodiversidade – entram em choque com as leis, com tratados internacionais de que o Brasil é signatário – por exemplo a Convenção 169, a carta Cultural Ibero americana e a Convenção da Unesco de Patrimônio Imaterial, além dos mecanismos de controle que supostamente são manejados a partir de órgãos do governo como o MMA e a FUNAI, com instituições e com o patrimônio cultural material e imaterial brasileiro e mundial. Estamos diante dos limites do projeto de nação e, por conseguinte, de desenvolvimento. Projetos e terminologias que há muito se revelam falhos e insuficientes para descrever a realidade, mas que ainda alimentam campanhas políticas e políticas públicas fundadas numa suposta ignorância do Estado acerca dos povos que habitam o território. Essa ignorância é propositalmente construída.

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I A aterrisagem no aeroporto internacional Mariscal Sucre, em Quito, capital do Equador, é de tirar o fôlego. Por um lado, pela visão arrebatadora da cordilheira dos Andes, seus vulcões e montes nevados, em um imenso vale onde a cidade surge como se estivesse no fundo de um grande lago seco, protegida, escondida ou isolada entre a cadeia de montanhas que a cercam. Mas há também as violentas rajadas de vento, comuns naquela região, que fazem com que as asas do avião pareçam de papel e a aeronave um brinquedo, que sobe e desce em fortes turbulências, ao sabor das correntes de ar. Ainda assim, ou por tudo isso, a chegada em Quito é uma experiência fascinante, entre a vertigem e a aventura. O aeroporto fica a 1h e meia do centro da cidade, a estrada é excelente e a paisagem geográfica e humana que percorremos no caminho nos dá a dimensão deste Equador profundo, tão próximo e tão distante, que recém começamos a conhecer e explorar. II O Centro Histórico de Quito é um dos mais bonitos e preservados de todas as capitais da América Latina. A capital equatoriana é reconhecida pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade, e as políticas de preservação do patrimônio histórico são consideradas prioritárias e ocupam boa parte do orçamento público destinado à cultura, em nível local e nacional. Tal prioridade, no entanto, gera polêmicas e opiniões contraditórias, especialmente entre os artistas e agentes culturais da cidade. Os grafiteiros e muralistas urbanos sofrem perseguição e são criminalizados, e toda atividade cultural realizada nas ruas esbarra em uma série de dificuldades e obstáculos burocráticos em nome da “preservação do patrimônio”. Curiosamente, é Ana Rodrigues,

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artista visual atualmente no papel de gestora da Fundación Museos e do Centro de Arte Contemporânea do município, que vocaliza de maneira mais contundente a crítica a este processo que ela define como de “museificação” da cidade. Em sua opinião, que também é a de muitos artistas da cidade, “a proteção do patrimônio não deveria cercear a liberdade estética e a intervenção criativa e dinâmica das artes desenvolvidas nos espaços públicos”. III Somos recebidos e hospedados em um belo casarão colonial de três andares na Avenida Venezuela, em pleno centro histórico, sede e residência do coletivo Tranvia Cero, grupo formado por artistas visuais independentes que realizam há onze anos o Al Zur-ich, encontro internacional de arte comunitária que promove residências artísticas nos bairros, intervenções urbanas, intercâmbios, debates, festas e celebrações. A edição deste ano teve um caráter de avaliação e reflexão do processo desenvolvido nos últimos 10 anos do encontro e da própria existência do coletivo. Intervenções artísticas desenvolvidas em bairros e comunidades da cidade foram registradas, debatidas e revisitadas por seus realizadores e pela comunidade que as recebeu. Artistas, gestores culturais e ativistas foram convidados para debater temas como políticas culturais, arte, ativismo, cultu-

ra e educação. Fui convidado a apresentar um histórico e uma reflexão sobre o I Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária, realizado em maio deste ano na cidade de La Paz, Bolívia, e que reuniu cerca de 1200 participantes de 17 países da América Latina. A participação equatoriana neste encontro em La Paz foi proporcionalmente pequena, se considerarmos a participação dos países vizinhos como Peru, Colômbia e Argentina, mas levou a intercâmbios e articulações que possibilitaram não só a nossa vinda a Quito, como uma maior aproximação e presença do movimento cultural equatoriano na construção de um repertório comum para as políticas culturais em nível continental. IV Um dos principais aplicativos de intervenção cultural desenvolvido pelo coletivo Tranvia Cero para os espaços públicos chama - “El Tanque – Laboratorio de Artes Nómadas”. O “Tanque” é um dispositivo cultural móvel em forma de caçamba de caminhão que vira palco, área de exposição, camarim, suporte pra cenário, tudo ao mesmo tempo agora, de fácil deslocamento pela cidade e baixíssimo custo de construção e manutenção. O protótipo foi produzido em parceria com o coletivo de arquitetura popular espanhol Todo por la Práxis (www.todoporlapraxis.es/) . Trata-se de um excelente instrumento para políticas públicas de descentralização da cultura e de agitação cultural. Já imaginou se todo coletivo de cultura brasileiro tivesse um brinquedo desses? O Diretor de Cultura da cidade de Novo Hamburgo (RS), Fabio Kossman, também presente ao


panodefundo encontro em Quito, anunciou que vai desenvolver as primeiras 5 unidades do “Tanque” no Brasil, como equipamento das ações culturais da prefeitura da cidade. Excelente iniciativa de transferência de tecnologia em cultura! V O projeto de Lei 1176/2011, que estabelece uma política nacional de proteção e fomento aos saberes e fazeres das culturais tradicionais de transmissão oral do Brasil, em tramitação na comissão de cultura da câmara dos deputados em Brasília, foi debatido com a equipe da Secretaria de Educação Superior, Ciência e Tecnologia do Equador. O governo equatoriano está elaborando um projeto de lei que incorpora as culturas tradicionais como parte de um novo modelo de gestão do conhecimento,

diário de quito alexandre santini

considerando a tradição oral como elemento científico e tecnológico na construção do bem comum e do bem-viver , e o projeto conhecido no Brasil como Lei dos Griôs e Mestres inspira e dá subsídios para a iniciativa equatoriana. Fizemos ainda uma apresentação e histórico da Lei Griô para gestores, especialistas e pesquisadores de várias partes do mundo reunidos no seminário internacional “Los conocimientos tradicionales, recursos geneticos asociados y biocomercio como herramientas para el desarrollo sostenible, justo e equitativo en busqueda del buen vivir” (Sumak – Kawsay)”. Interessante que no Equador esta política de proteção aos conhecimentos tradicionais parte da área científica, e não da área cultural, e dialoga com temas como propriedade intelectual, biotecnologia, genética e meio ambiente. VI O gosto pela polêmica e pelo contraditório fazem parte da cultura política no Equador, que vive um momento particularmente efervescente de sua história. O governo do Presidente Rafael Correa estimula a politização do debate público e, consequentemente, a polarização de opiniões na sociedade. “Este é um país ingovernável”, assegura Pablo Almeida, artista do Coletivo Tranvia Cero: “Vários presidentes foram depostos, alguns foram mortos, ao longo de nossa história. Correa chegou e disse: fui

eleito, agora vou fazer o que precisa ser feito”. E de fato, conseguiu romper com as disputas fratricidas no campo da esquerda: das 120 cadeiras da assembleia nacional do país, equivalente ao nosso congresso nacional, a Alianza País, partido governista, controla uma bancada de 100 parlamentares, que dão ao governo uma sólida maioria política que lhe garante a governabilidade e a aprovação dos projetos de seu interesse no legislativo. VII Alguns setores da cultura, no entanto, se ressentem da falta de espaços de participação popular na formulação e implementação das políticas públicas. O Ministério da Cultura, criado por Correa em 2007, ainda carece de credibilidade junto ao setor cultural, que o vê como um ministério de propaganda oficial do governo. Por outro lado, a constituição do equador, aprovada em 2008, consagra em seu texto a liberdade estética, direitos coletivos e comunitários sobre a propriedade intelectual, a livre utilização cultural dos espaços públicos e o reconhecimento do caráter plurinacional do estado equatoriano, considerando as instâncias de poder das comunidades tradicionais. Cabe aos segmentos culturais do país o desafio de converter estes princípios constitucionais em políticas públicas que contemplem o conjunto da sociedade e coloquem a política cultural equatoriana à altura dos objetivos estratégicos deste país em processo de aprofundamento democrático. VIII Fomos embora de Quito com a sensação de uma bela missão realizada, novos laços e conexões estabelecidas, parcerias e projetos no horizonte. Se nossa passagem tiver contribuído para fortalecer as articulações em rede entre os coletivos e movimentos culturais equatorianos, já terá valido muito a pena. O momento é propício para o Equador, que resume em suas dimensões geográficas a mesma diversidade climática e humana de um país-continente como o Brasil, e que constrói a sua “Revolución Ciudadana” com acertos, erros e contradições inerentes a qualquer processo histórico relevante e transformador.

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quebrapedra

blame it on riot

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É importante observar a dissociação que foi feita entre “o cinema” e as centenas de pessoas com câmeras nas manifestações recentes. Embora uma novidade fundamental dessas movimentações recentes seja a transmissão de imagens captadas com equipamentos amadores e, por outro lado, não faltem pessoas com câmeras profissionais, houve gente que se perguntou “onde estavam os cineastas”. Talvez porque o cinema precise de mais tempo, precise ter o tempo necessário da montagem pensada. Ou podemos considerar que as transmissões diretas dos celulares são uma nova maneira de lidar com imagens e, junto com os vídeos upados no youtube, são o novo cinema. Pode ser, mas tenho minhas dúvidas. E lembro que, quando fui me meter a terminar um doutorado, acabei sendo obrigado a afunilar os estudos em apenas dois cineastas específicos, dos mais de dez que eu considerava inicialmente, para falar das questões que eu queria comentar. Um deles era brasileiro, bem conhecido, mas o outro era um cineasta argentino praticamente desconhecido fora de seu país, falecido nos anos 90, chamado Alberto Fischerman. Há um episódio da carreira de Fischerman que merece ser lembrado atualmente. Em 1970, a Escola Documental de Santa Fé, fundada por Fernando Birri (que naquele momento já estava exilado), corria o risco de ser fechada por um reitor pouco simpático às tendências de seus professores e alunos. Para evitar isso, foi programada uma manifestação – e um dos professores foi a Buenos Aires buscar a solidariedade dos cineastas de lá. Ao encontrar com Fischerman e seu grupo de amigos, ouviu que eles não viam sentido em produzir um texto coletivo, já que eram cineastas; mas poderia contar com curtas feitos por eles especialmente para a ocasião. A conversa aconteceu numa quarta-feira e a manifestação estava programada para sábado, três dias depois. O grupo de cineastas portenhos, usando pelicula 16mm reversível, rodou en-

tre sete e oito curtas-metragens entre a noite de quinta e a manhã de sexta, os filmes foram montados ao longo de sexta-feira e no sábado de manhã quatro pessoas do grupo rumaram para Santa Fé com os filmes: eram Jorge Valencia (montador de todos os filmes), Alberto Fischerman, Rafael Filippelli e Luiz Zangler. Ao chegarem em Santa Fé, segundo contaram depois, a manifestação que eles encontraram não tratava de cinema, mas de todo o contexto social e político daquele momento, com análises conjunturais da política internacional. Após um longo debate, foram exibidos alguns documentários produzidos pela Escola e, enfim, os curtas feitos pelos portenhos recém-chegados para a ocasião. No entanto, não foram bem recebidos – nem um pouco, na verdade. O curta de Fischerman foi um dos principais alvos de protestos: ele tinha um ator (Tito Ferreyro) que, em planos fechados, era amarrado e golpeado por mãos invisíveis até cair no chão e morrer. Por isso, foi acusado de ser imobilista, anti-revolucionário. O curta dirigido por Dodi Scheuer também provocou reações iradas da platéia por envolver um ídolo das esquerdas, Che Guevara. O filme tinha três planos: uma mulher vendo imagens de um livro pornográfico, em seguida um plano com as imagens que ela via e, por fim, uma fotografia de Omar Shariff caracterizado como Che Guevara (numa cena de um filme que, na época, foi polêmico por mercantilizar a imagem do revolucionário em uma produção de um estúdio de Hollywood). Segundo o diretor, seria possível argumentar que o filme denunciava justamente essa mercantilização da imagem do Che. Mas o público lá presente não quis saber e partiu para o pau. Literalmente: a coisa acabou em bate-boca, xingamentos e algumas cacetadas. Num texto em que procurou investigar o que havia acontecido, Beatriz Sarlo comenta que ali se viam em lados opostos a vanguarda política e a vanguarda estética. Pode ser. Me impressiona também a crença que aqueles caras demonstraram na força do cinema, na ne-

daniel caetano

cessidade de se expressar através do cinema. Talvez seja preciso ter o tempo da montagem, do pensamento. Mas esse tempo pode acontecer sob urgência, diante das circunstâncias. Há momentos de reflexão e outros que pedem gestos de decisão. E aquilo que se chamava de “vanguarda estética” também guardou, sempre, uma considerável força política, provocadora. Agora que a cidade e a nação parecem em ebulição, numa situação paradoxal em que o desrespeito às normas básicas, vindo diretamente do poder, vem provocando reações bastante fortes de tanta gente, revivendo a potência do espírito coletivo, é natural que essa pilha contagie a produção de idéias e coisas. Lembro que, numa das manifestações recentes da Cinelândia, antes da polícia começar a baixaria, cheguei a conversar com um amigo que me envolvi no projeto de um filme coletivo sobre esse momento atual – e pilhei ele para que também inventasse o seu projeto sobre esse momento, porque só com muitos olhares, muitos filmes vamos ter uma narrativa mais complexa desses dias. Poucos dias depois, soube que ele entrou na pilha e também já está fazendo seu filme. O cinema do Rio vive uma gentrificação equivalente à de toda a cidade, num momento em que o foco das ações dos poderes do Estado se concentra apenas na criação de produtos feitos segundo o modelo em vigor para que sejam plenamente vendáveis. São, na maior parte, comédias com apoios televisivos e distribuições das mesmas empresas, para concorrer em shoppings contra produções gringas. Enquanto isso, centenas de pessoas procuram fazer seus filmes do jeito que dá. Com tanto assunto para explodir, acabei me juntando com um punhado de bravos amigos, como já contei, e vamos mandar brasa com o projeto do RIO EM CHAMAS. Mas um filme manifestação não faz verão; outras coisas, de muito mais gente, terão que vir por aí para juntar forças e quebrar as narrativas globalizantes-totalitárias. E virão, podem apostar que virão.


impressõesclandestinas O sonho de abdulai sila mauricio barros de castro

Chego ao pequeno aeroporto de Guiné-Bissau, na África, onde sou esperado pelo escritor guienense Abdulai Sila. Bissau, cidade onde ele vive, é o nome da capital do país, que sofre com grave instabilidade política, após um golpe recente que subjugou a nação e a colocou sobre os desmandos de um governo corrupto e autoritário. No caminho para sua casa observo a pobreza em que vive a população guienense. O cenário, a princípio, é desolador. Uma confusão de carros velhos nas ruas repletas de lama, pessoas nas suas margens vendendo tralhas e comida, sem nenhuma estrutura ou condição de higiene. A época das chuvas também não ajuda muito. Para piorar, acentua os problemas endêmicos que marcam o país, como o paludismo. A pobreza extrema, no entanto, não me impede de avistar os sorrisos francos nas faces negras. Uma alegria que pode ser encontrada também nas vestes coloridas dos africanos de Guiné-Bissau. Ainda que eles se encontrem bastantes sozinhos no momento. Por conta do golpe que depôs o último presidente, em 2012, praticamente todas as representações diplomáticas deixaram o país. O governo atual também não é reconhecido pelo Brasil. Guiné-Bissau já passou por outras dificuldades históricas. O país viveu sob o julgo colonial português até 1973, quando, sob o comando do líder revolucionário Amílcar Cabral, venceu militarmente o poderoso exército português. Cabral, no entanto, não veria o seu país ser oficialmente declarado independente. No mesmo ano, foi assassinado. Um crime cujos mandantes ainda não foram reconhecidos. Abdulai fala de Cabral como um grande líder, que os possibilitou sonhar com um país livre e unido. Mas não foi o que aconteceu após o seu assassinato. Guiné-Bissau mergulhou numa violenta guerra civil, que teve seu auge em 1998. O escritor aponta ao redor e mostra que tudo o que vemos foi destruído pelos exércitos rivais. Uma enorme árvore, chamada Poilão de Bra, marcava a fronteira entre as tropas inimigas e guarda a memória das muitas mortes daquela guerra insana. Ainda assim, o pesadelo não terminou, como mostra o recente golpe vivido pelo país. Abdulai se recusa a deixar o sonho semeado por Amílcar Cabral desaparecer. Gasta grande parte do seu tempo metido com os jovens, tentando dar a eles um sentimento de esperança que não tiveram tempo de conhecer. Ao contrário do escritor, que tinha 16 anos quando Guiné-Bissau se tornou independente. Uma outra cruzada que persegue também diz respeito a sua história de vida. Abdulai presta assistência às associações de deficientes físicos, que costumam sofrer grande preconceito no país. Ele tem uma sensibilidade especial para essa missão. Quando jovem a casa dos seus pais foi bombardeada e seu irmão ficou tetraplégico. Foi para contar histórias para ele que começou a escrever. Abdulai reviveu o pesadelo dos bombardeios na guerra civil de 1998, quando sua casa, onde morava com sua mulher e três filhos, foi bombardeada. O escritor estava em Boston, nos Estados Unidos, e só conseguiu reencontrar sua família exilada em Cabo Verde, para onde conseguiu fugir com a ajuda de amigos. Após a guerra, quando finalmente pôde voltar para seu país, não teve coragem de entrar na própria casa, completamente destruída. Foi preciso recomeçar. Autor de vários livros, um deles publicado no Brasil, chamado A última tragédia, Abdulai diz que não consegue escrever sem ouvir música. De certa maneira, ele segue o ritmo das canções tradicionais de Guiné-Bissau. Como diz um antigo provérbio africano local, e que serviu de epígrafe de um dos seus textos, aqui se canta chorando e se chora cantando.

