ARTE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL
(CAPA)
E-Papers
Organização Alexandre Palma
ARTE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL
Organização Alexandre Palma
Rio de Janeiro, 2021 E-Papers
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1.ª impressão: 2021
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Palma, Alexandre (org.) Arte e desenvolvimento social: Alexandre Palma (org.). Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2021
... p. CDD
Sumário
II
Apresentação Alexandre Palma
... Prefácio ...
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Capítulo I: Arte e desenvolvimento social
... O ensino da arte nas escolas públicas: heranças, releituras e bricolagens Victor Hugo de Oliveira Pinto
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Reflexões sobre escola e relações étnico-raciais no Brasil: a experiência do Projeto Sociocultural “Sou África” Cecília Bevilaqua
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Dilemas e contradições no Programa Escolas do Amanhã na Rocinha Maria Auxiliadora Pessôa
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Capítulo 2: Arte e democratização da cultura A Escolinha de Arte do Brasil e a invenção da expressão criadora na criança Juliene Neves
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O Programa de Extensão Núcleo de Arte como uma possibilidade de educação integral Priscilla Alves
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A animação cultural em São Gonçalo /RJ na década de 1990: saberes e práticas essenciais para uma escola de qualidade Heloísa Siqueira
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Parte 3 – Arte, ideologia e formação humana Tempo de criação Raphael Teixeira da Silva
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Percepções sobre os primeiros anos do Projeto Autonomia e o neoliberalismo no Estado do Rio de Janeiro Fabio Souza Lima
(Epígrafe)
Agradecimentos
Apresentação Alexandre Palma - Resgate de pesquisas e reflexões com foco em arte e desenvolvimento social como fonte de subsídios para as pautas de 2022 onde a perspectiva de mudança progressista é uma tendência. - Diálogo entre os autores e a perspectiva acadêmica do organizador em diferentes momentos de sua trajetória de quinze anos como professor e pesquisador de Arte/Educação na UFRJ. - Apresentação dos capítulos e pesquisas dos autores.
Prefácio Sidnei Lianza ou Adair Rocha
Capítulo I
Arte e desenvolvimento social
O ensino da arte nas escolas públicas: heranças, releituras e bricolagens1 Victor Hugo de Oliveira Pinto
Introdução Diante do contexto em que vivemos, tomados tanto por crises sanitárias causadas pela COVID-19, como por crises institucionais causadas pela grande crise política em que o país se encontra, são constantes as tentativas de intimidação e ameaças de golpe de Estado suscitadas pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, eleito em 2018. O espírito antidemocrático, corporificado no antipetismo e propagado pela Operação Lava Jato, fez ascender na política o reacionarismo, aliado tanto do lavajatismo como do fundamentalismo neopentecostal, e é expresso fundamentalmente pelo Governo que hoje impõe e vocifera toda espécie de calúnias e difamações contra as instituições, em especial contra o STF2, na tentativa de desmoralizá-las e justificar o que pregou durante toda a sua vida parlamentar: o Golpe de Estado. O presidente é uma pessoa simpatizante do regime civil-militar, que mantém em seu Gabinete de Segurança Institucional (GSI) o General Augusto Heleno, antigo membro do gabinete do General Sylvio Frota, um dos colaboradores da tentativa fracassada de golpe contra o então presidente Ernesto Geisel, que demitiu o General Sylvio Frota em 12 de outubro de 1977. Fracassado o golpe, João Baptista Figueiredo consolidou-se na sucessão. Hoje, os herdeiros de Sylvio Frota encontram-se em postos estratégicos do Governo Federal. Justificase essa pesquisa no sentido da atualidade da reflexão crítica sobre como contradições passadas refletem-se no presente. Neste caso, reflete-se sobre como o autoritarismo permaneceu presente 1
A bricolagem é um conceito que é enunciado no livro de Michel de Certeau (1999) intitulado A invenção do cotidiano, em que o autor afirma as releituras e ressignificações e os novos usos que são dados a partir do que se constitui como bricolagem. 2 A esse respeito, ler a matéria do portal G1 sobre os ataques que o presidente Jair Messias Bolsonaro realizou contra o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em um dos eventos antidemocráticos protagonizados pelo governo federal na Avenida Paulista, São Paulo (SP) em 07 de setembro de 2021, disponível no site: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/09/07/bolsonaro-ataca-alexandre-de-moraes-e-diz-queministro-tem-tempo-para-se-redimir-ou-se-enquadra-ou-pede-para-sair.ghtml (acessado em 10 de outubro de 2021)
no espírito antipolítico que gerou o contexto atual. Na medida em que avançam as intimidações autoritárias, o desmonte do poder público e o aparelhamento do Estado por um viés ideológico nitidamente reacionário, que impôs figuras como o Pastor Milton Ribeiro, cuja pasta é alinhada à pauta de costumes do Governo Federal, esta pesquisa reflete sobre o que representou o regime civil-militar para o ensino de arte a partir do tecnicismo que não buscou nenhum diálogo com os setores culturais e nem mesmo com arte-educadores da época. Essa reflexão faz-se necessária como um chamado a compreender a memória como aprendizado para que não se persista na mesma falha. De acordo com Adorno (2012), a função da educação consiste em trabalhar continuamente para que abominações como Auschwitz não se repitam, portanto aqui no Brasil é importante que a educação trabalhe também para evitar que ameaças como o golpe de 1964 repitam-se também. No contexto de normalização de descrédito em relação ao devido processo legal e às instituições democráticas, cabe compreender que a história também possui retrocessos, na medida em que “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’.” (BENJAMIN, 1987, p. 229). Nesse sentido, cabe destacar que a Constituição Cidadã de 1988 foi promulgada, mas paralelamente valores autoritários permaneceram dentro da democracia. Sendo assim, quais valores autoritários permaneceram ou foram herdados do Regime Civil-Militar, a partir do seu legado polivalente e da concepção pragmática de pensar as artes e seu ensino? Como tais princípios sobrevivem na Lei 9.394/1996 e ainda permanecem na BNCC? Como se apropriar desses elementos para uma educação estética para a democracia, decolonial e antirracista?
Ditadura, censura e resistência, os alinhamentos e contradições do ensino de artes a partir da perspectiva crítica Durante o Golpe civil militar de 1964, tínhamos no Brasil um embate entre duas concepções de ensino de arte. De um lado, havia a Escolinha de Arte do Brasil (EAB), fundada por Augusto Rodrigues em 1948 a partir de influências diretas das ideias de Herbert Read acerca da necessidade da educação dos sentidos como instrumento necessário para a formação da autonomia das pessoas enquanto seres capazes de desenvolver uma visão holística sobre as coisas (READ, 2013); Herbert Read, por sua vez, era muito próximo da corrente anarquista inglesa. Por outro lado, existia a corrente de Jonh Dewey, cujo pragmatismo tinha aproximações com o pensamento de Anísio Teixeira, que trabalhou no Conselho Federal de Educação. Anísio teve proximidade com Valnir Chagas, que foi relator do parecer responsável pela formação do
parecer 1.284/73 (SAVIANI, 2008). Tal dispositivo instituiu uma concepção tecnicista e pragmática da cultura, divorciada de qualquer tipo de diálogo relacionado com a cultura e a própria Escolinha de Arte do Brasil, polo irradiador da sociedade civil de formação livre para arte/educadores anterior à promulgação da LDB de 1971. A Lei instituiu a obrigatoriedade da educação artística nas escolas ao criar o curso de Licenciatura Curta em Educação Artística (COSTA, 1994). Passados 46 anos, a Reforma do Ensino Médio proposta pelo Governo de Michel Temer em 2017 buscava retirar Artes do conteúdo curricular do Ensino Médio. Ao passo que o Regime Civil-Militar tenha aprovado a LDB de 1971, formalizando a obrigatoriedade do Ensino de Artes nas Escolas Regulares, essa decisão ocorreu em um contexto controverso, no qual, um ano antes, era promulgada, em Diário Oficial (D.O.), a extensão do AI-5 para a esfera da cultura através do Decreto 1.077/70, que instituía a censura. Tais medidas foram tomadas de maneira tecnicista e sem consulta ao legislativo, o que caracterizava o Governo Médici. O mesmo ocorre em relação à promulgação dos cursos de Licenciatura Curta em Educação Artística através do Parecer CFE 1.284/73 de Valnir Chagas, que, por sua vez, também foi elaborado de maneira vertical e sem consultar o setor da cultura e nem mesmo os professores das Escolinhas de Arte (COSTA, 1994). A promulgação da LDB de 1971 também é marcada por um retrocesso orçamentário em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) destinado para a Educação. Enquanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 4.024/61, promulgada durante o Governo João Goulart, destinava 12% do PIB para a Educação, a LDB de 1971, promulgada durante o Regime Civil-Militar e no Governo Médici, considerado o auge do tecnicismo (LIRA,2010), destinava 10%, assim representando retrocesso orçamentário para o financiamento da educação pública (DAVIES, 2012). Ao mesmo tempo em que foi instituído o AI-5 em 1968, existia uma série de discussões estéticas que ocorriam em torno do ativismo político contra os arbítrios da época, tendo destaque as obras de Cildo Meireles, ou o trabalho artístico de resistência política contra a censura protagonizado pelo artista Antônio Manuel em 1973. Nesse mesmo momento, expandia-se pelo Brasil o movimento das Escolinhas de Arte do Brasil, entre 1971-1973 (COSTA, 1994), defendendo a importância da expressividade e da educação dos sentidos como elementar no processo de construção da percepção holística de mundo. Por essa razão, muitos dos seus professores compreendiam o expressionismo como basilar para o processo de ensino aprendizagem (BARBOSA, 2003, 2011). O pensamento cultural de John Dewey manifestava-se na ideia de que A expressão é o esclarecimento da emoção turva; nossos apetites se reconhecem ao se refletirem no espelho da arte, e, ao se reconhecerem, transfiguram-se. Ocorre então
uma emoção distintivamente estética. Ela não é uma forma de sentimento que tenha existência independente desde o início. É uma emoção induzida por um material expressivo e, por ser evocada por esse material e estar ligada a ele, consiste em emoções naturais que foram transformadas. Objetos naturais como as paisagens, por exemplo, podem induzi-la. Mas só o fazem porque, ao serem matéria de uma experiência, eles também passam por uma mudança semelhante à efetuada pelo pintor, ou pelo poeta ao converter o cenário imediato na matéria de um ato que expressa o valor do que é visto (DEWEY, 2010, p. 172).
