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ANO XXIX– Nº 309 – JANEIRO 2011
ESPECIAL REALIDADE BRASILEIRA
Fotos do livro
HORÁCIO MARTINS
Os desafios para
“O Rio São Francisco e
Busca por terra e o
a luta em tempo
as Águas no Sertão”,
papel do Brasil no
de descenso
de João Zinclar
agronegócio mundial
Página 10
Páginas 8 e 9
Entrevista – páginas 4 e 5
EDITORIAL Precisamos avançar na construção de nosso projeto, através dos nossos assentamentos
É preciso desmascarar o agronegócio PARA A MAIORIA da população, o governo Lula terminou com uma marca de avanços sociais. Conquistas como o aumento de renda, o acesso às universidades e os direitos trabalhistas não foram concessões do governo, mas resultado de décadas de mobilizações e reivindicações dos trabalhadores, que agora encontraram um campo progressista para que pudessem ser realizadas. Porém, na agricultura, o governo e o ano de 2010 terminaram com o fortalecimento do agronegócio e a paralisia na Reforma Agrária. Os assentamentos foram concentrados na região norte – muitas vezes em áreas sem infra-estrutura e longe dos centros comerciais - enquanto o acesso a políticas públicas, como o Pronaf, esteve concentrado, para agricultura camponesa em geral, no sul do país. E, ainda assim,
Esta é uma das principais tarefas para o próximo período: construir ações que desmascarem as consequências econômicas, ambientais e sociais do agronegócio
apenas para aqueles que conseguiram sobreviver aos juros e o endividamento. Já para o agreonegócio, apesar da crise econômica internacional, o capital demonstrou rápida capacidade de se recuperar, através da concentração – como na fusão das empresas de celulose, frigoríficos e agroindústrias - e dos auxílios recebidos dos governos e fundos internacionais. As contradições deste modelo – como o desmatamento na Amazônia para o avanço da pecuária e da soja, o trabalho escravo e o uso intensivo de agrotóxicos – já despertam a atenção de parte da sociedade, mas ainda não ganham corpo suficiente para barrar este projeto ou conscientizar o conjunto da população. Esta é uma das nossas principais tarefas para o próximo período: construir ações que desmascarem as consequências econômicas, ambientais e sociais do agronegócio.
Todos envolvidos Contrapor este modelo significa também que precisamos avançar na construção de nosso projeto, através dos nossos assentamentos. É na vida cotidiana e política dos assentamentos que podemos influenciar o entorno das nossas áreas,
ajudando a politizar demandas sociais e organizar a população do interior do país. Isto exige também a organização da produção em vista da soberania alimentar, do auto-sustento e na implementação de um modelo agroecológico. Porém, a organização produtiva não pode ser apenas um processo econômico. Pelo contrário, na medida em que trabalhamos com apenas uma grande linha produtiva (o arroz, leite, milho, por exemplo), excluímos parte do assentamento que não está inserido nestas cadeias produtivas, principalmente os jovens e as mulheres. Portanto, organizar a produção não é organizar uma única linha, mas construir um processo que envolva o conjunto das famílias assentadas, visando à implantação das agroindústrias. Neste processo, devemos envolver também a juventude. Só conseguiremos manter nossos filhos e filhas no campo na medida em que possamos garantir o acesso à educação, à tecnologia, mas também à renda. E, combinado com isso, a formação política que permita constituir novas gerações de socialistas. Por fim, olhar para as nossas demandas internas – a organização dos assentamentos
Palavra do leitor
e das nossas famílias – não significa que devemos nos isolar do restante da classe. Pelo contrário, permanece como desafio a construção de alianças e mobilizações com os movimentos camponeses organizados na Via Campesina, com os assalariados rurais e também com os trabalhadores urbanos. Exercitar a solidariedade de contribuir e entender as lutas destes setores acumula não apenas para o fortalecimento destas categorias, mas para o conjunto da Reforma Agrária. Só conseguiremos implementar uma Reforma Agrária Popular se ela for alicerçada nesta aliança entre os pobres do campo e da cidade. Boa luta para todos nós!
DIREÇÃO NACIONAL DO MST
FRASE DO MÊS
Saudades Visitei o Acampamento de Santa Maria da Conquista do MST, em Itapetininga (SP), com outros alunos de colégios da capital paulista e estou até agora comovida pela visita. Vou voltar ano que vem ao acampamento, e espero que os encontre do outro lado da cerca (como um colega meu já disse). Desejo toda sorte
do mundo a vocês, e queria que soubessem que fiz um post no meu blog sobre a visita. Já estou com saudades! Com amor, GABRIELA SAKATA
esta linda causa,em prol da conquista da terra... Parabéns ao site,é bem explicativo quanto à luta!!! VILMA CUSTÓDIO
Nós aderimos
Apoio sempre
Sou da cidade de Reginópolis (SP), e nós aderimos à luta do MST. Estamos muito felizes em poder conhecer melhor
Olá, companheiros e companheiras do MST, sou de Fortaleza Ceará, e apoio todas as ações. Sempre que estão acampados estou lá apoiando. AURELIO ARAUJO Mande sua mensagem para o Jornal Sem Terra
Manga (MG). Livro “O São Francisco e as águas no sertão”. Foto: João Zinclar
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Exercitar a solidariedade de contribuir com as lutas de outros setores acumula não apenas para o fortalecimento destas categorias, mas para o conjunto da Reforma Agrária
Edição: Joana Tavares. Revisão: Marina Tavares e Vanessa Ramos. Edição de imagens: Marina Tavares. Projeto gráfico e diagramação: Eliel Almeida. Assinaturas: Mary Cardoso da Silva. Impressão: Taiga Gráfica e Editora. Tiragem: 10 mil exemplares. Endereço: Al. Barão de Limeira, 1232 – CEP 01202-002 São Paulo/SP – Tel/fax: (11) 2131-0840. Correio eletrônico: jst@mst.org.br. Página na internet: www.mst.org.br
Sua participação é muito importante. As correspondências podem ser enviadas para jst@mst.org.br ou para a Alameda Barão de Limeira, 1232, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP 01202-002. As opiniões expressas na seção “Palavra do leitor” não refletem, necessariamente, as opiniões do Jornal sobre os temas abordados. A equipe do JST pode, eventualmente, ter de editar as cartas recebidas.
“Eu estou convencido não porque eu prefira assim, mas porque a história mostra pra gente - que nenhum país desenvolvido deixou de fazer, em algum momento de sua história, a Reforma Agrária. A contribuição que o MST tem dado é muito, muito grande, porque é justamente organizar a força de pressão que permita um avanço nesse sentido [da Reforma Agrária].” FERNANDO MORAIS Escritor
JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
ESTUDO Solução adotada pelos Estados gera aprofundamento das contradições
Cadê a crise? LEDA PAULANI PROFESSORA DA FACULDADE DE ECONOMIA DA USP
A CRISE FINANCEIRA mundial do último trimestre de 2008 parece ter desaparecido como por encanto. Depois de comparada, por sua gravidade e extensão, à grande crise dos anos 30 do século passado, sai de cena quase despercebidamente, como se tivesse sido um “alarme falso”, um pequeno problema precipitadamente levado ao status de hecatombe. Como interpretar esse movimento? Monumental equívoco por parte daqueles que interpretaram o fenômeno como sendo um desastre de grandes proporções, ou, ao contrário, a aparência de que tudo volta aos eixos é efetivamente apenas uma aparência, encobrindo uma situação de vulnerabilidade e graves desequilíbrios no plano da economia mundial? Se analisarmos, do ponto de vista do longo prazo, o que vem se passando com o processo como um todo de acumulação de capital, concluiremos que a última hipótese é bem mais plausível. Primeiro, convém deixar claro que a crise não começou em setembro de 2008. Começou muito antes, algumas décadas antes. Segundo, a crise não foi produzida pelo mercado imobiliário americano, ainda que tenha sido revelada aí a ponta do iceberg, mas produzida por causas estruturais.