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Borbulhantes Faz pouco mais de 10 anos, deve ter sido 2001, a do vi a vi ão em N.Y, estava com Vitor Paiva e imaginávamos a “criança do Futuro”, fazendo uns quadrinhos da criança furando torturando a bruxa má entre ou-

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tras diversões... mas o futuro já parece hoje, ontem, quando o coleguinha morador da Barra, com bastante dindim, 7 anos, quando o pai do Jardim Botânico, intelectual, com a paciência do pai separado que adora o filho que é amigo do Marcelinho Riquinho Parrudo da Barra, teve de escutar o “vai tomar no cu” do minimonstrinho, mas que é amigo do filho ... que quer agradar, mas como educar em tempo de Marcelinhos monstrinhos e Marcelinho o garoto que matou a família e foi para a escola contar para os amiguinhos que matara sua família, ninguém acreditou, ele já tinha dito que seu pai durante um jantar, qualquer dia, falou normal-normal “ontem matei dois”, ninguém acreditou na escola, ele decidiu na rebeldia dos 13/14 anos

Sergio Cohn enviou ersta pérola para a Eva, tutto buonna

virar matador de aluguel, fazer um clubinho na escola

gente , Orwald e Lobato antes de 22

de “matadores de aluguel mirins”, ninguém acreditou que ele seria com a mesma qualidade do matador do jogo 5 do virtual... “Ensina-me a Matar”... que custou mais que o “Apocalipse Sou”, filme sobre os EUA. O primo de 17 anos não acha que Marcelinho foi influenciado pelos jogos, já que esses jogos “apenas deixam fazer o que é proibido”... explodir caixa de banco, sequestrar, matar policiais, de forma tão real, no virtual, que ninguém acredita no real tagarelado por crianças no presente. No mais, Caetano Veloso está lindo aos 70 anos, meu irmão fez 60 anos e está muito bem. Brincar de mocinho e bandido no passado era bem diferente. Na TV aberta surge canal com programas que concorrem com os dos protestantes sai diabo: diferentes pai de santos, caricatos demais para ser verdade, tiram olho grande e trazem sua mulher em 3 dias. Nos últimos dia AASSBB tropas violentas de Cabral e Dudu Paes, aluno do Conde Maia, soltaram o sarrafo nos professores e grupos libertário de cara sem mascar chicleter, mas com verdade na cara e a

Perfume de roleta russa Para Ana Maria Bonjour E foi agora que já muda mundo todo tempo, sapateando no chiado do chocalho da serpente, não bastando gente atropelando caminhão, formiga conhecendo solidão, sombra perseguindo luminária, peixe mordiscando temporal, corpo sendo espuma de colchão, que a gente na trombada da levada se atracou, sendo o espirro da tromba do elefante, pra grudar no grude quente, cremoso, de caramelo. É enquanto o dia fica nascendo com o galo dormindo, a imagem escapulindo do espelho, a centopeia desfilando descalçada e a concha escutando o barulho do mar no fundo da orelha. Assim, onde estamos agora, aqui, quando roçamos nosso choque térmico, exala um perfume de roleta russa. No tambor do revolver a única bala é goma de mascar. O resto a gente chupa. Botika

maioria de negros e morenos, afinal é bonito e dura as corridas pelas ruas... Muito ódio nos olhos de policiais de repressão e um certo cansaço de outros. Luz.... para todos Luz...Rafael Tom Luz e tem Luz, vai para a Inglaterra pesquisar a obra do terceiro, o do gênero dramaturgia, de nossos iniciadores da literatura brasileira, junto com Gonçalves Dias e José de Alencar. Viagem forte... como será forte se aparecer um corpo de uma senhora morta por gás: quem estará matando será os mandantes finais do horror. “Mataram um Estudante, podia ser seu filho”... Mataram uma Professora, podia ser sua tia. Vivas os professores e Jovens libertários.Que os índios,várias etinias, se juntem. O Governador do Rio e o Prefeito estão assumindo riscos penais por coautoria de autoridade... Jorge Moreno? O” coisa ruim” vai estar de que lado?... Está bem, só um copinho de branco ao fim de tarde. Vinho, 14

naturalmente... ou leite...a seu gosto, Baudelaire.

High society - Amarildo’s family


Guilherme Zarvos

folhadeevaeadão

terrríveis

Não concebo poesia sem tato encarno a sensação dum escaler distante tudo que não diste nenhum prazer consome inconcluso o gosto azul que sorvo é bem mais que cheiro rumor orvalho , é gozo alfabeto orgasmo do palato se outro dia é esse aposto esvanece : poemas descabaçam : procuro em você golfo seta mirante procuro em você quem dirijo rastro / procuro em ti farol agosto gancho / procuro em ti porão tonel fardo procuro navego Atlântico manso pervogo voluto hefesto forjo-me dorido mastro transtorno tempo passado remorso lancetar todo arrependimento numa vala de luz desfazimento segue aos passos do que ainda quero tirando Deus do meu pedaço esconde-te onda arresto nada pende no Oceano turbida fronde criar mais do sal efeito tem-se espaço pó recolhido serenado extremo façanhas aguada aprisionas fazer dias claros vales nítidos um mar-tu mais fundo horas restantes ao molhe sobra / desistem da Arte queda punha um gesto na idéia içando rima: está por vir poeta que anda além das coisas inventa dor colorindo vaga peregrina língua pensa esgarça profunda enseada de perplexidades ancorando vento cozendo palavras ritmos escoam murmúrios coisa é gênese nascituro obstáculo ao vernáculo flutua e se deita largando vista : não é outra razão de ver musicando : poema coisa tremo de sentir seja : Coesia ´´ Flavio Amoreira Imagem bíblica A Palestina é aqui na Cinelândia

Consciência Eu só digo uma coisa, antes de silenciar eternamente, endividado, mas com moral: – O sistema dá oportunidade quando quer controlar o caso, não deixar se perder, ou, já se foi, das disparidades de áudio, ou dos chiados, ou das indisposições sonoras para com cerca. Mate. Prefiro nem pensar que o sistema se mexe por dentro. Opa! Não está mais aqui um que me disse. E eu que o considerava de um gênio intransponível, até ele bancar numa de aparecer na alta frequência, no jet-set dessa porra, pegar do cabo e não arremeter, abrir-fechar a sua banca como num piscar de olhos. Isso é meter bronca. Aprenda comigo. Desdobre. Lances. Recobrimos tudo. Fazemos qualquer negócio. lembrancinhamosxixi. Soltar o preso de tudo o que vejo. Mareado. Sequer de novo uma partidinha gótica de xadrez e seus pombos e barulhos no Largo do ao Largo. Grudando na mesa. Esses são pombos; aquelas são pombas. Varrendo esta janela, uma sentinela, que dentro dum cantileno – azarão paraguaio! Portanto, estes barulhos, aquelas baralhas. Mas eram sim os nossos, kid-alcagüete... Nosso know-how. Placa pirulito. Um dizendo ao outro – já discutíamos de montão. Ameaça e pensamento, até então pra nós mesmos, uns putos, virávamos o jogo. E sempre detectam de longe, as impressões subversivas nos pios da rua, hã?!, um absurdo de calor. Não desviamos de ser umas galinhas roxas de praça, de se esquentar os solados, fazendo ginástica, sem baleiras políticas, nunca. Rod Britto, Botafogo, Rio de Janeiro – Brasil. gratoporlembrar@gmail.com

intratáveis

Antonio K. Grosso, William

Pedro Barcelos, Guilherme Zarvos,

Bonde, Iryz Lyra, Iryz Gabriela,

Nelson Neto, Alves Paulo, Conrado

Rômulo Ferreira, Mia Vieira,

Gonçalves e David Monsores.

Mate Trotamundo,

Poetas em dia de manifestação na Lapa

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maranha gente, livro e pedra

Como se árvores brotassem por entre os paralelepípedos, a 7ª Feira do Livro de São Luís rendeu bons frutos. A começar pelo convite, prontamente aceito, de assumir uma página mensal neste Atual, imensa honra. É o Maranhão falando para o Brasil, depois de ter ouvido o mundo falar durante a #7FeliS. Este ano a Feira do Livro expandiu-se: continuou com a função de vender livros, mas foi além, e em 10 dias trouxe à São Luís alguns personagens fundamentais para o fazer literário brasileiro. Tendo como patrono o poeta Nauro Machado, quase oitentão com 40 livros publicados, e como homenageados Aluísio Azevedo, Catullo da Paixão Cearense, Salgado Maranhão e Zelinda Lima, a Feira fez valer ainda a máxima de outro homem das letras, centenário em 2013: Vinicius de Moraes. “A vida é a arte do encontro”, dizia. A literatura deixou de ser do gueto, algo para iniciados, e encontrou a cidade. Uma na outra, outra na uma, e esbarrões entre sorrisos e abraços. Esquinas, becos, ruas, ladeiras, praças, auditórios, teatros, galerias, sacadas, escadarias e azulejos, tudo havia sido ocupado pela poesia, como num velho poema de Gullar. Escritores se encontraram com a gente do lugar, a Praia Grande finalmente revivida, como um lugar propício aos fazeres artísticos, com seu acervo arquitetônico entre o que merece ser chamado patrimônio e suas ruínas cinematográficas, o espaço finalmente valorizando, após umas poucas iniciativas, as pessoas, verdadeiro patrimônio maior de qualquer lugar. Manhãs, tardes, noites e madrugadas tomadas pela programação da Feira e pela “hora extra” que se fazia entre o Mundico – para provar sua deliciosa anchova na brasa –, o Chico Discos e o Bar do Léo, com seus incríveis acervos e o conhecimento artístico, sobretudo musical, dos proprietários. As histórias engraçadas de

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zema ribeiro

Josoaldo Rego e a comanda infalível de Marília Oliveira, os autógrafos de Benjamin Moser a Andréa Oliveira e Rita Luna Moraes – que Talita Guimarães pegou em sua Programação, o que não a fez se emocionar menos. Ambientes que também encantaram Sérgio Cohn, Fabiano Calixto, Ademir Assunção, Marcelo Montenegro, Marcelo Watanabe, Xico Sá, Rodrigo Garcia Lopes, Bráulio Tavares, Caco Pontes e outros. Admirador do trabalho de todos e de alguns outros que não consegui ver ou encontrar, o calçamento da Praia Grande parecia ter se transformado em feito de nuvens, eu perambulando entre o trabalho e o prazer – aqui plenamente conciliáveis – como O sonhador insone: “tudo é nascente/ o sol pleno de setembro (e outubro, permita-me adulterar o poema)/ traz da mão/ do garoto que passa/ um cheiro de fruta (...)// (a vida já é um tempo/ por demais interessante)”. A busca idílica de Marcelo Montenegro pela Fonte do Bispo – e outras paisagens do Poema Sujo – e a conquista de novos leitores de poesia: “não pude resistir quando ele disse que era um punk do ABC”, revelou Igor de Sousa, assumidamente um desajustado punk no apelido DP, ao adquirir o belo exemplar dA canção do vendedor de pipocas, de Fabiano Calixto. A visita de Ronaldo Bressane à Fundação da Memória Republicana, nome pomposo do museu, ou antes, da catacumba do Sarney, “único museu de São Luís com ar condicionado”, onde clássicos da literatura produzida no Maranhão ficam em “aquários”. “Vamos quebrar os aquários, vamos quebrar a fundação, vamos quebrar o Sarney!”, convidou encerrando sua fala na mesa mais transgressora da Feira, dividida com Allan Sieber, Bruno Azevêdo e Iramir Araújo. Gente que sabe o que fala. Fracasso da Raça, o nome da banda com que Ademir Assunção lançará em novembro seu novo disco, Viralatas de Córdoba, virou

jargão anticapitalista. Os atendentes de telemarketing das operadoras de telefonia ou internet ou tv a cabo ou cartão de crédito ou loja ou banco não resolvem o seu problema? É o Fracasso da Raça. Você chega a um estabelecimento a fim de resolver um problema e é direcionado a um telefone, “retire do gancho e siga as instruções”, é o Fracasso da Raça. Os poemanchetes de Caco Pontes, tornando pura poesia o que nosso jornalismo tem de pior. Letra de música é poesia e vice-versa? Ricardo Corona e sua poesia étnica, sons ganhando sentido, em diálogo com Bráulio Tavares, multiartista consciente de seu próprio fazer, sua fala ilustrada por canções, 35 anos desde a primeira gravação de Elba Ramalho para uma delas, Caldeirão dos mitos. “Embora haja tanto desencontro nessa vida” você perde a palestra de Alice Ruiz, “A poesia muda o mundo?”, e levanta da mesa pouco antes de ela chegar. Não se pode ter tudo. Alguns autógrafos que te acompanharão pra sempre, a emoção cravada num livro de sua modesta coleção, para uns um orgulho bobo, a vida não foi feita para ser entendida, “a vida já é um tempo/ por demais interessante”, um eco. A Feira também fez sentido por estar localizada ali nos arredores da Feira da Praia Grande, uma das mais famosas e charmosas da cidade. A Feira virou uma verdadeira festa e deixa saudades. Deixou muita gente com a cabeça ainda mais cheia e a pilha-fila de livros por ler aumentada. A Feira ainda será assunto em rodas reais ou virtuais durante muito tempo. Sua mais perfeita tradução é o sorriso enérgico do poeta Celso Borges, seu curador. O seu nunca cansaço, a sua eterna capacidade de se emocionar com cada dia e acontecimento, feito criança de brinquedo novo. A serpente pode até não ter acordado ainda. Mas seu sono foi certamente incomodado com tanto barulho.


anotaçõesdecampo prêmios, feiras e festivais A principal novidade dos últimos anos no contexto de difusão e discussão sobre livros no Brasil é o aumento dos espaços dedicados à divulgação de novas obras e autores, assim como o ressurgimento -- em bares, festivais, seminários, redes sociais -- de um circuito informal de convivência entre autores, editores, jornalistas e críticos. A vitalidade dessa nova cena contrasta tanto com o relativo marasmo das duas décadas anteriores (os anos 1980 e boa parte dos 1990) quanto com a efervescência dos 1970, quando a vida literária tinha também um sentido forte de experimentação existencial, em contraponto com as ideias de profissionalização do escritor e de expansão de mercado que definem a feição do contexto atual. * Esse aumento dos espaços de divulgação não se faz acompanhar no entanto de uma ampliação correspondente da discussão crítica, restrita a publicações acadêmicas pouco lidas e resenhas de extensão breve, ou então apenas indicada de maneira implícita nas escolhas e aproximações realizadas por jurados e curadores de prêmios e festivais literários. * Se tentarmos indicar alguns marcos temporais para esse panorama, o ano de 2003 parece reunir dois acontecimentos fundamentais: a criação da Festa Literária Internacional de Paraty, cujo efeito irradiador estimularia o surgimento de dezenas de festivais literários em diversas regiões do país; e a instituição do prêmio Portugal Telecom, que em razão da quantidade de dinheiro destinada ao vencedor, mas também dos críticos convocados para seu júri, adquiriu uma relevância, ou ao menos certa repercussão jornalística, que já àquela altura o Jabuti não possuía mais. Talvez se pudesse acrescentar a essa lista o surgimento ainda em 2003 do Prêmio Sesc, dedicado à publicação de livros de autores estreantes, pois o interesse editorial e jornalístico em torno da revelação de novos nomes também ajuda a dar o tom do campo literário nessa última década. *

