COMPORTAMENTO
FORA DE 68 CAPRICHO
FOCO
COMPORTAMENTO
FORA DE 68 CAPRICHO
FOCO
Entramos de cabeça dentro do espelho e da vida da L.F., 16 anos, para entender o que pensa, o que sente e o que enxerga uma garota com anorexia Texto Mariana Araújo Design Miro Branco
Q
uando a minha mãe chega e faz o jantar, a Ana faz meu prato, me diz o quanto posso e se posso comer.” Talvez você conheça a Ana, a melhor amiga da L. Ou, pelo menos, já tenha ouvido falar dela. Em alemão, é conhecida por Pubertaetsmagersucht, “a busca da magreza por adolescentes”, um desejo tão frequente e familiar para qualquer garota. Não é? Prazer, ela é a anorexia nervosa, uma doença letal em até 20% dos casos. Não, o que mata não engorda. Como repórter de comportamento, vejo o tempo todo relatos preocupantes de garotas que lutam contra o próprio peso, negam o próprio corpo e têm dificuldade de se amar e serem amadas. O bullying acompanha a maior parte delas. E, influenciadas pelo padrão estético da moda, as redes sociais, com suas fotos, seus blogs e seus programas capazes de alterar completamente a imagem, colocam uma lupa gigante sobre problemas que,
às vezes, não existem. E, do distúrbio de imagem, nascem distúrbios alimentares, como a anorexia e a bulimia. Mas não é qualquer garota que se torna anoréxica só por causa do que vê e ouve por aí. Geralmente, a doença surge em meninas que já têm predisposição genética para o problema. Aí, sim, o gatilho vem com bullying, uma rotina familiar turbulenta, um comentário maldoso de um colega. Os padrões estéticos também reforçam a neura. Um exemplo? A L., lá do começo, acha a Lorde gorda! Não importa o quanto emagreça, a garota continua enxergando gordura onde não tem. O índice de massa corpórea cai bruscamente, para menos que 17 (o IMC, que equivale ao pe so dividido pela altura ao quadrado, em garotas normais, varia de 19 a 24). Perigoso. O corpo todo fica carente de nutrientes básicos, e a saúde é colocada em alto risco. Difícil entender a cabeça de alguém que tem ossos aparentes e quer emagrecer ainda mais. Era esse um dos objetivos desta reportagem.
Foi assim que cheguei até a L.. Ela se olha no espelho todos os dias. Várias vezes por dia. E, apesar dos 45,5 kg cravados que pesa (em 1,57 m), enxerga um reflexo imenso e ameaçador. “Não gosto de nenhuma parte do meu corpo, e odeio ainda mais as coxas e a barriga.” Uma anoréxica não come. A bulímica quase nunca é supermagra, mas compensa surtos de comilança forçando o vômito, tomando laxantes, malhando sem parar... A diferença é que ela tem consciência do erro, mas insiste nele por perceber que funciona. Os dois transtornos podem andar juntos. A anoréxica faz de tudo para livrarse do pouco que come. Você deve estar pensando: o que isso tem a ver comigo? Com sorte, nada. Mas, se prestar atenção na história da L., talvez a reconheça em alguém próximo. Importante saber que, sem intervenção (tipo contar tudo pros pais dela), a garota com distúrbio alimentar dificilmente encontra o caminho de volta. Perder a amiga por um tempo dói menos que perdê-la para sempre.
Como tudo começou A L. é uma garota como eu, como você. Determinada, até. Ela lê muito, escreve, estuda. Tem desejos, sonhos. O maior era o de brilhar nos editoriais de moda. “Começou quatro anos atrás. Minha mãe falava que eu poderia ser modelo, mas algumas amigas diziam que eu estava gorda e não conseguiria. Então, fui parando de comer. A gente sempre acha que tem algo acima do limite, mas quando outra pessoa fala, parece que aqueles quilinhos a mais resolvem ficar mais visíveis. Aí começamos a acreditar e a ver isso também.” Não é que as amigas da L. sejam as responsáveis por tudo o que você vai ler a seguir. Mas, para quem já é ou está fragilizada, a menor faísca provoca um incêndio. A perda de referencial do que é gordo ou magro fez a L. trocar os livros pelos blogs de outras garotas “experts”
na Ana. “Comecei a ler os pró-Ana e Mia (bulimia). Procurava dicas ou conselhos sobre os regimes, mas, agora que já sei tudo, parei um pouco. É sempre a mesma coisa. De vez em quando, procuro um novo pra ver se tem alguma novidade.” Os blogs não são só um tutorial do emagrecimento rápido e certeiro. A esse ponto, a L. já tinha uma autoestima zeradíssima, detestava e não aceitava o próprio corpo. E aí as meninas de outros blogs se tornavam também uma rede de apoio e empoderamento, já que ela não encontrava mais isso na galera ou na família. “Eu falava só com uma amiga, especificamente. Mas ela queria me obrigar a comer e dizia: ‘Se você não comer, não como’. Eu acabava comendo, mas depois compensava vomitando ou tomando lax (laxante)... Aí, para evitar mais brigas desnecessárias, parei de falar.”