Origens da crise Na realidade, o capitalismo, desde o final dos anos 1960, viu agravar-se um processo que alguns economistas marxistas denominam sobreacumulação de capital, ou seja, o fato de existirem determinados períodos em que há excesso de capital para as possibilidades disponíveis de aplicação produtiva lucrativa. Quando isso acontece, diversos expedientes entram em cena para contornar o obstáculo. Um dos mais acionados é a busca de valorização financeira, ou seja, de acumular capital por meio de empréstimos e aquisição de ativos financeiros. Na maior parte dos casos, tal busca implica também valorização fictícia, aquela valorização que aparece por obra e graça da mera
circulação do capital, da compra e venda de ativos, fictícios ou não. Ora, foi exatamente isso que começou a ocorrer à larga há cerca de quatro décadas, depois de quase 30 anos de crescimento acelerado da economia mundial. Para complicar, essa busca desenfreada de valorização financeira combinou-se com as transformações no sistema monetário internacional. Essas transformações resultaram na reafirmação do dólar americano como dinheiro mundial, mas agora sem o lastro do ouro, que caracterizara sua função de moeda número um no sistema anterior (o sistema de Bretton Woods, acordado no pós-guerra). O elo entre um e outro fenômeno fortaleceu-se com a vitória do ideário neoliberal. Um mundo de fronteiras financeiras livres e de direitos dos credores em primeiro lugar, mas, ao mesmo tempo, de políticas monetárias rígidas e de duros controles dos gastos dos Estados nacionais, levou a inflação mundial, que resultaria da plena liberdade concedida à política monetária americana (com a desvinculação entre dólar e ouro), a saltar para a esfera dos estoques de riqueza, acrescentando à natural valorização dos ativos financeiros, então em curso, o combustível monetário sem o qual não poderia ir muito longe. Resultado: crescimento ímpar da riqueza financeira, crescimento que a fez multiplicar-se por 15 nas últimas três décadas, enquanto o PIB mundial cresceu não mais que quatro vezes no mesmo período. Ao mesmo tempo, tal crescimento exponencial da riqueza financeira é pontuado pela contínua formação de bolhas de ativos, que provocam fortes crises quando estouram. O último episódio teve exatamente esse formato, o estouro da
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Acordo firmado por 45 países em 1944, que colocava o dólar como moeda de referência mundial, tendo o outro como lastro. Para regular o acordo, foram criados o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
padece, ainda por cima, as consequências da aplicação do referido remédio, como o testemunham as duras situações vividas por alguns Estados nacionais, com destaque para os mais frágeis da zona do euro.
O que sobra para o Brasil bolha do mercado imobiliário americano, que havia fomentado a formação de uma série de outras, mundo afora, num processo patrocinado pela assim chamada globalização financeira.
Remédio ou veneno? Vale dizer, o excesso de liquidez mundial num mundo patrulhado pelos imperativos neoliberais é o responsável maior pela crise. E qual o remédio adotado? Uma cavalar dose de liquidez aplicada pelos Estados nacionais... coisa da ordem de trilhões de dólares! Sem contar os US$ 600 bilhões recentemente anunciados pelo governo americano. Mas, se de imediato isso parece minorar os efeitos primeiros e mais agudos da crise, no médio prazo só faz aumentar o descompasso que está em sua origem. Haja contradição! Assim, não só a crise não terminou, como vivemos hoje num mundo ainda mais vulnerável e desequilibrado, que
Os países emergentes, como o Brasil, vêm sofrendo do mal contrário, mas não menos perigoso, expresso na contínua valorização de suas moedas. Por aqui, as consequências dessa situação já despontaram há algum tempo, com o desestímulo à produção nacional e o retrocesso do país à condição de exportador de commodities e bens de baixo valor agregado. Eis o outro lado da moeda de o país ter se tornado potência financeira emergente e plataforma internacional de valorização financeira. A irresolução e o agravamento do descompasso existente no plano mundial tornam, portanto, ainda mais temerária a persistência no país da política de juros reais superlativos que experimentamos há mais de 15 anos, política injustificável e inexplicável sob qualquer outro critério, que não o dos interesses por ela diretamente beneficiados.
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ENTREVISTA Agronegócio submete o país às estratégias das grandes empresas
Nesta entrevista ao Jornal Sem Terra, o engenheiro agrônomo e cientista social Horácio Martins de Carvalho faz uma profunda análise sobre a organização do agronegócio no mundo hoje e o lugar do Brasil nesse cenário. País com o maior estoque de terras agricultáveis, clima favorável à produção e governos entreguistas, o Brasil se configura, segundo Horácio, como o terceiro país na lista de prioridades dos planos de investimentos das grandes empresas transnacionais, que controlam os mercados de alimentos e agroenergia. JOANA TAVARES SETOR DE COMUNICAÇÃO
JST – Como se explica o aumento da busca por terras em todo o mundo e quais as consequências no controle estrangeiro sobre as terras agricultáveis? HC – O Incra estima que 4,34 milhões de hectares em todo o Brasil já estejam em mãos de capitalistas de outros países. Essa é uma estatística modesta devido à camuflagem que a concepção vigente de ‘empresa nacional’ proporciona, ao tolerar servilmente na sua composição societária a participação de mais 90% de capital estrangeiro. O que motiva a apropriação privada de terras agricultáveis pelas empresas transnacionais é a possibilidade efetiva de poucas dessas empresas exercerem o controle mundial sobre a oferta, comercialização e beneficiamento de alimentos e agrocombustíveis, além de se afirmarem como um império setorial sobre um setor fundamental da
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Internet
O Brasil é uma economia agrícola subalterna
vida dos povos. A apropriação privada das terras agricultáveis passou a ser considerada pelas agências multilaterais Banco Mundial, FAO, UNCTAD e FIDA como investimentos agrícolas para o ‘desenvolvimento econômico nacional’. Para acobertar essa ocupação neocolonial das terras agricultáveis no mundo, foi elaborado, pelas agências acima citadas, um Código de Conduta, apresentado em abril de 2010 em Washington, capital dos Estados Unidos, durante a conferência anual de terras do Banco Mundial. O código objetiva a legitimação do mercado mundial de terras agricultáveis pelas grandes empresas transnacionais privadas e estatais. E como o recurso terra é limitado, o seu controle pela apropriação privada e ou pelo arrendamento das terras agricultáveis em todo o mundo se tornou prioridade geopolítica estratégica do agronegócio internacional. O Brasil é o país que possui o maior estoque de terras agricultáveis, um clima favorável à produção agrícola e governos entreguistas.