Essa concepção pragmática da arte e da cultura está presente na visão que o próprio Anísio Teixeira tem sobre a maneira como formulou a proposta de ensino integral, cujo propósito era formar o espaço de tempo lúdico em que os estudantes também teriam acesso a atividades culturais. É essa concepção que perpassa o parecer CFE 1.284/73, na medida em que a reforma do ensino protagonizada pela Lei 5.692/71 e, em seguida a maneira como foi formulado o Parecer CFE 1.284/73 de Valnir Chagas, não foram submetidas a nenhum tipo de consulta aos professores e nem mesmo aos artistas da época. Isso se deve ao conflito com uma outra concepção da arte e seu ensino que estavam presentes tanto na sua concepção dada pelo Augusto Rodrigues, que, por sua vez, traz a concepção de Herbert Read da educação estética no processo de formação sensível dos sujeitos (READ, 2013). O pensamento de Herbert Read trazia a noção de que, ao mesmo tempo em que somos dotados de capacidades intelectuais, também temos capacidades sensíveis que deixamos de exercer ao longo do tempo devido ao que o pensador chama de “educação palavrosa”. É possível estabelecer um paralelo com Marcuse (1968): A experiência básica, nessa dimensão, é mais sensual do que conceitual; a percepção estética é essencialmente intuição não noção. A natureza da sensualidade é a “receptividade”, a cognição obtida por meio de sua afetação por determinados objetos. É em virtude da sua relação intrínseca com a sensualidade que a função estética é acompanhada do prazer. Esse prazer deriva da percepção da forma pura de um objeto, independentemente de sua “matéria” ou do seu propósito (interno ou externo). Um objeto representado em sua forma pura é “belo”. Tal representação é obra (ou melhor, o jogo) da imaginação. Como imaginação, a percepção estética é sensualidade, ao mesmo tempo, mais do que sensualidade (a “terceira” faculdade básica): dá prazer e, portanto, é essencialmente subjetiva; mas na medida em que esse prazer é constituído pela forma pura do próprio objeto, acompanha universal e necessariamente a percepção estética – para qualquer sujeito que percebe. Embora sensual e, portanto, receptiva, a imaginação estética é criadora: numa livre síntese de sua própria criação, ela constitui beleza. Na imaginação estética, a sensualidade gera princípios universalmente válidos para uma ordem objetiva. (MARCUSE, 1968, p. 159)
Tal concepção dialoga com o pensamento de Herbert Read no tocante à noção de que:
Embora pareça óbvio que, numa sociedade, numa sociedade democrática, o objetivo da educação deveria ser a promoção do crescimento individual, muitos problemas surgem quando começamos a considerar que métodos deveríamos adotar para esse fim. O próprio crescimento é um processo de gradativo aumento físico, de maturação, acompanhado por um correspondente desenvolvimento das várias faculdades mentais como o pensamento e a compreensão. Veremos que esta é uma visão completamente inadequada do que se trata, na verdade, de um ajustamento muito complicado dos sentimentos e emoções subjetivas com relação ao mundo objetivo, e que a qualidade do pensamento e da compreensão, bem como todas as variações de personalidade e caráter, dependem, em grande parte, do sucesso ou da precisão desse ajustamento. Será minha intenção mostrar que a função mais importante da educação diz respeito a essa “orientação” psicológica, e que, por esse motivo, a educação da sensibilidade estética é de fundamental importância. (READ, 2013, p. 8)
Na medida em que a educação dos sentidos se faz necessária, pode a expressividade contribuir de modo que a sensibilidade e a memória possam evitar que barbáries aconteçam? De acordo com Adorno, a educação tem importante papel no processo de autonomia dos sujeitos para que os condicionamentos não venham a embrutecê-los, assim fazendo com que a formação seja um instrumento que combata os retrocessos (ADORNO, 2012). O parecer de Valnir Chagas (Parecer CFE 1.284/73) possui uma tendência a valorizar mais a concepção pragmática de John Dewey e compreende a arte apenas no campo da experiência, desconsiderando as discussões simbólicas. Esse mesmo parecer, concomitante com a crise da EAB que outrora era centro de formação de professores dessa disciplina em escolas regulares, foi feito sem consulta à categoria dos professores e da EAB e, além da verticalidade de sua elaboração e implementação, trouxe uma visão esvaziada e polivalente do ensino de artes. Teria sido uma censura contra a EAB a maneira vertical como foi implementada a Licenciatura curta e polivalente e de viés muito superficial, uma maneira de reprimir as ideias progressistas potencialmente difundidas por uma instituição adepta de uma perspectiva crítica da produção estética? (PINTO, 2016). Esse mesmo legado, divorciado das discussões estéticas e antropológicas, encontrou eco em futuros debates curriculares, seja na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei N° 9.394/96, e seja no tratamento dos currículos mínimos, competências e habilidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Esse legado também foi construído com o tecnicismo e as tendências privatizantes que defendiam o tratamento do menor custo e melhor benefício para a administração da educação, assim compreendendo o Estado como uma empresa (LIRA, 2010). Tais tendências continuam existindo ainda hoje na construção de políticas públicas para a educação.
Ensino da Arte: Alinhamento ou resistência? Um caminho em disputas Ao se pensar no processo de redemocratização do Brasil e na formação da Constituição de 1988, deve-se considerar que a Lei 5.692/71 continuou vigorando por mais oito anos até a sua revogação pela Lei 9.394/96, ou seja, uma concepção ainda pragmática e que entende o ensino de arte como sendo um instrumento de recreação e enfeites de datas cívicas permaneceu vigorando dentro da redemocratização. Esse cenário revela que a redemocratização feita com base em propostas política conciliatórias manteve elementos democráticos e autoritários nos mesmos textos e Projetos de Lei. Como contraponto ao modelo tecnocrático que ganhou sobrevida no debate de construção de políticas públicas para o ensino de artes, já existia a discussão nas vanguardas artísticas da década de 1970 sobre a desmaterialização da arte e sua perspectiva sensorial, no entendimento de que: A própria tarefa dos artistas plásticos resida em aproveitar o novo espaço aberto às expressões populares pela mudança social a fim de que um maior número de homens desenvolva sua imaginação transformadora; a função do artista tem a ver tanto com a transmissão de mensagens, através da produção, quanto com o que essas mensagens conotam e o que mobilizam para o enriquecimento da vida (CANCLINI, 1980, p. 144).
Em um contexto de debates sobre o papel da estética no processo de formação tanto de discursos como de sujeitos, a concepção da arte como um campo de linguagem que comunica discursos e desenha políticas toma forma quando se pensa na imagem como elemento simbólico, representativo e potencializador do que se pensa. No que tange à estética e ao seu papel num horizonte de universalização do mercado, tem-se como premissa que: O regime estético das artes transforma radicalmente essa repetição dos espaços. Ele não recoloca em causa apenas a duplicação mimética em proveito de uma imanência do pensamento na matéria sensível. Coloca também em causa o estatuto neutralizado da tekhne, a ideia da técnica como imposição de uma forma de pensamento a uma matéria inerte (RANCIÈRE, 2018, p. 65,66).
Concomitante a esse debate, os Parâmetros Curriculares de Artes (PCNs) trazem para o ensino de arte a sua dimensão poética, entretanto seu intuito fica ambíguo na medida em que esse mesmo documento coloca as diversas linguagens artísticas (música, dança, teatro e artes visuais) numa mesma disciplina e estabelece um currículo padrão e uniformizado, reproduzindo a tecnocracia da Legislação do Regime Civil-Militar, de acordo com os PCNs de artes: O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo na qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que nossas experiências geram um movimento de transformação permanente, que é preciso
reordenar referências a cada momento, ser flexível. Isso significa que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender. Ao aprender arte na escola, o jovem poderá integrar os múltiplos sentidos presentes na dimensão do concreto e do virtual, do sonho e da realidade. Tal integração é fundamental na construção da identidade e da consciência do jovem, que poderá assim compreender melhor sua inserção e participação na sociedade (PCN, 1998, p. 20).
