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ANO XXX– Nº 319 – SET/OUT/NOV 2012

6º CONGRESSO

Edgar Kolling: os desafios do MST na luta pela Reforma Agrária Páginas 10 e 11

ENTREVISTA

MST monta acampamento permanente em Brasília Páginas 4 e 5


EDITORIAL Proposta sofreu uma perda política com as derrotas do PSDB, mas o governo quer retomar

O velho Novo Mundo Rural A NOSSA BASE e os nossos militantes estão preocupados com o anúncio do governo de que haverá mudanças no rumo da política de Reforma Agrária, com um discurso aparentemente progressista, de levar os assentados à classe média com o desenvolvimento dos assentamentos nos moldes do agronegócio. Por trás desse discurso, há uma tentativa por parte do setor mais conservador dentro do governo de ressuscitar uma elaboração teórica conhecida como Novo Mundo Rural, criada no governo neoliberal de FHC e derrotada nas últimas três eleições presidenciais. O Novo Mundo Rural foi a receita neoliberal aplicada ao campo, que tinha como fundamento a separação da agricultura em três níveis: agronegócio, agricultura familiar e os pobres do campo. A partir disso, o Estado passa a organizar as políticas públicas, aplicando o receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial aos pobres do campo, com políticas focalizadas e compensatórias. Nesse período, o governo construiu um conjunto de instrumentos para implementar essa política, como a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, a extinção do crédito especial da Reforma Agrária (o Procera) e a inclusão dos assentados no Pronaf. Além disso, enfraqueceu o Incra, criou a Agência Nacional de Terras, acabou com assistência técnica pública e lançou um conjunto de iniciativas na área jurídica para criminalizar a luta. A

proposta do Novo Mundo Rural sofreu uma derrota política com as derrotas do PSDB, com muita luta e enfrentamento. No entanto, parte das medidas previstas nesse plano continuou sendo aplicada, como a política de crédito agrícola. Há uma retomada dessas políticas para o campo, que estão ganhando força dentro de um governo que foi eleito por assentados e acampados para derrotar a política neoliberal. O Novo Mundo Rural da presidenta Dilma Rousseff tem como objetivo colocar o campo na linha do neodesenvolvimentismo, com base no empreendedorismo, para elevar o nível da renda das famílias de pequenos agricultores. A implementação da política do governo tem caminhado na seguinte direção: -A política de obtenção de terra está parada. O governo tem defendido que só fará assentamento em áreas boas para Reforma Agrária, desde que não sejam muito caras. Essas áreas até o momento não foram encontradas. No atual momento de ofensiva do capital na agricultura, é difícil crer que existam terras boas e baratas no mercado... -Está em curso uma proposta do governo de emancipação dos assentamentos. Com discurso de que os assentamentos antigos precisam ter autonomia do Estado, as famílias deveriam deixar de ser assentadas. Na prática, essa política será a privatização dos assentamentos, da terra, dos direitos dos assentados e dos recursos públicos

até hoje investidos, que cairão nas mãos de um mercado dominado pelo agronegócio. Assim, a política de desenvolvimento dos assentados do governo tem como objetivo transformar parte dos assentamentos em agricultores familiares, com produção em escala e acesso a crédito, levando essas famílias para a tal classe média da Dilma. As famílias que não conseguirem chegar a esse nível de desenvolvimento – possivelmente, a maioria pelas dificuldades de enfrentar a lógica da competição do mercado capitalista entrarão para o Programa Brasil Sem Miséria. Conseguimos fazer lutas e resistir ao modelo neoliberal de FHC. Atualmente, a maior parte das políticas do governo Dilma tem o mesmo conteúdo do projeto do Novo Mundo Rural. Porém, hoje temos mais dificuldades no processo de mobilização para resistir e impor um novo modelo para agricultura brasileira. Precisamos continuar a luta por uma nova política de Reforma Agrária, que possa resolver os problemas dos pobres e a desigualdade no campo e, ao mesmo tempo, avançar a política de desenvolvimento do meio rural. A distribuição da terra é o primeiro passo do processo de Reforma Agrária. Depois, é necessário organizar a produção e a vida nesses territórios, com apoio do Estado, para garantir o êxito dos assentamentos. Abaixo, 10 condições fundamentais para o desenvolvimento dos projetos de Reforma Agrária:

Palavra do leitor

DIREÇÃO NACIONAL DO MST

FRASE DO MÊS

A reforma agrária não é apenas para “eliminar” os acampados. Nem creio que seja questão de produção ou produtividade, pois tanto o latifúndio quanto as pequenas e médias propriedades possuem características que lhes ajudam e outras que atrapalham. O maior dos benefícios é bem outro, e

traduz-se na imperiosa necessidade de mitigar o poder imenso da oligarquia rural, cuja concentração de riqueza absurda perpetua o atraso e o subdesenvolvimento e distorce até mesmo a noção de igualdade de oportunidades, tão cara aos liberais. VLAD

••• Não há justificativa para o descaso do governo federal com a reforma agrária. Este é um compromisso histórico do PT. Por que o governo privilegia o agronegócio e abandona 180 mil famílias de agricultores brasileiros? FABIO PASSOS Mande sua mensagem para o Jornal Sem Terra

Foto da capa: MST-PA

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1 - Produção de alimentos de qualidade e saudáveis para atender a demanda dos municípios próximos dos assentamentos e as compras governamentais. 2 - Cooperação agrícola para aumentar a escala da produção. 3 - Organizar agroindústrias próximas ao local de produção agrícola, na forma de cooperativas, sob controle dos agricultores, para agregar valor à produção e gerar renda. 4 - Agricultura diversificada, rompendo com a monocultura, para promover uma agricultura sustentável, em bases agroecológicas, sem agrotóxicos e transgênicos. 5 - Universalização do acesso à educação escolar pelo Estado. 6 - Construção e melhoria das moradias no meio rural, conjugado com garantia de acesso a energia elétrica, para melhorar a qualidade de vida. 7 - Garantia do abastecimento de água potável nas comunidades rurais pelo Estado. 8 - Avançar o processo de democratização do acesso a terra. 9 - Apoio de políticas públicas do Estado, como garantia de preços, crédito, fomento à transição e consolidação da produção agroecológica, seguro, assistência técnica, armazenagem e programas de compra. 10 - Manutenção da mobilização e lutas dos assentados, uma vez que as conquistas atuais fazem parte desse processo de acúmulo de forças.

Edição-chefe: Igor Felippe Santos. Edição-adjunto: Luiz Felipe Albuquerque. Revisão: Jade Percassi. Projeto gráfico e diagramação: Eliel Almeida. Assinaturas: Elaine Silva. Tiragem: 10 mil exemplares. Endereço: Al. Barão de Limeira, 1232 – CEP 01202-002 – São Paulo/ SP – Tel/fax: (11) 2131-0850. Correio eletrônico: jst@mst.org.br. Página na internet: www.mst.org.br. Todos os textos do Jornal Sem Terra podem ser reproduzidas por qualquer veículo de comunicação, desde que citada a fonte e mantida a íntegra do material.

Sua participação é muito importante. As correspondências podem ser enviadas para jst@mst.org.br ou para a Alameda Barão de Limeira, 1232, Campos Elíseos, São Paulo/SP, CEP 01202-002. As opiniões expressas na seção “Palavra do leitor” não refletem, necessariamente, as opiniões do Jornal sobre os temas abordados. A equipe do JST pode, eventualmente, ter de editar as cartas recebidas.

“Só no Youtube o ‘Veneno está na Mesa’ já teve mais de 120 mil acessos. Fora as milhares de cópias que cada parceiro se preocupou em reproduzir, multiplicar e distribuir o filme. Sem falsa modéstia, já podemos falar na casa de 1 milhão de espectadores” SILVIO TENDLER, cineasta e diretor do Veneno está na Mesa.