Essa conjugação de fatores tem facilitado a aquisição de terras por estrangeiros e contribuído decisivamente para a negação da soberania alimentar e a nacional, submetendo os destinos do país às estratégias de negócios das grandes empresas nacionais e transnacionais. JST – Calcula-se que o agronegócio tenha recebido cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120 bi em 2010. Como se explica essa pouca produtividade? HC – A regra na lógica do agronegócio é a reprodução dos interesses privados na agricultura a partir de recursos públicos, na sua maior parte a fundos politicamente perdidos para o contribuinte brasileiro. Isso inclui não apenas o crédito rural subsidiado e constantemente renegociado como as renúncias fiscais, redução de alíquotas e isenções de impostos. Sob essa lógica, ser grande empresário do agronegócio não é difícil, ainda que suas lideranças apregoem ideologicamente o
livre mercado, a concorrência e a ausência do Estado na condução dos seus negócios. Não fazem mais do que sempre fizeram as classes dominantes no campo desde o período do Brasil colonial: falar contra a presença do Estado na economia e usufruir dele o máximo possível, sempre em detrimento da maioria da população. Nessas condições se explica, mesmo sendo imoral, que o agronegócio receba cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120, de um total do PIB agrícola de R$ 160 bilhões. Não é de se estranhar, portanto, que o Brasil seja o terceiro país na lista de prioridades nos planos de investimentos no exterior das grandes empresas transnacionais. JST – Por que se favorece o agronegócio quando a pequena agricultura produz mais alimentos para o mercado interno? HC – O agronegócio se constitui numa fração importante da classe dominante
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JST – Quais os principais impactos do elevado consumo de agrotóxicos? Por que o Brasil se sujeita a aceitar venenos em sua agricultura proibidos em outros países? HC – Os principais impactos do elevado uso de agrotóxicos são a contaminação e degradação do meio ambiente, o comprometimento da saúde dos trabalhadores rurais e dos camponeses e a redução da biodiversidade. Esses impactos resultam de um modelo tecnológico onde somente o lucro comanda a lógica da produção. E não é o Brasil que se sujeita a aceitar
venenos para a sua agricultura proibidos em outros países. São parcelas do empresariado do agronegócio que, movidos por uma constante ganância incontida, buscam as formas mais infames de obter tais produtos. Os cinco cultivos que mais consumiram agrotóxicos em 2008 foram soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e citros, representando 87,21% do total comercializado no país nesse ano. E esses cultivos são os de maior presença noValor Bruto da Produção (VBP) agrícola nacional. As sementes híbridas e os organismos geneticamente modificados (OGMs) são os principais responsáveis pela demanda de agrotóxicos. As grandes empresas transnacionais como a Dupont, Aventis, AstraZenec e Monsanto têm nos OGMs parte importante de suas estratégias comerciais para vender agrotóxicos. As maiores empresas produtores desses venenos são Syngenta, Bayer, Monsanto, Basf, Dow, DuPont e Nufarm, as quais lucraram nos seus negócios mundiais em 2008 cerca de 40 bilhões de dólares. JST – Qual o papel da agricultura brasileira no jogo de forças internacional? HC – A estrutura da produção agropecuária e florestal dos médios e grandes estabelecimentos rurais no Brasil sempre se moldou de forma a atender aos interesses da burguesia agroexportadora, assim como à demanda mundial de produtos do setor primário. E essa tendência se torna cada vez mais acentuada na medida direta que as grandes empresas transnacionais dominam a oferta interna de sementes, insumos, máquinas e a agroindustrialização, assim como o
comércio internacional de commodities. Isso significa que essas empresas transnacionais possuem o controle estratégico da produção agropecuária e florestal no país. Essa situação é agravada pela incipiente agregação de valor aos produtos da produção agropecuária e florestal que são exportados. A agricultura brasileira se reafirma na divisão internacional da produção social como produtora de matérias-primas para a agroindústria. A partir da racionalidade do agronegócio, se confirma como um ramo da indústria. Portanto, uma economia agrícola subalterna. JST – Segundo o anuário do agronegócio referente a 2010, os ativos das 50 maiores empresas atingiram R$ 189 bilhões. Como se explica o poder do capital financeiro sobre a agricultura e qual a perspectiva para 2011? HC – A agricultura do agronegócio, ao se tornar efetivamente um ramo da indústria, proporcionou condições mais efetivas para o domínio dos grandes conglomerados de empresas transnacionais da indústria química sobre a produção de alimentos, fibras e a agroenergia. A oligopolização desses mercados foi uma consequência esperada sob a concepção neoliberal de sociedade. A terra, a água doce, as florestas, o litoral, enfim, os recursos naturais, amplo senso, tornaramse mercadorias, portanto, objeto de lucro e de negociação nas bolsas. Vivenciamos, há algumas décadas, uma transição fundamental na economia mundial provocada pela hegemonia do capital financeiro: todas as dimensões da vida se tornaram mercadoria e o lucro, a única referência na gestão das sociedades.
Arquivo MST
no país: se apropriou privadamente da maior parte do território rural. A ‘modernização e a artificialização’ da agricultura, iniciada na década de 1950, tornou a burguesia agrária no Brasil forte compradora de produtos (insumos agrícolas, máquinas) de outras frações da burguesia. E os principais fornecedores desses insumos têm sido as empresas transnacionais do ramo da indústria química como a Bayer, Basf, Aventis, Dow, Monsanto e Syngenta. Os camponeses produzem mais alimentos do que o agronegócio, representam 84,4% do total de estabelecimentos rurais do país e defendem a soberania alimentar e popular. No entanto, não faz parte da concepção de mundo hegemônica no Brasil a proposta social de soberania alimentar e, menos ainda, de soberania popular. É mais fácil para os governos e para as empresas do agronegócio garantirem a segurança alimentar (não a soberania alimentar) pela importação de alimentos do que destinar recursos públicos para a melhoria da produção e da produtividade dos camponeses. Essa tendência se consolida quando os alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e leite, entre outros, se constituem em mercadorias, com preços definidos nos mercados. Esses produtos, outrora produzidos predominantemente pelos camponeses, passam a se constituir, também, em objeto de cobiça do agronegócio pelas margens de lucro que podem e poderão obter nas condições oligopolistas, tanto no mercado nacional como internacional. Ora, como poderia o governo liberal brasileiro deixar de fornecer acesso facilitado aos recursos públicos para o agronegócio se este é um dos elos fundamentais da cadeia de interesses do complexo mundial da indústria química, de alimentos e de agroenergia? E se no ano de 2010 o Brasil passou a ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo?
Empresas transnacionais possuem o controle estratégico da produção agropecuária e florestal no país
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JST – Quais são as perspectivas políticas para o próximo período em relação à agricultura? HC – A não ser que os movimentos sociais e sindicais populares no campo superem o abestalhamento a que foram reduzidos devido aos processos já crônicos de reivindicação, protesto e dependência financeira dos governos, tudo leva a crer que a expansão capitalista no campo, com a consequente concentração e centralização da renda e da riqueza, irá se ampliar. A luta de classes se tornou “luta com classe”. A desagregação do campesinato e dos pequenos e médios produtores rurais se dará sob diversas maneiras, desde aquelas tradicionais movidas pela truculência física e econômica da criadagem do grande capital, até a cooptação pelos contratos de produção com as agroindústrias. A proliferação dos contratos de produção
“Como o recurso terra é limitado, o seu controle pela apropriação privada em todo o mundo se tornou prioridade geopolítica estratégica do agronegócio internacional” com amplas parcelas do campesinato evidencia que as empresas capitalistas desejam controlar não apenas os recursos naturais e, em especial, a terra, mas também a oferta dos produtos que compõem a dieta básica da população. A correlação de forças para a adoção e implantação de políticas públicas que sejam favoráveis à soberania alimentar é bastante desfavorável no contexto atual devido, em especial, às disposições governamentais favoráveis ao agronegócio e ao capital transnacional. Porém, será a natureza imperialista da transferência de tecnologia agropecuária por setores governamentais do país, em consonância com os interesses das empresas transnacionais de insumos agrícolas e das agências multilaterais, que marcará a presença indesejável do Brasil nos países do Hemisfério Sul. A Via Campesina do Brasil e o MST poderão marcar presença não apenas pela sua militância crítica, mas, sobretudo, se forem capazes de concretizar uma aliança social popular no campo, munida tanto de uma crítica social radical ao projeto capitalista hegemônico, como de uma proposta para um novo marco civilizatório no campo.
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ESTADOS Jovens camponeses concluem curso de Licenciatura em Letras na UFPA
TAPIRI, na língua tupiguarani significa “casa de festa” ou “casa de reunião”. O nome não poderia ser mais apropriado ao espaço físico, que lembra uma grande oca indígena, construído numa área central da Universidade Federal do Pará (UFPA), campus I, de Marabá. É nesse espaço representativo da UFPA que aconteceram as noites culturais da Semana Amazônica de Cultura Brasileira e Reforma Agrária, promovida pelo MST, entre os dias 29 novembro e 2 dezembro, que terminou com a festa de formatura dos alunos e alunas do curso de Licenciatura em Letras. O curso, promovido numa parceria inédita entre o Incra, Pronera, UFPA e MST, proporcionou a formação de 37 jovens camponeses numa universidade pública. A turma formada foi batizada como Patativa do Assaré. Maria Raimunda, Dirigente Estadual do MST, ressaltou a importância
Trinta e sete trabalhadores rurais celebram formatura em univerdade pública
do curso ao longo da semana, que para ela “representou a mesma emoção de cortar a cerca do latifúndio”. E, emocionada, no dia da formatura, disse: “Essa semana foi marcada por um momento histórico, quando jovens camponeses ocuparam um espaço universitário para discutir literatura, cultura brasileira e identidade camponesa”.
João Pedro Stedile recebe homenagem da Câmara
Arquivo MST
O militante Sem Terra João Pedro Stedile recebeu a medalha “Mérito Legislativo”, que é concedida a personalidades, brasileiras ou estrangeiras, que realizaram ou realizam serviço de relevância para a sociedade. A solenidade aconteceu no Salão Negro do Congresso Nacional, em Brasília, em dezembro de 2010. Mesmo sendo considerada a ‘casa do povo’, são raras as vezes que um trabalhador é reconhecido por sua luta e organização em busca de justiça social. Ainda mais se este trabalhador for um camponês. A indicação partiu do deputado federal Brizola Neto (PDT/RJ), líder da bancada do seu partido na Câmara, como uma forma de trazer à reflexão a luta pela terra e o uso que vem sendo feito dela.