Já existe porém uma importante preparação de terreno na década anterior, ligada à criação de novos mecanismos de incentivo à cultura e à difusão da internet no país. Além da multiplicação dos festivais e de projetos como o Rumos do Itaú Cultural, impensáveis sem as leis de incentivo, os sites e blogs preparam a entrada em cena coletiva da nova geração de escritores: multiplicam-se revistas virtuais (como CardosOnline e Paralelos), a leitura e citação mútua em blogs e, num momento seguinte, as antologias de contos (os dois volumes da "Geração 90" organizados por Nelson de Oliveira, mas também "Prosas Cariocas", "Paralelos" e todo tipo de volume temático reunindo novos autores, de contos inspirados em pinturas a histórias em torno da obra de Renato Russo). * Os mesmos escritores que se apresentam em conjunto recusam, no entanto, as tentativas de agrupamento realizadas por jornalistas e críticos. O agrupamento resulta, nesses primeiros anos do século XXI, mais de uma estratégia editorial e publicitária, às vezes reforçada por laços de amizade, do de um programa estético comum, o que aliás dispara uma conhecida discussão entre Bernardo Carvalho e Nelson de Oliveira a respeito da trivialização da ideia de geração, convertida, para Bernardo, de categoria crítica em bordão marqueteiro. * É dentro desse contexto, de qualquer maneira, que pode ser entendido ainda um acontecimento como a criação em 2007 da Copa de Literatura Brasileira. Organizada como um campeonato online de mata-mata em que a cada jogo um jurado escolhe, entre dois livros, aquele que considera melhor, a Copa se tornou nos últimos anos um momento de revisão dos consensos desse campo literário meio disforme, em crescimento nos espaços de divulgação e consagração mas ainda um tanto atrofiado no que diz respeito às possibilidades de discussão crítica.

miguel conde

2003 é ainda o primeiro ano do governo Lula e, como sabemos, o início de um período de maior exposição do Brasil no exterior, a reboque em primeiro lugar da figura carismática do presidente, mas também do sucesso dos programas de redistribuição de renda, do realinhamento da política externa, do momento macroeconômico favorável, de tags midiáticos como os BRICs e, ainda, da tentativa de reposicionamento internacional da "marca" Brasil, culminando na campanha bem sucedida para hospedar a Copa do Mundo e as Olimpíadas. * Tudo isso abre uma perspectiva de internacionalização dessa nova literatura brasileira, que começa a se tornar mais concreta com a ampliação do programa de bolsas de tradução da Biblioteca Nacional, o lançamento da revista Machado de Assis, a edição da Granta dedicada ao Brasil e, por fim, a homenagem ao país na Feira do Livro Frankfurt, principal evento do mercado editorial mundial, encerrado no último dia 13. * O discurso feito por Luiz Ruffato na cerimônia de abertura da feira, com sua ênfase sobre as mazelas brasileiras, e na contramão portanto da euforia mercadológica com as novas oportunidades de "branding" da cultura nacional, produziu uma constrangedora apoplexia entre autores e editores ansiosos por surfar a onda do mercado. No fecho de seu discurso, Ruffato narrou a própria história pessoal, da infância pobre à vida de escritor consagrado, como demonstração do poder transformador da literatura. Curiosamente pouco notado nos comentários contra e a favor do discurso, esse fecho acaba no entanto por demonstrar os limites da oposição esquemática entre defensores e críticos do "branding", pois a narração do próprio triunfo em meio a tantas adversidades não deixou de ser também uma sutil e habilidosa peça de autopromoção.

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#protestario calĂŠ


belomonte por João Pacheco de Oliveira, Marcelo Montaño, Raul do Vale, Clarice Cohn e Mukuka Debate

debate

[João Pacheco de Oliveira] Boa tarde a todos. Essa é uma mesa importante, que tem significado numa luta longa da condução dos assuntos indígenas. A ABA tem também tomado posições públicas, em relação ao empreendimento Belo Monte, em várias ocasiões. E achamos que essa reunião da Associação Brasileira de Antropologia, a 28ª, não poderia se concluir, ou se realizar sem a presença desse assunto. Eu apresento a nossa composição de mesa, e passamos aos debates. O primeiro a falar será Marcelo Montaño, engenheiro da Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, que vai nos fazer também uma análise do projeto do ponto de vista mais técnico. Depois será o advogado do Instituto Socioambiental, Raul do Vale, que fará algumas intervenções sobre os aspectos legais envolvendo o empreendimento, sobretudo, a questão da alegada anuência indígena em relação ao processo. E então a Clarice Cohn, antropóloga, da Universidade Federal de São Carlos, que é uma pesquisadora do Xikrin de longa data, fez seus trabalhos acadêmicos lá dentro, e continua a frequentar os xikrins, e a participar das lutas importantes para as suas existências. Por fim, o Mukuka, liderança xikrin. É importante ter ideia da importância que ele tem nesse contexto para os xikrins, em relação ao empreendimento Belo Monte, porque ele liderou a ocupação do canteiro de obras do Sítio Pimental, uma das áreas que foi tomada, invadida pelos indígenas, como um dos mecanismos de protesto contra a construção da empresa. [Marcelo Montaño] A minha participação será principalmente contextualizar que tipo de referência orienta, ou teria orientado processos como o de Belo Monte, do ponto de vista dos instrumentos de política ambiental que são aplicados, e que se destaca essencialmente o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental. Bom, são dois instrumentos que

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na

28º

reunião da

Associação Brasileira

de

Antropologia

têm amparo muito forte dentro da legislação brasileira, a própria Constituição recepciona esses instrumentos. O estudo de impacto ambiental é citado no artigo 225 da Constituição, no capítulo de meio ambiente e tem, portanto, uma estruturação jurídica muito forte, muito consistente, do ponto de vista da legalidade da aplicação de instrumentos dentro desse arranjo institucional que nós temos no nosso Estado. Mas o que de fato ocorre, e isso não é um privilégio de Belo Monte, mas um problema crônico que se repete em diferentes pontos do planeta, é que a avaliação de impacto ambiental tem por finalidade essencialmente informar as consequências de uma determinada proposta, e não tomar decisão em si, mas informar com base em estudos consubstanciados, e que, na essência, não deve privilegiar nenhum aspecto do meio. E existe um fracionamento bastante questionável em relação à maneira como a legislação propõe que se trate o meio: meio físico, biótico, socioeconômico e antrópico, que é um termo inovador da legislação. Essa fragmentação é toda orientada por um processo que tem por finalidade aprovar um determinado empreendimento, uma determinada proposta. E é claro que o papel da avaliação do impacto ambiental deveria ser avaliar as consequências dessa proposta naquilo que ela deve interferir em relação a aspectos ambientais, de forma geral. E aí fica complicado, porque o que se alega é que, no momento em que os estudos de impacto ambiental são elaborados, todas as decisões ligadas ao projeto já estão tomadas. E, no caso específico de Belo Monte, mais ainda, porque já havia inclusive data pra colocar a energia na rede, porque, senão, o país não cresceria, teria os seus compromissos, etc., e não conseguiria honrar os seus compromissos e a sua perspectiva de crescimento. Então, veja, um empreendimento desse porte, dessa magnitude, os responsáveis pela implementação não veem, não oferecem, ou não

consideram que há algum tipo de modificação substancial que possa ser feita a partir do estudo de impacto, porque já há toda uma cadeia de compromissos assumidos. Então, já há uma expectativa da rentabilidade, do rendimento desse empreendimento, inclusive uma série de mecanismos de financiamento, ou captação de recursos, que já vão avançando. Isso não justifica em nada a maneira como tem ocorrido esses processos de licenciamento. A essência dos instrumentos não deve se preocupar com esse tipo de argumento. O que o instrumento, tanto licenciamento, quanto avaliação de impacto ambiental, devem fazer pelo processo seria orientar, no sentido de: “Bom, essa alternativa, esse projeto, neste local, não vai pegar bem; existem impactos que são inadmissíveis, existem impactos que não se permite, ou que não se permitiria recuperar, não haveria mitigação possível”. Quando se extrapola a matriz técnica, essencialmente ligada ao projeto, e aí eu estou falando, basicamente, de meio físico e alguma coisa de meio biológico, dadas as questões de biodiversidade, unidades de conservação, etc., a gente entra num campo em que as visões não são compartilháveis. A matriz decisória, ou a lógica que orienta esse tipo de processo, está olhando para o projeto e para a funcionalidade do projeto, e quando aparece uma questão de caráter cultural, de caráter histórico, conflitos, normalmente, que não são nem dimensionados, não são nem numericamente dimensionados, ela cai num sistema, ela cai numa lógica em que é um argumento que é totalmente ignorado. É facilmente ignorado, ele é normalmente negligenciado, inclusive porque certamente haveria, e há, impactos de caráter cultural, histórico, imaterial, simbólico, que justificam a não implementação de um empreendimento, seja lá qual for, não só Belo Monte. No caso do Belo Monte, existe uma série de informações que coloca grandes dúvidas em relação à essência que aqueles instrumen-


tos se propõem, que é avaliar a tal viabilidade ambiental. E o órgão ambiental, ele só pode conceder uma licença, se estiver plenamente convencido dessa viabilidade ambiental. No caso de Belo Monte, o que chama atenção, e eu volto a repetir, não é uma exclusividade do Belo Monte, isso acontece normalmente, infelizmente, é que a tal viabilidade ambiental passa a ser condicionada por uma série de ações de caráter compensatório, ou de caráter de mitigação de efeitos. Até aí tudo bem, dentro da lógica do instrumento, mas como é que se pondera isso? Que tipo de fórum, que tipo de sistema decisório homologa esse tipo de proposta? Ou seja, não que seja um caso de Belo Monte também, especificamente, mas: “Olha, haverão alguns impactos ligados a interferências naquela comunidade”, “Sim, não se preocupe, a gente vai remover todo mundo, e vamos construir escolas, postos de saúde. etc.”. Quem media esse tipo de negociação? Como é que essa negociação é mediada? Como é que isso é colocado numa mesma matriz de decisão estritamente objetiva, e que eu consigo dimensionar a movimentação de terra associada à barragem, por exemplo, eu consigo dimensionar a superfície inundada, e, portanto, eu consigo quantificar cada exemplar, descrever cada exemplar de espécie arbórea que vai ser afetado, e consigo propor aí uma compensação numericamente favorável? Eu vou colocar 50 exemplares pra cada um que eu suprimir? No caso desse tipo de questão, que deve ser tratada da mesma maneira como as outras, a nossa estrutura, que opera esses instrumentos, não faz distinção nenhuma em relação a questões biológicas, questões de meio físico, questões socioeconômicas. E aí a situação fica totalmente desequilibrada. E nós trabalhamos com essa lógica da compensação, da mitigação, ao passo que não temos nenhum tipo de balizador consistente que permita a gente integrar este tipo de questão na mesma matriz decisória que as outras são tratadas ali, em questões muito facilmente descritas, e previstas, muito fácil de serem previstas ou estimadas com grande segurança. Então, essa é uma questão fundamental, né? Por trás disso, reflete uma grande ausência de um sistema de planejamento, quer dizer, quando é que Belo Monte foi projetada? Certamente, não foi no momento do estudo de impacto ambiental, foi muito antes. Um projeto desse, ele tem um cronograma que é muito anterior a isso. Bom, nesse momento, talvez houvesse possibilidade de discutir localização com os empreendedores, sem afetar suas perspectivas, sem afetar a perspectiva do próprio país de desenvolver, de complementar a sua oferta de energia diante de uma demanda crescente, etc. Agora, no momento que as coisas aparecem, e, pior, quando se abre o canal principal

Quando é que Belo Monte foi projetada?

Certamente, não foi no momento do estudo de impacto ambiental, foi muito antes. Um projeto desse, ele tem um cronograma

que é muito anterior a isso. Bom, nesse

momento, talvez houvesse possibilidade de

discutir com os empreendedores. Agora, no momento que as coisas aparecem, já foi. [Marcelo Montaño]

de negociação e de articulação, que é durante as audiências públicas, já foi. Como é que a gente pode imaginar, diante dessa estrutura: “Olha, tem que aprovar um projeto; vê se essas compensações são adequadas”. Diante dessa estrutura, movimentos, mesmo que totalmente legítimos e muito significativos, como esse que tem ocorrido em Belo Monte, não sensibilizam de fato, não têm poder de sensibilizar dentro dessa estrutura, como ela opera, e aí o que se vê, invariavelmente, são ações que vêm tirar a decisão dessa estrutura formal, e isso joga contra totalmente a lógica do instrumento, e isso dá mais munição para se questionar, inclusive: “Olha, está vendo? Esse é um processo que nem devia ter, porque não dá pra tomar nenhum tipo de decisão, porque qualquer um pode ir ao Ministério Público, e perguntar, e travar um processo de licenciamento, e aí o desenvolvimento do país atrasa, ou então inviabiliza”. Então, são questões que têm que ser mediadas, e têm que ser inseridas nesse contexto. Da maneira como as estruturas operam esses instrumentos, não há certamente espaço para esse tipo de discussão, isso precisa ser bem pensado e ponderado. Obrigado. [João Pacheco de Oliveira] Obrigado, Marcelo. Você apresentou dados e uma interpretação bastante interessante. Vamos passar em seguida, depois dessa argumentação mais do lado técnico, do engenheiro, a partir do rima, do planejamento, de avaliação ambiental, para

o lado jurídico, em relação à participação dos índios, a anuência, enfim, a famosa informação existente quanto a isso, e aí para isso eu passo a palavra ao Raul. [Raul do Vale] Eu sou advogado do Instituto Sócio-Ambiental e tenho acompanhado sobre o Belo Monte já há alguns anos. Eu concordo em gênero, número e grau com o Marcelo, de que em casos como o de Belo Monte... O que são casos como o de Belo Monte? São casos de grandes obras, grandes projetos de interesse do estado brasileiro – nós conhecemos o estado brasileiro, nós somos brasileiros, ele é composto por várias pessoas, empresas, interesses, enfim, esse é o estado brasileiro, não necessariamente representa o anseio da sociedade brasileira –; nesses casos, o estudo de impacto ambiental, o sistema que nós temos formatado na nossa legislação de avaliação de impacto ambiental é totalmente falido. Ele não funciona. Mas não é que não funcione no Brasil, ele não funciona em nenhum lugar do mundo desse jeito, porque é uma coisa em que você se autoavalia, ou seja, é uma coisa que eu quero fazer uma obra, e eu mesmo avalio a minha obra e autorizo se a minha obra pode ou não pode. Quando, ele colocou bem, essa decisão foi tomada já há muito tempo atrás. E existe, e está muito bem documentado isso, no caso de Belo Monte, uma pressão política muito forte, de cima do governo para dentro do órgão ambiental, para aprovação da obra.