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ESTUDO As crises são resultados do desenvolvimento das contradições internas de um determinado processo

POR ARMANDO BOITO JR. PROFESSOR DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP)

Internet

As crises políticas do sistema capitalista A CRISE POLÍTICA é um fenômeno objetivo e situado numa conjuntura específica, o que quer dizer que ela ocorre independentemente da vontade particular de cada agente político envolvido no processo e se estende por um período de tempo mais ou menos curto. A crise política resulta da exacerbação do conjunto de contradições entre classes e frações de classe que movimentam o processo político num país ou num conjunto de determinados países.

Os tipos de crise Podemos pensar em pelo menos quatro tipos de crise política. Uma crise de importância menor é a crise de governo, quando é apenas a equipe governamental que tem sua permanência no comando do Estado ameaçada. Esta crise de governo é superficial e não altera o bloco no poder ou a forma de Estado, como pudemos constatar com a crise do impeachment de Fernando Collor, em 1992.

A crise econômica diz respeito ao processo de acumulação de capital, e a crise política no plano da luta pelo poder Algo mais importante é a crise da forma de Estado, quando a forma vigente, ditatorial ou democrática, é colocada em questão. No Brasil, conhecemos esse tipo de crise na conjuntura de 1978-1985, quando a ditadura militar viu-se contestada por parte dos de cima e pela maioria dos debaixo. Há também a crise de um determinado bloco no poder, isto é, quando um determinado arranjo burguês de controle do Estado é contestado por uma ou mais forças burguesas e/ou populares. Foi esse tipo de crise que

Guernica (1937), de Pablo Picasso, mostra os horrores da guerra e a crueldade de governos tirânicos

ocorreu no Brasil em 1930. Naquela conjuntura, a hegemonia da grande burguesia cafeeira paulista no interior do bloco no poder foi posta em questão e liquidada pelo movimento político e militar dirigido pelos tenentes em outubro daquele ano. A crise política mais profunda é a crise do próprio Estado e, nesse caso, que é mais raro, estamos diante de uma crise revolucionária. No Brasil, tivemos uma crise do Estado, isto é, revolucionária, na conjuntura de 18881891, quando a revolução antiescravista e antimonárquica logrou liquidar a escravidão, e o Estado monárquico escravista elaborou a primeira Constituição Republicana. Da crise do governo à crise do Estado, passando pela crise da forma de Estado e pela crise do bloco no poder, a profundidade da crise é crescente. Uma crise do Estado é também, e necessariamente, uma crise do bloco no poder, da forma de Estado e do próprio governo.

Fenômenos distintos Não devemos confundir crise política com crise econômica. Esses são dois fenômenos distintos e a relação entre

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eles é complexa. O que há de comum é que tanto a crise econômica, quanto a crise política, resultam, fundamentalmente, do desenvolvimento de contradições internas a um determinado processo – o processo econômico, no caso da primeira, e o processo político no caso da segunda. A crise econômica se desenvolve de modo espontâneo e diz respeito ao processo de acumulação de capital. A crise política não se localiza no processo de acumulação de capital, mas no plano da luta pelo poder e, embora seja um fenômeno objetivo, não é inteiramente espontâneo já que supõe a existência de uma força organizada que tem condições de propor – e que de fato propõe – a deposição de um governo, a derrubada de uma forma de Estado, a alteração de um determinado bloco no poder ou a destruição de um tipo de Estado – feudal, escravista ou capitalista. Sem a existência de tal força politicamente organizada, podemos ter uma situação de instabilidade política, mas não de crise, seja do tipo que for. A situação de instabilidade pode se prolongar sem que uma verdadeira crise política se instaure.

A crise econômica pode provocar uma crise política, mas nem sempre é isso que ocorre. Desde 2008, a economia capitalista encontra-se patinando numa crise econômica grave que nasceu no coração do sistema, mas não instaurou, pelo menos até o

Sem a existência de tal força politicamente organizada, podemos ter uma situação de instabilidade política, mas não de crise momento, uma situação de crise política nos países centrais. A crise econômica motivou, é verdade, reações e lutas que criaram um cenário político novo. Mas esse é, em países como a Grécia, um cenário de instabilidade e não de crise política. Mas não há uma força política organizada, representativa e dotada de um programa econômico e social alternativo em condições de substituir o bloco no poder que controla o Estado nesses países.

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ENTREVISTA Em entrevista, Kelli Maffort da direção nacional do MST, ressalta a importância da participação da

Os movimentos sociais do campo sofrem historicamente o descaso dos governos com a Reforma Agrária. Nos últimos meses, esse descaso vem se acentuando. O governo da presidenta Dilma Rousseff é o que menos desapropriou imóveis rurais para a Reforma Agrária. Diante dessa conjuntura, os movimentos sociais acreditam que é necessário travar um processo de luta permanente contra o agronegócio e pelo fortalecimento da Reforma Agrária. Dessa forma, desde o dia 5 de março, o MST organiza um acampamento permanente em Brasília. O acampamento, batizado com o nome de Hugo Chávez depois da morte do presidente da Venezuela, iniciou com a Jornada Nacional de Luta das Mulheres da Via Campesina. Continuará por tempo indeterminado. Em entrevista ao Jornal Sem Terra, Kelli Maffort, da direção nacional e coordenadora do setor de gênero do MST, ressalta a importância da participação da mulher na condução da luta. Para ela, o acampamento é instrumento de pressão para o governo retomar o processo de criação de assentamentos. “Estamos vivendo uma conjuntura de bloqueio da Reforma Agrária. A luta dos movimentos sociais tem que ser permanente para romper com essa lógica”, afirma. Confira a entrevista:

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Arquivo MST

“A luta dos movimentos sociais será a altura do bloqueio da Reforma Agrária”

Homenagem ao presidente da Venezuela Hugo Chávez, falecido no dia 5 de março.

POR IRIS PACHECO SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

JST - O Acampamento Nacional Permanente Hugo Chávez iniciou como parte integrante da Jornada de Lutas das Mulheres. Qual é a importância de sua realização na atual conjuntura? KL - Sem dúvida alguma, o acampamento permanente é crucial, dada a atual conjuntura de bloqueio da Reforma Agrária. Esse bloqueio é combinado entre as ações dos governos federais e estaduais, em conjunto com a hegemonia do agronegócio e a ação do Poder Judiciário, que tem atuado no sentido de criminalizar a luta pela terra. Portanto, se estamos vivendo uma conjuntura de bloqueio da Reforma Agrária, a luta dos movimentos sociais tem que ser a altura deste. Ela tem que ser permanente para romper com essa lógica. Por isso, o acampamento é um esforço do MST e de outros movimentos

sociais do campo de manter as atividades de forma permanente e por tempo indeterminado. JST - Esse bloqueio pode ser considerado o grande desafio para os movimentos sociais do campo? KL - Estamos atravessando uma conjuntura em que a Reforma Agrária está sendo colocada como uma bandeira superada. Isso porque, dada a realidade agrária, de avanço do agronegócio e o processo de

Por vivermos em uma sociedade patriarcal, as mulheres são duplamente atingidas. Atingidas como classe trabalhadora e também como mulheres

industrialização no campo, não haveria mais a necessidade de fazer Reforma Agrária no país. No entanto, na prática é justamente o contrário. Hoje 30% dos alimentos consumidos pela população, de acordo com a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), estão contaminados por agrotóxicos. As pessoas estão sendo envenenadas por esse modelo de produção hegemônico do agronegócio. Portanto, o agronegócio não pode ser o modelo do campo brasileiro. É preciso buscar outra forma de produzir. E essa forma é a agricultura agroecológica presente na Reforma Agrária. JST - O Poder Judiciário se revela como um entrave nos processos de desapropriações de terra. A demarcação dos territórios indígenas e quilombolas é exemplo claro desse entrave no atual cenário do campo brasileiro. Quais ações de lutas conjuntas os movimentos pretendem