João Pedro foi uma das 32 pessoas que receberam a medalha
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Um pano preto gigante tomou parte do Tapiri com letras coloridas que formaram a frase, “Democratizando a Terra e as Letras”. O formando Antônio de Jesus Pereira acrescentou ao discurso de Maria Raimunda a seguinte frase: “a literatura é importante para termos uma leitura crítica de mundo”.
Já a professora Ana Laura, que ministrou aulas no curso, completou: “a literatura é um direito do cidadão, assim como o direito de comer, de morar, de ter seu pedaço de terra”. Ornamentações também deixaram o Tapiri com características amazônicas e camponesas ainda mais fortes. Perto de seu pequeno e aconchegante palco foi espalhado o buriti, fruto típico da região, junto a pequenos barcos de madeira, que representaram a abundância de água dos enormes rios do Pará e da Amazônia. Além disso, painéis de artesanato pregados na parede retrataram a educação no campo. No auditório e nas salas da universidade aconteceram as apresentações de trabalho de parte dos formandos, além das oficinas de teatro, músicas, artes plásticas, agitação e propaganda, além de exibição de filmes. Houve ainda uma apresentação de teatro, encenado pelos jovens assentados e acampados do MST, resultado das oficinas da semana. Muito jovens tiveram seus talentos revelados e construíram a idéia de formar um coletivo de teatro para o MST no Pará.
MST monta Feira no Rio de Janeiro COLETIVO DE COMUNICAÇÃO DO MST - RJ
ENTRE OS DIAS 9 e 10 de dezembro, o MST montou uma Feira da Reforma Agrária no centro do Rio de Janeiro. A Feira contou com produtos vindos de diversos assentamentos do estado, como queijos, doces, geléias, frutas, verduras, hortaliças, arroz, produtos fitoterápicos, dentre outros. O evento contou ainda com barracas de outras organizações e campanhas, como a tenda da campanha “O Petróleo Tem que Ser Nosso!”. Para Marcelo Durão, da Coordenação Nacional do MST, a Feira tem o caráter de levar à cidade alimentos saudáveis, mostrando à população urbana como a Reforma Agrária dá certo. “Alguns produtos podem ser adquiridos por quem passar pela Feira. O que sobrar é para ser distribuído, principalmente, para as famílias de ocupações urbanas na cidade, no dia 10 de dezembro, que é o dia Internacional dos Direitos Humanos”, afirma. Na noite do dia 9 de dezembro foi organizada a Noite Cultural da Reforma Agrária com diversas atrações, dentre elas a Banda Caramuela de Forró. Já no dia 10 de dezembro, dia inter-
Salvador Scofano
JOÃO MÁRCIO ZONTA SETOR DE COMUNICAÇÃO
Arquivo MST
Acesso às letras marca a semana cultural no Pará
Produtos demonstram como a Reforma Agrária dá certo
nacional dos Direitos Humanos, um ato foi organizado para o encerramento da Feira. O Ato Público pelo Direito Humano à Alimentação e pela Reforma Agrária contra as Mudanças Climáticas contou com a participação de vários militantes de organizações sociais, parlamentares e sindicatos. Ao final do ato, uma grande roda de ciranda celebrou o encerramento da Feira da Reforma Agrária e a confraternização entre o MST e as diversas organizações que apoiaram o evento. JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
ESTADOS Publicidade favorável à Reforma Agrária deve ser veiculada em março
DA PÁGINA DO MST
UMA DECISÃO do Ministério Público de Pernambuco obrigou a Associação dos Oficiais, Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar/Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco (AOSS) e a empresa de outdoors Stampa a veicularem 21 outdoors com mensagens de promoção e defesa dos direitos humanos e da Reforma Agrária, no final de 2010. A arte das novas peças publicitárias deverá ser definida pelo MST e aprovada pelo Ministério Público. A agora denominada Associação dos Militares de Pernambuco (AME) teve ainda que publicar retratações públicas ao MST no Diário Oficial, no jornal interno da Polícia Militar e na página da internet da associação. A contrapropaganda deve ser veiculada a partir de março deste ano. O pedido foi apresentado pela orga-
Arquivo MST
Polícia de Pernambuco é condenada por outdoors contra MST
Associação dos Militares distribuiu propaganda contra os Sem Terra, em 2006
nização de direitos humanos Terra de Direitos, pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo MST por danos morais e direito de resposta contra a AOSS, em virtude da “campanha
publicitária” contra o MST, realizada pela Associação em 2006. No período do acontecimento, a AOSS distribuiu nas principais vias públicas do Recife e nas rodovias de Pernambuco outdoors e jornais, além de propagandas nos horários
nobres das rádios e televisões, peças com conteúdos difamatórios e preconceituosos contra os Sem Terra. Nos outdoors, veiculava-se a seguinte mensagem: “Sem Terra: sem lei, sem respeito e sem qualquer limite. Como isso tudo vai parar?” A campanha tinha o claro objetivo de criminalizar o MST e seus militantes e deslegitimar a luta pela Reforma Agrária dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, incitando a sociedade e os próprios policiais militares à violência contra os Sem Terra. À época da campanha, o presidente da AOSS era o atual deputado estadual Major Alberto Jorge do Nascimento Feitosa, que assinou pessoalmente os materiais da campanha junto com a associação. O Ministério Público considerou a campanha um abuso aos direitos humanos e um desrespeito aos princípios constitucionais de liberdade de reivindicação e de associação e, acima de tudo, uma ofensa à dignidade da pessoa humana.
Novembro de lutas por justiça social e soberania popular O ESTADO DE Alagoas é destaque no país pela concentração de terras e pela miséria repartida com o povo. Dos mais de 3 milhões de alagoanos, aproximadamente 1 milhão e 300 mil estão em situação de insegurança alimentar – dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE). Neste cenário, o MST tem lutado para levar milhares de famílias camponesas a outro patamar de segurança alimentar, educação e sociabilidade. Ao contribuir para um desenvolvimento local com acesso à habitação, escolarização, geração de renda, o Movimento cumpre um papel que traz benefícios para o campo e a cidade, pois fixa o homem e a mulher do campo em seus territórios e impede, consequentemente, o inchaço e a favelização urbana. No mês de novembro, milhares de famílias organizadas no MST se mobilizaram para cobrar do poder público políticas de justiça social e estruturação das áreas de Reforma Agrária.
No dia 10 de novembro, 12 prefeituras foram ocupadas pelos trabalhadores rurais na intenção de gerar uma agenda positiva com as administrações municipais. Na passagem do Dia Estadual de Luta contra Violência e Impunidade no Campo e na Cidade, em 29 de novembro, a capital Maceió foi “avermelhada” num grito por justiça e pela punição dos assassinos de Jaelson Melquíades, líder Sem Terra morto há 5 anos nesta data. Com uma pauta extensa que vai desde a regularização do transporte escolar à construção de pontes e praças, as famílias negociaram medidas a serem tomadas pelo poder público de cada município. Os municípios receberam reivindicações como o uso da água do Canal do Sertão, a construção de 13 escolas, sete postos de saúde e o escoamento da produção dos assentamentos e acampamentos. Como consequência das mobilizações, uma reunião com a Associação dos Municípios Alagoanos (AMA) foi realizada, e prefeitos e agricultores acordaram pela criação de projetos para resolução das demandas. Após uma grande caminhada pelas ruas de Atalaia, em 29 de novembro, o MST ergueu um
JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
acampamento com mais de 1.500 camponeses na Praça dos Martírios, onde fica o palácio República dos Palmares, do governo do Estado. Um grande ato atravessou as ruas do Centro até o Tribunal de Justiça para sensibilizar a população e o poder público sobre as mortes de trabalhadores Sem Terra em Alagoas. Após as mobilizações, o MST sentou à mesa com o Governo do Estado e garantiu a realização
de audiências setoriais com órgãos do Estado, como Secretarias de Agricultura, Educação, Departamento de Estradas e Rodagens e outros para o aprofundamento de demandas específicas, que serão acompanhadas pelo Gabinete Civil. Ainda, o presidente do Instituto de Terras de Alagoas (Iteral) se comprometeu a liberar para assentamento de famílias as áreas do antigo banco Produban.