Embora a Lei 9.394/96 e as legislações educacionais estivessem muito alinhadas com os debates políticos em torno do recente processo de redemocratização, a contradição permaneceu devido à influência das ideias de John Dewey no Brasil e suas concepções pragmáticas acerca da arte (BARBOSA, 1982) e devido à formação de uma concepção da educação que possui um viés privatista. Na contemporaneidade, o que temos é a herança da polivalência que ainda trata o conhecimento artístico no viés da cultura e da experiência, assim a concepção de uma educação estética que procure valorizar a dimensão poética da criação estética como arquétipo basilar da capacidade de abstração das pessoas permanece com pouco espaço na elaboração de políticas públicas para esse departamento. Na BNCC, a disciplina de Artes aparece como uma única disciplina contendo todas as suas linguagens em uma única forma e ainda compreendendo a sua dimensão visual como sendo: Processos e produtos artísticos e culturais, nos diversos tempos históricos e contextos sociais, que têm a expressão visual como elemento de comunicação. Essas manifestações resultam de explorações plurais e transformações de materiais, de recursos tecnológicos e de apropriações da cultura cotidiana. As Artes visuais possibilitam aos alunos explorar múltiplas culturas visuais, dialogar com as diferenças e conhecer outros espaços e possibilidades inventivas e expressivas, de modo a ampliar os limites escolares e criar novas formas de interação artística e de produção cultural, sejam elas concretas, sejam elas simbólicas. (BNCC, 2017, p. 195)
Apesar de esse viés ser hegemônico, temos no âmbito da tática e das estratégias (CERTEAU, 1999) diversas possibilidades de ressignificação e de novos usos dessa proposta, para além dos currículos praticados, nos quais são promovidos os conhecimentos e saberes no processo de formação (OLIVEIRA, 2003). É com base nessas reflexões que se pode pensar em um processo de apropriação e novos usos da herança deixada pelo Regime Civil-Militar; de modo a promover, no ensino de artes, espaços que sejam propícios para a discussão e reflexão crítica do que está posto, entretanto não necessariamente está dado como um espaço fechado para ressignificações apesar de a sua concepção trazer o tecnicismo consigo. É com base nesse raciocínio que se pode fazer do espaço do ensino de arte uma brecha para o debate político sobre a dimensão poética da potência da imagem, presente no cotidiano, e problematizá-la.
Demandas contemporâneas, decolonialidade e emergências do sul O mundo mantém-se dividido entre o eixo Sul, que permanece com os indicadores sociais baixos como consequência de um histórico de colonização; e o eixo Norte, que impôs saques, exploração e expropriação aos povos que hoje ocupam os países que permanecem na linha da pobreza e com índices de fome. Nesse mundo, constata-se que o projeto racional prometido pelo liberalismo do século XVIII fracassou e, após duas guerras mundiais consecutivas e com o agravante do holocausto, coube às classes ainda hegemônicas gerenciarem as consequências de um modelo civilizatório para o qual “a parcimônia, e não o trabalho, é a causa imediata do aumento do capital” (SMITH, 1996, p. 339). Em meio ao cenário cada vez mais dividido entre as heranças coloniais e os herdeiros de todo um processo de consolidação da colonização sobre demais povos, que foi, inclusive, responsável pela configuração do mercantilismo e, a posteriori, do capitalismo, cabe ressaltar que, no mundo contemporâneo, existem novas demandas. Considerando estes aspectos, a primeira abordagem a ser considerada é o contexto de um mundo e de uma cultura onde a visualidade está presente nas mais variadas dimensões, onde os estudantes consomem e fazem usos de imagens que os atravessam. Mesmo com a polivalência, cabe indagar quais são as táticas possíveis de bricolagem a partir do que temos. Conjuntamente com o contato com a imagem, desenvolvem as expressões das suas alteridades. Busca-se neste processo entender as possibilidades das artes de fazer e dos usos das imagens como instrumentos para superação de preconceitos e capacidade de desenvolvimento da dimensão poética em um mundo automatizado, assim, compreendendo o processo de ensino-aprendizagem de artes como possibilidade de bricolagem da percepção que se tem sobre o mundo a partir do contato com narrativas e alteridades cujo processo de construção dos seus saberes/fazeres transcende a lógica avaliativa automatizada por estratégias de modelagem do ensino. Como base para tentativa de compreensão do contexto em que se situa o debate sobre as alternativas emancipatórias em currículo, parte-se do prisma do entendimento do pensamento abissal em que: A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha. O universo “deste lado da linha” só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante: para além da linha há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética. (SANTOS, 2007, p. 71).
Uma outra demanda de acordo com essa lógica, pensa-se em toda uma geografia de conhecimentos que são autorizados a ter legitimidade. Geralmente essas epistemologias obedecem apenas ao Norte Global, entretanto, quando se trata da questão do processo de ensino-
aprendizagem em artes, considerando o nosso contexto geográfico, é preciso reconhecer a necessidade de uma epistemologia decolonial (MIGNOLO, 2008) que, em sua desobediência, esteja mais próxima da realidade concreta das alteridades que se quer retratar como um campo de discussões sobre a educação a partir da percepção expressiva dos estudantes cujos saberes/fazeres não cabem em currículos e expectativas de aprendizagem que não dão conta das alteridades em processo. Tal percepção necessariamente está relacionada às epistemologias do sul (MENESES; SANTOS, 2009). Por fim, na emergência de uma sociedade marcada pela urgência de novas epistemologias que deem conta da complexidade de representações que nos constituem como sujeitos híbridos e multifacéticos, busca-se, nas epistemologias do sul, uma compreensão do processo e experiência mais valiosos para a construção da alteridade do que a lógica produtivista, automatizada e tecnicista que, por sua vez, reproduz a redução da vida a processos de quantificação e linha de montagem. Com base na premissa de formular processos mais singulares que fujam às expectativas da lógica avaliativa-conteudista-colonizada, é preciso formular apontamentos em que o uso da imagem possa ser um espaço de debate e reflexão sobre sensações e possibilidades de empoderamento em favor do contato e afeto com a fruição como instrumento de justiça cognitiva. Compreendendo a imagem que se tem da escola como um ambiente disciplinar onde se configuram os processos de ensino-aprendizagem, por muitas vezes a imagem e o símbolo que são construídos não condizem com a escola em si e as diversas possibilidades que decorrem nesse espaço de convívios. Ao compreender que o conhecimento é construído semelhante a uma rede que se sustenta e se dilui nas diversas formas em que os jovens se encontram com a imagem e produzem imagens, entende-se o currículo e o espaço escolar, tal como é imaginado de maneira clichê, feito uma espécie de luz que personifica, neste artigo, a ideia de estratégias de poder, em uma tentativa de modelar e inscrever esses jovens em toda uma cadeia de expectativas de aprendizagem já previamente pensada para eles. Concomitantemente, a maneira que os jovens consomem as imagens e o uso, e a adaptação que fazem das apropriações constantes e cotidianas presentes em suas vidas constituem-se conforme as bricolagens, que se configuram como táticas que possibilitam aos jovens resistir e sobreviver, ou mesmo, dar novos sentidos para as imagens presentes em seus cotidianos. Portanto, os jovens e suas táticas, muitas vezes de resistência silenciosa e/ou silenciada, podem ser associados aos vaga-lumes com a sua luz aparentemente ofuscada pela luz da cidade. No sentido de compreender a ideia de uma resposta para identificar a percepção dos vaga-lumes em relação à luz da cidade, Didi-Huberman afirma que:
A questão é crucial, sem dúvida inextricável. Não haverá, portanto, resposta dogmática para essa questão, quero dizer: nenhuma resposta geral, radical, toda. Haverá apenas sinais, singularidades, pedaços, brilhos passageiros, ainda que fracamente luminosos. Vaga-lumes, para dizê-lo da presente maneira. (DIDIHUBERMAN, 2011, p. 43).
Ao analisar os processos de criação estética nas salas de aula, surge também a ideia de pedagogia da imagem. Busca-se, na atividade de mediação visual como exercício de empatia para o empoderamento, a percepção da potência da imagem em sua dimensão poética, porém desconhecida e imperceptível entre os currículos e documentos que configuram as estratégias de formatação eurocêntrica dos estudantes por parte de toda uma documentação e processo de ensino aprendizagem que pretende formatar os indivíduos dentro de uma visão eurocêntrica e colonial de mundo (MENESES; SANTOS, 2009). Imersos em um processo de intermitência e descontinuidade permanente e em estado de hiper-excitação e culto ao consumo, os tempos hipermodernos são desenhados a partir de uma lógica de massificação da imagem seja pela publicidade presente na vida e nas paisagens urbanas seja nas redes sociais que se difundem e remodelam os meios de comunicação. A decolonialidade assume, nesse quesito, uma percepção crítica do modelo social estabelecido e do eurocentrismo presente seja nos métodos de ensino e formação de futuros profissionais, seja nos currículos praticados que reproduzem a mesma lógica. Essa crítica se endereça ao fracasso do projeto da modernidade e ao fator anti-político advindo desse processo. A crítica ao modo operante do processo de formação do conhecimento se dá como crítica ao modelo de produção epistêmica que se funda nas percepções de mundo colonizadoras. Nesse instante, percebe-se que a escola possui diversos tipos de tempos que se imiscuem, seja o tempo cronológico, dos prazos e das avaliações; seja o tempo Kairós, que é o tempo das oportunidades que, em sala de aula e, especificamente no ensino de arte, compreende-se como o momento em que se transforma a fruição em produção e busca-se compreender como prisma a ideia e possibilidade da criação como veículo de empoderamento, através das bricolagens que se fazem com as estratégias e dimensões dos processos de avaliação e de produção de conteúdo disciplinar, previamente estabelecidos por diretrizes de ensino. Tais bricolagens revelam as táticas presentes nessas intermitências pelo tempo Kairós em relação ao tempo cronológico? Podem essas táticas serem as brechas de empoderamentos possíveis?