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Arquivo MST

mulher na condução da luta realizar para garantir o desenvolvimento deste processo de demarcação? KL - Em agosto de 2012 foi realizado, em Brasília, um encontro unitário dos movimentos sociais do campo. Esse encontro das organizações revelou que a questão do campesinato não envolve somente o público da Reforma Agrária. As políticas para o campo brasileiro priorizam o agronegócio e inviabilizam um projeto popular que atenda o público assentado, as populações indígenas, quilombolas e pescadores. Todas essas comunidades e movimentos estão impactados pela hegemonia desse

modelo no campo, que é a materialização do capital. Os movimentos estão avançando na compreensão de que para enfrentar esse modelo devem fazê-lo de forma articulada. É por meio dessa articulação que vamos conseguir romper com esse modelo de sociedade e de fato enfrentar o capital. JST - Por que o agronegócio afeta principalmente as mulheres? KL - A dominação da hegemonia do agronegócio está presente para toda a classe trabalhadora, seu impacto a atinge como um todo. Porém, por vivermos em uma sociedade patriarcal as mulheres são duplamente atingidas. Atingidas como classe trabalhadora e também como mulheres. JST - Como a violência contra a mulher é discutida pela Via Campesina? KL - Violência contra a mulher está presente em toda a sociedade, logo também no campo brasileiro. A violência não deve ser tratada em separado do tema do enfrentamento ao capital, porque essas relações estão articuladas com a dominação do patriarcado e do capital. Ainda são

Sem Terra montam acampamento em Brasília por tempo indeterminado

incipientes os dados da violência contra as mulheres no campo. No entanto, em nossos acampamentos e assentamentos, nós já percebemos que é necessário combatê-la de forma bastante contundente. O MST, que é portador de um novo projeto de sociedade, em que a criação de novas relações de gênero está inserida, luta também contra essa violência, a partir das nossas áreas. JST - Qual foi o principal ponto de pauta da Jornada de Lutas das Mulheres neste ano? KL - Historicamente a jornada das mulheres tem pautado a defesa da Reforma Agrária. Neste ano reafirmamos essa pauta. Queremos o assentamento das 90 mil famílias acampadas em todo país. Hoje há uma política por parte do governo federal de bloquear a Reforma Agrária, favorecendo o agronegócio e deixando os assentamentos em uma difícil situação econômica e de desenvolvimento social. JST - Como as camponesas pretendem contribuir na construção da soberania alimentar no Brasil? KL - As camponesas, em sua vida no campo, se organizam e ocupam tarefas que são práticas concretas desse projeto de soberania alimentar. No dia a dia das camponesas, estão presentes princípios que regem esse projeto e pautam a luta do enfrentamento ao modelo do agronegócio, que inviabiliza a soberania popular e alimentar. A pretensão é que a partir das

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experiências concretas consigamos enfrentar o capital e construir novas relações sociais. JST - A precarização do trabalho no âmbito das relações no campo é um problema latente. Como as trabalhadoras rurais são afetadas por esta questão específica? KL - Podemos citar um exemplo que ocorre com as mulheres trabalhadoras na atividade do plantio da cana-deaçúcar. Essa atividade é feita maciçamente por mulheres. Dado o avanço da mecanização em atividades super energéticas, as mulheres estão sendo forçadas a uma jornada de trabalho ainda mais extenuante. Isso é importante para podermos

JST - A questão da Reforma Agrária atinge direta ou indiretamente homens e mulheres, seja no campo ou na cidade. Como você vê a unificação dos movimentos sociais camponeses e urbanos em defesa desta bandeira? KL - No lema “Mulheres em Luta contra o Capital e pela Soberania dos Povos”, da Jornada de Lutas das Mulheres, está presente o componente de que a luta das mulheres camponesas é algo que nos coloca em um patamar de enfrentamento de classe em contraposição ao modelo do capital. Esse modelo não está presente somente no campo, como também na cidade. Quando nós tivermos a capacidade de romper com o bloqueio do campo e cidade, unificando a luta a partir da necessidade latente de articulação dos movimentos sociais campesinos e urbanos, conseguiremos avançar em um projeto de sociedade das trabalhadoras e dos trabalhadores para de fato derrotar esse modelo capitalista e construir novas relações.

Arquivo MST

O que o agronegócio propõe como modernidade é carregado de relações sociais arcaicas e que aumentam a superexploração do trabalho

perceber que a propaganda do agronegócio de novo e moderno não tem fundamento verídico, porque com a mecanização moderna as mulheres trabalhadoras são forçadas a competir com a máquina, tendo assim que aumentar seu grau de produção. É contra essas relações de trabalho que lutamos para alterar. O que o agronegócio propõe como modernidade, na realidade é carregado de relações sociais extremamente arcaicas e que aumentam a superexploração do trabalho.

Sem Terra fazem ato na embaixada da Venezuela para homenagear Hugo Chávez

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ESTADOS Enterro dos Sem Terra assassinados por Adriano Chafik, que será julgado em abril

Sem Terra se mobilizam para pressionar Júri Popular no Massacre de Felisburgo DIVERSAS atividades estão sendo realizadas em Minas Gerais para denunciar os 8 anos de impunidade do Massacre de Felisburgo, completados no dia 20 de novembro. As atividades visam, sobretudo, reivindicar a punição do latifundiário e mandante do crime, Adriano Chafik, e seus pistoleiros, já que Chafik vai a Júri Popular em abril. As mobilizações também exigem a desapropriação da área da fazenda Nova Alegria para fins de Reforma Agrária e indenização das famílias vítimas da chacina. Diante disso, cerca de 300 pessoas participaram da audiência pública na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte no dia 20/11 para denunciar a violência no campo e exigir justiça. Após a audiência, um grupo de pessoas do comitê realizou um escracho em frente ao fórum de Contagem, onde acontecia o

Histórico

Arquivo MST

DA COMUNICAÇÃO DO MST

A rádio mantém um público fiel que se sintoniza das 6h às 20h

julgamento do ex-goleiro Bruno, para cobrar da mídia a cobertura do massacre. No dia Dia internacional de luta pelos Direitos Humanos, em 10 de dezembro, outra mobilização foi realizada nova mobilização na capital mineira e diversos outros atos nos

Ministérios Públicos e Tribunais de Justiças em vários estados. No dia do Júri Popular do mandante do Massacre, o latifundiário Adriano Chafik, o Comitê Justiça para Felisburgo montará um acampamento em Belo Horizonte para acompanhar o processo.

Cerca de 230 famílias haviam ocupado a Fazenda Nova Alegria, com o acampamento Terra Prometida, em Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha, considerada devoluta pelo Instituto de Terras de Minas Gerais (Iter), em 1º de maio de 2004. Seis meses depois, o latifundiário Adriano Chafik comandou pessoalmente o ataque às famílias. Cinco trabalhadores rurais foram assassinados e 13 pessoas ficaram feridas, entre elas uma criança de 12 anos, que levou um tiro no olho.A escola local e vários barracos foram queimados. O fazendeiro foi preso e posto em liberdade por duas vezes, por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mesmo depois de confessar a participação na chacina em depoimento. Atualmente, ele aguarda o julgamento do Tribunal do Júri de Belo Horizonte, enquanto seus advogados protelam sua realização.