“Os elogios só aumentaram depois que eu comecei a emagrecer. Mas minha menstruação atrasa meses e meus cabelos e minhas unhas andam caindo.” CAPRICHO 69
Como dizia, entre as meninas que criam esse relacionamento com a Ana, rola uma união. Elas dão força uma às outras para continuar se controlando. Para experimentar o êxtase da sensação de poder sobre o próprio corpo. “No começo, após dias de NF (no food), eu tinha alguns surtos de comer sem parar. Não pensava, só queria comer até explodir. Eu sentia muita fome. Mas depois aprendi a me controlar. Fico sem comer o máximo que conseguir. Ou até alguém me obrigar.” “Quando minha mãe começou a desconfiar e me obrigar a comer, tive que achar uma forma de comer e não engordar. Então comecei a vomitar três ou quatro vezes por dia, dois meses depois do início dos meus regimes. Me sentia um lixo. Eu tinha nojo de vomitar e depois vi isso como minha única saída. Nessa época, também vieram os laxantes. Ninguém nunca achou nada nas minhas coisas. Peço a grana pra minha mãe como se eu fosse comprar outra coisa, algo pra escola e vou sozinha na farmácia. É isso ou fico gorda.
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Um dia na vida da L. “Hoje já me controlo melhor. Acordo de manhã e me peso. Tenho uma balança do lado da minha cama. Minha mãe reclamou um pouco quando eu a coloquei lá, disse que não tinha razão pra ter uma balança ao lado da cama. Sei que ela nota minha perda de peso, mas só faz piadinhas, diz que prefere ser gorda do que parecer um palito. Não ligo. Me olho no espelho, saio do quarto e me concentro na tevê pra não pensar em comer no café da manhã. Não me sinto mal porque eu ocupo a mente. Depois, vou para a escola. Na hora do almoço, eu tomo água pra enganar o estômago e me peso de novo. Passo a tarde vendo tevê ou lendo pra não comer e, toda vez que sinto fome ou vontade de comer, a Ana me lembra que não posso porque não tô no peso certo. Sinto vontade de comer, quero comer, mas tenho nojo, olho pra comida e imagino aquilo dentro de mim, me imagino gorda... Sinto nojo quando vejo outras pessoas comendo. Comida
engorda e gordura é nojento. Quando como, sempre como antes de todo mundo, pra evitar que me olhem ou algo do tipo, e como pouco, quase nada. Geralmente, passo o dia sozinha em casa porque minha mãe trabalha. Meu único problema é a hora de jantar. Tenho que comer, mas espero ela terminar e se concentrar em outras coisas para ir tomar banho. Ligo o chuveiro pra abafar o barulho, pego minha escova de dentes e forço o vômito. Às vezes, uso dois dedos. Chega a sangrar minha garganta, doi, fico rouca. Mas vale a pena. Ou então, tomo uns comprimidos de lax. Depois de vomitar, sempre espero uns 15 minutos e escovo os dentes, já que não posso escovar assim que vomito, logo de cara. É que tem um ácido no estômago que corroi o esmalte dos dentes e piora se eu escovar logo de cara. Se eu vacilo e me escutam, falo que é uma crise de gastrite. Aí me peso e vejo se vou poder comer no outro dia.”
Fotos Getty Images (abre) e Corbis
“É que tenho 1,57 m e preciso pesar 40 kg ou menos. É o meu padrão perfeito. Eu estabeleci. Sei que vou ser dependente do regime para sempre.”