Arquivo MST
RAFAEL SORIANO SETOR DE COMUNICAÇÃO
Trabalhadores ocupam 12 prefeituras e cobram ações concretas
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ESPECIAL Livro fotográfico registra lutas em defesa do rio e dos povos
O Rio São Francisco e as águas no sertão De 2005 a 2010, o fotógrafo João Zinclar percorreu oito estados brasileiros (MG, BA, PE, Al, SE, PB, RN e CE), acompanhando o trajeto do Velho Chico e das populações ribeirinhas. Na apresentação do livro “O Rio São Francisco e as águas do sertão”, a socióloga Renata Belzunces dos Santos escreve: “Não é um livro diletante, é um livro militante e lindo”. Militante já na primeira palavra do fotógrafo, que escreve: “Este livro é uma obra coletiva”. São várias pessoas que escreveram textos, que abriram as suas casas e histórias, que contribuíram para contar e registrar a luta contra a transposição, pelo acesso à água e terra e por sua forma de vida.
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JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
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REALIDADE BRASILEIRA “Temos que olhar para essa realidade não para nos acomodar, mas para nos preparar”
Novo ano, novo governo. Período de crise ou de crescimento? Teremos avanços ou retrocessos nas lutas? Qual a perspectiva para a luta pela Reforma Agrária? Haverá mais ocupações de terra ou mais lutas por infra-estrutura nos assentamentos? O que fazer e o que esperar dos próximos quatro anos? Confira abaixo a entrevista com Gilmar Mauro, da Coordenação Nacional do MST, sobre os desafios que se colocam para a classe trabalhadora e para o Movimento. JOANA TAVARES SETOR DE COMUNICAÇÃO
JST: Como você avalia o período atual para a luta do MST? Gilmar Mauro – O MST cresceu muito, principalmente no final dos anos 80 e começo de 90, com o tema da Reforma Agrária como uma alternativa de trabalho. Havia uma quantidade grande de pessoas interessadas e, por isso, as lutas foram intensas. A partir da entrada do governo Lula, há um processo de crescimento econômico e de geração de empregos. Então, muitos trabalhadores que tinham interesse na ReformaAgrária, hoje estão empregados. E a pequena agricultura tem dificuldade de competir com a grande agricultura, com a agricultura de escala. Evidentemente, há situações de assentamentos bem desenvolvidos, mas há também assentamentos precarizados, onde faltam condições básicas para a produção. O fato é que no último período há uma diminuição no número de ocupações. Não porque o MST tenha perdido capacidade de organizar, de fazer trabalho de base, mas porque efetivamente uma parcela dos trabalhadores já não quer mais a terra e a Reforma Agrária como alternativa, encontra outras formas de conseguir seu trabalho. Portanto, o primeiro tema que teremos que debater muito no MST é que uma Reforma Agrária numa lógica distributiva, produtivista, perde espaço. Como colocar a necessidade da Reforma Agrária hoje? GM – Temos o desafio de ressignificar a ReformaAgrária. Se a sociedade brasileira
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Felipe Canova
O descenso e a luta do MST
Reforma Agrária deve ser debatida pela sociedade para se ressignificar
e mundial quiser um modelo que use os recursos naturais – a água, o solo, a biodiversidade, os minerais – para fazer o que está fazendo hoje, o agronegócio resolve a situação e não precisa mais de Reforma Agrária. Outra pergunta que precisa ser feita é se a sociedade quer continuar consumindo produtos cheios de agrotóxicos e agroquímicos. Agora, se a sociedade quer comer outro tipo de comida e dar outro uso ao solo e aos recursos naturais, então a Reforma Agrária passa a ser uma das coisas mais modernas na atualidade. Mas ela não depende mais do MST, depende da sociedade brasileira. Temos que fazer esse debate: que tipo de modelo de agricultura, que tipo de comida e que tipo de paradigma tecnológico vamos querer. Dependendo do resultado desse debate, a Reforma Agrária vai estar ou não no centro das atenções. Conjunturalmente, ela está fora. A campanha presidencial não pautou, o governo não pauta, a imprensa não pauta, o Estado não pauta, nós temos pouca força para pautar. Mas ela é moderna porque coloca o tema numa perspectiva de mudança do modelo agrícola, da forma de produzir. Você diz que uma ferramenta de luta deve seguir as necessidades de sua base. Quais são as necessidades da base do MST hoje? GM – Um movimento que não responde às necessidades de sua base perde o sentido de ser. Temos que lutar para que em nossos assentamentos haja uma elevação da produção, da produtividade, avançar na construção de agroindústrias, de qualificação técnica. Precisamos resolver o problema da habitação, garantir abastecimento
de água para todos. Temos ainda a necessidade de conjugar a luta concreta com a localidade, com as cidades, conjugar a luta econômica com participação política nos municípios, construir o poder local, criar germes do poder popular. Temos que continuar avançando junto às famílias que querem ocupar terra e conquistar assentamentos. Outra grande tarefa é no âmbito da educação, para avançarmos em todas as frentes de elevação do nível de conhecimento. Avançar na formação política e ideológica é uma grande responsabilidade. A massificação segue como desafio central para o MST? GM – Segue, porque ainda há gente interessada na ReformaAgrária desse tipo. E nós não podemos abandonar isso. Mesmo por decreto, a ocupação nunca vai terminar enquanto houver gente disposta a lutar por Reforma Agrária. Uma tática termina se perder o sentido de ser para a classe. E a ocupação ainda tem sentido para a classe, não só para a organização. Como avançar na luta nos próximos anos? GM – Temos que estabelecer uma guerra de posição, nas palavras do Gramsci. Estabelecer onde queremos investir. Acredito não ser um tempo de lutas massivas. É um tempo de refluxo, não só no Brasil. Uma organização tem que olhar para essa realidade não para se acomodar, mas para se preparar para o futuro. É evidente que crises vão vir. E crise não é sinônimo de avanço. São janelas que se abrem, que podemos aproveitar, mas que podem provocar o retrocesso, como vimos com o fascismo e o nazismo. Se tivéssemos uma
crise gravíssima na economia hoje, não teríamos instrumentos e capacidade organizativa para aproveitar essa janela e levar a luta para outro patamar.A pergunta é: onde queremos estar quando a crise atingir nosso país? Se estivermos bem posicionados, acho que a janela da crise abrirá possibilidades de avançarmos. Se estivermos como hoje, estamos fritos, porque não teremos capacidade efetivamente de projetar novos cenários de luta. Quais as perspectivas para o governo que se inicia? GM – O governo Dilma será uma continuidade do governo Lula, não tenho dúvidas disso. Uma intervenção forte do Estado na economia, mas principalmente através da parceria público-privada. Lula fez programas de amortecimento da luta de classes, e creio que Dilma irá dar continuidade a esse processo. Podemos ter alguns avanços nas áreas sociais, mas evidentemente nos marcos do desenvolvimento capitalista. Esse processo indica que não teremos sobressaltos nos primeiros anos de governo, nem na economia, nem na política. Qual o papel da esquerda nesse momento? GM – É um tempo de reflexão, de amadurecimento da esquerda, tempo de balanço. A nossa pressa não apressa a história. Ou temos a capacidade de dialogar com o conjunto da classe trabalhadora e a revolução ser um projeto da classe, ou ela não se sustenta. Nós sozinhos não vamos a lugar nenhum. Se o conjunto da classe não avançar, dificilmente vamos avançar, seja na Reforma Agrária ou em qualquer tipo de mudanças.