Assentamento Reunidas comemora 25 anos e homenageia Seu Luiz Beltrame POR RAMIRO OLIVIER E JADE PERCASSI SETOR DE COMUNICAÇÃO

Arquivo MST

O ASSENTAMENTO mais antigo do estado de São Paulo comemorou entre

os dias 2 e 5 de novembro seus 25 anos de existência. Na luta desde 1987, o Assentamento Reunidas, no município de Promissão, também celebrou os 104 anos do lutador Sem

Seu Luiz já participou de 10 marchas e escreveu dois livros

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Terra mais antigo do Brasil, o militante e poeta Seu Luiz Beltrame. Em meio a peças de teatro, apresentações musicais, comilanças, roda de viola, forró e futebol, os assentados e amigos do Reunidas comemoraram mais um dia de renascimento e resistência, rodeado de muita luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais pela conquista da terra e em busca da Reforma Agrária. E foi nesse meio de configuração do sujeito do campo que os assentados prestaram homenagem a seu Luiz Beltrame, personagem do próprio assentamento e símbolo de resistência e luta. Nascido em Paramirim (BA) em 1908, Seu Luiz trabalhou desde cedo na roça, no garimpo, na lavoura de algodão. Não frequentou a escola, tendo aprendido a ler e escrever com seu pai aos 14 anos.

Em 1991 veio para o Assentamento Reunidas, em Promissão. Pai de oito filhos, 47 netos e muitos bisnetos e tataranetos, em 1997 Seu Luiz se tornou mais conhecido entre a companheirada do Movimento por sua participação na Marcha pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça. Desde então, participou de dez marchas, escreveu dois livros, e sua história foi tema do documentário Luiz Poeta, vencedor do concurso latinoamericano Caixa de Curtas. Poeta e militante do MST, Seu Luiz chega aos 104 anos com lucidez e saúde para seguir lutando. Com a pele enrugada, cabelo calvo e andar vagaroso, mesmo com a idade avançada, segue sendo um exemplo para nossa militância e para a sociedade de que nada, nem ninguém, pode deter a marcha de um povo por sua libertação.

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ESTADOS Assentamento Terra Vista participa do concurso na Sala do Chocolate, na França

cas, feiras de troca, apresentações culturais e a comercialização de produtos trazidos pelos diferentes povos.

POR WESLEY LIMA SETOR DE COMUNICAÇÃO

ENTRE OS DIAS 26 de novembro a 1° de dezembro, o MST junto com outras organizações sociais realizaram a 1° Jornada de Agroecologia da Bahia, no Assentamento Terra a Vista, em Arataca. Com o tema “Agroecologia: uma proposta de soberania do território baiano”, o evento teve a finalidade de proporcionar um espaço para a reflexão sobre a agroecologia e o desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais do território baiano. Diante disso, a atividade contou com conferências de análise de conjuntura e formação política, oficinas práti-

Arquivo MST

Bahia realiza 1° Jornada de Agroecologia Assentamento Terra Vista O Assentamento Terra a Vista já é tido como referência nacional em produção agroecologica. Já se tornou um exemplo de que este método produtivo, além de gerar renda às famílias, garantir a sustentabilidade da área por não utilizar agrotóxicos no manejo do solo. Além disso, o assentamento está participando do Concurso no Salão do Chocolate em Paris, na França, onde o cacau será avaliado diante da sua altíssima qualidade.

Terra Vista já se tornou referência nacional na produção agroecológica

Assentados exportam 500 toneladas de feijão à Venezuela NO FINAL de outubro, os assentados do Itamarati (MS) exportaram 500 toneladas de sementes de feijão preto à Venezuela. Foram 12,5 mil sacas de 40 quilos que foram entregues ao governo, que foram distribuídas aos agricultores familiares venezuelanos para iniciarem o plantio do feijão. Ronaldo Pucci, presidente da Cooperativa Agroindustrial Ceres (Copaceres), explica que 180 associados da cooperativa

participaram do projeto. O percentual é referente ao valor líquido, isto é, do preço total do negócio, R$ 3,5 milhões. Já está sendo negociada a exportação de um novo carregamento de mais 500 toneladas de feijão. Segundo os técnicos do MST, que coordenou todos os passos da comercialização, a possibilidade de manter as exportações com a Venezuela é bem provável. De acordo com os técnicos, o MST está conversando essas

parcerias. “A Venezuela não é um país tradicionalmente agrícola, precisa de tudo sobre agricultura e o governo está empenhado em acelerar o programa de soberania alimentar”, afirmam. Para o associado da Copaceres, Jusceli Santos, “não foi pouco o trabalho para chegar a esse nível comercial. O MST ficou dois anos orientando os venezuelanos sobre a produção de feijão preto”, disse.

Entre os dias 13 à 17 de novembro foi realizada a 2° Jornada Cultural dos Assentamentos da Reforma Agrária de Santa Catarina, no Assentamento José Maria, em Abelardo Luz. O principal objetivo da jornada foi envolver, sobretudo, a juventude dos assentamentos, e se propôs a trabalhar com as diversas linguagens da Cultura Popular Brasileira. A simbologia da luta e da identidade camponesa foram um dos temas centrais trabalha-

Arquivo MST

Estudo e cultura simbolizam a 2° Jornada Cultural de Santa Catarina

O principal objetivo da jornada foi envolver, sobretudo, a juventude dos assentamentos

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dos ao longo das atividades. Diante disso, a jornada pôde contar com espaços destinados à estudos sobre questão agrária, oficinas culturais, com teatro, música, artes plásticas, poesia, áudio visual e capoeira, além das apresentações culturais, com grupos de teatros, lançamento do documentário Sem Perder a Ternura (de direção de Márcia Paraíso e Ralf Tambke), apresentação de flauta, cantos, violeiros e danças gaúchas e germânica.

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“Bandeira Vermelhinha, na luta pela terra nós somos Sem Terrinha”

Sem Terrinhas no Paraná marcham por melhores escolas no campo e pelo cumprimento da Reforma Agrária

O assentamento Normandia, em Pernambuco, foi palco de uma grande festa, com shows, gincanas e atividades de formação para as crianças.

Arquivo MST /PB

Arquivo MST /CE

“Bandeira, Bandeira, Bandeira Vermelhinha, na luta pela terra nós somos Sem Terrinha”. A Jornada Nacional dos Sem Terrinha acontece anualmente no mês de outubro nos 24 estados em que o MST está organizado. Os assentamentos e acampamentos tornam-se palco do encontro das crianças que lutam pelo direito de ser reconhecido no campo como sujeito de sua própria história. Realizada desde 1996, a atividade integra as jornadas nacionais de lutas do MST e tem se constituído em um importante espaço de visibilidade à realidade vivenciada pelas crianças acampadas e assentadas, pautando temas que as afetam diretamente. A jornada contou com marchas, atos de solidariedade, ocupações, encontros, oficinas e diversos momentos de descontração, tanto nas cidades como nos assentamentos. Entre as diversas ações, destaca-se a distribuição de uma tonelada de alimentos orgânicos produzidos por trabalhadores assentados da Reforma Agrária na Paraíba, o ato de

solidariedade dos Sem Terrinha do Maranhão com as crianças da Palestina, vítimas de violência e encarceramento por Israel, que resultou em diversas cartas de apoio aos companheiros do distante país, e a ocupação dos Núcleos Regionais de Educação (NRE) e a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná (SEED), realizada por mais de 3 mil crianças para exigir melhores condições nas escolas do estado. Em relação à educação, as crianças colocam em pauta temas como a precariedade da educação no campo, causada pela falta de estrutura nas escolas do meio rural, construção de escolas nos assentamentos, atendimento apropriado às crianças com deficiências especiais, melhores condições de trabalho aos professores e pelo fim do fechamento das escolas no campo (nos últimos 10 anos, foram fechadas mais de 37 mil escolas rurais em todo o Brasil). As crianças também denunciaram a situação de violência no campo, exigindo segurança nas áreas de conflitos, reivindicando os assentamentos das famílias acampadas pelo país e a desapropriação de terras para a Reforma Agrária. Confira a seguir as fotos da Jornada nos diferentes estados:

Arquivo MST /PE

JOSÉ COUTINHO JUNIOR SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

Arquivo MST /PR

ESPECIAL A Jornada contou com marchas, atos de solidariedade, ocupações, encontros, oficinas e diversos momentos de descontração

“Eu gostei das brincadeiras, das oficinas, de ter conhecido novos amigos, aprendi muitas coisas do MST. Eu gostei muito do passeio na beira da praia” – Sem Terrinha Rogério Moura, de 11 anos, sobre a jornada no Ceará.