Considerações finais Ao falar sucintamente sobre esse tema, busco problematizar o que as práticas que ocorrem nas salas de aula, em relação ao ensino de artes, contribuem para os processos de empoderamento a partir dos diversos usos que esses jovens fazem das imagens que estão presentes tanto nas redes sociais, e nos diversos espaços extra-escolares, assim como as bricolagens que fazem a partir das releituras das imagens e dos conteúdos lecionados. Ao trabalhar arte com os alunos, sempre busquei a construção coletiva da ideia da arte como uma habilidade e linguagem que comunica a partir do uso que se faz dos elementos visuais; diferentemente do entendimento normalizado da ideia de arte como “dom”, que também justifica todo o sentido mercadológico que se deu até hoje. Os diversos processos e soluções momentâneas que os estudantes realizam nas suas atividades destoam das estratégias presentes seja nos currículos praticados, seja nas expectativas de aprendizagem que delimitam os métodos de ensino. Dessa forma, o espaço do ensino de arte é potencialmente poético no sentido de construção coletiva de autonomia a partir do entendimento da imagem e seus discursos e reflexão sobre o seu caráter e as possibilidades de emancipação existentes nas potentes produções desses jovens e suas expressões. Ao compreender a poética envolvida e desenvolvida a partir do processo de fruição e criação estética, os trabalhos desempenhados constituem-se não apenas como expressões mas também por toda uma linguagem própria que os estudantes utilizam para constituírem as suas alteridades a partir do exercício de releitura das imagens.
Embasado nessa discussão, cabe o questionamento se pode o espaço do ensino de arte nas escolas e o mecanismo de bricolagem com os currículos se constituírem como mecanismo, que está presente nas possibilidades e brechas, para possibilitar ao aluno ter contato com diferentes reflexões, de modo que reafirme a sua autonomia e não se deixe ser colonizado? Não há uma fórmula e metodologia para lidar com essas redes transversais de saberes que se formam nas dinâmicas das relações, contudo o espaço do ensino de arte tem empreendido um diálogo com toda essa transversalidade temática que possibilita o debate acerca do discurso e das políticas presentes nas imagens, buscando construir coletivamente a autonomia através da reflexão sobre o que se percebe e o que se faz, a partir do que se vê e se pensa sobre o que se vê. É nesse contexto de massificação e normalização da ideologia neoliberal e da aparente hegemonia de padrões culturais eurocêntricos que se busca, no ensino de artes, a construção de espaços de resistências poéticas.
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Reflexões sobre escola e relações étnico-raciais no Brasil: a experiência do projeto sociocultural “Sou África!” Maria Cecília do Nascimento Bevilaqua
Apresentação Neste trabalho, voltaremos nosso enfoque para um projeto desenvolvido ao longo do ano letivo de 2010 junto a alunos/as do Colégio Estadual Travessias3, situado na zona norte do Rio de Janeiro. O projeto, intitulado “Sou África!”, foi motivado pela discussão mais ampla acerca de uma questão crucial: a cada vez mais urgente necessidade do combate ao preconceito e à discriminação racial contra negros/as. Para tanto, assumiu como ponto de partida o destaque da presença cultural africana em diversos âmbitos da sociedade brasileira. A fim de discorrer sobre a temática, dialogamos com a minha pesquisa (Bevilaqua, 2011) desenvolvida no âmbito da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sob a orientação do Professor Doutor Alexandre Palma4. No contexto da realização do referido estudo, a opção pelo foco no projeto em tela levou em conta o fato de configurar-se como uma iniciativa pedagógica, de natureza sociocultural e interdisciplinar, voltada para o tratamento das relações raciais com base na determinação legal supracitada. Sob tal viés, as atividades do projeto constituíram-se nos moldes de uma gincana cultural, realizada em quatro etapas mensais. Definiram-se, dessa forma, doze equipes correspondentes a cada uma das turmas da escola. Nas etapas da gincana, deveriam ser apresentados os itens requeridos pela comissão organizadora da empreitada. Assim, a partir da apropriação de diferentes linguagens, os/as alunos/as envolvidos divulgaram suas criações acerca da presença africana na sociedade brasileira sob formatos diferenciados, tais como cartazes, danças, poemas, indumentárias e pratos típicos. 3
Devido a razões éticas, optamos por fazer referência à instituição, bem como aos sujeitos a ela relacionados, por meio de pseudônimos. 4 Referimo-nos à monografia final do Curso de Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica (doravante CESPEB), intitulada “Multiculturalismo, Arte-Educação e Lei 10.639/2003: Desvendando imagens do Projeto “Sou África!”.
Diante do exposto, nosso objetivo define-se pelo propósito de caracterizar o projeto “Sou África” por meio da apresentação de suas metodologias, dos processos e dos produtos resultantes dessa iniciativa. Para tal, buscamos pôr em cena a discussão a respeito da relevância do desenvolvimento de ações pedagógicas pautadas no reconhecimento de nossa heterogeneidade e no questionamento do etnocentrismo. Destarte, a modo de contextualização, recorremos, principalmente, a contribuições teóricas a respeito das relações entre discriminação racial e contexto escolar (GOMES, 2005; SOUSA, 2005), a considerações relativas ao conceito de Pluralidade Cultural (BRASIL, 1997) e a reflexões sobre a realização de projetos de trabalho na escola (BARBOSA, 2003). A nosso ver, a problematização de questões que perpassam a elaboração do referido projeto pode oferecer importantes ingredientes para o atual debate sobre a potencialidade da Lei 10.639/2003. Acreditamos, nesse sentido, que revisitar aspectos relativos ao desenvolvimento da iniciativa em foco pode motivar o surgimento de novos discursos e de novas práticas escolares comprometidas com a construção de uma sociedade menos desigual. Sob essa ótica, compreendemos como essencial fomentar o pensamento crítico dos/das estudantes quanto ao tema proposto por meio de estratégias pedagógicas que oportunizem seu agenciamento, tendo em vista o contexto em que se situam. Não obstante as particularidades formais da linguagem acadêmica, as reflexões aqui apresentadas não são, de modo algum, isentas de subjetividade. Elas traduzem, de certa forma, um pouco de nossa inquietação com relação aos limites e possibilidades do tratamento das relações étnico-raciais nas escolas brasileiras, uma vez reconhecida a necessidade de superação das heranças do escravismo. De tal sorte, organizamos nossos comentários em três seções que aludem, simbolicamente, à existência de diferentes “lugares”. Vale dizer que eles são sempre considerados em relação a um espaço privilegiado: o da sala de aula.
O lugar da exclusão “África: a bola da vez”. O título, que caracteriza o tema da edição de maio de 2010 da Revista Nova Escola denuncia a pouca ênfase dada até então a questões relativas ao continente africano nos conteúdos curriculares ministrados nas escolas brasileiras. Com efeito, a expressão “bola da vez” – de acordo com códigos culturais pré-estabelecidos em nossa sociedade – indica “o que está em voga em determinado momento”. À sentença, segue o subtítulo: “A Copa do
Mundo vem aí. Aproveite que o continente está em evidência para mostrar aos alunos como ele está se desenvolvendo”. Não podemos deixar de observar que a sugestão dada ao/à professor/a – interlocutor/a por excelência da referida revista - está diretamente relacionada a um acontecimento pontual: o fato de a África haver sediado a Copa do Mundo naquele ano. Tal evidência reforça a necessidade de enfatizar a inserção de aspectos relacionados ao continente de maneira efetiva na grade curricular, dada sua relevância na constituição histórica e, mais especificamente, na formação da sociedade brasileira. Sem dúvidas, a discussão a respeito da questão é anterior à Copa do Mundo de 2010 e está situada em um horizonte de preocupações mais amplo. Após intenso debate e principalmente devido à atuação de grupos de defesa dos direitos dos negros, no ano de 2003 como comentamos na Apresentação - é aprovada a Lei 11.639, alterada pela Lei 11.645/2008, que determina a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nos currículos das escolas. Podemos dizer, pois, que por força da determinação legal, reivindicamse novos espaços para a integração de povos tradicionalmente excluídos. É o momento de colocar em suspenso a hegemonia da cultura do homem branco ocidental. No tocante à problemática entre a presença e a ausência da África nos conteúdos escolares, a historiadora Marina de Mello e Souza apresenta o seguinte quadro:
É curioso que raramente a história da África tenha sido abordada quando frequentávamos os bancos escolares, aqueles nos quais se deu nossa formação básica. (...) Para a geração dos que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial, a África quase não apareceu na escola. Só existia nos filmes de Tarzan que passavam à tarde na televisão, nas imagens de animais majestosos como os grandes felinos, no negro de tanga de palha e lança em riste que vigiava o explorador branco dentro do caldeirão fervente das tiras de quadrinhos do jornal. (SOUZA, 2009, p. 91)
O cenário descrito pela autora remete-nos a uma questão preocupante: a carência de informações relativas à África na formação dos/das professores/as que, a partir deste início de século, devem assumir a responsabilidade de lecionar conteúdos sobre a história e a cultura afro-brasileira nas escolas. A partir de um ponto de vista diferenciado, podemos observar, ainda, que o relato da historiadora aponta para o fato de que, no contexto atual, a construção de conhecimentos implicada nas práticas escolares requer a revisão crítica de informações amplamente difundidas na sociedade, aspecto que envolve a superação de preconceitos fortalecidos pela grande mídia.