uma mordida “Até atingi o peso esperado, mas não posso mais ser modelo. É que tenho cicatrizes por causa de outros problemas de uns dois anos depois, quando criei um Tumblr e comecei a seguir uma menina que postava coisas sobre cutting (se cortar). Ela dizia que ‘aliviava’ a dor. Eu estava me sentindo incompetente, feia, gorda. Aí decidi ver se ajudava. Quando me corto, por um momento, parece que só existe eu no mundo e está tudo resolvido. Mas depois volta tudo com mais força.” Criar rituais para a refeição é uma forma para lidar com a culpa. Tanto é que o dia da L. gira em torno da Ana. De como escondê-la dos outros. De como ceder a ela. “Se não atinjo uma meta em relação ao meu peso, se como quando não deveria
comer, preciso de uma forma de me punir que não seja forçar o vômito. Preciso de algo que cause dor, como cortes ou um elástico no pulso. Toda vez que sentia que ia passar dos limites, puxava-o e soltava até ficar roxo e ferir. Aprendi a suportar a dor. E sinto muito prazer quando deixo de comer, me sinto mais forte.” Não foi só a rotina da L. que se reorganizou totalmente em torno da Ana, mas o organismo também. É muito comum em quem vomita muito que o estômago não consiga mais segurar o pouco que tem. “Minha mãe desconfiou uma vez quando cheguei a passar mal. Eu estava tão viciada em comer e vomitar que, até quando não ‘queria’, acabava vomitando. Meu organismo rejeitava a comida. Mas eu
disse pra ela que era uma crise de gastrite e ela não tocou mais no assunto.” O silêncio da mãe e elogios de outros reforçam a determinação em enfrentar qualquer dor para continuar emagrecendo. Afinal, se a gente perde uns quilinhos, as amigas não morrem para saber qual é o milagre? Pois é. No caso da L., ela corre o risco de morrer mesmo só para ouvir isso. “Sinto muita tontura. Agora, desmaiar só aconteceu uma vez. Estava vomitando e não tinha comido quase nada. Mas vale a pena. Desde que os regimes começaram, já ouvi que estou com o corpo perfeito, que estou linda assim e não preciso emagrecer mais. Mas não é vontade, é necessidade. Só não considero um problema o que me deixa bem comigo mesma.”
Já tentei parar!
“Durante um ano, tentei ser ‘normal’ de novo. Eu queria ser como as outras meninas, sabe? Poder sair sem calcular as calorias que eu posso comer. Ser normal como as outras sem me importar com meu peso ou com o tamanho das minhas roupas. Mas parei de comer de novo porque voltei a engordar. Toda vez que ia me pesar e via 52 ou 54 kg, eu surtava.” O maior peso nesse caso é o da exclusão. A L. perdeu toda a vida social para a Ana. E até tentou voltar atrás. Mas, para o cérebro dela, se recusar a comer é
um vício. É como se ela fumasse, ela não tem controle sobre essa vontade. “Se eu não tiver fazendo NF, que é passar o dia sem comer, toda vez que me alimentar, vou forçar o vômito. Acho que a lembrança mais forte que tenho foi quando voltei a engordar e todos falavam “nossa, você tá mais cheinha”, “deu uma engordada boa, hein” e eu entrei em desespero. Comecei a me ver como uma bola. E isso foi pesado pra mim porque eu queria comer normalmente, mas não queria engordar. Então, perdi 12 kg.”
Um estilo de vida?
Apesar de tudo, a vida da L. é mais comum do que você imagina. Ela vai para a escola e, aonde vai, leva a Ana com ela. Quando a encontrei, ela fazia parte de um grupo no Face que ajudava outras garotas a recuperar a autoestima. “Algumas meninas querem parar e postam que precisam de ajuda, então me ofereço pra ouvi-las e dar força. Tento convencê-las de que são lindas do jeito que são. Independentemente do peso delas ou qualquer outra coisa. Escolher esse tipo de vida pode trazer consequências que elas não estão prontas pra enfrentar. Eu não aconselho ninguém a continuar com a Ana. Eu, por exemplo, já acostumei, virei dependente e sei lidar com as minhas escolhas. Mas tento fazê-las parar porque,
de certa forma, isso destrói a vida da gente e pode se tornar uma loucura se você não conseguir controlar.” Não que a L. ache que tem transtorno alimentar. “Não tenho. É um estilo de vida pra mim. Acho que tudo depende do ponto de vista. Pra mim, não é um problema. Para meus amigos, sim. Eles acham que isso vai me matar. Mas acredito que nunca tive problema de saúde por isso. Tenho gastrite, mas não acho que seja resultado da Ana.” Cheia da certeza de que está saudável e certa, ela esconde os sinais da própria doença. Por isso, se afasta cada vez mais do mundo e cria um só para ela. “Se alguém descobre, fala que você é louca e doente. Você perde amigos, perde sua vida social.” Se fosse só isso que ela pode perder...
“Não acredito que eu seja bonita para outra pessoa. Eu realmente não me acho bonita e soa como mentira quando dizem que sou. Eu sei a verdade. Se eu fosse mais magra, ainda não seria bonita, mas seria magra. Já bastaria pra mim.”
Quem deu as informações Claudia Cozer, coordenadora do Núcleo de Obesidade e Transtornos Alimentares do Hospital Sírio Libanês, e Fábio Salzano, vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do IPq-USP. CAPRICHO 71