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No Rio Grande do Sul, mais de 400 Sem Terrinha participaram do encontro, que contou com música, teatro, além de oficinas pedagógicas e esportivas. As crianças marcharam até o Palácio Piratini, onde foram recebidas pelo governador Tarsos Genro, e reivindicaram o assentamento de famílias acampadas e a criação de escolas nos assentamentos já existentes.

JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

Na Paraíba, os Sem Terrinha participaram de jogos, brincadeiras populares e assistirem ao filme "Kirikú e a feiticeira", finalizando o dia com a festa popular do Dia das Crianças.

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RUMO AO 6° CONGRESSO Os assentamentos também têm que servir de exemplo na disputa por hegemonia nos mais

Reinventar o MST para continuar sendo o MST do Movimento se superar para seguir como um protagonista importante nas lutas da sociedade brasileira. O grande desafio do MST é se reinventar! Se reinventar e se recriar para seguir seu caminho na luta pela terra, pela Reforma Agrária e por transformações estruturais da sociedade brasileira. Do contrário, corre o risco de ser mais um movimento que nasceu, cresceu e aos poucos foi enferrujando até ser superado por outras organizações mais eficazes para atender aos interesses dos sem-terra e camponeses.

POR EDGAR JORGE KOLLING SETOR DE EDUCAÇÃO DO MST

Percurso Em 2011, analisando a luta de classes no campo, os entraves postos à Reforma Agrária e as dificuldades que vêm Leonardo Melgarejo

PASSADOS QUASE 30 anos da fundação do MST, nosso Movimento experimenta uma de suas maiores encruzilhadas históricas: a Reforma Agrária está bloqueada! A Reforma Agrária praticamente saiu da agenda política e o agronegócio avança a passos largos, com bilionários recursos governamentais e com o apoio total da grande mídia. A opinião pública, em sua maioria intoxicada pela propaganda do agronegócio, está satisfeita ou conformada com esse modelo, e assiste a tudo sem entender ou se quer conhecer a disputa que existe entre os dois projetos para o campo brasileiro: o agronegócio e a agricultura camponesa. As famílias Sem Terra dispostas a lutar pela terra não são tantas quanto já foram um dia, especialmente no centrosul do Brasil. Nas regiões nordeste e norte, onde se concentra a maioria dessas famílias, a luta pela terra ainda tem bom

enfrentando, o MST decidiu desencadear um grande processo coletivo de debates em preparação ao seu 6° Congresso Nacional, que será realizado em 2014. O MST tem consciência da encruzilhada histórica em que está inserido e que, para sair dessa situação, será necessário construir uma outra correlação de forças, favorável à Reforma Agrária em contraposição ao agronegócio. Tudo indica que será um período longo de lutas, de construção da unidade camponesa e de estreitar alianças com amplos setores urbanos. Internamente o MST busca fazer uma análise rigorosa de sua natureza e compreender-se como um fenômeno histórico, em permanente movimento de criação e reinvenção. A linha política é potencializar essa

Tudo indica que será um período longo de lutas, de construção da unidade camponesa e de estreitar alianças com amplos setores urbanos fôlego, mesmo que tenha diminuído nos últimos anos. Neste contexto, complexo e adverso para o avanço da Reforma Agrária, o MST tem muitas tarefas e desafios pela frente. E são desafios fundamentais, que dizem respeito à própria existência e sentido de ser do MST. Assim como há 30 anos o MST surgiu da crise econômica, social e política, agora é a vez

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Marcha em Brasília durante o 5º Congresso Nacional do MST, em 2007

Relembrando Em 2007, no 5° Congresso Nacional, o MST definiu sua atuação pela Reforma Agrária Popular, entendida como: • amplo processo de desapropriação das maiores propriedades e distribuição para 4 milhões de famílias sem-terra; • instalação de agroindústrias cooperativas nas comunidades rurais, para agregar valor às matérias primas; • implementação da agroecologia como matriz tecnológica capaz de aumentar a produtividade da terra e do trabalho, e produzir alimentos saudáveis em equilibro com a natureza; • a defesa das sementes como patrimônio da humanidade; • democratização da educação, da educação infantil a universidade, passando pela superação do analfabetismo; • valorização das manifestações culturais do meio rural: hábitos alimentares, músicas, cantorias, poesias, festas e celebrações religiosas. empreitada de preparação ao 6° Congresso, que já vem se constituindo nos encontros, seminários, cursos, reuniões e trabalho de base, envolvendo milhares de Sem Terra. O caminho se faz caminhando. A marcha se organiza marchando. E o Movimento Sem Terra se faz em movimento. Por isso é importante “beber do próprio poço”, extrair lições e aprendizados com os erros e acertos da caminhada já feita. Dessa raiz, que já conta com seus 30 anos, temos que projetar outros 30. Debater com a base Sem Terra sobre o que zelar e o que mudar na nossa organização. No caminho, ir tomando medidas para mudanças necessárias na estrutura organizativa, nas formas de luta, no método de direção e em outras dimensões que os debates apontarem. Nesse processo, identificar nossos limites, avanços e desafios internos. E, também, os que dizem respeito ao conjunto da sociedade brasileira.

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de mil municípios em que estamos presentes

Concretizar nosso ideário Analisando nossas áreas percebemos uma grande distância entre a definição política pela Reforma Agrária Popular e sua implementação pelas famílias assentadas. Não são poucos os assentados que priorizam monocultivos, plantam sementes transgênicas, usam agrotóxicos, enfim, reproduzem o pacote perverso do agronegócio que o MST combate. E quantas são as famílias assentadas que produzem de forma agroecológica? E qual têm sido o empenho do MST, em termos de decisão política, recursos humanos e materiais, para concretizar nos assentamentos esta matriz tecnológica? Colocar os assentamentos no centro da ação do MST é construí-los como um exemplo de organização da produção e do trabalho, de coerência na escolha da matriz produtiva e tecnológica. Fazer dos assentamentos um lugar de se viver bem, em equilíbrio com a natureza e em comunidade. E que sirvam de exemplo na disputa por hegemonia nos mais de mil municípios em que estamos presentes neste país.

Estudo e cultura O estudo, como esforço individual e coletivo para entender a realidade e nela intervir é um princípio organizativo que acompanha o MST desde seu nascimento. Também entendemos a educação escolar como um direito e um dever de todos. Inclusive, em 2005, criamos o lema Todas e todos Sem Terra estudando!.

Lutas

Arquivo MST

Nossa visão de mundo e nossa concepção de conhecimento nos permitem compreender que os fenômenos sociais não acontecem de forma linear, mas são frutos das contradições existentes na sociedade. Por isso mesmo é que algo que está no auge hoje, no outro estará em descenso, e assim segue a história. Nessa perspectiva, precisamos fortalecer nossa organização, manter a unidade interna, cultivar a identidade de lutadores e lutadores do povo e de pertença ao MST. Para continuar pressionando pela construção de nosso projeto de futuro, temos muitas tarefas pela frente. Algumas delas são centrais na conjuntura atual e se desdobram como nossos desafios.