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Existe uma alta documentação sobre isso, a quantidade de pareceres técnicos da equipe do IBAMA, que avaliou o caso, e que emitiram pareceres, não só do IBAMA, da FUNAI, de outros órgãos, dizendo que não se podia dar a licença, pelo menos naquele momento, porque uma série de informações faltavam, e mesmo assim a licença foi dada por pressão política – isto está escrito nos pareceres –, que demonstra que, digamos assim, é impossível o estado se autolimitar, também tem esse aspecto do ponto de vista judicial. Então, eu queria dar alguns exemplos aqui, mostrar alguns fatos de Belo Monte, para falar um pouco do momento que nós estamos vivendo, do ponto de vista do estado democrático de direito, no Brasil. Belo Monte é uma obra planejada há 40 anos. Mais de 40 anos, já faz quase 50 anos, foi desengavetada, foi colocada para ser construída, mas, obviamente, com um novo discurso. Então: “Não, não vamos permitir os erros do passado. Vamos fazer Belo Monte mas de acordo com tudo que tem que acontecer, e, se provar que Belo Monte é inviável – isso, o Presidente Lula, na época, falou –, nós não faremos Belo Monte, mas vamos seguir até o final, para demonstrar que é possível, vamos fazer todas as coisas para que seja possível”. Bom, Belo Monte, para se viabilizar perante a sociedade, os engenheiros encontraram uma solução para o alagamento, porque a discussão, há 40 anos atrás, era que as áreas indígenas seriam alagadas, aldeias que seriam inundadas, a quantidade de gente que teria que ser deslocada, que era uma coisa gigantesca. Isso não só Belo Monte, como outras hidrelétricas, que estão associadas a Belo Monte, no Rio Xingu. E portanto os engenheiros falaram assim: “Bom, então, vamos resolver isso, vamos ter uma área alagada menor, não chega a ser uma área alagada pequena, mas é uma área alagada substancialmente menor”. Pra ter uma área alagada menor, trouxe um outro problema: secou 100 km do Rio Xingu; então, em 100 km do Rio Xingu vai ter, em média, 20% da quantidade de água que se passa normalmente ao longo do ano nesse trecho. Claro que, nesse trecho, tem duas terras indígenas, na margem do Rio Xingu, várias outras comunidades ribeirinhas, que são ribeirinhas não por acaso, ribeirinhas porque dependem do rio para a sua sobrevivência, em quase todos os aspectos da sua vida. Tem o Rio Bacajá que desemboca justamente nesse trecho do Rio Xingu, e, portanto, também vai sofrer essa influência da diminuição da vazão. E, digamos, qualquer um, como eu, que sou um advogado, posso entender que, se você vai ter um rio que vai ter 20% da água que normalmente tem, durante centenas de milhares de anos evoluiu uma quantidade de água, e, de repente, ele deixa de ter aquilo, isso vai ter um

impacto substancial ali, né? As comunidades indígenas, que vivem ali, vivem basicamente o dia a dia da pesca, se transportam pelo rio, plantam em áreas que o próprio rio irriga, que o rio traz os nutrientes, ou seja, sem o rio não existiria aquelas comunidades naquele local. Muito que bem. Sabe-se, portanto, que haverá um impacto gigantesco disso daí. Apesar disso, o estado não podia admitir que ia haver deslocamento de pessoas, sobretudo, de comunidades indígenas, de populações indígenas, em função do Belo Monte. Por quê? Digamos, a propaganda oficial é que Belo Monte é um novo projeto, e, portanto, Belo Monte não afetará terras indígenas. Estive no Rio de Janeiro semana passada, e todos os pontos de ônibus na Barra da Tijuca dizem isso: “Belo Monte não alagará terras indígenas”. Portanto, essas populações indígenas que estão nesse trecho do Rio Xingu terão seguramente sua vida profundamente alterada, são populações bastante vulneráveis, do ponto de vista socioeconômico, já com muitos problemas, né, enfim, quem conhece a região. Já são populações que passaram por muitos processos de embate, de redução de terra, de massacres, de violência de todos os tipos; é uma região altamente conflagrada, do ponto de vista fundiário, que você tem uma disputa pela terra muito alta. Altamira voltou a ser, esse ano, a campeã de desmatamento, no Brasil, não por acaso. A região de Altamira, com Belo Monte, e a região de Porto Velho, com o Rio Madeira, são as áreas que mais desmataram no país, recentemente, e, portanto, tudo leva a crer que será muito pouco provável que essas pessoas possam viver nessa região com o mínimo de dignidade após construída Belo Monte. Mas ninguém sabe exatamente o que vai acontecer. A equipe técnica do IBAMA, quando instada a dar a licença pra obra, falou: “Olha, eu não posso dar essa licença, porque eu não sei o que vai acontecer nessa região. Nós não sabemos. A proposta feita pela empresa, a proposta de engenharia, nós não temos nenhuma segurança de que ela vai ser uma proposta que garanta a continuidade da vida, no sentido amplo, na região, sobretudo, das populações humanas que vivem ali, das pessoas que vivem lá, nas comunidades”. Apesar da equipe técnica do IBAMA dizer isso, foi dada a licença, ou seja, conta-se essa emissão de parecer técnico. Há uma probabilidade bastante razoável, eu espero que não; não sou nenhum futurólogo, mas há uma probabilidade razoável, pelos elementos mais básicos, de que as populações indígenas das terras que estão nesse trecho do rio, aos poucos terão que se mudar dali, ou seja, é muito provável que fique impossível viver nessa região. É muito provável isso. Isso é um deslocamento forçado de terra indígena. Isso é uma coisa que a Constituição Brasileira pro-

íbe desde 1988, retirar índios das suas terras, a não ser em casos muito excepcionais, como guerra, uma epidemia, uma coisa que o Estado tira, mas devolve. Expulsar índios de suas terras, inviabilizar a vida numa terra, é proibido pela Constituição Brasileira. A Constituição Brasileira também exige que para qualquer decisão como essa, que não é uma decisão só de uma obra, mas é uma decisão sobre um projeto que vai alterar profundamente uma região, e nessa região tem povos indígenas, que essas populações sejam escutadas, sejam consultadas, e ser consultado, obviamente, não é apenas escutar, é levar em consideração aquilo que é dito. Não aconteceu nesse caso. Houve algumas poucas reuniões, que nem de longe são consultas sobre o Estado perguntando: “Olha, eu vou tomar uma decisão. O que vocês pensam sobre isso?” O Estado tem que tomar uma decisão informada por aquilo que as populações indígenas pensam, anseiam, desejam, manifestam. Essas consultas não aconteceram, está muito bem documentado isso. Muito bem, tudo isso foi parar no Judiciário. Então, o Ministério Público entrou com ações judiciais. Eu, como advogado, poucas vezes estive diante de casos tão bem documentados de ilegalidades flagrantes e formais. O Judiciário, tem uma certa dificuldade em entrar no mérito de questões. Então, se a gente chegasse e falasse assim: “Olha, foi tudo autorizado, está tudo certo, mas tem um estudo, há uma dúvida sobre se será que vai funcionar isso, não vai funcionar aquilo”, ele não gosta de entrar nesses méritos. Ele diz: “Bom, isso aí a autoridade administrativa que resolve, eu não vou entrar no mérito. O que os especialistas disseram, está decidido”. Nesse caso, os especialistas disseram o contrário, falaram: “Olha, não dê a licença, não emita essa licença, não construa a obra, não façamos isso”. Apesar disso, por uma decisão política totalmente arbitrária, portanto, ilegal, muito bem documentada, foi dada a licença. Para o Judiciário, isso seria mamão com açúcar: “Olha, não precisa nem entrar no mérito, se é bom, se é ruim, se é muito, se é pouco. Eu tenho uma decisão: o técnico disse que não pode, vem uma decisão política dizendo que pode, essa decisão, portanto, carece de motivação, um elemento básico para uma decisão administrativa, o normal seria que fosse passada essa licença”; ela não foi cassada. E qual foi o motivo para isso? Que essa obra é importante para o país. O Judiciário tem utilizado para essa obra e para outras obras, no Brasil, um instrumento que é um instrumento fascista, que chama suspensão de segurança. Esse instrumento permite que qualquer juiz de tribunal possa cassar qualquer decisão judicial dada por um juiz de 1ª instância, sem ter que entrar no mérito jurídico da questão. Não tem


que avaliar a legalidade da decisão que ele está devendo, ele tem que emitir unicamente um juízo de valor essencialmente político, se essa obra é importante para o país, se ela pode afetar a economia brasileira, ou pode causar grande convulsão social. Com base nesses três aspectos, que deveriam ser utilizados de forma absolutamente excepcionais, todas as grandes obras hidrelétricas, com todas as ilegalidades que eles possam ter, estão sendo chanceladas pelo judiciário, num roteirinho, que é: o juiz de 1ª instância analisa o caso com base em provas contundentes, e uma análise mais apurada, dá uma liminar paralisando a obra, essa liminar vai pra 2ª instância, vai para o tribunal de juízes, que, por sua vez, aspiram subir aos tribunais superiores, que, por sua vez, são sempre nomeações políticas, e esses tribunais cassam as decisões, e as obras seguem adiante. E não volta a ter outra decisão até que aquilo que é uma regra muito importante no país, mas não está escrito em nenhuma lei, passa a funcionar, que é a regra do fato consumado. Então, nós temos várias decisões judiciais, inclusive, reconhecendo isso: “Olha, não deveria ter acontecido, mas agora já aconteceu”. E o mesmo Judiciário lá atrás, 10 anos atrás, deveria ter feito alguma coisa, mas não fez. Então, o que eu quero dizer com isso aqui é o seguinte: o Judiciário brasileiro também está falido, enquanto uma instância de controle daquilo que o próprio Poder Executivo também não consegue fazer. Então, nós temos uma situação perversa, porque o Poder Executivo não consegue se autorregular, e portanto seria necessário uma instância externa para poder regulá-lo. E essa instância, desde a formação dos estados nacionais, é o Poder Judiciário. Mas esse Poder Judiciário não consegue fazer isso, porque está contaminado, não só por interferências políticas, mas por uma ideologia desenvolvimentista. Então, nós estamos, neste momento, a não ser por coisas como estão acontecendo agora, pelo Xikrin, de ocupação da obra, de pressão social, nós não temos pela via institucional nada obviamente funcional pra conseguir fazer com que coisas básicas do estado democrático de direito funcionem, no caso de uma avaliação de obra desse tipo. Para finalizar, eu não vou me aprofundar sobre isso, só quero citar que o caso Belo Monte vai trazer outro aspecto, que vale a pena a gente avaliar, em que ele trouxe inúmeras condicionantes, que em parte são a confissão de que várias questões que tinham que ser revolvidas, não foram resolvidas, né, mas em parte são promessas de que: “Bom, agora, será diferente”, e nós, no ISA, temos nos dedicado a acompanhar, dentro do possível, essas condicionantes, porque sabemos nós que se pelo me-

nos parte dessas condicionantes venham a ser de fato implementadas, não resolverá a porcaria que é essa obra, mas encarecerá essa obra, e servirá de modelo pra outras obras, no futuro do Brasil. Existe o mito de que as hidrelétricas são uma energia barata. Barata porque todas as externalidades ficam com as populações locais, sobretudo na Amazônia, que nem sindicato tem. Não tem sindicato dos índios, sindicato dos pescadores, não tem nada disso. Então, algo que nós achamos que é importante é pelo menos, no mínimo, conseguir cobrar que uma parte significativa das condicionantes, que vão ser faladas aqui, possam ser implementadas, no mínimo, pra encarecer essas obras, e, no mínimo, para que elas passem a ter um preço, um custo um pouquinho mais próximo da realidade. Obrigado. [João Pacheco de Oliveira] Bom, em seguida vamos passar a palavra a Clarice Cohn. [Clarice Cohn] Boa tarde a todos. Das milhões de coisas que eu poderia falar aqui, eu queria falar uma coisa muito específica, que diz respeito à nossa atuação, como antropólogos, nesse processo, e é uma coisa que tem me preocupado muito ao longo desses últimos anos, que é relativo aos conhecimentos indígenas, e ao modo que eles são tratados nesses processos. Então, só pra dizer, eu participo desde 2009 dos processos de estudo de impacto ambiental, na terra indígena Trincheira/Bacajá, no Rio Bacajá, que é um afluente do Xingu, que dá na Volta Grande do Xingu, que terá a vazão reduzida, caso a obra seja construída – eu vou dizer sempre assim, “caso a obra seja constru-

ída”, até que eventualmente o fato consumado se consuma... O estudo de impacto ambiental foi iniciado em 2009. Era para ser um estudo apenas de dados secundários, porque foi decidido, na época, pela Eletronorte, com anuência da FUNAI, de que como o Rio Bacajá não seria diretamente atingido, impactado, era possível fazer só com os dados do gênero foto de satélite, e os dados que já estavam disponíveis pelo estudo de impacto ambiental geral, como se costuma chamar, que eram aqueles que estudaram o Rio Xingu. Então, já foi uma primeira luta a gente tentar – e a gente conseguiu, eventualmente – que se fizessem estudos de impacto ambiental do Rio Bacajá, por uma equipe de especialistas ao longo de um ano. Essa foi uma das condicionantes da obra, que recebeu o nome de Estudos Complementares do Rio Bacajá, que foi recém-finalizada. E até agora não foi entregue ainda ao Xikrin. Ela foi apresentada pra eles, então, cada uma das cinco aldeias, das atuais oito aldeias, da terra indígena Trincheira/Bacajá, que recebeu a equipe dos estudos, recebeu também essa equipe pra apresentação dos resultados, mas o estudo continua andando lá, entre Norte Energia/ FUNAI/IBAMA, Norte Energia/FUNAI/IBAMA, e não chegou fisicamente nas mãos do Xikrin. Então, eu tendo a considerar essa uma das condicionantes não cumpridas até agora, até o momento em que ele efetivamente chegue nas mãos dos imediatamente interessados, não é? Mas ao longo desse processo todo, eu tenho acompanhado um incrível investimento desses especialistas, no que diz respeito aos conhecimentos indígenas sobre o rio, e tudo o que diz respeito ao rio, e isso tem me colocado duas

Eu imagino quantos estudos etnoecológicos,

nesse processo de PAC, estejam com a FUNAI, com o IBAMA. São conhecimentos indígenas sobre o meio ambiente, no Brasil inteiro, na

Amazônia inteira, que eu não tenho notícias de que uso será dado. [Clarice Cohn]

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questões, que eu gostaria de debater aqui, no âmbito de uma Reunião Brasileira de Antropologia, tendo um público, majoritariamente, imagina-se, de antropólogos. Um deles é o fato de que todos esses estudos costumam contar com estudos, que se convencionou chamar etnoecológicos. Então, os especialistas, que são etnoecólogos, ou biólogos, ou antropólogos, vão lá discutir com os índios o seu conhecimento sobre a sua terra, o seu rio, e os impactos possíveis. Isso pode dar em lindos estudos, só que esses lindos estudos ficam na mão do Estado. Isso é uma coisa que tem me preocupado muito desde que eu tenho acompanhado o processo. Eu imagino quantos estudos etnoecológicos, nesse processo de PAC, estejam com a FUNAI, com o IBAMA. São conhecimentos indígenas sobre o meio ambiente, no Brasil inteiro, na Amazônia inteira, que eu não tenho notícias de que uso será dado. Eles vão ser disponibilizados para as populações indígenas? Eles vão ser publicizados? Eles vão ser guardados a sete chaves? E todo o seu patrimônio será guardado? Enfim, o que acontece com isso? É algo que eu não vejo sendo debatido hoje, e isso tem realmente me preocupado. A outra coisa relativa também aos conhecimentos indígenas, e que eu acho que nós, antropólogos, temos que debater efetivamente, inclusive, na nossa participação nesses estudos de impacto ambiental, é o fato de que muito embora as populações indígenas sejam ouvidas ao longo desses estudos, os seus conhecimentos não necessariamente são efetivamente incorporados nesse processo decisório, no processo de licenciamento. No caso da terra indígena Trincheira/Bacajá e no caso do Xikrin isso é notório, porque o que acontece é, desde sempre se diz: “O Rio Bacajá não será afetado pela vazão reduzida do Xingu, porque – isso é o parecer técnico dos engenheiros, né? – a influência do Xingu sobre o Bacajá não supera – às vezes eles falam 25 km, às vezes 28 km, às vezes 50 km, mas nunca vai além dos 50 km, que coincidentemente é quando começa a terra indígena Trincheira/Bacajá – a 50 km da foz do Rio Bacajá, no Rio Xingu”. Então, há uma série de comprovações, estudos hidrológicos, que diria isso. Só que os xikrins não acreditam nisso, e, aparentemente, jamais acreditarão. E eu tenho ouvido, nesses últimos anos, os velhos xikrins, insistentemente, levantar e dizer: “O Rio Bacajá secará se a vazão do Xingu for reduzida”. Eles estão absolutamente seguros disso, e eles têm várias explicações, algumas delas são históricas, ou seja, de experiência histórica, de momentos em que o Rio Bacajá secou efetivamente, e que eles remetem a esse tipo de causalidade, da bacia hidrográfica. E, basicamente, eles nos dizem: “Nós conhecemos o nosso rio”. Então, é um incômodo o tempo

todo, e que eles falam assim: “Quem são vocês, que vêm lá de longe, que não conhecem o rio, e que vêm nos dizer que o nosso rio não vai secar? Nós conhecemos o rio, nós andamos por esse rio, nós sabemos o que acontece com ele, quando muda o Xingu, quando muda a chuva, quando muda a cabeceira, quando muda isso, quando muda aquilo. E por essa nossa experiência, nós sabemos que o rio vai secar”. E muitos desses depoimentos são muito doídos de ouvir. É como se fosse o anúncio de um apocalipse pelos velhos. Eles falam: “O rio vai secar, as águas vão ficar quentes, os peixes vão morrer, a caça não vai conseguir mais beber água, a floresta vai morrer”. E alguns velhos dizem: “Os nossos filhos e netos vão viver de sapos e ratos”. Essa é uma das coisas que eu ouvi várias vezes ditas pelos velhos. Bom, enfim, não vou me alongar nesses discursos que os velhos fazem muito melhor, e o Mukuka fará muito melhor do que eu agora, mas a questão que eu queria colocar é: se a gente faz os estudos etnoecológicos, e ouve os indígenas nessas terras impactadas, por que é que esses depoimentos deles não estão fazendo nenhuma diferença na avaliação final, e, minimamente, no relatório final desses estudos de impacto ambiental? Eu tenho visto embates o tempo todo. Cada vez que esses especialistas vão pra aldeia, os velhos levantam e falam: “Vocês não estão nos ouvindo. Nós estamos explicando para vocês, vai acontecer isso”. E os técnicos continuam dizendo: “Não, mas vocês podem ficar tranquilos. Olha, estão aqui os gráficos, e eu estou mostrando pra você que isso não vai acontecer”. E aí fica essa briga de surdo e mudo. A gente estava lembrando hoje de uma situação que eu acho que é muito reveladora disso, que foi quando os xikrins pediram que fossem colocadas réguas de medição da vazão do Rio Bacajá em cinco aldeias, de modo a que a seca do Rio Bacajá, que eles estão prevendo, pudesse ser documentada. O que é que eu ouvi, sendo chamada pela FUNAI, pela Norte Energia? “Não é necessário colocar essa régua, eles não precisam da régua pra saber que o rio está secando”. E aí eles me falavam: “Olha só, eles veem a pedra, eles veem isso, eles veem aquilo, e eles sabem que o rio está secando”. Aí eu tive que dizer: “Eles sabem muito bem que eles sabem que o rio está secando. Agora, o que eles sabem também é que vocês não estão conseguindo ouvir isso, e eles só têm a necessidade da régua para provar para vocês que a previsão deles está correta. Não é para que eles possam ver se está correta ou não, mas é porque eles sabem que esse é um instrumento técnico para documentar e demonstrar para as pessoas que, efetivamente, não os estão ouvindo de outro modo, que não sejam, por exemplo, réguas na beira do rio”. Muito obrigada.