Ressaltemos, assim, que as figuras apresentadas na citação destacada acima caracterizam estereótipos da África que reforçam imagens de seus habitantes como povos atrasados com relação aos demais, como os europeus, por exemplo. Verificamos, portanto, que a visão do/da negro/a como inferior, outrora sustentada por argumentações teológicas e filosóficas que justificavam a escravidão, cristaliza-se historicamente, subsidiando o aparecimento novas formas de violência, quiçá mais sutis, embora igualmente destrutivas. A esse respeito, é importante frisar uma dimensão crucial no que tange à desconstrução de crenças e estereótipos em sala de aula: a das práticas de linguagem. Compreendemos, nesse sentido, que Como qualquer prática social, as práticas linguageiras são determinadas e restringidas pelo social e, ao mesmo tempo elas produzem efeitos sobre ele, contribuindo para transformá-lo. Nessa perspectiva, a linguagem não é apenas um reflexo das estruturas sociais, mas um de seus componentes intrínsecos. Seus efeitos sociais, se são certamente menos visíveis do que, por exemplo, as práticas de transformação da natureza, não são menos importantes. Falar não é apenas uma atividade representacional, é também um ato pelo qual se modifica a ordem das coisas, faz as relações sociais moverem-se. (CHARADEAU e MAINGUENEAU, 2006, p. 397)
Com base nessas considerações, entendemos que a escola, como locus de debate e confrontos de ideias, deve reagir, por meio de uma reflexão atualizada, à multiplicação de preconceitos por meio de palavras. Concordamos com Sousa (2005), desse modo, no destaque dado à linguagem – inclusive às não verbais – como veículo central na transmissão de ideologias. Em texto intitulado “Linguagens escolares e reprodução do preconceito”, a autora traz à tona a problemática da utilização de diferentes formas de comunicar pela escola e seu impacto na construção da autoestima de estudantes negros/as. A partir de um escopo teórico interdisciplinar, que alia estudos discursivos aos do campo da educação, o referido texto analisa o modo como, em distintos níveis, o preconceito se instaura nas práticas escolares. Ao perscrutar fontes diferenciadas, ressalta de que forma determinadas maneiras de dizer e mesmo de silenciar ocultam/desvelam visões discriminatórias com relação a certos grupos sociais. Segundo a autora, o costume de relacionar pessoas negras a coisas negativas, comum na cultura racista brasileira, é perceptível em variados discursos que circulam no meio escolar e podem surgir, inclusive, na fala do/a professor/a. De modo didático, Sousa (2005, p. 109-113) aponta os dois pilares que sustentam sua abordagem, a saber: 1) o que denomina linguagens escolares subjacentes, caracterizadas por formas de comunicação que, apesar de aparentemente inofensivas, expressam posturas discriminatórias (como cartazes, painéis e peças de teatro); 2) o que define como interação, preconceito e ambiguidade na sala de aula, que diz respeito às inter-relações entre alunos/as e professores/as na escola nas quais se observa a reprodução de estereótipos. Ressalta, ainda, que
as chamadas linguagens escolares subjacentes podem se manifestar de dois modos: a) Não dando visibilidade ao grupo negro, isto é, eliminando-o dos materiais didáticos, da decoração escolar etc. e b) Dando aos negros visibilidade negativa, inferiorizante, ou seja, delegando-lhes posição subserviente e/ou degradante. Assim, envoltos numa rede de discursos que reafirmam diferentes formas de discriminação, constata-se a dificuldade de jovens estudantes negros/as estabelecerem sua autoestima de maneira positiva. Urge, portanto, promover o combate a atitudes racistas, de modo a desnaturalizar preconceitos expressos por meio de gestos, palavras ou mesmo de “não ditos”. Quanto a isso, a escola não pode se calar. Em se tratando da nossa sociedade, cabe explicitar a existência de um fator que dificulta a luta contra o racismo: sua própria negação. Com efeito, é inviável promover ações com vistas à desconstrução de preconceitos e atitudes discriminatórias quando estes, para muitos, sequer existem. De acordo com Gomes (2005), o racismo no Brasil é alicerçado numa constante contradição, uma vez que se nega a existência do preconceito racial, ao passo que pesquisas comprovam que há discriminação de negros/as com relação a outros segmentos étnico-raciais do país. Cabe salientar, nesse sentido, que a crença de que não há preconceito racial no Brasil ancora-se na ideia de uma convivência amistosa entre as raças, propagada no início do século XX. Construiu-se, desse modo, o chamado “mito da democracia racial”, que afirma a existência de uma igualdade de tratamento e, consequentemente, de oportunidades entre negros/as e brancos/as. Alguns autores atribuem a sistematização e divulgação desse mito ao sociólogo Gilberto Freyre, autor do livro Casa-Grande e Senzala (SCHWARCZ, 1998). Tal interpretação da obra aponta que Freyre, a partir de uma visão idílica, afirmava que os grupos participantes da formação da nossa sociedade conviviam de maneira relativamente harmônica, se comparadas aos integrantes de outras sociedades escravistas. No entanto, outros posicionamentos caracterizam o debate em torno da problemática racial no país, dentre os quais cremos ser importante ressaltar a emergência de dois polos conflitantes. Há, por um lado, a denúncia da ocorrência, no Brasil, de práticas de discriminação racial que se manifestam no campo educacional e no mercado de trabalho (PAIXÃO, 2008); em sentido oposto, afirma-se que é a desigualdade social que justifica a diferença entre brancos/as e negros/as no universo escolar. Essas argumentações sustentam opiniões divergentes no que se refere à implementação do “Estatuto da Igualdade Racial”, projeto do governo federal sancionado pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após tramitação de quase uma década. O Estatuto, em vigor desde o
dia 20 de outubro de 2010, reúne uma série de ações e medidas especiais voltadas à inclusão da população afro-brasileira, com vistas à diminuição das desigualdades em diferentes setores da sociedade. Nesse contexto, a escola tem um importante papel a desempenhar no sentido de promover a igualdade social, cultural e étnica no cotidiano da sala de aula. Para tanto, é fundamental trilhar o caminho do diálogo. Reconhecemos que esse percurso é permeado de ações que envolvem a desconstrução de mitos e crenças, ditos e não ditos.