Os inimigos da Reforma Agrária foram se modificando ao longo dos anos. Dos latifundiários e órgãos de repressão do Estado, lutar pela terra no Brasil hoje é enfrentar diretamente o capital e a aliança que compõe o agronegócio (grandes proprietários de terra, transnacionais, capital financeiro e grande mídia), mais o aparato do Estado. As conquistas de terra têm diminuído drasticamente. No primeiro ano do governo Dilma (2011), apenas 22 mil

Temos que ter coerência na escolha da matriz produtiva e tecnológica

No entanto, temos muitos jovens e adultos analfabetos e outros tantos que não concluíram o ensino fundamental. Ainda há aqueles que passaram pela escola, mas não têm o hábito da leitura e do estudo. A falta de estudo e formação crítica nos deixa expostos ao que a grande mídia apresenta, os seus valores individualistas e consumistas, além da criminalização dos movimentos sociais. Por isso, é necessário fazer frente a essa mídia. Precisamos potencializar escolas, bibliotecas, pontos de cultura e demais espaços dos assentamentos e acampamentos. É preciso pensar e construir diferentes alternativas para elevar o nível cultural do conjunto do MST.

Princípios organizativos A crise ideológica que atinge a esquerda e as dificuldades em projetar o caminho rumo ao socialismo têm afetado também o MST. Isso diminuiu a vigilância sobre a prática de nossos princípios, que pode ser percebida no descuido em aplicar com qualidade o método da direção coletiva, a crítica e autocrítica, a disciplina e o trabalho de base. Ao longo dos anos criamos diferentes formas de organização de base, das instâncias e dos setores de atividades, mas hoje observamos que esses espaços pouco funcionam. Não podemos nos conformar com essa situação. Precisamos nos debruçar sobre o tema e tomar medidas para ajustar ou reinventar as formas organizativas coletivas. Nesse período de descenso da luta de massas é importante também res-

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gatar a mística e os valores humanistas e socialistas. Cultivar valores como o trabalho, o estudo, o espírito de sacrifício, a humildade, a rebeldia é fundamental para manter a disposição em seguir lutando.

Batalha das ideias Boa parte do povo brasileiro está satisfeita com o modelo predominante da agricultura no país. Porque pouco se sabe sobre os malefícios do agronegócio, que entope os alimentos de agrotóxicos, destrói a natureza e o meio ambiente e concentra terra, renda e riquezas. Ainda mais grave é que essa visão também predomina entre os assentados e em boa parte da militância do MST. Para confrontar o agronegócio não basta que as direções do Movimento saibam sobre os projetos em disputa no campo. É necessário que o conjunto do MST compreenda porque a Reforma Agrária está bloqueada, os mecanismos e contradições do agronegócio, e também conheça o projeto da agricultura camponesa e sua missão de produzir alimentos saudáveis. Para essa socialização e para fazer propaganda dos avanços da Reforma Agrária Popular, devemos potencializar a imprensa alternativa: Jornal Brasil de Fato, Jornal Sem Terra, rádios comunitárias, etc. Também as escolas, os institutos e as universidades dispostos a debater esses temas. Nossa tarefa principal é realizar lutas conjuntas para construir uma nova correlação de forças nesse embate de projetos.

Colocar os assentamentos no centro da ação do MST é construí-los como um exemplo de organização da produção e do trabalho, de coerência na escolha da matriz produtiva e tecnológica famílias foram assentadas. O mais baixo índice dos últimos 16 anos. Esse cenário fez diminuir o número de ocupações e de famílias Sem Terra dispostas a participarem de lutas. Outro motivo que fez encolher as ocupações é o Bolsa Família e as alternativas de emprego nas cidades e no campo, fruto da economia que ainda cresce. O que fazer diante desse cenário de abandono da Reforma Agrária pelo governo? Se conformar com a situação não costuma ser a postura do MST. Nossos desafios são identificar os atuais e antigos aliados na luta contra o agronegócio, além de ensaiar novas formas de luta pela terra. Exercitar os Sem Terra no enfrentamento ao capital para acumular experiências e manter a bandeira da Reforma Agrária hasteada.

Para debater: • Que ações o MST deve fazer ou participar para construir uma nova correlação de forças, favorável à Reforma Agrária? • O que fazer e como fazer para que toda a base do MST participe dos debates em preparação ao 6° Congresso?

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INTERNACIONAL Fortalecimento da comunicação continental dos movimentos é desafio

Cloc avança na organização e define priorizar formação RAUL AMORIM COLETIVO NACIONAL DE JUVENTUDE

dade de disputar o campo das ideias e repassar a nossa leitura da realidade.

A CLOC-Via Campesina tem constatado avanços na luta nos países que assumiram os compromissos com as organizações camponesas e com a soberania alimentar

Lutas A memória dos companheiros Egídio Brunetto e Ramiro Tellez esteve presente durante toda a Assembleia, com o compromisso de continuar articulando mobilizações permanentes e conjuntas em todos os níveis para enfrentar os interesses das empresas transnacionais e seus mecanismos de controle, ao mesmo tempo em que construímos uma nova matriz tecnológica baseada na agroecologia e controlada pelos trabalhadores e trabalhadoras. Neste processo, a CLOC-Via Campesina tem constatado avanços garantidos pela luta na Nicarágua, como também nos países que assumiram os compromissos com as organizações camponesas e com a soberania alimentar. Dessa maneira, afirmamos a importância do triunfo da Revolução Bolivariana e da reeleição do presidente Hugo Chávez, nos comprometendo a apoiar os governos que respondam as necessidades do povo. Reafirmamos nossa aliança com os

trabalhadores da cidade e populações urbanas, entendendo a importância de impulsionar com mais força a unidade de classe como condição imperativa para que as mudanças necessárias a toda sociedade sejam realizadas.

20 anos depois

Raul Amorim/MST

DA TERRA DE SANDINO, fortalecidos com o espírito de luta e resistência trazido pelo território nicaragüense, aconteceu a 1° Assembleia Continental da Coordenação Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC) Via Campesina, entre os dias 17 e 22 de outubro. Neste momento de celebração de nossa história, mas também de intensa repressão das lutas dos povos indígenas e camponeses na Honduras, Guatemala e Panamá, decidimos continuar impulsionando os processos de luta e organização para avançarmos rumo à construção de uma sociedade digna, solidária e revolucionária, convocando as organizações camponesas e populares da América Latina a redobrarem a sua solidariedade de classe. A atual ofensiva criminal do capital na conquista do controle total e absoluto dos povos, da terra, da água e da atmosfera, nos coloca num momento delicado, com a humanidade e o nosso planeta em perigo. O agronegócio continua apoderando-se de nossas

terras, expulsando massivamente os que nela trabalham e impondo seu modelo de concentração pelo grande capital na agricultura e na natureza, aliados aos bancos, grupos financeiros, empresas transnacionais, burguesias locais, meios de comunicação e aparatos repressivos públicos e privados. Ante toda esta situação, na Assembleia decidimos continuar o avanço nas estratégias políticas e de luta para enfrentar os desafios presentes, ao consolidar nossa estrutura organizativa, reafirmar nossas articulações nacionais e estrutura regional, aprovar a nova carta orgânica e dar os passos necessários para continuar o processo de fortalecimento da democracia participativa nas organizações. Uma das tarefas prioritárias definida na atividade foi o fortalecimento das escolas e espaços para a formação sócio-política dos nossos dirigentes e militantes, por meio do desenvolvimento de processos permanentes de formação de base com plena inclusão das mulheres e jovens. Além do aprimoramento dos nossos próprios meios de comunicação e a articulação com outros veículos parceiros, com a finali-

Representantes de diversos movimentos sociais participam da 1ª Assembleia Continental da Cloc sob a figura de Sandino

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No encontro houve orientações de novas iniciativas e de como avançarmos nas campanhas continentais e internacionais construídas ao longo desses 20 anos, como a Campanha das Sementes, Patrimônio de Nosso Povo Indígena e Camponês a serviço da Humanidade, Basta de Violência contra as Mulheres, Campanha contra os agrotóxicos e pela Vida e Campanha Global pela Reforma Agrária. A 1°Assembleia Continental da CLOC também foi um momento para a transição da Secretaria Operativa da organização, ao sair do Equador, sob a tarefa da Federación Nacional de Organizaciones Campesinas e Indígenas (Fenocin) durante esses últimos quatro anos, e passar a responsabilidade ao Movimento Nacional Campesino Indígena, na Argentina. Com grande animação apontamos o desafio de construir a 6° Conferência da Via Campesina para 2013, em Yakarta, na Indonésia, e celebrar seus 20 anos de articulação internacional. O encerramento culminou num grande ato de solidariedade e compromisso internacional em apoio à resistência e luta dos povos, em especial ao povo de Honduras, Panamá, Guatemala e Paraguai.