[João Pacheco de Oliveira] Eu passo agora a palavra a quem é mais esperado, que é o Mukuka, e que eu acho que ele se sinta como estivesse na sua aldeia, ou tivesse na ocupação; ele pode falar com extrema liberdade aqui, dando nome aos bois, e dando as suas opiniões a respeito dessa questão. [Mukuka] Boa tarde a todos que estão aqui. Agradeço a Clarice, que me convidou. Estou muito feliz aqui com a presença de vocês todos, de todo o Brasil, que os antropólogos que trabalham com os indígenas estão aqui. Tem aqui o nosso colega, Fábio, que também está lá com a gente, que desde 12 anos que ele vem lutando contra o Belo Monte, e eu acho isso muito errado porque meu avô, ele está lá me esperando, não sei como está lá, e me mandou: “Mukuka vai para lá, conta a história lá do que está acontecendo aqui com a gente, que o governo está querendo enganar a nós. Ele já enganou a gente dentro da nossa vida”. Eles foram levar o estudo sobre Belo Monte, na época. Isso os xikrins e caiapós conseguiram parar. Eu acho que eu tinha um ano de idade de nascido. Aí depois eu vim ver o vídeo, muita gente vinha lutando, lutando, e muita gente, nossos avô, avós já se acabaram. E hoje em dia, nós, indígenas, nós estamos em Altamira, a gente sempre fomos enganado pela Norte Energia, e os pessoal do IBAMA. Eles levaram um estudo lá, na aldeia Bacajá, aí eles foram apresentar um estudo, o pessoal da FUNAI junto, não falaram que isso era oitiva. Mas não, isso pra eles já era oitiva. Isso foi na nação, dentro da nossa aldeia. E a FUNAI deu parecer pra construir a obra de Belo Monte. Depois que nós fomos saber, que a gente foi ver o papel, que isso já era oitiva. Que a gente vinha questionando na justiça, levando procurador pra nossa aldeia, levando, e nada, não foram cumprida. Está na justiça, e ninguém sabe onde está esse documento. A gente teve uma reunião na casa de um índio lá, em Altamira, com todas as etnias de Altamira, que era Kuruaia, Xipaia, Assurini, Parakanã, Araweté, Xikrin, Arara, Juruna, esses povos tudinho, teve uma reunião lá, eles enganaram nós também. Prometeram tanta coisa, e a gente acreditou. O nosso plano era ocupar a obra, aí nós: “Não. Agora, deixa eles falar, ver se eles faz”. A gente falou para eles: “O índio, ele para fazer uma coisa, ele avisa; avisa primeiro, para o dono ficar sabendo, para depois ‘Não, ele não avisou, sem comunicar a gente’”. A gente avisou. O presidente da Casa Civil, a gente falou: “Se você não cumprir o que vocês estão falando, a gente vai ocupar lá”. “Não, mas não pode fazer isso”. “A gente pode, a gente pode. Quem não pode é vocês”, falei bem assim. Aí passou um tempo, nada das coisas acontecer.


Aí eu comecei a conversar com o nosso pessoal: “Pessoal, isso está errado. Pessoal, eles estão enganando a gente”. Comecei a conversar com toda a liderança, do começo do ano até agora. Quase no começo do ano, aí todo mundo chegou a mim, falou pra mim que eu estava certo. “O que é que nós pode fazer? A gente tem que fazer uma manifestação aqui, em Altamira”. “Isso não empata, não. O coração deles está lá, no pé da obra. Nós tem que ir pra lá”. “Mas como?”. “Vocês são maioria”. “Não, a maioria já está decidido”. Aí veio o Rio + 20, aí eu disse: “A gente vai fazer uma reunião”. No final de maio, a gente fez uma reunião na aldeia Bacajá, a gente conversou com todas as lideranças xikrin, e todo mundo concordou: “Nós vamos pra lá”. Aí: “Quem vai ajudar nós?” Eu disse: “Não, a gente mesmo. A gente não precisa de ajuda de ninguém, não. Depois eles vão falar que o branco que estão incentivando os índios, aí vão querer processar eles. A gente tem que tomar a frente”. “Tá bom”. Aí o pessoal marcou o dia 21, um dia antes do Rio + 20 acabar. Aí a FUNAI pediu cinco indígenas pra ir pro Rio + 20, aí esses indígenas também nenhum foi. Um era eu, pra mim ir pra contar isso que está acontecendo lá, no canteiro de obras. Aí o pessoal, no dia 19, começou se arrumar as coisas, começou a pegar a farinha e sal, só isso. Índio quando vai pra guerra, não tem negócio de comer, não, só come depois que ganhar a vitória. [Clarice] Fica mais bravo, né? [Mukuka] É. Aí o pessoal começou a arrumar as coisas deles, pegou só farinha e sal, e foi embora. “Daqui a gente vai caçando, vai encostando e vai caçando, pegando jabuti, matando porcão, e a gente vai levando, pegando peixe, e vai comendo”. Aí, o pessoal chegou: “Aí, a gente está pronto”, “Então, pula pra dentro da lavadeira, que a gente vai junto. Nós primeiro, a gente vai pela frente”. Aí veio 20 guerreiros só. Aí quando deu dia 19, às nove horas da manhã, o pessoal invadiu tudo lá, aí tinha branco correndo pra todo lado, pessoal pedindo pra não morrer. “A gente não veio pra matar ninguém, a gente veio atrás do nosso direito. Que o chefe de vocês não estão cumprindo, estão passando por cima, não estão ouvindo a gente”. Aí correram para lá, pegaram balsa, tem gente que até perdeu documento, documento voava para todo lado, e a gente entregou documento de novo para o pessoal. Pessoal até queria tacar fogo: “Não, o pessoal não tem culpa, não. Quem tem culpa é o pessoal grande. Esses daí tem que trabalhar para dar o que comer pro filho”. Aí nós ficamos lá. Começamos com 20 pessoas. Aí até meio-dia, incluiu pra 100 pessoas. Aí no outro dia, 150. Aí no outro dia, mais

Aí o pessoal, no dia 19, começou se arrumar as coisas, começou a pegar a farinha e sal,

só isso. Índio quando vai pra guerra, não tem negócio de comer, não, só come depois que ganhar a vitória. [Mukuka]

50. E agora a gente está com 300, com 350 pessoas. A gente está acampado lá ainda. E o que o pessoal pediram para mim, para eu pedir para o Brasil inteiro, para vocês, a gente está precisando de apoio, porque o pessoal lá, eles estão dando alimentação para o pessoal, e qualquer dia eles podem cortar, e o pessoal pode deixar eles trabalhar de novo lá. Aí o pessoal pediram pra vocês dar apoio pra gente, buscar apoio, para a gente não sairmos de lá, porque o Sítio Pimentel está parado, a secadeira está parada, tem 50 máquinas paradas lá, e o pessoal está lá. [João Pacheco] Durante esse período da ocupação da obra, que já vai pra quase 15 dias, com a população indígena crescendo dentro dessa situação, quer dizer, qual é a reação do corpo do governo, de organismo de governo, quer dizer, quem buscou conversar com vocês, quem buscou negociar, ouvir, saber o que vocês desejam, e pensar em soluções? Quer dizer, houve alguma comitiva governamental, como foi esse caminho? Acho que seria importante a gente ouvir de você isso. [Mukuka] Isso, não teve ninguém ainda assim; comissão do governo ainda, não apareceu ninguém lá ainda, entendeu? Mas o pensamento dele é fazer o Belo Monte, só isso. Agora, para fazer as coisas necessárias para o povo lá, para o próprio povo mesmo que é o branco lá, eles estão fazendo várias promessas. Não tem ninguém até agora que conversou com a gente. [João Pacheco] Nenhuma autoridade foi lá... [Mukuka] Nenhuma autoridade. Agora, dia 9, que eles estão indo lá. O pessoal da Norte Energia disse para negociar lá. O pessoal falou: “Depende da conversa. Se for alguma conversa, mal eles falar, eu acho que aquelas casas tudinho vai pegar fogo”. O pessoal está pensando só nisso, porque já chega de promes-

sa. O presidente da FUNAI também não apareceu lá. Só administração local não tem poder, né, quem manda é o pessoal lá de cima; o que manda, eles faz também, ele não pode mandar no chefe dele. [Clarice Cohn] Eu queria fazer um comentário só. Obrigada, Mukuka, foram muito bonitas as suas palavras. Eu queria só comentar pro pessoal que está aqui, que não conhece a região Altamira, uma coisa que é muito importante: hoje, estão nove etnias de 21 aldeias daquela região reunidas nesse canteiro de obras para parar a Belo Monte até que algo se resolva, e eles estão esperando essa negociação. A primeira coisa que eu queria contar é que isso é uma coisa histórica na região de Altamira. Outras regiões do Brasil conhecem movimentos indígenas, os indígenas estão organizados em movimentos, em confederações. Isso não existe em Altamira. Muito pelo contrário, essas populações que hoje estão reunidas, naquela ocupação, são populações que até pouco tempo eram inimigas, efetivamente inimigas. Então, a gente pôde presenciar os velhos xikrins e os velhos parakanãs dançando juntos, abraçados, e são velhos que, quando crianças, os seus pais e avós se matavam mutuamente, em guerras, no mato, antes deles decidirem sair do mato. Então, é algo realmente histórico, que demanda uma difícil articulação e negociação, porque isso significa que esses ânimos podem ser acirrados a qualquer momento. Então, a gente tem vivido e testemunhado dias de grandessíssima intensidade, porque vai dessas lindas manifestações, como os velhos parakanãs e xikrins dançando lado a lado, mas também essa articulação o tempo todo, essa negociação o tempo todo de diferenças por uma causa comum, né? Então, eu queria marcar essa particularidade, desse movimento, que é muito importante.

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Contra a falta de pontes que me faz ilha, salto na correnteza da noite em que não conheço o nome das ruas e nem de seus habitantes mestiços. No entremeio do frio chuvoso e do calor confortável, ruas se fazem labirintos e deuses bacantes se reúnem em assembleias para saltar fora de seus lugares, pular nos subterrâneos do tempo rumo a algum bar que tenha carnes extremas na entrada. Beco-lugar-nenhum da cidade de 5 séculos onde cada prédio vai ao analista fazer regressão para lembrar quem já morou em seu corpo de compartimentos precisos. Nesse lugar-excremento-mangue, os gatos são gurus que tudo veem, advinham, sonham – andam nas pontas dos dedos sobre as cabeças-HD’s-programadas, memórias frágeis que esquecem o futuro que foi e se reinventam a cada nova moda, drink, boca, táxi. Na cidade dos corações partidos, manequins recitam poemas vernaculares, bêbados urinam fractais quânticos nas esquinas

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circulares e sorrisos esnobes passeiam plenos em seus pedestais. Das mesas amplificadas, fragmentos musicais escapam dos tilintares dos copos – os deuses marginais seguem suas reuniões em esconderijos dobrados na rugosidade dos musgos. Nova moda blasé dos manequins de corações descartáveis, virtualmente vivos, praticamente mortos. O pajé-xamã-urbano uiva do alto de uma torre de transmissão profanando canais de rádio e TV e os grafismos das velhas paredes acordam e atendem ao chamado – encontro marcado no jardim das orquídeas do amor-tempestade, onde se distribuem chocolates-tsunamis e todos se chupam na tentativa de roubar a imaginação do parceiro. No bar-terreiro os jesuítas-pedófilos dançam o toré, e fotografias acompanham o ritual lá de seus lugares suspensos vendo as novas vidas celebradas com doses de café-radioativo que José Medeiros inventa em seu quarto escuro na extremidade do passado. Nas prateleiras das ruas, doces lábios acenam em manifestações do espírito descarnado. Após lavar a boca das portas, os dejetos-mendigos pegaram carona em excursões pelo interior do sertão de J. Borges e mestre Vitalino à procura da redenção que os programadores visionários anunciaram. No ciclo da natureza mecanizada, o fluxo das águas arrancou da letargia os grandes-lábios das estátuas, lançando-os no estuário em que se formam clubes de malfeitores e juízes-delirantes jogam suas armadilhas para pegar peixes lilases e pequenos mariscos. No cais, Apolo e Dionísio fazem amor em um encontro de maracatus. Lá onde andarilhos vendem poemas e outros vendem grilos, a mulher magra de capa preta distribui pirulitos-de-olhos-vermelhos para consumo nos pátios da consagração, lugar sem nome ou tatuagem que Pierre Verger fotografou quando recebeu o santo.

relatório do mundo oposto Demetrios Galvão


culturaebarbárie totemsemia

Foto

dos

Aikewara,

o

“povo-daqui”.

Diz-que Odisseu escapou da grota de Polifemo dizendo chamar-se Outis, Ninguém. Polifemo criava ovelhas, mas não as comia. Os humanos, que entravam em sua grota para roubar-lhe o vinho e os quitutes, ele comia. Comeu de dois em dois os companheiros de Odisseu, e depois bebeu o vinho. E acabou cego. Ninguém fugiu, sob a pele das ovelhas. Até hoje. Odisseu foi o pai da massa. O primeiro Ninguém esquivando-se entre os dedos do mundo. Depois dele, a cada um é dado o direito de ser joão ninguém, ou maria alguma coisa. A cada um, mas nem todos. Tem gente que não teve saída. Quem se dizia gente ganhou nome, uns dos outros, ou ainda da comida que primeiro veio pulando. Nome errado, nome trocado, tomado ou errante. Cariba, Caniba, Canibal, Caliban. E a ontologia tentou, em vão, substituir a errática dos nomes. Mas o índio não tinha o verbo ser. Até hoje: gente que não é, mesmo quando os nomes não somem. Eles não são como vocês. São como os que comiam vocês. Ou são, mas não somam. São sôma anômala. De nomes alheios e nomes do alheio. Para quem o nome próprio é a apropriação do nome. Pronome. Indefinido, torto, oblíquo. Atravessando. Se a história do homem é a história da sua fome, a do antropófago é a da devoração do nome. Heteronímia canibal. Semiofagia: é a carne, é a ideia. Ter muitos nomes é um jeito de ser sem O nome. Como o nome. Sem dúvida ontológica. Conflito odontológico: tupi or not tupi.