O lugar da autonomia Simulamos aqui perguntas que devem povoar a mente dos/das educadores/as quando motivados/as a voltar-se para a temática das relações inter-raciais em sala de aula: “Como abordar a questão da diversidade étnica na escola?”. Ou, de modo mais específico, “Como promover, junto aos/às alunos/as, iniciativas com vistas à desconstrução de preconceitos e atitudes discriminatórias contra negros/as?”. Fazemos a hipótese de que essas indagações expressem curiosidade e também preocupação. Com efeito, assumir o compromisso enunciado na letra da Lei 10.639/2003 implica, como vimos na seção anterior, adentrar em um terreno conflituoso, marcado por tensões historicamente construídas e pouco questionadas no cotidiano das relações sociais. Analisada a partir desse ângulo, a tarefa prescrita ao/à professor/a não parece ser fácil. Conscientes da impossibilidade de apresentar respostas conclusivas para as perguntas destacadas acima, apresentamos, nesta seção, referências capazes de fornecer pistas fundamentais, a nosso ver, para um repensar a respeito do tema. Os comentários aqui reunidos articulam-se em torno de um eixo, o da pluralidade cultural, e, de acordo com o objetivo deste capítulo, articulam-se com relação à problemática da exclusão X inclusão social dos/das negros/as. Buscamos, nesse sentido, vislumbrar possibilidades para o surgimento de novos olhares sobre relações entre grupos sociais em nossa sociedade. Tomemos como ponto de partida os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), tendo em vista sua relevância como documento orientador do trabalho docente em nível nacional, em diferentes cenários5. O texto, direcionado a professores/as de todas as áreas de
Destacamos a pertinência do diálogo com os PCN’s à época da realização do estudo (BEVILAQUA, 2011) e na atualidade, dada a importância, dentre outros aspectos, da reflexão que apresenta acerca da transversalidade no currículo escolar. 5
conhecimento, dedica um volume ao tratamento do tema transversal “Pluralidade Cultural” 6. Nele, são apresentadas diretrizes para a abordagem da diversidade étnica e cultural do Brasil como forma de combater preconceitos, relações de discriminação e exclusão social a que determinados grupos foram submetidos ao longo da História. Segundo os PCN’s, a escola tem um papel crucial a desempenhar nesse processo Em primeiro lugar, porque é o espaço em que pode se dar a convivência entre crianças de origens e nível socioeconômico diferente, com costumes e dogmas religiosos diferentes daqueles que cada uma conhece, com visões de mundo diversas daquela que compartilha em família. Em segundo, porque é um dos lugares onde são ensinadas as regras do espaço público para o convívio democrático com a diferença. Em terceiro lugar, porque a escola apresenta à criança conhecimentos sistematizados sobre o País e o mundo, e aí a realidade plural de um país como o Brasil fornece subsídios para debates e discussões em torno de questões sociais. A criança na escola convive com a diversidade e poderá aprender com ela. (BRASIL, 1997, p. 21)
O fragmento destacado acima nos orienta com relação à dimensão da responsabilidade da escola no que tange ao tratamento das diferenças. Nesse enfoque, observamos que o primeiro passo para a construção de práticas favoráveis à superação de posturas discriminatórias é o reconhecimento da complexidade inerente às relações sociais, culturais e étnicas que caracterizam a sociedade brasileira e que são perceptíveis no cotidiano escolar. No entanto, tal constatação não é o suficiente. É preciso, sobretudo, saber posicionar-se diante da questão de forma consciente, a fim não correr o risco, mesmo por omissão, de contribuir para a disseminação de preconceitos. A seção do volume dedicado à “Pluralidade Cultural” intitulada “Contribuições para o estudo da pluralidade cultural no âmbito da escola” apresenta pressupostos voltados para a fundamentação do trabalho do/a professor/a no tocante à abordagem da temática. Desse modo, algumas “pistas” são organizadas em itens como “Conhecimentos históricos e geográficos”; “Conhecimentos sociológicos”; “Conhecimentos antropológicos”. De acordo com os PCN’s (BRASIL, 1997, p. 29), tais conhecimentos poderão ser aprofundados e ampliados pelo/a docente de acordo com as necessidades de seu planejamento. A presença desse tipo de orientação no documento evidencia uma característica fundamental do métier do/da professor/a: a necessidade de estudo e atualização constante.
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Ainda que a referida pesquisa (BEVILAQUA, 2011) contemple a análise de atividades oriundas de um projeto sociocultural realizado junto a alunos de uma escola de ensino médio, cremos ser pertinente considerar os PCN’s de ensino fundamental, devido à abordagem da temática que caracteriza o foco da proposta aqui delineada. Ademais, reconhecemos que cabe ao ensino médio, segundo a Lei e Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96, “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”.
Nesta análise, cabe ressaltar um exemplo de atividade proposta ao/à educador/a, em outro momento do documento, a qual exige a articulação de conhecimentos de diferentes níveis. Por meio da transversalidade com Artes, os PCN’s sugerem o aprendizado acerca da cerâmica artesanal de determinada população, ou músicas e danças de certos grupos étnicos, como diferentes formas de linguagem. Segundo o texto, É muito importante que, ao propor a atividade, o professor contextualize seu significado para o grupo étnico ou cultural de onde se originou a proposta, para que o assunto não seja tratado como folclore, mas como elemento cheio de importância para a estruturação e manifestação da vida simbólica daquele grupo. É importante também tratar das relações que se estabelecem entre o ser humano como produtor, e os produtos dessas diferentes linguagens. (BRASIL, 1997, p. 156)
Compartilhamos, dessa forma, de uma perspectiva que orienta a compreensão do/a professor/a como atuante para além da esfera de “transmissão” de conhecimentos. É fundamental, nessa ótica, o comprometimento do/da docente com a construção, junto aos/às alunos/as, de saberes voltados não apenas para o reconhecimento das diversidades, mas, sobretudo, para a superação de posturas excludentes, a começar pelo próprio ambiente escolar. No que diz respeito, em especial, à superação de atitudes discriminatórias contra negros/as, concordamos que se queremos lutar contra o racismo, precisamos re-educar a nós mesmos, às nossas famílias, às escolas, às (aos) profissionais da educação, e à sociedade como um todo. Para isso, precisamos estudar, realizar pesquisas e compreender mais a história da África e da cultura afro-brasileira e aprender a nos orgulhar da marcante, significante e respeitável ancestralidade africana no Brasil, compreendendo como esta se faz presente na vida e na história de negros, índios, brancos e amarelos brasileiros. (GOMES, 2005, p.49)
A partir do exposto, voltamo-nos para o surgimento de práticas que têm em si o potencial de mobilizar não somente professores/as e alunos/as, mas toda comunidade escolar no tratamento de temáticas de grande relevância social em um contexto específico: o da realização de projetos socioculturais e interdisciplinares. Para Barbosa (2003), a perspectiva do fazer pedagógico pautado na realização de projetos responde à urgente necessidade de modificação da forma de estruturar e organizar a vida escolar. De acordo com a autora, se outrora as disciplinas eram contempladas em blocos de conteúdos fragmentados, unilaterais, na ótica da realização de projetos, atualmente necessitam seguir uma organização mais aberta e flexível. Tal perspectiva requer, portanto, a reconfiguração da maneira como tradicionalmente se organiza o conhecimento no âmbito institucional. Em suma, torna-se fundamental desenvolver uma visão curricular multifacetada. Nas palavras de Barbosa (2003, p. 50):
Os projetos estimulam a aprendizagem do diálogo, do debate, da argumentação, do aprender a ouvir outros, do cotejar diferentes pontos de vista, do confronto de opiniões, do negociar significados, da construção coletiva do conhecimento, de desenvolver novas habilidades e aperfeiçoar aquelas já dominadas, do prazer de expor o seu saber, de ver e sentir as controvérsias e de construir uma visão coletiva.
Dessa forma, novas possibilidades se apresentam. Professores/as e alunos/as assumem diferentes papéis numa dinâmica de problematização e intercâmbio de saberes. Ao/À “aprendiz” é permitido atuar como sujeito capaz de interagir com o outro, posicionar-se criticamente, contribuir com seus conhecimentos. Ao/À “mestre” admite-se a possibilidade de arriscar, inovar, (re)planejar e, sobretudo, aprender. A modificação da forma de lidar com o conhecimento, a uma vez, respalda e oportuniza a utilização de diferentes tecnologias, além das tradicionalmente utilizadas em sala de aula. É possível articular linguagens visual, oral e escrita. Cabe explorar narrativas, músicas, danças. No contexto do desenvolvimento e da popularidade de novos gêneros situados em ambientes virtuais, a utilização da internet pode caracterizar uma importante contribuição para a abordagem de temas socioculturais da atualidade. Em síntese, importa dizer que as muitas possibilidades oferecidas pelo investimento em projetos pedagógicos colaboram para a reconfiguração do papel da escola, viabilizando o surgimento de novos olhares sobre demandas urgentes que pautam o debate público na contemporaneidade. Sob tal viés, acreditamos que reflexões sobre relações entre identidade e alteridade caracterizem o caminho imprescindível ao encontro de ações que promovam a construção de uma sociedade mais equitativa. Importa que, por meio da execução de projetos, a discussão ultrapasse os limites da sala de aula.
Um lugar possível: o projeto sociocultural “Sou África!” Afinal, o que é ser negro/a? A pergunta pode suscitar respostas as mais diversas, de acordo com o contexto em que se apresente. Variadas são as fontes. Podemos recorrer a textos de estudiosos sobre o tema, discursos de membros do Movimento Negro, conversas informais, crônicas, canções, pinturas. Dentre as muitas possibilidades, importa-nos, nesta ocasião, focalizar a resposta de jovens estudantes de uma das turmas – referente ao ano letivo de 2010 – do Colégio Estadual Travessias, expressa no poema “Ser Negro”: Ser negro é ter caráter. Ser negro é ter coragem. Ser negro é ser vencedor de todas as batalhas contra o racismo no mundo. Ser negro é ter orgulho na pele e no coração. Ser negro é... ser humano! Constitui um elemento crucial na leitura do poema, a nosso ver, a instauração de uma atmosfera de combate dos/das negros/as contra as diversas manifestações de racismo. Com
efeito, é a partir da constatação da existência de “batalhas contra o racismo no mundo” que se constroem sentidos relativos à ideia de ser negro/a. Os autores do poema - assim como todos nós - não estão alheios a esses confrontos. Reiteramos o ponto de vista que compreende a escola como espaço privilegiado de discussão sobre o tema, uma vez reconhecido seu papel de oferecer aos/às estudantes possibilidades de aprofundar conhecimentos relativos à vivência em sociedade. Dada a necessidade de revisão de conceitos pré-estabelecidos no contexto das relações interpessoais, coube aos/às alunos/as proclamar que “ser negro é... ser humano”. A exemplo do poema apresentado, concordamos que esse tipo de declaração pode ir além da conversação cotidiana e materializar-se por meio de versos, ou ainda, ritmos, danças, indumentárias e pratos típicos. O poema “Ser negro...” resulta de uma das propostas que integra o projeto “Sou África!”, que, nas palavras do professor de biologia da Escola, Eduardo Santos, teve como objetivo aplicar a legislação responsável pela inclusão do conteúdo referente à história e à cultura afro-brasileira no currículo escolar. Dessa forma, os/as docentes da instituição, ao assumirem a responsabilidade de realizar anualmente um projeto de caráter interdisciplinar junto aos/às alunos/as, no ano de 2010, decidiram debruçar-se sobre o tema das “Africanidades”. A partir de discussões de planejamento do projeto, definiu-se o título “Sou África” que, de acordo com o professor Eduardo, traduz o principal objetivo da proposta desenvolvida, a saber: “Identificar e caracterizar as principais vertentes da cultura africana que estão presentes no nosso dia a dia e que ajudaram a construir a cultura brasileira.”7 Para o alcance desse objetivo, optou-se por um esforço contínuo de reflexão sobre o tema que efetivamente congregasse os membros da comunidade escolar. Seria necessário, pois, ir além da realização de um evento pontual, da aplicação de uma prova sobre o assunto, e mesmo da sala de aula. Esboçava-se a construção de um projeto sociocultural.