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REALIDADE BRASILEIRA Política de segurança pública depende da garantia de direitos à população pobre
MARCELO FREIXO PROFESSOR DE HISTÓRIA, DEPUTADO ESTADUAL,
Arquivo MST
Bangue-bangue sem vencedores PRESIDENTE DA COMISSÃO DE DEFESA DOS
DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA DA ALERJ E PRESIDIU A CPI DAS MILÍCIAS
A REALIDADE VENCEU o maniqueísmo no debate sobre segurança pública. Em tempos pós-Tropa de Elite 2 não há espaço mais para o mito do embate incessante entre mocinhos e bandidos como via de conquista da paz — numa frente de luta tão infindável quanto ineficaz. Não convencem mais ninguém as farsas midiáticas para tentar transformar a segurança pública em entretenimento, em grandioso épico bélico no qual os inimigos a serem eliminados são jovens, quase todos negros, pobres, analfabetos, favelados. Após mais de duas décadas desse bangue-bangue sem vencedores, parece que aprendemos, enfim, que Confrontos com a polícia causam cerca de mil mortes por ano, no RJ segurança pública depende, sobretudo, da garantia de direitos à população. são. O Estado não garante os seus direitos de 2008, a partir do trabalho consolidado Milícia, contrabando de armas, narco- e, nesse vácuo, o crime a explora com o ao fim de uma CPI. Houve apenas cinco tráfico... Tudo isso é máfia, crime organi- objetivo exclusivo do lucro. Especialmente prisões de milicianos em 2006. Em 2007, zado. O mesmo não se pode homens negros, jovens e mora- 24. A partir de 2008, mais de 500 prisões. dizer do varejo das drogas nas “Tropa de Elite 2 – dores de favelas se tornam mão- Seria preciso, no entanto, muito mais para favelas do Rio de Janeiro. O o inimigo agora é de-obra barata e descartável do se enfrentar com eficácia máfias operadas crime não se organiza, afinal, outro” foi crime e morrem às dúzias ou por agentes públicos no controle de onde vigora a miséria. A assistido por 11 vão presos antes de completar a territórios e com projeto de poder, tudo estruturação das máfias ocorre milhões de maioridade ou ao menos o En- voltado para produção de lucro, seja onde existe dinheiro e poder, ou pessoas no Brasil. sino Fundamental. Nas comuni- financeiro ou político-eleitoral, para a seja, dentro do próprio Estado. O filme, dirigido dades, a maioria honesta e tra- manutenção e a ampliação dos seus Já foi mais do que desvendada, por José Padilha, balhadora é sujeita à violência e negócios criminosos. em cadeia nacional, a teia que continua a história a extorsões como, por exemplo, Após um ano e meio de espera até sustenta a relação entre crime, do capitão taxas de segurança cobradas que a Assembléia Legislativa do Estado Nascimento e do política e polícia. justamente por quem ameaça a do Rio de Janeiro (Alerj) autorizasse a combate ao Reveladora, por exemplo, sua vida. E essas pessoas ainda instalação da CPI – realizada em 2008, de como funciona essa teia no tráfico de drogas se vêem sem alternativa de aces- só depois que uma equipe do jornal “O Rio de Janeiro, houve recente no Rio de Janeiro. so a serviços básicos como trans- Dia” foi torturada em cárcere privado na operação coordenada pela Deleporte coletivo e fornecimento de Favela do Batan, na Zona Oeste — ainda gacia de Repressão ao Crime Organizado gás doméstico, a não ser àqueles explorados sequer se vislumbra a vontade política (Draco), da Polícia Civil, contra certa mi- pelas máfias locais. para tornar realidade a maioria de 58 lícia da Baixada Fluminense. Houve, em propostas então apresentadas para o dezembro, a prisão, entre os envolvidos, Solução? enfrentamento das milícias. Tais proposde dois vereadores, um destes, ex-policial tas integram, além do indiciamento de militar; de vários policiais militares; de Como solução presumida contra a 225 envolvidos nessas máfias, o relatório um policial civil; de um fuzileiro naval; violência, prender ou matar jovens pobres final da CPI, de 282 páginas, que foi de um sargento do Exército. Um “gram- empregados no varejo do tráfico tem sido entregue, ao longo dos últimos dois anos, po” revelou que era essa milícia que a ação recorrente do Estado desde meados às autoridades do Legislativo, do Execufornecia armas e munição ao varejo do da década de 1980. A média histórica, tivo e do Judiciário, na esfera municipal, tráfico do Complexo do Alemão, na Zona desde 2002, é de mil mortes em confronto na estadual e na federal, a partidos políNorte do Rio. Os dois vereadores presos com a polícia por ano. Já em relação às ticos e a organizações da sociedade civil. já haviam sido indiciados pela CPI das milícias, o Estado, se não promove o conNão é possível garantir segurança Milícias, em 2008. fronto direto e o extermínio do adversário pública só com ações policiais contra o Nessa conjuntura política e social, a mais recente, tem realizado cada vez mais varejo do tráfico de drogas e com prisões população pobre enfrenta uma dupla opres- prisões. Mas as prisões acontecem só depois de milicianos. Só a prisão dos seus líderes JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
não impede o avanço do poder armado do crime, em lucro e na conquista de novos territórios. Para promover a segurança pública, o Estado precisa fazer muito mais do que livrar as favelas do controle do varejo do tráfico ou da milícia. O Estado tem de tomar das milícias as suas fontes de lucro, como o transporte alternativo, a venda de gás, gatonet, entre outras. E investigar a origem das armas e das drogas para impedir que cheguem aos criminosos onde quer que estejam. No seu recente discurso de posse, o novo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reconheceu essa necessidade de priorizar o patrulhamento das nossas fronteiras aéreas, marítimas e terrestres.
Polícia Além disso, polícia, num Estado democrático de direito, é força que precisa ser contratada, valorizada e preparada para proteger vidas e não a morte. A polícia do Rio ainda é a que mais mata e também a que mais morre em todo o
As pessoas que vivem nas favelas não representam o inimigo a ser eliminado. Pelo contrário, essa população é credora do Estado, um devedor histórico de políticas públicas mundo. E segurança pública não é caso só para a polícia. O próprio secretário de Segurança Pública do Rio, Mariano Beltrame, já admitiu que o banguebangue nunca promoverá, de fato, paz e cidadania. Eis uma lição que, ao que tudo indica, pelo menos já foi assimilada pela sociedade e pelo Estado. As pessoas que vivem nas favelas não representam o inimigo a ser eliminado. Pelo contrário, essa população é credora do Estado, um devedor histórico de políticas públicas de qualidade como educação, saúde, habitação, transporte, lazer e segurança. O inimigo real é a corrupção que corrói o Estado por dentro para garantir, em vez dos direitos dos seus cidadãos, o projeto de poder das máfias, do crime organizado. Falta vencer esse inimigo, pois, sem garantia de direitos, não há segurança pública, não há democracia.
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INTERNACIONAL Para o “capitalismo verde”, não houve fracassos nas conferências
A luta contra as falsas soluções ambientais LUIZ ZARREF ENGENHEIRO FLORESTAL, MILITANTE DO MST E PESQUISADOR DO GRUPO “MODOS DE PRODUÇÃO E ANTAGONISMOS SOCIAIS”
EM 1992 foi realizada, no Rio de Janeiro, a mais importante reunião da ONU sobre o meio ambiente: a Eco 92. Entre muitas discussões e poucos acordos, (ao todo 172 países estiveram presentes), criaram-se três conferências que deveriam resolver problemas ambientais mundiais: a Conferência sobre Diversidade Biológica, a Conferência sobre Desertificação e a Conferência sobre as Mudanças Climáticas. Ao longo dos últimos 19 anos, cada conferência seguiu seu cronograma de atividades. Entretanto, com exceção da Conferência Sobre Desertificação, as outras duas estão sob forte investida do capital internacional. O que se vê é o lobby das grandes multinacionais em busca da garantia de acesso ilimitado à biodiversidade, por um lado, e de falsas soluções para os problemas climáticos, por outro. Pouco se discute de fato sobre meio ambiente e humanidade. Os assuntos da pauta são fundos financeiros, patentes e novas tecnologias de altíssimo custo. Em outubro de 2010 ocorreu, no Japão, a 10ª Conferência da Diversidade Biológica. O ponto central da discussão foram os estudos de Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade (TEEB é
a sigla em inglês), que tem como idéia principal quantificar o valor financeiro de plantas, animais e ecossistemas. Um artifício para dar mais segurança ao grande capital, que busca na biodiversidade novas possibilidades de acumulação capitalista, tendo como principais representantes as empresas farmacêuticas e as empresas de sementes e agrotóxicos.