E temos que escolher: sob a pele das ovelhas ou sob os nomes dos índios? Nomes que subsistem. Daqueles cujo rastro identifica o conflito existente entre o Brasil caraíba, verdadeiro, e o outro, que só traz o nome. Não somos Ninguém. E estamos recrutando fatores postos à margem. Forças escondidas. Mal apalpadas. Que ainda não couberam no sistema métrico ocidental. Índio. A multiplicação de todos os nomes. Somos a reação da paisagem contra o tempo. Nomen nudum, de homem totem. Onomatotema. Somos... krenak, xerente, ticuna, krahô, tukano, trumai, patamona, karipuna, hixkaryana, waiwai... E não sumimos. Nós, os outros. Nósoutros. Nosoutros.

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cucu

UM POETA NO PALÁCIO REAL

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Acabamos de ganhar cem mil euros. Uns holandeses que não sabemos nem quem são nos deram, à Eloisa Cartonera, o Primeiro Prêmio Príncipe Clauss e temos que ir a Amsterdam para recebê-lo. Que lindo começar algo com cem mil euros no bolso! No entanto, a verdadeira história recém começa em Amsterdam: ao entrar no hotel mais importante da Europa, L’Europe, me dizem que justo neste momento está Madonna se alojando no andar de cima do meu 504. Me dizem em um inglês impessoal: “o chão dela é teu teto, ela está justo em cima de ti, Deus te abençoe”. Se ela está em cima de mim, então é provável que eu possa estar em cima dela em algum momento… Todos me falam em inglês e não entendo um sorongo. O inglês é um idioma simples e demasiado metálico, mas… por que demônios não me falam em castelhano¿ Faço sinais à concierge, uma morena infartante de olhos amarronzados e com forma felina, para saber se posso tocar a campainha da diva. Amicaela Popescu é caribenha, mas com cidadania holandesa: é do Suriname, uma das tantas ilhas coloniais que esses tipos têm. “Vai ser complicado, muchacho, ela não aceita ninguém” - e me corta a seco. Um holandêés alto, mais lindo que Beckham e Brad Pitt juntos, com um chapéu de granadeiro, me acompanha ao meu quarto. Tudo é luxo, tudo é lindo, tudo é educação e respeito ao próximo. E assim como há pobreza extrema, também há riqueza extrema. O banheiro do quarto é maior que a cova na qual vivo em Buenos Aires (e pago um aluguel de 2500 pesos mensais!). As janelas do hotel me mostram toda a beleza de Amsterdam, uma cidade de brinquedo, limpa e transparente, como uma clínica particular. Aqui, as drogas estão legalizadas e a prostituição é um ofício interessante inclusive entre as universitárias. As putas mais interessantes, no entanto, não são as holandesas cultas, e sim as balcânicas, as russas: cada uma fala cinco idiomas e têm o encanto de um leitãozinho. Eu o comprovo em carne própria, a zona vermelha está junto a um canal cheio de gansos brancos e patos amarelos. Vou a um café shop onde estão todos fumando mil sabores diferentes de marijuana. Me vendem um cigarro por quinze euros e me entregam em um frasquinho alargado de plástico. Desconfio: é o baseado mais caro e pior do mundo. Entretanto, não nasci para a marijuana e a cocaína – que, desafortunadas, perdem, assim,

Washington Cucurto (Tradução: Camila

um artista genial! De qualquer forma, compro um cigarro e corro ao hotel. Toco a campainha da diva. Porém, não responde; tenho o cigarro em uma mão e, na outra, tenho três livrinhos cartoneros, um é Evita lives, de Néstor Perlongher. Se escuta o ruído da ducha, mas ninguém responde. De repente, é ela. “Come on, beibi”. Demorei cinco minutos em compreender a frase, caralho, por que demônios não terei estudado inglês¿ A diva sai envolta em uma bata branca; ao me ver, se assusta, mas eu a surpreendo com meu cigarro e os livrinhos cartoneros. Ela namorou com um exército de cubanos e mexicanos e me diz: “gracias por los libros, chico, pero ahora tengo que ir”. E fecha a porta. É muito baixinha a Madonna. Chego ao meu quarto e, outra vez, droga, falam comigo em inglês por telefone, não entendo um sorongo. É a presidenta da Fundação Príncipe Clauss. “Rapaz, está apressada”, me diz Amicaela Popescu. “Ela vai te levar ao Palácio Real, onde irão te vestir adequadamente; nossa querida Rainha Beatriz morre de vontade de te ver e irás merendar com ela”. Digo a ela que vamos e me embarcam numa limusine. O Palácio é incrível, mas não deixa de ser como qualquer outro palácio. Agora, sim, posso dizer: o yotibenco no qual vivo é melhor, já não tenho dúvidas. Um assistente me leva a um quarto de hóspede, outro me barbeia e outro vem suado: acaba de me comprar um terno da ZARA azul petróleo, umas meias pretas e um cinto e sapatos marrons. Enquanto me engalanam, olho pela janela do Palácio e vejo muita gente que se amontoa para ver sair e entrar a Rainha. Entra Fariba, uma jovem árabe que faz honra à sensualidade desses países. Agora entendo o que faz Diego nos Emirados Árabes. É a chefa indiscutida, mas comigo se comporta com muito apreço. Me ensina bons modos, como me sentar. “Não olhes nos olhos da rainha se ela não te olha; não lhe estendas a mão, se ela não tiver sua mão estendida primeiro”. “Pronto, campeão, entra em campo!”, imagino que queria me dizer algo assim, porque, no Palácio, há mais de 500 pessoas e, dentro de meia hora, terei que passar por um tapete vermelho, no meio de toda essa gente, e subirei a um estrado e me sentarei ao lado da Rainha. Antes que eu suba ao estrado, cantarão no cenário, haverá dois grandes bailarinos de tango, outros artistas que receberam menções estarão expondo suas artes e suas experiências.

do

Valle)

O Prêmio Príncipe Clauss é um prêmio destinado a organizações da América Latina e África que, com seus trabalhos, tenham influenciado no mundo e lhe dado algum tipo de esperança à humanidade ou algo assim, se entrega todos os anos e aqui estamos. É um prêmio ao qual não é possível se inscrever, só te inscrevem, e nunca se sabe quem o fez. É confidencial. Mas eu não morro de vontade de conhecer a Rainha, senão a Madonna e, em segundo lugar, a Máxima. Não entendo como alguns bobões falam mal de Máxima: é a maior. Abrem-se as portas e vêm Máxima e seu companheiro. Mas todos se abrem para receber a Rainha Beatriz. Que linda é Máxima, uma autêntica rainha! Alta e magra como uma tábua e com uma elegância única. Se tivéssemos que escolher entre todas as mulheres que estão no Palácio, Máxima é a rainha indiscutível. Falamos muito pouco, todos falam em inglês e eu a encaro diretamente em castelhano. Máxima é doce e amável, me diz que está orgulhosa que Eloisa Cartonera tenha ganhado o Prêmio, ela tem uma coleção de livros de papelão na sua casa de Buenos Aires. E já não falamos mais, a última coisa que me diz é que seu escritor preferido é Fabián Casas. Aproveito para lhe dizer que Fabián Casas não existe, eu o inventei. Agora chega a Rainha Beatriz, agradabilíssima, parece minha avozinha. Uma verdadeira anfitriã, nota-se que está acostumada a esses troços. Me conta, com tradutor presente, que lhe encanta veranear na Patagônia, que está muito orgulhosa de Eloisa Cartonera, à qual considera como a melhor editora do mundo. Mas até que ela não conheça “La Carto”, estas últimas palavras me diz em castelhano, não vai sossegar. Enfim, recebemos o prêmio, todos nos dizem que somos os melhores, mas sinto que seguimos sendo como sempre e, se me apressam, arrisco que um pouquinho piores. Que importância têm essas valorações neste fucking momento! Subo no estrado, leio um poema. Beijo minha companheira de todos esses anos e dançamos, bebemos e, no dia seguinte, seguimos vivendo. Quando vou embora, Amicaela Popescu me entrega um recado. É um envelopinho que deixou, para o senhor, a Senhora Madonna. Fora, a cidade seguia bela, rodeada de flores, moças perfeitas em bici e milhares de canais paradisíacos.


impostor

orelhada Ronaldo Bressane

Se você espremer o volume Escritores contra escritores, organizado por Albert Angelo (El Aleph, 2006), vai colher uns bons litros de bílis. O excêntrico catalão compilou nesta edição algumas das pérolas negras da literatura. Coisas como… “Kurt Vonnegut é o pior escritor dos EUA” [Gore Vidal] ou “Vidal sofre do medo de ser tomado como chato, estúpido, antiquado, uma péssima atitude para um novelista” [Kingsley Amis] ou “Escrevia sobre beber para aproveitar alguma das horas que dedicava a isso” [Martin Amis sobre o pai,Kingsley] Fico pensando como compilariam um desses livrinhos no Brasil, esse país em que autor xinga muito à boca pequena, no conforto das listas de discussão do email, das páginas do gtalk, no chat do feicebuça. No Brasil não temos essa tradição de falar na cara o que se pensa (a não ser que se prove do miojo da covardia e se chame Marcelo Mirisola ou Ricardo Lísias, mas enfim, esses aí não pensam muito antes de escrever). A coisa nunca vira literatura; fica no xingamento de bar, logo esquecido pela falta de classe do tapa, em geral desferido à socapa. E, descontados os anônimos que abundam nas caixas de comentários, a conversa desfiase junto da carne seca da feijoada, nunca em porrada lida em Times New Roman. Será nosso desbragado cordialismo? “Toda a sua obra se centra em ser patético” [Frédéric Beigbeder sobre Michel Houellebecq] “Bellow é uma mediocridade miserável” [Vladimir Nabokov] “Dei uma olhada nos livros de Bolaño e me aborreci espantosamente” [Isabel Allende] “Ele falava mal de todo mundo. Era uma pessoa extraordinariamente conflituosa que nunca disse nada de bom de ninguém. É um bom escritor que desgraçadamente morreu, mas isso não faz dele uma pessoa melhor” Pero antes que Bolaño morresse, él dicho: “Nem sequer acho que Isabel Allende seja uma escritora, é uma escrevinhadora”

“Não mudaria de idéia se tivesse bebido com ela. Primeiro, porque essas senhoras evitam beber com alguém como eu. Segundo, porque já não bebo. Terceiro, porque nem nos meus piores porres perdi uma lucidez mínima, um sentido da prosódia e do ritmo, um certo pudor ao plágio, à mediocridade ou ao silêncio” “Se tivesse que escolher entre ela e António Skármeta, ficaria com Allende, mas escolhendo entre a espada e a parede” Mais do genial chileno, que sofria… do fígado: “Os méritos de Paulo Coelho? Os mesmos de Isabel Allende: vende livros” “A literatura chilena gira em torno de um sol morto que se chama Pablo Neruda“ “Como poeta, seriam umas bichas loucas, como Whitman e Blake. Neruda e Paz, no entanto, são só umas bichas” “A melhor lição de literatura que deu Vargas Llosa foi fazer jogging nas primeiras luzes da alvorada” Algumas das melhores são mesmo do pai de Martin Amis – que, a se crer nas capitulares das epígrafes colhidas por Angel, é um KIDIDS avant la LETTRE: “QUE FILHO DA PUTA! Nabokov é um perfeito bobalhão, não acha? Representa tudo o que está errado na metade dos novelistas norte-americanos – há outras coisas piores na metade restante – e fodeu com muitos bobos daqui, inclusive meu pequeno Martin” [Kingsley, em carta a Philip Larkin] “Com o senhor Dylan Thomas cheguei a um ponto em que só havia alcançado antes com Chaucer e Dryden, nem mesmo com Milton, que é DESEJAR VIOLENTAMENTE que esse tipo ESTEJA NA MINHA FRENTE para ser DEMONIACAMENTE MAL-EDUCADO com ele sobre o LIXO GONORRÉICO que escreve, e logo ANDAR SOBRE SUA CARA e GOLPEAR SUAS PARTES ÍNTIMAS” [id.] “JRR Tolkien é repulsivo” Outro que tem a língua podre – me disseram que ele mal freqüenta livrarias, lhe dá enjôo… – é o argentino César Aira: “No último Congresso da Língua vi Saramago, Sábato… alguns chegam a um ponto que nos dão vergonha alheia” “O melhor Cortázar é um Borges ruim”

Os beats apanham o seu tanto: “Walt Whitman recitado por um caminhoneiro, o budismo ao alcance dos leitores de Reader’s Digest e um incalculável palavreado de bêbado pseudofilosófico” [Juan Luis Panero sobre Jack Kerouac] “O que faz não é escrever, é bater à máquina” [a clássica de Truman Capote sobre Kerouac] Hemingway é alvo fácil: “Que outra cultura poderia ter produzido alguém como Hemingway sem perceber a piada?” [Vidal] “Não é humano” [F. Scott Fitzgerald] “Nunca usou uma só palavra que enviasse o leitor ao dicionário” [William Faulkner] “Tenho muito mais a dizer que Hemingway, e Deus sabe que o digo melhor que Faulkner” [Carson MacCullers] “Depois de ler o admirável perfil de Hemingway publicado na New Yorker, me dei conta de que sou bonito demais para ser um gênio, abstêmio demais para ser um campeão e idiota demais com as armas para poder viver a boa vida” [Raymond Chandler] “Não gosto dos homens que tomam o caminho mais rápido” [Faulkner, ao saber que Hemingway se matou] Sangue! “Cada vez que leio Orgulho e preconceito me dá ganas de desenterrá-la e golpear seu crânio com sua própria tíbia” [Mark Twain sobre Jane Austen] Pra finalizar, uma das grandes frases de um escritor que nem sempre as concatenava com igual felicidade: “Só porque seu cu está sangrando não quer dizer que você seja o cachorro vencedor” [Norman Mailer ironizando um ataque da crítica contra Gore Vidal, que havia respondido com um “O cachorro vencedor é aquele em quem todo mundo quer morder o traseiro”] Ah: na biografia, diz-se que o antologista Angelo é entomólogo, clarinetista e crítico literário: “Sua feroz defesa da privacidade o levou, em várias ocasiões, a disparar com balas de verdade contra jornalistas que queriam entrevistá-lo. Tampouco lhe agradam os escritores”. Faz sentido.


confabulações Rabuja rubirosa e a linguagem-outrora Eduardo Sterzi

Se Veronica Stigger, num livro como Delírio de Damasco (e, antes, na exposição Pré-histórias, 2, que deu origem àquele), procede ao que ela mesma chamou de uma “arqueologia da linguagem do presente”, numa pesquisa simultânea e dialética da graça e do horror mal enterrados em nossas conversas cotidianas (por exemplo: “Coitados dos índios! / Viviam em paz. / Chegaram os seres humanos e mataram todos”), Diniz Gonçalves Júnior, no projeto de escrita ainda em curso que leva a assinatura, mais do que o título, de Rabuja Rubirosa, propõe algo como uma invenção intempestiva da linguagem do passado, num exercício de filologia poética por meio do qual todo o horror do acontecido – a história como “catástrofe permanente” de que fala Benjamin – se converte, digamos, magicamente, em graça, restando delicadeza e charme, mesmo que seja o charme do fescenino que é também pueril, ali onde a história nos ensinou a esperar somente brutalidade e desencanto. Magicamente, eu disse: e, de fato, Rabuja Rubirosa, o autor ficto desses quase-aforismos (que, no entanto, parecem recusar, numa mesma ascese, tanto a sabedoria quanto a ironia características da enunciação aforística, postulando algo como uma esfera retórica à parte), pertence à família poética de Zuca Sardan, mestre-de-cerimônias do, a um só tempo, mágico e clownesco Theatro Morfeo (o teatro do sonho no qual, como diz Sardan numa entrevista, “o Palhaço é o Derradeiro Sacerdote”). Talvez Rabuja Rubirosa se aproximasse de Dalton Trevisan, se a escrita deste pudesse se despojar do sarcasmo corrosivo que, no entanto, é sua medula. Já dizia Sérgio Alcides do primeiro livro de Diniz Gonçalves Júnior, Decalques (2008): “Este livro se nutre de uma aura imprevista, insistente, a contrapelo. É estranhamente antiquíssimo e anacrônico: tanto quanto um decalque”. A mesma aura, o mesmo

anacronismo, o mesmo decalque – que lá, como no livro posterior, Concha acústica (2012), presentificavam um outrora marcadamente autobiográfico (a infância e a adolescência recuperadas pelo adulto que se descobre em meio às “ruínas da modernidade”, como também percebeu Sérgio Alcides) – aqui se dirigem a um ontem não-vivido e jamais identificado plenamente com qualquer época determinada, e por isso mesmo ainda vivível, um ontem radicalmente imaginário, radicalmente fictício: isto é, menos um “outrora agora”, como formulou Fernando Pessoa, do que um agora-outrora, ainda em aberto, ainda por vir. Não será esta, quiçá, a forma temporal, nem sempre posta a nu, de toda língua e de toda imaginação em estado de poesia? Não será também o pseudônimo – que reivindica o nome de um célebre playboy do passado, associando-o a uma rabugice inexistente no personagem -autor – um desvendamento do essencial anonimato subjacente a toda escrita poética? Se saudade é, aqui, a palavra-chave, os objetos ao mesmo tempo oníricos e ínfimos aos quais se volta – cine macuco, fubá mimoso, queijadinha da ponte do mar pequeno, cotonifício cantagalo, ceroula furada... – a distinguem de qualquer simples e lamentosa nostalgia. Rabuja Rubirosa, que nasceu no Twitter (e é mérito de Diniz Gonçalvez Júnior ter depreendido desse meio uma forma literária perfeitamente adequada a ele), vive hoje, mais frequentemente, no Facebook, onde suas máximas sem moral, a não ser a da felicidade como suspensão da crueldade (a começar pela crueldade do tempo que passa), se fazem acompanhar de canções, fotografias, fragmentos de filmes – à espera talvez de uma próxima encarnação em livro, esta tecnologia já tão anacrônica e ainda tão vívida quanto ele.