A Gincana Cultural O projeto “Sou África!” foi organizado sob o formato de uma gincana cultural, a ser realizada em quatro etapas mensais, a partir de agosto de 2010.
De acordo com os
coordenadores do evento, as tarefas foram distribuídas ao longo do segundo semestre letivo, a fim de não tornar o trabalho cansativo para os/as estudantes. O cronograma propiciou um 7
O comentário integra a fala do docente no vídeo exibido em uma das etapas do trabalho final referente à disciplina “Projetos socioculturais em espaços escolares”, ministrada pelo professor Alexandre Palma no âmbito do CESPEB.
intervalo razoável entre as etapas do projeto para que os/as professores/as tivessem a possibilidade de discutir os temas em sala de aula e orientar paulatinamente a realização das atividades.8 A iniciativa envolveu todo o corpo discente da escola. Além do professor Eduardo Santos, de Biologia, as professoras Paula Almeida e Bruna Lopes, ambas docentes de Língua Portuguesa, incumbiram-se de coordenar o projeto. Para cada uma das doze turmas, foi nomeado um/uma professor/a-orientador/a responsável pelo acompanhamento das tarefas planejadas pelos idealizadores da proposta entre os meses de agosto e novembro, tais como elaboração de poemas, desenhos, pratos típicos africanos, artesanatos, vídeos, bonecas negras, cartazes e danças. As três primeiras etapas da gincana foram realizadas em sala de aula. Cada empreitada envolveu três momentos: 1) montagem e exposição das tarefas; 2) visitação e avaliação dos/das professores/as; 3) arrumação das salas de aula. A culminância do evento ocorreu em um salão de festas alugado pela escola. Segundo o planejamento, a última etapa ocorreria no dia 22 de novembro, dada a proximidade com o feriado comemorativo da Consciência Negra. Contudo, devido à não disponibilidade de espaço para a realização das atividades, a direção da escola procedeu ao adiamento das apresentações. Novas alterações no cronograma precisaram ser feitas, dessa vez, por um motivo de maior gravidade: a ocorrência de uma operação policial na comunidade onde se localiza a escola e residia grande parte de seu corpo discente à época. Finalmente, no dia 16 de dezembro de 2010, deu-se a culminância do projeto “Sou África!”. Como o ano letivo já estava encerrado e as outras etapas da gincana foram realizadas com êxito, os/as docentes temiam que os/as alunos/as não comparecessem. No entanto, a maioria estava lá. O interesse pela iniciativa do projeto motivou-me a acompanhar essa última etapa presencialmente e registrar algumas percepções, a meu ver, relevantes, para a realização do estudo (BEVILAQUA, 2011) com o qual o presente escrito dialoga. Sons. Luzes. Cores. O ambiente caracterizou-se pela interação entre diversos elementos. Professores/as, alunos/as, funcionários/as e direção se encontravam. Apresentações de dança e encenações representaram a herança africana na sociedade brasileira. Decorridas as atividades, aproveitamos a ocasião para entrevistar os/as professores/as participantes do projeto. Em sua opinião, a gincana cumpriu o propósito de despertar a atenção dos/das alunos/as para aspectos que atestam a presença africana no Brasil em áreas diversas.
Sob uma perspectiva mais ampla, oportunizou um repensar sobre a necessidade de superação de preconceitos e estereótipos relativos a negros/as na sociedade. No que diz respeito à dinâmica de ensino-aprendizagem da escola, os resultados foram igualmente surpreendentes, segundo os/as docentes envolvidos/as. Houve, efetivamente, um maior engajamento por parte dos/das alunos/as no cumprimento das atividades intra e extraclasse. Verificou-se um maior entrosamento na realização das tarefas em equipe. A autoestima de alunos/as e professores/as, que se via afetada por um conjunto de condições adversas89, elevou-se significativamente. Diante do exposto, concluímos que as atividades referentes ao projeto “Sou África!” cumpriram o objetivo de despertar a atenção dos/das discentes para o tema proposto, por meio: (a) das atividades realizadas em grupos, de modo a favorecer o diálogo e o intercâmbio de conhecimentos; (b) do debate relativo à composição da sociedade brasileira, tendo como foco a contribuição de origem africana na culinária, música, linguagem, literatura, esporte etc.; (c) da apropriação e reformulação de diferentes elementos referentes à cultura africana, explorando variados gêneros e linguagens.
Considerações finais No presente capítulo, apresentamos uma reflexão acerca da necessidade do combate ao preconceito e à discriminação contra negros/as na contemporaneidade. Dentre uma diversidade de caminhos possíveis para a abordagem da questão, elegemos o enfoque na potencialidade do trabalho com projetos socioculturais e interdisciplinares no contexto escolar. De modo específico, procedemos à análise do projeto “Sou África!”, realizado em uma escola da rede estadual do Rio de Janeiro. Como ponto de partida para a definição do percurso aqui delineado, destacamos a discussão mais ampla sobre o tratamento da temática das relações raciais no ambiente escolar, tendo em vista o contexto instaurado pela publicação do dispositivo legal que incide sobre a inclusão dos conteúdos referentes à história e à cultura afro-brasileira nos currículos do ensino básico.
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Sobre a situação dos/das alunos/as, destacamos, dentre muitos outros, alguns aspectos já mencionados neste trabalho, como as dificuldades enfrentadas pelo/a aluno/a-trabalhador/a e a difícil realidade do/da morador/a de uma comunidade. Do ponto de vista da condição do/da profissional de educação, faltam linhas neste estudo para apresentar os inúmeros entraves que se fazem presentes no cotidiano de sua atividade, tais como a baixa remuneração e a falta de estrutura das escolas, especialmente no que tange à situação do/da docente que atua na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.
Dessa maneira, foi possível verificar o modo como a iniciativa da realização de projetos pedagógicos possibilita reunir elementos capazes de promover a subversão da ordem cristalizada das práticas educativas, por meio do desenvolvimento de atividades que levem os/as estudantes a se constituírem como protagonistas de sua aprendizagem. Compreendemos como elemento fundamental nesse processo o reconhecimento das expressões culturais dos/das discentes, a partir da consideração do ambiente em que estão inseridos/as. Cabe ressaltar que nosso propósito, nestas linhas, não consistiu em afirmar a realização de práticas escolares como única alternativa para a superação das barreiras do preconceito e da discriminação contra negros/as na atualidade. Antes, com base no entendimento de que a lógica do racismo atravessa os diversos âmbitos da experiência humana, nosso intuito foi o de vislumbrar possíveis caminhos para o surgimento de ações comprometidas com a formação de alunos/as para atuar de maneira crítica e transformadora em sociedade. Acreditamos que o debate sobre relações entre identidade e alteridade caracterize um elemento crucial para o alcance desse objetivo.
Referências bibliográficas BARBOSA, Maria Carmem S. Projetos escolares: um modo seguro de provocar a aprendizagem. Rio de Janeiro: Futuro Eventos, 2003. BEVILAQUA, M. C. N. Multiculturalismo, Arte-Educação e Lei 10.639/03: desvendando imagens do projeto “Sou África!”. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em CESPEB) – Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2011. CHARAUDEAU, P; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2006. BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em: 14 ago. 2020. ____. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 14 ago. 2020. ____. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: DF, 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2010/Lei/L12288.htm>. Acesso em: 14 ago. 2020. ____. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de diretrizes e bases. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, MEC, 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 14 ago. 2020.