Conferência de Cancún Pouco depois, em dezembro, ocorreu a 16º Conferência das Mudanças Climáticas, no México. Apesar dos esforços da Bolívia para que as negociações caminhassem para a verdadeira solução do problema climático, a conferência se
preocupou novamente com as falsas soluções do capitalismo para a humanidade e para a Terra. Os resultados finais da conferência foram a criação de um fundo internacional para adaptação às mudanças climáticas, do qual o Banco Mundial é tesoureiro, e a definição final sobre o REDD – mecanismos de Redução das Emissões de gases de efeito estufa por Desmatamento e Degradação. Com o REDD, latifundiários desmatadores podem dizer que vão reduzir a intensidade de seu desmatamento histórico e assim receberão recursos financeiros por essa possível redução futura. Além disto, os latifundiários que fizerem sistemas produtivos que não reviram o solo, como o plantio direto, também poderão lucrar
Arquivo MST
Consulta Global sobre os Direitos da Mãe Terra
Conferência Mundial dos Povos chama sociedade para plebiscito mundial
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Com a intenção de se contrapor ao avanço do capital internacional, a Cumbre de Cochabamba lançou uma chamada para a Consulta Global sobre os Direitos da Mãe Terra. Será um grande plebiscito mundial, que dirá que a Terra e a humanidade estão em primeiro lugar, não o lucro e a ganância dos capitalistas. Será também um processo de formação, em que os povos de todos os continentes poderão compreender o que está sendo discutido nas Conferências da ONU e como o capitalismo verde está chegando em suas comunidades. Será um processo de denúncia, enfrentamento, resistência e intercâmbio de experiências. A Via Campesina Internacional assumiu, junto com inúmeras outras organizações, a tarefa de concretizar a Consulta Global. Durante o processo da Consulta, trabalharemos a soberania alimentar energética e hídrica, a agroecologia e a cooperação como soluções que a agricultura
camponesa possui para os problemas ambientais criados pelo capitalismo. A Consulta Global sobre os Direitos da Mãe Terra será o principal contraponto à grande conferência do capitalismo verde que se realizará na Cúpula Rio+20. Será a voz dos povos do mundo contra as articulações das transnacionais e das nações imperialistas. Será um momento decisivo para o futuro do planeta, que caso continue à mercê das falsas soluções, terá um colapso em breve. É um momento de unidade entre as diversas organizações do campo e da cidade, no Brasil e no mundo, para que as formas solidárias de produção e comercialização, feitas em relação profunda com a natureza, sejam assumidas como verdadeiras soluções para a situação crítica na qual a humanidade e o planeta foram colocados pelo devastador sistema capitalista.
com esse novo mecanismo. Não importa se estão desmatando em outro local, se utilizam quantidades absurdas de venenos agrícolas, se possuem trabalho escravo ou se aumentam a concentração da terra. O REDD aparece como uma etapa mais avançada das fracassadas bolsas de carbono. Atualmente o carbono é a commoditie que mais cresce em todo o mundo. Nos últimos três anos o mercado especulativo sobre o carbono mobilizou cerca de 300 bilhões de dólares. Como se vê, são equivocadas as análises que apontam para o fracasso das conferências ambientais da última década. Ao contrário, elas foram um sucesso para o capitalismo mundial. Além de não impedirem a produção destrutiva do capitalismo tradicional, essas conferências estão construindo as bases de uma nova frente de expansão deste modo de produção: o capitalismo verde. E o grande desfecho de todo esse processo se dará na Rio+20, a conferência da ONU sobre meio ambiente, 20 anos depois da Eco 92, que ocorrerá novamente no Rio de Janeiro, em maio de 2012.
Mobilizações Mas, ao mesmo tempo em que o capital internacional se mobiliza para tornar a natureza em um grande negócio, os movimentos sociais e diversas organizações de todo o planeta estão também se organizando para defender os direitos da Mãe Terra e da humanidade. Grandes mobilizações e importantes enfrentamentos vêm ocorrendo ao longo dos últimos anos, denunciando os males das falsas soluções e demonstrando as soluções que os povos de todos os lugares do mundo têm para enfrentar os problemas ambientais criados pelo modo de produção capitalista. Em abril de 2010 ocorreu, em Cochabamba, na Bolívia, a Cumbre Mundial de los Pueblos sobre los Derechos de la Madre Tierra, onde mais de 35 mil pessoas de todos os continentes denunciaram o sistema capitalista como causador dos problemas ambientais do mundo e apontaram a necessidade de se garantir os direitos da Mãe Terra. A Cumbre chegou ao final com um posicionamento firme de que apenas os povos do mundo podem decidir sobre as melhores formas de combater as mudanças climáticas, e que as grandes transnacionais devem estar totalmente fora deste debate.
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LUTADORES DO POVO Amílcar Cabral defendia a união de Guiné e Cabo Verde e construção de uma nação forte e livre
Arquivo MST
O político que queria ser poeta ANA CHÃ COLETIVO DE CULTURA
PARA A MAIORIA dos brasileiros e brasileiras, a África ainda é um continente quase totalmente desconhecido. Com o desafio de saber mais sobre essa parte do mundo, que tem tanta relação com nossa história e nossa atualidade, fomos atrás de conhecer um pouco sobre Amílcar Cabral, lutador e poeta revolucionário africano. Amílcar Lopes da Costa Cabral é filho de cabo-verdianos emigrados na Guiné, onde nasceu, na cidade de Bafatá, em setembro de 1924, e onde viveu até 1932, período em que regressa a Cabo Verde na companhia de sua família. Cabo Verde é um arquipélago constituído por dez ilhas, situado a cerca de 500 km do continente africano. As ilhas eram desabitadas até a chegada dos portugueses. O povoamento foi feito por portugueses e comerciantes europeus, bem como por homens negros escravizados trazidos da costa africana. Essa mistura levou à formação de uma sociedade crioula e mestiça que, apesar de alguma atividade comercial, se dedicava principalmente ao trabalho agrícola. É neste contexto de mestiçagem e cabo– verdianidade, sobre a qual mais tarde teorizou, que Amílcar passou a infância e adolescência, recebendo do pai um exemplo de consciência e atuação, e da mãe, um exemplo de ternura, proteção e trabalho.
Grito de Revolta
Poeta e militante Desde cedo começou a escrever poesia. Neste período, desenvolveu consciência das péssimas condições de vida do povo cabo-verdiano, o que influenciou não só sua poesia, mas seu modo de ver o mundo e sua ação política. Em 1945 foi para Lisboa estudar agronomia, e fez importantes contatos com grupos políticos e culturais, aprofundando seu conhecimento sobre o sistema colonizador e o reconhecimento da sua própria situação enquanto sujeito
Sobre os países
CABO VERDE Capital População
Praia aproximadamente 500 mil habitantes Idiomas: Português e Crioulo cabo-verdiano Data independência 5 de julho de 1975 (de Portugal): Regime: República democrática unitária parlamentarista
ponto de vista político, econômico e cultural, integrada na história mundial. Para “o político que queria ser poeta”, como disse alguém, a cultura assumia um papel central no processo de luta de libertação nacional, sendo o motor da história. A cultura para ele retratava o nível de consciência e do desenvolvimento do pensamento do homem colonizado, que tinha como objetivo reconquistar a sua persona-
GUINÉ-BISSAU Capital População
Bissau aproximadamente 1,5 milhões de habitantes Idiomas Português e Crioulo da Guiné-Bissau Data independência Proclamada 24 de (de Portugal) setembro de 1973; reconhecida 10 de setembro de 1974 Regime República
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colonizado. Isso desenvolveu nele uma necessidade vital: regressar à África. Voltou já como agrônomo. Na Guiné e Angola teve contato mais profundo com a África Negra que tanto tinha discutido em Portugal, e com a verdadeira situação dos povos sob domínio colonial, assumindo para si a tarefa de conscientização das massas populares. Participou em 1959, na Guiné, como principal impulsionador, da criação na clandestinidade do Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), instrumento político e cultural que tinha o objetivo de guiar o povo para a independência durante a luta de libertação e garantir a construção de um Estado-nação, durante e após sua reconquista. Em 1962, começou a ecoar com força um grito de revolta. Desencadeia-se a luta armada de libertação nacional da Guiné e de Cabo Verde. Cabral assimilou a teoria marxistaleninista mas, ao mesmo tempo, adaptou para a realidade africana. Apoiado na teoria pan-africanista, que defendia que a solidariedade deveria nortear o relacionamento entre as nações africanas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, e na história comum da Guiné e Cabo Verde, Amílcar Cabral defendia a união dos dois países, como uma estratégia fundamental para a construção de uma grande nação que pudesse abrir caminho para uma África forte e independente, do
Quem é que não se lembra Daquele grito que parecia trovão?! – É que ontem Soltei meu grito de revolta. Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra, Atravessou os mares e os oceanos, Transpôs os Himalaias de todo o Mundo, Não respeitou fronteiras E fez vibrar meu peito... Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens, Confraternizou todos os Homens E transformou a Vida... ... Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo, Que não transpôs o Mundo, O Mundo que sou eu! Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe, Muito longe, Na minha garganta! Na garganta de todos os Homens Lisboa, 1946 lidade histórica e a independência. Daí, um dos elementos centrais do seu pensamento ter sido a idéia de formação de um Homem Novo e a luta por uma libertação física, mas, principalmente, uma libertação intelectual e psicológica do homem negroafricano de conceitos, comportamentos e valores impostos pelo sistema colonizador. Infelizmente, em 20 de janeiro de 1973, seus projetos foram interrompidos com seu assassinato em Conacri. Após a morte de Cabral, a luta armada se intensificou. A independência da Guiné-Bissau foi proclamada em 24 de setembro de 1973 e reconhecida por Portugal em 10 setembro de 1974. Cabo Verde se tornou independente em 5 de julho de 1975.