Saudade do cine macuco (uma antologia) Rabuja Rubirosa [Diniz Gonçalves Júnior]

30

a vizinha é um colosso, toda serelepe no saiote curto

saudade da sapataria branca de neve e os sete anões

a joana toldovelho imitava luz del fuego

saudade do cotonifício cantagalo

não sou baixo, ela que é girafálica

saudade do apito da fábrica de tecidos

joana ternura fugiu com o pinto calçudo

o bacalhau da vizinha é sempre mais cheiroso

saudade da ceroula furada

escovando o casco da tartaruga

saudade do fubá mimoso

segurando vela no moinho velho

saudade da queijadinha da ponte do mar pequeno

cantando guantanamera com as maracas furiosas


perdi meu cajado na rua do fado perdi o bonde na rua do fado depois do tatuapé vem o carrão jiboiando cavucando as cáries do ar deitado no tombadilho lá fora faz um sol argentino o tibúrcio papangu está debruçado no balcão do boteco a perereca da nádia natureza é uma obra aberta saudade da geleia de mocotó inbasa saudade da fenda fedegosa da fenícia saudade da baba de moça vou à festa junina tomar quentão e paquerar umas caipirinhas vou ao ranário visitar as pererecas perdi meu patacão perdi o panamá em paquetá o cuco da rua augusta anda caduco observando os biquínis no minhocão tirando o chulé na rua dos lavapés pingando colírio no cine íris lendo a bula na vila dos remédios embaixo da escada-rolante do metrô ana rosa paquerando a parteira do pari chá preto com biscoitos de araruta sou mais romântico que pedalinho em paquetá saudade da rua do peixe

saudade da sorveteria pinguim de casaca saudade do cine macuco saudade do parque eletrônico futurama saudade das fontes murmurantes fui um ás da dança de salão, agora dou três volteios e as juntas rangem mais que porta de bordel regando o caule da açucena cafofando a bufunfa comprando tubérculos no largo da batata essas batráquias solares maltrapilham meu coração contando carneirinhas essas mocinhas na praia de vergonhas mui saradinhas, falta pano nos fundilhos, sobra fogo na ventoinha fornicam o rei e o vassalo, o castilho e o panicalho conhece o tadei? Aquele que te carcou atrás da lona do circo orlando orfei conhece o licurgo? Aquele que te carcou em cordisburgo conhece o creonte? Aquele que te carcou em novo horizonte moderninha é a minha pipa que avoa sem carretilha os cupins estão esfarelando meus móveis meu panamá está lotado de ácaros os peixes ladram e a caravela passa essas batráquias solares maltrapilham meu coração estrelas estalam nas calhas do constelário estrelas copulam nas calhas do constelário os rouxinóis congelaram no varal os anos passam e o alabastro não arriba como nos tempos de antanho

saudade da vulva da vó uva saudade dos guizos falsos da alegria saudade dos lábios que não beijei saudade do bicho geográfico 31


Entre a tragédia e a farsa: estratégias contemporâneas de artista R R

circuito

enato

32

ezende

O contemporâneo é, antes de qualquer coisa, o

tira o lustro, o que disfarça a potência para vender a

campo das batalhas perdidas; ou melhor, o campo do

falsa potência, o que nos mercantiliza e nos conforma.

pós-guerra; o campo abandonado, pós-combate. Como

Sabemos que no seio do capitalismo reificante já

pós-guerra não me refiro apenas ao período histórico,

não há uma única cultura dominante, e sim cultu-

já clássico, vivido nas décadas imediatamente após o

ras; já não há um único discurso, e sim discursos. Ao

fim da Segunda Grande Guerra e sua quase inacre-

mesmo tempo em que abre e afirma a vida para uma

ditável experiência de dor e atrocidades, que lançou

miríade de possibilidades ricas – sexuais, religiosas,

nossa civilização em profunda crise e fez com que um

profissionais, etc. – o dispositivo a que nos referimos,

filósofo sensível aos processos culturais como Ador-

em seus estágios recentes, cada vez mais ferozes e

no se perguntasse se a arte, tal como era conhecida

onipresentes (a ponto de, como percebeu Zizek, po-

até então, ainda seria possível. Ou seja, seria possível

dermos imaginar o fim do mundo, mas não o fim do

recomeçar, após tanto horror? Quase setenta anos de-

capitalismo) também condensa, restringe, produzin-

pois de Hiroshima e Nagasaki, distanciados inclusive

do fundamentalismos (através da política sem es-

das discussões sobre o fim (da história) da arte, as

crúpulos e demagógica, da mídia sensacionalista, da

batalhas perdidas às quais me refiro são outras: as

medicina guiada pelos interesses da indústria farma-

derrocadas dos ideais utópicos do movimento hippie

cêutica, etc.) e corrompe (os afetos, o abrir-se genero-

americano e das manifestações de maio 68 na Euro-

samente ao mundo e ao outro), ou seja, a verdadeira

pa; ou outras, ainda: o fim da polaridade comunismo

aventura (de uma vida selvagem e preciosa), a tudo

x capitalismo que, após a queda da União Soviética,

engolindo e transformando em algo mensurável e,

decretou a vitória indiscutível do liberalismo (apesar

portanto, alienável. O capitalismo tudo tende a trans-

de alguns sobressaltos, como o atentado de 11 de se-

formar em si mesmo, a acovardar e nivelar por baixo,

tembro e a crise de 2008) e nos soltou sem âncoras

a embeber o mundo com seus princípios: em algo sem

ou bússolas num oceano de mercados (com suas dinâ-

substância, sem verdadeira presença, apenas valor de

micas cada vez mais perversas), onde, como diz John

troca. Nesse espetacular mundo globalizado de ideias

Gray, somos forçados a viver como se fôssemos livres.

e imagens soltas no ar, verdadeira caverna platônica

O fato de a guerra ter sido perdida não significa

de reflexos multiplicados, a experiência viaja nos tu-

que ela tenha terminado; significa simplesmente que

bos e redes invisíveis das mídias eletrônicas, rápida e

ela agora é outra. Transformada em guerrilha, se

fugaz, e tudo – para o bem e para o mal – é relativo;

tornou subterrânea, clandestina, não-oficial, e talvez

e o que é forte e crítico tende a perder força e con-

nunca tenha sido tão intensa, tão vital e tão necessá-

tundência. Tal também acontece com a arte – que é o

ria. Talvez, como num filme americano classe B de

objeto de nosso interesse: desprovida de sua aura ou

ficção científica, que se inicia quando tudo está irre-

de seu status de objeto privilegiado, o objeto de arte

mediavelmente destruído (e essas imagens que abun-

(e objeto aqui não é necessariamente algo físico e ma-

dam na atual cultura de massas são sintomáticas), a

nipulável) – para o bem e para o mal (pois também há

guerra tenha mal-começado. Como um alien, o inimi-

ganhos nesse posicionamento, se estrategicamente

go agora é difícil de ser identificado; sem corpo ou

bem aproveitado) – torna-se mais uma mercadoria en-

imagem definida, ele é ágil e diáfano, ele é plástico,

tre outras mercadorias; ou seja, em algo dispensável,

ele desliza e se apropria, é evasivo; ele se parece co-

ou em objeto de fetiche.

nosco... O inimigo poderia ser qualquer um de nós...

Não parece ser surpresa para ninguém hoje como,

O inimigo não tem rosto, e como um Big Brother, está

para além das questões das produções de cultura de

em toda parte e em lugar algum, em cada câmera de

massa e da indústria cultural, as assim chamadas ar-

segurança, em cada transação com cartão de crédito,

tes visuais, ou arte contemporânea, fazem circular

em cada curtida no facebook, em cada notícia de jor-

milhões de dólares em bienais, feiras e um mercado

nal, em cada formulário, em cada momento de glória

volátil semelhante às grandes bolsas de valores, onde

pessoal ou em que ignoramos a dor do próximo... E

o produto artístico, a “obra de arte”, talvez seja o ele-

já seria ingênuo nomeá-lo “capitalismo”, ou mesmo

mento menos importante. Livre da necessidade de

“o mercado”; os “discursos” ou “narrativas oficiais”,

se comunicar com o grande público, pois seu valor

o “poder”. Ele (há aqueles que duvidam de sua exis-

e apreciação não dependem do aval da classe média;

tência – teriam razão?) é tudo isso e, ainda assim, nos

financiado e consumido pelos recursos excedentes (e

escapa: quase inominável. Então poderíamos talvez

excessivos) da máquina ultracapitalista e seus valores

definir que o que deve ser combatido seja certo dispo-

exclusivistas, o mundo das artes visuais é uma festa

sitivo automático que nos abraça e nos embaça; o que

– o verdadeiro lugar simbólico onde a elite se impõe

enquanto tal, ao mesmo tempo exibindo e barrando acesso a um mundo de privilégios. Talvez não seja tão surpreendente assim a rapidez como o mercado de arte internacional superou a crise econômica de 2008. No capitalismo fetichista, parecer ser é tudo – parecer ser é mais do que ser. Para de fato ser um artista genuíno nesse universo que funciona com a lógica da ciranda financeira, do fluxo de capitais, dos mercadores futuros e dos investimentos, para não mencionar as vaidades e a empáfia, onde artistas de meia idade são descartados e jovens são valorizados e forçados a produzir, exibir e vender sem cessar (frequentemente sem tempo de maturação de sua obra e poética própria), onde há cartas marcadas e esquemas publicitários, é preciso estar atento, é preciso colocar-se sempre em questão, pois, como já havia notado Gramsci, mais do que enfrentamento, essa é uma batalha de posicionamentos – posicionamentos interiores/exteriores de um sujeito ou um grupo de pessoas dentro de um discurso ou ideologia, diante situações tangíveis ou conceituais, onde uma inteligente troca de posições de enunciação talvez valham mais do que o conteúdo dos enunciados. O que significa ser um artista hoje? O que pode criar um artista, nesse contexto? Como, como um mestre de artes marciais, usar a força do próprio adversário para desferir um golpe certeiro? Certamente, muitos dos grandes artistas de hoje são capazes disso, criando intervenções que causam curtos-circuitos na lógica do dispositivo. Nesse sentido, podemos compreender as palavras de Stockhausen quando, no calor do momento, poucos dias após os atentados às torres gêmeas de Nova York no 11 de setembro de 2001, qualificou a ação como “a maior obra de arte de todos os tempos”. O artista contemporâneo brinca de pega-pega com o dispositivo do capitalismo reificante, ou, mais grave do que isso: se dedica a uma luta de guerrilha contra esse dispositivo, propondo ações e abordagens perturbadoras, frequentemente com os recursos do adversário (patrocínios estatais ou de grandes empresas, etc.), em um combate cruel, dialético e sutil, sem campos definidos, no qual o mesmo posicionamento, o mesmo signo, podem, de acordo com o contexto, o tom e o momento, significarem resistência ou rendição, provocação ou colaboracionismo, liberdade ou traição. Se, para Danto, escrevendo no final do século 20, a arte teria superado sua condição estética ao ter se aproximado da filosofia (a partir do gesto inaugural de Duchamp, apenas compreendido e expandido em seu pleno potencial com a arte conceitual nos anos 1970), hoje grande parte da arte relevante supera sua condição filosófica para privilegiar sua dimensão política, ainda quando tal não é a intenção explícita do artista. Acompanhando, por exemplo, o pensamento de Agamben – talvez, ao lado de Zizek, um dos poucos filósofos contemporâneos, ou seja, completamente alinhados com seu tempo –, a política seria hoje o campo em que poderíamos pensar a produção artística atual em sua plena potência.


nota de maputo (arte, decadência, bichosempalhados, anjinhos e opulência econômica) F B elipe

ragança

o leão lutando contra um buffalo; um antílope se es-

to. Esse lugar, eu pensei, quase fazendo um brinde no

quiva de um leopardo, enquanto um grande elefante

espaço: esse é o território da expressão e investiga-

gia da culpa e da auto-punição. Essa coisa hiper-cató-

observa a cena do alto de seus 5 metros de altura.

ção das artes! Esse terreiro entre-terreiros, onde as

lica do auto-flagelamento!” esbravejava um dos mais

Um caos concentrado de “momentos da natureza” se

experiências não se organizam nem como patrimônio

talentosos produtores de cinema de Portugal enquan-

descortinavam congelados em três dimensões e dis-

nem como fugas. Não se trataria disso o fazer/labuta

to me narrava a situação de terror que a chamada po-

postos em tamanho “real” sobre a área de uns 400m2

do “conhecimento” da arte agora: criar objetos que

lítica Sarkozy-Merkel havia plantado na consciência

como um teatro suspenso de um “natural-selvagem”

coloquem em comunicação sensível esse lugar? Estar

de boa parte da população lusitana. Naquela mesma

(de uma Moçambique sem Moçambique...). Dando a

entre o que está na eternidade e o que está no fugaz

noite, em Lisboa, uma jovem dançarina, relatava en-

volta aos animais, encontro uma dupla de rapazes mo-

de nossos símbolos? A pergunta urgente é: como paí-

tre cigarros e cerveja, com raiva nos olhos e lágrimas

çambicanos, de seus 18 anos, sentados lado a lado

ses e cidades em plena crise de identidade e busca do

quase brotando, a tarde que passara em um encontro

na pequena mureta que separa o “terreino” dos ani-

sentido de suas ações poderiam considerar supérfluo

público com o então secretário de cultura português

mais e o “mundo real”. De costas quase coladas ao

ou secundário uma investigação consistente e perene

(o Ministério da cultura acabara de ser extinto e subs-

casal de elefantes e de frente para os rinocerontes, os

de seus fantasmáticos fragmentos cotidianos?

tituído por uma secretaria de Estado): “Em um deter-

dois calmamente, remexem e cochicham sobre uma

A austeridade atual lusitana e a fartura celebra-

minado momento, ele definiu sua visão de cultura em

tablet iluminado. Querem saber quem sou. Digo que

tória brasileira, se esbarram algumas vezes na fragi-

dois pólos: de um lado as instituições comunitárias

estou apenas investigando a cidade para um filme,

lidade com que (não)entendem o lugar da produção

que educam nossas crianças, para o qual deu exemplo

que fiquei atraído pelo museu e pela imagem deles

artística/cultural para a construção de um conhe-

um coro de Igreja infantil que muito o emocionou e

ali sentados no meio dos animais “como se tivéssem

cimento amplificado de comunidade. De um lado, a

que lhe pareciam como ‘anjinhos de Portugal’ para o

saído de uma máquina do tempo”, como se fossem

idéia de cortar o supérfluo (o “entretenimento”) em

futuro, e de outro deu vivas à uma suposta liberdade

ao mesmo tempo corpos naturais e/ou completos ETs

tempos de “encolhimento”, do outro, uma espécie de

que os artistas portugueses saberiam gozar ao viver à

daquele cenário. Os dois riem pra mim e me apontam

felicidade-dos-signos que confunde potência produti-

revelia do suporte público estatal, ‘como nos tempos

um lugar no mapa da cidade que carrego nas mãos:

va de eventos com vigor de sentido (o que tornaria

da contra-cultura anti-Salazar” - me relatava a meni-

“Vai a este sítio, amigo. Aqui é o lugar que procuras!”

o problema artístico da “investigação” uma coroação

na entre copos sofridos de Sagres e muita fumaça. A

A “Festa Popular de Maputo” é um parque de di-

“secundária” para uma vitória social já-certa e base-

pergunta que ficava no ar: uma política cultural vai

versões remanescente da década de 60, quando o

ada no consumo desses mesmos eventos). Enquanto

estar sempre presa à dicotomia entre um projeto an-

país ainda estava sob as ordens de Portugal e as fei-

inovações técnicas se aceleram e a troca massifica-

gelical de sociedade e uma guerrilha infernal à deri-

ras populares eram o lazer idealizado como festa-pe-

da de informações gera abruptas rachaduras no real,

va? Mas que diabos seria essa cultura, arte, que não

la-festa em meio aos dilemas sociais da era colonial.

o processo investigativo artístico está aí não para

essas duas faces de uma moeda gasta?