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LUTADORES DO POVO Professor, teórico e militante deixa legado para entender o Brasil e a batalha das ideias

POR MAVI PACHECO RODRIGUES UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

Arquivo MST

Carlos Nelson Coutinho: marxista indispensável debate teórico filosófico do século 20: o húngaro György Lukács e o italiano Antonio Gramsci. Ao buscar ser discípulo destes dois pensadores e, especialmente, ao usar de forma criativa as suas categorias, Coutinho nos ensinou a riqueza do marxismo como uma teoria viva, que deve renovar-se para dar conta da realidade. Indicando a importância do estu-

VÍTIMA DE UM câncer pulmonar contra o qual lutou bravamente, Carlos Nelson Coutinho, natural de Itabuna (BA), faleceu em 20 de setembro de 2012, poucos meses após completar 69 anos de idade, demonstrando uma capacidade de trabalho espantosa e o quão enganosas são as afirmações sobre a preguiça baiana. Escreveu mais de uma dezena de livros - a maior parte traduzida no exterior - quando ainda era muito jovem, entre o fim dos anos de 1950 e início de 1960. Realizou também um largo trabalho de tradução, que tornou acessível em língua portuguesa o pensamento de autores renomados como Claude Lévi-Strauss, Jürgen Habermas, Henri Lefebvre e Herbert Marcuse, e parte significativa da importantíssima História do Marxismo, organizada por Eric Hobsbawm.

Sua obra coloca no centro da agenda da esquerda brasileira a problematização da relação entre democracia e socialismo Carlito – como era chamado pelos mais próximos – pôde ainda em vida receber da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o título de Professor Emérito. Todavia, tal honraria, a maior que a universidade pode conceder a um docente, não traduz o exato significado da sua produção.

Um militante na universidade Muito embora tenha cumprido fielmente com suas responsabilidades acadêmicas nos 25 anos de exercício docente na Escola de Serviço Social da

Coutinho nos ensinou a riqueza do marxismo como uma teoria viva, que deve renovar-se para dar conta da realidade

Carlos Nelson recebeu um quadro de presente em visita à ENFF em Guararema

UFRJ, e conquistado o respeito e carinho de alunos e colegas de trabalho, Carlos Nelson – como bem alertou seu camarada de longa data e muitas batalhas, José Paulo Netto - nem de longe pode ser identificado com um típico produto e representante da academia. Ingressou tardiamente na universidade, quando já havia se tornado um intelectual, e não a utilizou como desculpa para manter-se longe das lutas de classes ou encobrir suas posições teóricopolíticas. Servindo à universidade, e não se servindo dela, como marxista convicto e confesso, manteve-se coerente com os compromissos societários que remontam a sua juventude: a opção pelo comunismo, feita à época da sua militância no movimento estudantil, e sua adesão ao marxismo, realizada por meio da leitura direta e rigorosa do próprio Marx. Podendo ser considerado um dos maiores intelectuais do país da segunda metade do século 20 e primeira do 21,

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Carlos Nelson ainda foi pioneiro na introdução, na cultura brasileira, dos pensamentos de dois autores marxistas europeus que se tornaram centrais no

Principais obras • Literatura e Humanismo. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1967. • Cultura e Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo, Expressão Popular, 2011. • O Estruturalismo e a Miséria da Razão. São Paulo, Expressão Popular, 2010. • Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo, Cortez, 2000. • Intervenções: o marxismo na batalha das ideias. São Paulo, Cortez, 2006.

do dos clássicos da tradição marxista, mas também da investigação da realidade brasileira, das peculiaridades da nossa formação histórica e social, Carlos Nelson deu uma efetiva contribuição à renovação do marxismo. E foi o exercício desse marxismo renovado, vivo e em movimento, que lhe permitiu compreender a particularidade da revolução burguesa em países retardatários como o Brasil. Ele pesquisou como a revolução burguesa, de um modo profundamente distinto dos modelos revolucionários clássicos, realizou-se por meio de acordos feitos pelo alto entre os diferentes setores da classe dominante, em especial a grande propriedade fundiária e a burguesia industrial. Entretanto, nos deixou um precioso legado ao colocar no centro da agenda da esquerda brasileira a problematização da relação entre democracia e socialismo, construída sob o ponto de vista dos subalternos. Seus anseios e valores se constitui como indispensável a todos aqueles que pretendem entender o Brasil contemporâneo e os desafios atuais da luta revolucionária em nosso país. É como marxista imprescindível, como um clássico da tradição marxista brasileira, que Carlos Nelson Coutinho permanecerá presente entre nós.

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LITERATURA Escritor é considerado um dos mais inovadores e originais de seu tempo

JADE PERCASSI SETOR DE COMUNICAÇÃO DO MST

JULIO CORTÁZAR nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 26 de agosto de 1914, filho de pais argentinos. Cortázar era uma criança bastante enferma e passava muito tempo na cama, lendo livros que sua mãe selecionava. Passou a infância na Argentina, formou-se professor em 1935 e começou seus estudos na Universidade de Buenos Aires, mas teve que sair por dificuldades financeiras. Trabalhou em diversas cidades do interior e, em 1938, publicou sob o pseudônimo de Julio Denis um livrinho de sonetos: Presença. Em 1951, por não concordar com a ditadura na Argentina, afastou-se do país e passou a trabalhar como tradutor da Unesco, em Paris. Ainda em 1951, publicou Bestiário – onde começaria a apresentar seus deslumbrantes mundos de

Arquivo MST

Julio Cortázar, o mestre do conto curto e da prosa poética

Em 1974, foi membro do Tribunal reunido em Roma para examinar a situação

política na América Latina, em particular as violações dos Direitos Humanos. É considerado um dos autores mais inovadores e originais de seu tempo, mestre do conto curto e da prosa poética, comparável a Jorge Luis Borges, de quem recebeu influência. Inaugurou uma nova forma de fazer literatura naAmérica Latina. Em 1983, com a volta da democracia na Argentina, Cortázar fez a última viagem à sua pátria, onde foi recebido calorosamente por seus admiradores. O refinamento literário de Julio Cortázar, sua leitura quase sem limites, o seu fervor incansável pela causa social, fazem dele uma figura fantástica, constituída por paixões e fervor genuínos. Julio Cortázar morreu de leucemia em 1984, mas sua passagem pelo mundo continua a inspirar a ousadia da criatividade de quem conhece sua vida e sua obra. De seus muitos livros, 16 foram editados no Brasil, sendo o mais conhecido O Jogo da Amarelinha.