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LITERATURA Como seus personagens, escritor viveu sempre à margem
Lima Barreto: um rebelde com causa JOAQUIN PIÑERO COLETIVO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
AFONSO HENRIQUES de Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio de 1881 na cidade do Rio de Janeiro e faleceu em 1º de janeiro de 1922. Mulato, de origem humilde, sofreu na pele os preconceitos de um país racista e escravocrata que mesmo depois da assinatura da lei Áurea não se viu sua aplicação na prática. Dizia ele: “Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”. Perdeu a mãe aos 6 anos de idade e aos 20 anos teve que largar a faculdade para cuidar da família após seu pai enlouquecer. Dono de uma ironia e um humor ácido, elementos fundamentais para alimentar sua crítica feroz sobre a sociedade brasileira, Lima Barreto é considerado por muitos como o pioneiro do romance moderno, tanto pela sua inquietação diante da realidade do Brasil e sua indignação ante as injustiças sociais, como forjador de uma nova forma linguística.
Escreveu crônicas, folhetim, contos, romances, sátiras, críticas literárias e memórias. Seus livros não tiveram muito sucesso na época de sua publicação, e a Academia Brasileira de Letras mais de uma vez lhe fechou as portas. Como seus personagens, Lima Barreto viveu sempre à margem. À margem dos escritores de
sua época, da maneira de viver do período, das futilidades das elites, da hipocrisia dos políticos. Procurava encontrar consolo na bebida e foi esta, justamente, que destruiu sua vida. Por diversas vezes, esteve internado em um manicômio. Sobre essa situação declarou: “De mim para mim, tenho a certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões de que as dificuldades da minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: delírio.” Entretanto, a força de suas idéias e os temas de seus escritos continuam atualíssimos: a corrupção, a guerra, a pobreza, a miséria, as enchentes, a situação dos negros no Brasil, o nacionalismo, a crítica ferrenha aos governos incompetentes, a loucura. Enfim, como todo gênio, sempre esteve à frente de seu tempo. Muitos de seus contos e romances foram adaptados para o cinema, novelas, minisséries, peças teatrais, tornando-o cada dia mais presente entre os grandes da literatura brasileira.
Triste fim de Policarpo Quaresma O texto surgiu como um romance de folhetim em edições semanais, em 1911. Quatro anos depois, foi publicado em livro.
Capitulo IV – Desastrosas Consequências de um Requerimento Policarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua portuguesa é emprestada ao Brasil, certo também de que, por esse fato o falar e o
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escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se vêem na humilhante contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua, sabendo, além, que, dentro de nosso país, os autores e os escritores com especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical, vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos estudiosos do nosso idioma – usando o direito que lhe confere a constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o tupi-guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. O suplicante, deixando de parte os argumentos históricos que militam em favor de suas idéias, pede vênia para lembrar que a língua é a mais alta manifestação da inteligência de um povo, é a sua criação mais viva e original; e, portanto, a emancipação política do país requer como complemento e consequência a sua emancipação idiomática. Demais, senhores congressistas, o tupiguarani, língua originalíssima, aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições de riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de
pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e cerebrais, por ser criação de povos que aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores de organização fisiológica e psicológica para que tendemos, evitando-se dessas formas as estéreis controvérsias gramaticais, oriundas de uma difícil adaptação de uma língua de outra região à nossa organização cerebral e ao nosso aparelho vocal – controvérsias que tanto empecem o progresso de nossa cultura literária, científica e filosófica. Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para realizar semelhante medida e cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão o seu alcance e utilidade P. e E. Deferimento. Assinado e devidamente estampilhado, este requerimento do major foi, durante dias, assunto de todas as palestras. Publicado em todos os jornais com comentários facetos, não havia quem não fizesse uma pilhéria sobre ele, quem não ensaiasse um espírito à custa da lembrança do Quaresma.
O homem que sabia javanês EM UMA confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver. Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de feiticeiro e adivinho. Contava eu isso. O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo: — Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo! — Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras, aborrece, não achas? Não sei como me tenho agüentado lá, no consulado! — Cansa-se; mas, não é disso que me admiro. O que me admira, é que tenhas corrido tantas aventuras aqui, neste Brasil imbecil e burocrático. — Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já fui professor de javanês! — Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado? — Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso. — Conta lá como foi. Bebes mais cerveja? — Bebo. Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos, e continuei... *Publicado no livro “O homem que sabia Javanês e outros contos”. O livro pode ser lido em: http://www.educacional.com.br/classicos/ obras/o_homem_que _sabia_javan% C3%AAs_e_outros_contos.pdf)
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Cultura, arte e literatura Marx e Engels jamais se colocaram a tarefa de pensar sistematicamente a arte (isto é, de elaborar uma teoria estética sistemática). Contudo, as obras fundacionais do materialismo histórico oferecem elementos para a constituição de uma estética embasada nas concepções teórico-metodológicas dos dois autores. Essa foi a hipótese de trabalho de dois intelectuais comunistas, que tiveram as questões literárias e artísticas como preocupação central de sua produção teórica: o russo Mikhail
Lifschitz e o húngaro György Lukács. “Cultura, arte e literatura: textos escolhidos” tem como base os resultados iniciais da pesquisa de textos marxianos realizada por Lifschitz no então Instituto Marx-Engels-Lenin da extinta União Soviética. O presente livro é constituído por uma seleção dos principais textos contidos na antologia organizada por Lifschitz.(Leandro Konder) Veja mais no site da Editora: www.expressaopopular.com.br
Para não esquecer Janeiro 1 Revolução Cubana, 1959. Uma das primeiras medidas tomadas pelos revolucionários foi a Reforma Agrária. 1 Independência da República Negra do Haiti, 1804. 3 Nascimento de Luiz Carlos Prestes, 1898. 4 Morre o cartunista Henfil, 1988.
“A felicidade consiste na consciência do dever cumprido”
“É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.”
(Luiz Carlos Prestes)
6 Fundação do Partido Comunista Argentino, 1918, primeiro no continente americano. 6 Nicarágua é invadida pelos Estados Unidos, 1926, na tentativa de combater Augusto Sandino. Em, 1933, os americanos retiram-se do país e instalam o ditador Anastácio Somoza no poder. 9 Greve dos tipógrafos de três jornais no Rio de Janeiro, 1858, considerada a primeira greve no Brasil. 13 Morre o historiador marxista Nélson Werneck Sodré, 1999. 15 Nasce Martin Luther King, 1929. 15 Assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, 1919. 21 Realizado o I Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel, 1984. 21 Morre Vladimir Ilitch Ulianov Lênin, 1924.
Vladimir Ilitch Ulianov Lênin
25 Realizado o I Fórum Social Mundial, 2001. 25 Criado o Jornal Brasil de Fato, 2003.
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JORNAL SEM TERRA • JANEIRO 2011
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29 Realizado o I Congresso do MST, 1985. 30 Criada a bandeira do MST, 1987.
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28 Nasce José Martí, grande mártir da Independência de Cuba em relação à Espanha, 1853.
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