Um terreiro onde máquinas congeladas de diversão

construir penduricalhos estetas para indivíduos, véus

Três meses depois da visita à Lisboa, chego a

permanecem até hoje ali, como forças de uma alegria

líricos para uma sociedade em marcha ou doces con-

Maputo, Moçambique, para escrever um roteiro de

imediata, popular, ancestral, mecânica e barulhen-

feitados para nos distrair na “viagem” - mas para

possível filme futuro - motivo das conversas com o

ta - pronta para o movimento na noite muito escura

dilacerar nossos fantasmas e emaranhar nossos orga-

produtor em Portugal alguns meses antes. Maputo é

das ruas do centro da cidade. Como monumentos a

nismos ao criar pontos sensíveis onde nos conectamos

uma cidade confusa e evidente ao mesmo tempo. Ru-

uma alegria-cinética direta, sem descaminhos ou dú-

com nossos “terreiros” invisíveis, ainda não expostos,

ínas, marcas de balas, sorrisos, calor, confusão - dão

vidas de si, os brinquedos do parque encenavam en-

e podemos pensar nossos movimentos e nossos dese-

a ela um ar misterioso mas também quase primário

tre luzes coloridas e fluorescentes, em seu descanço,

jos como comunidade e como corpos em afetos para

de capital de ex-país socialista em ebulição neo-ca-

o desejo do movimento puro e do prazer expresso e

além do já-visto e já-mapeado e premetidado. Uma

pitalista. Na minha cabeça, as palavras dos amigos

fora do tempo. Sinto no corpo as silenciosas conexões

arte para o público não pode significar uma arte sub-

na terrinha e as notícias da confusa política cultural

entre esses dois museus, ou esses dois parques, ali

serviente ao consumo, nem a celebração de geniali-

corrente no Brasil (e na minha cidade, o Rio de Janei-

nas entrelinhas de Maputo, de uma cidade marcada

dades de salão que nos salvem (basta disso!). Seja no

ro - projeto de cartão-postal em branco) se misturan-

pela busca tão recente de uma identidade nacional,

Rio, seja em Lisboa, seja em Maputo, é disso (de carne

do. Para a sorte dos pensamentos, meu primeiro local

de uma unidade moçambicana que confrontasse o

suspensa no tempo e brilhos impulsivos) que é feito o

de visita é o “Museu de História Natural de Maputo”.

domínio cultural e econômico português (e posterior-

objeto de nossas investigações. É um ofício público e

Instalado em um edifício fake-manuelino do começo

mente o soviético). Entre as carcaças reproduzidas

não um privilégio. É um território de conhecimento a

do século XX, o museu aparece no meio do caos e do

dos animais “selvagens” da “história natural” e as

ser investigado, não um objeto/produto a ser explora-

calor da cidade como uma primeira pista do que eu

carcaças dessa festa de máquinas “para o povo”, eu

do como bandeira de orgulho desenvolvimentista ou

procurava ou poderia encontrar. Dentro, o que se vê

tinha encontrado, com a ajuda dos meninos atentos,

abandonado como supérfluo da nação.

é uma mistura de graça com fragilidade: uma imensa

um lugar intangível da imaginação daquela cidade e

coleção de bichos empalhados - ou reproduzidos em

daquele país. Entre a organização lógica e “natural”

Felipe Bragança

tamanho real em resina - se espalha pelo gigantesco

do museu e a celebração do caos fugaz da “festa po-

Moçambique, abril de 2012

hall central, buscando reproduzir o solo de terra ba-

pular” - existia um terceiro terreiro fantasmático que

(revisado em agosto 2013).

tida de uma savana moçambicana: a zebra bebe água

a ciência do museu não resumiria como natureza e

em uma pequena fonte de água e se assusta ao ver

que a experiência da “festa” não exauriria como even-

putariaenamorada

Dezembro de 2011: “É uma cultura da culpa a que estão tentando submeter os portugueses. Uma ideolo-

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inquietaçãoguia Em 2001, logo depois que abri a editora, encontrei a Viviane Mosé numa mesa no bar do Planetário da Gávea. Falamos de livros, e ela me contou que estava fazendo um trabalho de poesia com a Stela do Patrocínio, uma interna do mesmo hospital psiquiátrico que o Bispo do Rosário que tinha uma fala altamente poética. Mostrou o material, e eu fiquei muito impressionado. Em menos de dois meses, publiquei o livro, chamado “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”. A fala de Stela, versificada por Viviane, possuía uma força incrível, e acabou sendo adaptada para o teatro, o cinema e a música: Eu era gases puros, ar, espaço vazio, tempo Eu era ar, espaço vazio, tempo E gases puros, assim, ó, espaço vazio, ó Eu não tinha formação Não tinha formatura Não tinha onde fazer cabeça Fazer braço, fazer corpo Fazer orelha, fazer nariz Fazer céu da boca, fazer falatório Fazer músculo, fazer dente Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas Fazer cabeça, pensar em alguma coisa Ser útil, inteligente, ser raciocínio Não tinha onde tirar nada disso Eu era espaço vazio puro. Dez anos depois, fui procurado por uma amiga, a Daniela Albrecht, que estava trabalhando num CAPS, e havia lido o livro de Stela. Ela e o Lula Wanderley, grande figura, tinham uma paciente que escreveu poemas muito interessantes, e queriam me consultar sobre uma possível publicação. Peguei os poemas da Regina Peixoto, e me vi novamente maravilhado. Mas a Regina era em tudo diferente da Stela. Ou complementar. Não havia na poesia da Regina o desmantelamento em estado puro de Stela. Nela, a tentativa de organização do mundo ao redor e do seu próprio estado ganha contornos muito mais claros. Se a fala de Stela era marcada pela crueza (Você está me comendo tanto pelos olhos/ que eu já não tenho de onde tirar forças/ pra te alimentar) e o embate cruel com sua situação (Tô carregada de uma relação total/ Sexual/ Fodida/ Botando o mundo inteiro para gozar e sem gozo nenhum), Regina cria poemas que, sem perder em contundência, são capazes de flertar com o humor e a doçura, como em “Pelos”:

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Cabelos são pelos que crescem na cabeça. Mais que os outros do corpo. São pelos contra os quais pelejo. Os meus são finos demais, vivem em constante briga, uns contra os outros e mais ainda conta o pente. Então, os ameaço: vou cortá-los. Eles me respondem: Não estamos brigando, só nos abraçando. Ou este, epigramático, certeiro: Alguma Doralice Nem Dora Nem Alice Ou, ainda, o belíssimo “Colo”, com seu eco de Manuel Bandeira: Sono. Coisa chata. Coisa muito chata, quando assim fora de hora, quando querendo me levar embora. Eu luto. Não muito, devo confessar. Perguntei outro dia para Regina se ela tem escrito. Ela me disse que não, que só escreve quando em crise. Ela havia começado a escrever para se comunicar com Lula. Lembrei de Henri Michaux, que dizia que escrevia para se curar. E de como os poemas e a própria Regina passam tanta sabedoria e serenidade, indo contra essa ideia de poesia feita no olho do furacão. Como diz Lula, é difícil para nós entendermos que as pessoas não são loucas o tempo todo. Como ele diz, “a colocação de Caetano, de que de perto ninguém é normal, também pode ser invertida. De perto ninguém é inteiramente louco”. Da vasta pasta de poemas, fizemos uma seleção, que se tornará o livro “Variâncias”, com capa de Wlademir Dias -Pino, o grande autor da poesia processo, logo mais nas melhores lojas do ramo.

Sergio Cohn


corpogeral UTOPIA 1 – NÃO DISTINGUIR DA PRÓPRIA CARNE Não me lembro quando ouvi o termo utopia pela primeira vez, sei que minha irmã me presenteou, quando eu era adolescente, com o livro de Thomas More, já nos fins da adolescência, creio. Sei que daí em diante veio a palavra no meu teste vocacional, no meu mapa astral, atribuíam-na ao Mórus, ao Galeano, até ao García Márquez. Um amigo, o Berrego, também adolescente, não via diferença entre viver, amar, ter filhos e morrer, ou só viver e morrer. Essa é a primeira vez que me lembro de ter sido utópico, dizendo a ele que viver era o sentido de viver e que vivíamos para nós, uns pros outros, para gostar da vida e depois apodrecer sem pena, como tudo que estraga e que jogamos fora. Eu não queria ser salvo, queria só não ficar triste, queria amor e brincadeira, creio. Depois, atribuí o sentido que quis à utopia, e de vez em quando repetia ela por dentro, ficava tocando no meu rádio interno. Aí veio o fato social total. Era o seguinte: Mauss em seu Ensaio sobre a dádiva viu alguns acontecimentos articularem todas as esferas da vida, eram artísticos, religiosos, jurídicos e ligados à esfera da produção ao mesmo tempo. Associei isso à utopia imediatamente: eu, migrante, a cada pessoa que conhecia, via possíveis amigos, amores, gente com quem morar, gente em quem acreditar, colegas de trabalho – tanto para não morrer de fome, como para não morrer de tédio. Queria viver tudo isso com as mesmas pessoas, carregá-las na mochila, mostrá-las a todos. Os esforços se dividiam entre duas tarefas: produzir objetos que causassem experiências relevantes e produzir formas de soldadura entre o coletivo, o time, o grupo, a geração (os nomes eram muitos). Minha utopia não era um lugar físico, mas um estar, uma condição. A cada perda, a cada desentendimento, a cada fracasso, me sentia um pouco mais fraco. Com algumas tentativas, erros parecidos, turmas e projetos esfacelados os calos iam tornando-se carapaças por cima das articulações, fazendo do corpo flexível uma couraça dura e mal-cicatrizada. Pior do que ser utópico era ver a morte da utopia, e com ela morrer um tanto, não de vez, mas o suficiente para ser sempre irrecuperável. As pequenas mortes não matam, amarram coisas às nossas costas e na frente dos olhos, ficamos mais pesados e nos cansamos mais rápido; em tudo que vemos estão troços pendurados como móbiles, que nos fazem lembrar os tombos, os erros – não para resolvê-los, mas para sentir deles o gosto; para atrapalharem, na boca, nossa vontade de morder com força e sentir sabor. “Tudo o que não é o Amor é contra o amor”, como nos conta Renato Rezende em seu fundador Noiva. E mesmo ao pesar dos pesos e era preciso fazê-lo, inventá-lo. A utopia então muda, passa a ser primeiro a crença em e depois a elaboração de uma rearquitetura dos olhos e do desbastamento dos calos; para achar possível desfazer os nós que prendem às costas a cidade demolida – pedaços que menos ensinam e avisam e mais apertam e ferem a carne; pedaços não de recordação, de passado, mas de entulhos, de escombros que se prestam só a juntar lacraias e dengue, onde o vento encaixa sujeira, para ficarmos mais pesados. Para conseguir cuspir o que ainda se aloja no peito e na boca. Utopia agora é a refundação do corpo para poder voltar a ser utópico. Investigar o Corpo Geral: uma refundação da coragem utópica. A esperança e atenção que são necessárias não para fazer planos meticulosos e restritivos do que deve ser o mundo agora, mas para continuarmos esperançosos e atentos, de ouvidos abertos, agindo para sermos utópicos. Por isso o Manifesto que trazemos, escrito pelo Coletivo PUTO que faz parte da Cia. Dolores Boca Aberta, da Zona Leste paulistana, para apresentar possibilidades abertas de ser o mundo.

MANIFESTO POESIA E EROTISMO 2- Poesia não é decorar o hospício com flores 3- Poesia não é monopólio dos cornos e das suspirosas 4- Poesia é a palavra-pensamento que se desvia da regra para atacá-la 5- A poesia simula convulsões enquanto sai da fila para fazer um discurso 6- Poesia é quando uma pedra no meio do caminho se solta do calçamento e voa rumo às vidraças dos palácios 7- A poesia concreta precisa de isqueiro e gasolina para poetizar um ônibus ou um pedágio 43- A poesia se levanta inúmeras vezes durante uma palestra de um engenheiro de Belo Monte e contesta seus números e esperneia enquanto é retirada do local por seguranças estatísticos sob as vaias das senhoras de tailleur com suas bundas de bunker e senhores engravatados com suas panças-tanques-de-guerra 58- A poesia faz batucada fora do carnaval atrapalhando o trânsito e trocando os nomes de pontes e ruas, tirando os nomes dos assassinos do poder e colocando os nomes dos assassinados pelo poder 312- A poesia para uma estrada e faz 21 minutos de silêncio para poetas camponeses mortos pela polícia e oferece alimentos livres de agrotóxicos para humanizar carros que rosnam 8- Poesia é alucinação em carne viva 40- A poesia perde a paciência 1- Poesia erótica é muito mais que louvar as coxas do ser amado - embora isto também seja fundamental Porque erotismo é muito mais que um jogo sexual Eros quer a união, o encontro Uma revolta popular é o momento mais erótico de todos Portanto, da próxima vez em que eu disser que estou lambendo os últimos centímetros de uma coxa sagrada, quero dizer também que estou chegando às portas do Palácio com meus companheiros de luta, para festejar, com coquetéis em punho - em junho. A poesia queima na fogueira pra aquecer poetas machucados pelo vento. Sabe da dor da garoa fina e do frio na lama. Por isso a poesia mora nos terrenos baldios, garimpa lembranças, conserta brinquedos, vê nos cacos azuis cozinhas inteiras, banqueteia no estio, na febre e na falta. Coletivo P.U.T.O. (Poesia Urgente Tocando o Osso) Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes - SP 35


ZICARTOLA Política e samba na casa de Cartola e dona Zica

H.P. Lovecraft: a disjunção no Ser Fabián Ludueña Romandini Tradução de Alexandre Nodari “A filosofia sempre buscou arrebatar a verdade dos mitos. Mas o mito não é a narração das origens cujo percurso a filosofia empreendeu de Platão até Schelling: o mito é, ao contrário, a verdade que narra o fim do homem e sua desproporção em relação ao cosmos. Por isso Lovecraft é “o mais genial mitógrafo do século XX”. Relendo sua obra, a filosofia aprenderá que o verdadeiro mito é o oposto da história, já que está convocado a enumerar os poderes naturais do cosmos. Ao mesmo tempo, ela saberá que um mito não pode glorificar divindades portentosas pois que dá a conhecer um universo transfinito tornado multiverso. Nessa obra capital da filosofia contemporânea, seu autor mostra que o pensamento não nasce do espanto, mas sim do horror: a assunção humana de não ter lugar no mundo.” (Emanuele Coccia)

Maurício Barros de Castro formato: 14x21 cm 140 páginas isbn: 9788579201295 O Zicartola foi um tempo memorável. Ninguém incomodava a gente ainda. Eu saía da faculdade e ia para lá, subia aquelas escadarias e ficava até de manhã. Era um espetáculo. Aquilo era o núcleo dos estudantes. A nata da intelectualidade e do samba estava lá dentro. O Zicartola ficava no Centro da cidade, então o pessoal saía do trabalho e ia para lá ouvir samba e comer a comida da Zica, que era fantástica. Outros núcleos de resistência cultural e político surgiram a partir deste movimento. Nós éramos todos envolvidos com a questão política e apaixonados pela música brasileira. O Zicartola criou muitos braços. É como se uma árvore crescesse e fosse surgindo muitos galhos, cada um foi tomando seu caminho.

mais que uma editora, um pacto

www.culturaebarbarie.org

www.azougue.com.br

com a cultura


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