tristemente o homem. — Como o senhor estará com uma corda no pescoço, de camisa e tremendo de terror e frio, os dentes se entrechocarão e não conseguirá articular uma palavra. O carrasco e os assistentes, entre os quais estará algum destes senhores, esperarão por decoro alguns minutos, mas quando brotar de sua boca somente um gemido entrecortado de soluços e súplicas de perdão (porque isso sim o senhor articulará sem esforço) ficarão impacientes e o enforcarão. Muito indignados, os presentes e em especial os generais cercaram o tiranete para pedir-lhe que mandasse fuzilar imediatamente o homem. Mas o tiranete, que estava pálido-como-a-morte, expulsou-os aos empurrões e trancou-se com o homem para comprarlhe suas últimas palavras. Enquanto isso, os generais e ministros, humilhadíssimos pelo tratamento recebido, prepararam uma insurreição e na manhã seguinte prenderam o tiranete quando ele comia uvas em seu caramanchão preferido. Para que ele não pudesse proferir suas últimas palavras, mataram-no ali

mesmo, com um tiro. Depois, puseram-se a procurar o homem que desaparecera do palácio do governo, e não tardaram em encontrá-lo, pois perambulava no mercado, vendendo pregões aos saltimbancos. Metendo-o num carro da polícia, conduziram-no à fortaleza e torturaram-no para que revelasse quais poderiam ter sido as últimas palavras do tiranete. Como não conseguiram arrancarlhe a confissão, mataram-no a pontapés. Os vendedores ambulantes que haviam comprado gritos continuaram apregoando-os pelas esquinas, e um desses gritos serviu depois como contrassenha da contrarrevolução que acabou com os generais e os ministros. Alguns deles, antes de morrer, pensaram confusamente que na realidade tudo aquilo tinha sido uma infame corrente de equívocos, e que as palavras e os gritos eram coisas que, a rigor, se pode vender, mas não comprar, embora pareça absurdo. E todos foram apodrecendo, o tiranete, o homem e os generais e ministros, mas os gritos ressoavam de vez em quando pelas esquinas.

A principal característica da obra de Cortázar é o conto curto e a prosa poética

fantasia e críticas muito peculiares. Esteve em Cuba, no Chile, Costa Rica, Nicarágua.

Fábula sem moral Um homem vendia gritos e palavras e ia bem, embora encontrasse muita gente que discutia os preços e pedia abatimento. O homem concordava quase sempre, e assim pôde vender muitos gritos de vendedores ambulantes, alguns suspiros que lhe foram comprados por senhoras pensionistas e palavras para lemas,slogans, lembretes e falsas ocorrências. Afinal o homem percebeu que sua hora havia chegado e pediu audiência ao tiranete do país, que era parecido com todos os seus colegas e o recebeu cercado de generais e xícaras de café. —Venho vender-lhe suas últimas palavras — disse o homem. — São muito importantes porque nunca lhe vão ocorrer no momento e em compensação lhe convém dizê-las no duro transe para configurar facilmente um destino histórico retrospectivo. —Traduza o que ele está dizendo — ordenou o tiranete a seu intérprete. —Ele fala argentino, Excelência. —Argentino? E por que é que eu não entendo nada?

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—O senhor entendeu muito bem — disse o homem. — Repito que venho para venderlhe suas últimas palavras. O tiranete pôs-se de pé como é de praxe nestas circunstâncias e reprimindo um tremor mandou que prendessem o homem e o metessem nos calabouços especiais que existem sempre nesses ambientes de governo. —É uma pena — disse o homem enquanto o levavam. —Na realidade o senhor desejará pronunciar suas últimas palavras quando chegar o momento, e precisará dizê-las para configurar facilmente um destino histórico retrospectivo. O que eu ia vender-lhe é o que o senhor quererá dizer, de modo que não há fraude. Mas como o senhor não aceita o negócio, como não vai aprender essas palavras por antecipação, quando chegar o momento em que elas quiserem brotar pela primeira vez, naturalmente o senhor não poderá dizê-las. Por que não poderei dizê-las, se são as que eu quererei dizer? — perguntou o tiranete, já diante de outra xícara de café. Porque o medo não lhe permitirá — disse

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Para não esquecer Janeiro 01 Revolução Cubana, 1959 01 Levante popular em Chiapas, México, 1994 01 Independência da República Negra do Haiti, 1804 03 Nascimento de Luiz Carlos Prestes, 1898 13 Morre o historiador marxista Nélson Werneck Sodré, 1999 15 Nascimento de Martin Luther King, 1929 15 Assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, 1919 21 Morre Vladimir Lênin, 1924 22 Nascimento de Antonio Gramsci, 1891 e Leonel Brizola, 1922 22 Insurreição camponesa de inspiração comunista em El Salvador, 1932 23 Nascimento de Sergei Eisenstein, 1898 25 Criado o Jornal Brasil de Fato, 2003

“Creio que conseguimos atingir o principal objetivo, de chegar às casas das famílias assentadas, de pequenos produtores da região e até mesmo à periferia da cidade.” IRIEL FAGUNDES, daRádioCamponesa

Serguei Mikhailovitch Eisenstein nasceu em 23 de janeiro de 1898, em Riga, e é considerado o mais importante cineasta soviético. Participou da Revolução de 1917, ao lado de Lênin, Trotski e Stalin, tendo atuado no campo das expressões artísticas, em especial no cinema. No cinema, criou uma nova técnica de montagem de filmes, chamada de “montagem intelectual” ou “montagem dialética”. Conseguiu reunir arte cinematográfica e política. Fez “O Encouraçado Potemkin”, um dos mais importantes do mundo até hoje. Faleceu em 11 de fevereiro de 1948, em Moscou.

No dia 25 de novembro, realizouse a 6° Cavalgada da Reforma Agrária no município de Itapeva, no interior de São Paulo, para comemorar os 14 anos da Rádio Camponesa. Durante a atividade foram realizadas apresentações musicais, transmitidas ao vivo pela Camponesa, com a participação de militantes dos setores de cultura e comunicação do estado e da região. A atividade contou com pessoas vindas de todos os assentamentos e dos bairros aos redores, culminando com uma grande confraternização, com

Arquivo MST

Rádio Camponesa celebra 14 anos com cavalgada em Itapeva

A rádio mantém um público fiel que sintoniza das 6h às 20h

almoço coletivo de arroz carreteiro, resgatando a cultura alimentar dos tropeiros, presentes na história da região.

Eric Hobsbawm e a necessidade da luta

Um dos maiores historiadores do século 20 e respeitado marxista, Eric Hobsbawm faleceu no dia 1° de outubro em Londres, aos 95 anos. O estudioso deixou um amplo legado de pesquisas e análises sobre a história do mundo moderno a partir do viés marxista. Hobsbawm é autor de algumas das mais importantes obras acerca da história recente da humanidade, como “A Era das Revoluções” (sobre o período de 1789 a 1848), “A Era do Capital” (1848-1875) , “A Era dos Impérios” (1875-1914) e “A Era dos Extremos – O Breve

Século 20”, lançado em 1994. Em entrevista à Revista Sem Terra em 2009, Hobsbawm comentou que de certezas, apenas a de que, se a humanidade não mudar os rumos da sua convivência mútua e com o planeta, o futuro nos preserva maus agouros. Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não acreditava que uma nova ordem mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas achava que ainda existem forças capazes de propor novas formas de organização e cultura políticas e sociais, como o MST.

O jornal Brasil de Fato foi lançado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 25 de janeiro de 2003. Movimentos sociais como o MST, a Via Campesina, a Consulta Popular e diversas pastorais sociais criaram o jornal Brasil de Fato, de circulação nacional. O objetivo é contribuir no debate e na análise dos fatos do ponto de vista da necessidade de mudanças sociais em nosso país a partir do olhar da classe trabalhadora. 28 Nascimento de José Martí, 1853 29 1° Congresso do MST, 1985 JORNAL SEM TERRA • SET/OUT/NOV 2012

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1907-2012

"...os que lutam toda a vida são imprescindíveis" Bertold Brecht

Alameda Barão de Limeira, 1232 Campos Elíseos CEP 01202-002 - São Paulo/SP

ASSINATURA ANUAL: R$ 30,00

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