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Dilemas e contradições no Programa Escolas do Amanhã na Rocinha Maria Auxiliadora Gomes de Paula Pessôa
Introdução Nos últimos anos, é possível verificar um aumento no número de ONGs atuantes em nossa sociedade. A maior parte dessas instituições possui vínculos históricos com os movimentos sociais, no entanto existem acusações sobre o seu papel na internacionalização da Amazônia Legal, na lavagem de dinheiro ilegal ou no uso político-partidário. No campo educacional, mesmo com experiências significativas, o assunto é polêmico em virtude de muitos especialistas apontarem o seu crescimento como parte do processo de privatização da educação pública brasileira. Neste momento em que se investem recursos públicos para ampliação do tempo escolar, no Município do RJ, algumas experiências de educação integral promovidas por órgãos públicos estreitaram parcerias com essas instituições. Um dos exemplos é o projeto Escolas do Amanhã no CIEP Dr. Bento Rubião na Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina. Por isso, ressalta-se a importância de analisar a natureza, o sentido e o significado da educação não formal, como produtora de saber. Assim, vamos sublinhar o perfil e o papel do profissional que atua nesse segmento, denominado também educador social e ou oficineiro. Isso permitirá conhecer as principais práticas desenvolvidas pelos educadores e as ações coletivas geradas na construção do processo de conhecimento, na educação não formal, qualificando sua natureza. Algumas outras dimensões da realidade social, produtoras de saber, virão à tona, tais como, as da cultura popular, das aprendizagens cotidianas por meio da educação não formal que predominam nos trabalhos desenvolvidos junto a muitas pessoas que participam de projetos sociais comunitários.
Os Movimentos Sociais e a Educação A cidadania é um fenômeno do mundo moderno ligado ao desenvolvimento do capitalismo e à luta por direitos por diferentes grupos sociais. E a educação é um meio pelo qual os indivíduos instrumentalizam-se de mecanismos básicos para formar uma consciência mais ampla e crítica, na expectativa de fazer valer seus direitos. Assim, surgem os movimentos
e organizações que procuram conscientizar os indivíduos da sua condição enquanto sujeitos de direitos e consequentemente de deveres. Para Maria da Gloria Gohn (2009, p.16), a cidadania seria o elo na relação entre os movimentos sociais e a educação, porque a cidadania coletiva se constrói no processo de luta, que é um movimento educativo. Trata-se de um processo interno, que ocorre no interior das práticas sociais em curso, como um produto das experiências do cotidiano, e não por decretos, por intervenções, por agentes ou programas elaborados. Nessa perspectiva, a Educação tem um sentido amplo que não se restringe ao processo de ensino-aprendizagem, é algo conquistado e socializado para um universo muito mais abrangente que as instituições escolares. Segundo Gohn, o caráter educativo dos movimentos sociais constrói-se de diversas formas, em vários planos e dimensões que se articulam sem uma hierarquia estabelecida. A dimensão da organização política acontece durante o processo de luta e reivindicações sobre determinadas questões e os indivíduos tomam conhecimento de seus direitos e deveres, levando-os a organizarem-se em grupos para entenderem o processo de funcionamento do problema que querem conhecer e transformar. Tal processo possibilita aos participantes dos movimentos sociais conhecerem informações, engrenagens, técnicas e diferentes interesses. A dimensão da cultura política está associada à prática cotidiana nos movimentos sociais, porque as experiências do grupo (passado e presente) são resgatadas no imaginário coletivo do grupo para fornecer elementos para a interpretação do presente e a construção do futuro. Nessa dinâmica, aprende-se a não ter medo do proibido e do inacessível, a descobrir o porquê das restrições e exclusões, a acreditar no poder do discurso e das ideias, a resignar-se diante de uma situação diversa, a criar códigos específicos para solicitar mensagens, a não abrir mão de princípios que norteiam seus interesses Quanto à dimensão espacial-temporal, podemos caracterizá-la como a identificação do ambiente construído, do espaço gerado e apropriado pelas classes sociais na luta cotidiana. A participação em encontros, seminários, congressos, assembleias, contribuem para formação de uma visão histórica das lutas. E a apropriação dos espaços públicos, para atividades grupais ou para manifestações, contribui para o desenvolvimento da consciência da cidadania no sentido do uso da coisa pública.
No Brasil, nos anos 80 surgiram grandes demandas sociais em virtude da redemocratização no Brasil com a promulgação da nova Carta Constitucional, a Constituição Cidadã de 1988. As reivindicações que antes eram feitas nas ruas transformaram-se em propostas políticas. Emergem nesse contexto organizações sociais com formas, modelos, bandeiras e lutas diversas que desejam participar da redefinição política do país de forma mais efetiva nas conquistas de direitos, cidadania, qualidade de vida para vários setores sociais, historicamente discriminados e oprimidos. Segundo GOHN (2009, p.101 e 102), os movimentos sociais passaram de uma fase de otimismo a descrença por uma série de fatores de transformações políticas, econômicas e sociais tanto nacionais como internacionais que caracterizaram o final da década de 80. Ela aponta a mudança na composição dos agentes responsáveis pela implementação e fiscalização das políticas públicas, o crescimento do associativismo, o surgimento das centrais sindicais e das organizações não governamentais (ONGs.910). Para Gohn (2010, 2009, 2002), as reformas neoliberais deslocaram as tensões sociais para o plano cotidiano. Aumento do desemprego, violência, diminuição de oportunidades no mundo do trabalho, constrangimento dos direitos dos indivíduos, assim como a descentralização estatal das operações de atendimento na área social foram alguns fatores para a criação de novos canais de mediações. Para Montaño (2002 apud Brenner, 2006 p.20 e 21), nos anos de 1990 as ONGs tomaram força e saíram do papel coadjuvante dos movimentos sociais para atuarem em propostas mais genéricas, mais diversificadas. As ONGs, que antes davam estrutura e apoio (financeiro e técnico) para que os movimentos sociais pudessem manter o protagonismo de suas lutas e reivindicações, tinham agora outra postura na maneira de conduzir suas ações. Com a reconstrução dos países do Leste Europeu, houve uma diminuição do fluxo de recursos para a América Latina, o que levou as ONGs a buscarem alternativas de financiamento - Estado, empresas etc. – possibilitando abertura para outras fontes de recursos e consequentemente interferindo no direcionamento de seus ideais e objetivos. Atualmente, as ações sociais são criadas através de articulações financeiras, por promoções e empreendimento do Terceiro Setor.
9 Organizações formais, privadas, porém com fins públicos e sem fins lucrativos, autogovernadas e com participação de parte de seus membros como voluntários, objetivando realizar mediações de caráter educacional e político, assessoria técnica, prestação de serviços e apoio material e logístico para populações-alvo específicas ou para segmentos da sociedade civil, tendo em vista expandir o seu poder de participação com o objetivo último de desencadear transformações sociais ao nível micro (do cotidiano e/ou local) ou ao nível macro (sistêmico e/ou global) (Scherer Warren, 1995, p.165).
As ONGs avocaram para si o papel dos grandes protagonistas para concretização de políticas públicas que tentam minimizar os impactos das exigências da vida contemporânea. Para a pesquisadora Lívia Marques Carvalho (2008, p. 15), essa realidade impôs-se Porque o mercado e o Estado não estão conseguindo minimizar as contradições geradas pelas desigualdades sociais e pelo crescente processo de globalização. As ONGs, neste contexto, propõem a combater a exclusão social através de ações educativas articuladas em conjunto com a iniciativa privada e o Estado.
A organização da comunidade e os contextos políticos e sociais da Rocinha A Rocinha é uma das maiores favelas da América Latina e está localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, entre a Gávea e São Conrado, bairros de classe média alta. A favela teve origem na divisão em chácaras da antiga "Fazenda Quebra-Cangalha". Esses terrenos foram adquiridos por imigrantes portugueses e espanhóis que o transformaram, por volta da década de 1930, num centro fornecedor de hortaliças. Após a década de 1940, a industrialização, os intensos movimentos migratórios, o analfabetismo e a crise de habitação fizeram-se notar. Segundo os dados oficiais do Censo do IBGE/2000, a Rocinha teria uma população de 58.339 habitantes., porém a Companhia Elétrica do Estado do Rio de Janeiro faz uma estimativa de 130.000 habitantes. Nos últimos 20 anos, tem-se observado que a tendência da taxa de crescimento populacional da Rocinha está em alta. Para alguns especialistas, a comunidade da Rocinha é uma das mais violentas da cidade do Rio de Janeiro, um terreno fértil para iniciativas de promoção e melhorias à vida social humana, com grande oferta de projetos socioeducativos e socioculturais para seus moradores, oferecidos por organizações ONGs que trabalham em parceria com as Secretarias Públicas de Assistência Social, Cultura, Educação, Esporte e Saúde nas três esferas governamentais. Dentro desse conjunto diversificado de organizações sociais, algumas são mais atuantes, promissoras e já estão em campo há décadas na comunidade. Quanto às áreas de trabalho, elas dividem-se em: programas sociais de apoio a crianças, jovens/adolescentes, idosos, mulheres; prestação de serviços à comunidade, principalmente na área de saúde, educação e habitação; projetos culturais e socioeducativos. Oferecem cursos (alfabetização, profissionalizantes, artesanato, idiomas, informática), serviços sociais e um variado conjunto de atividades para todas as idades, mas caracterizam-se principalmente pelo atendimento a adolescentes justamente porque eles são alvos das forças organizadas do crime, como contravenção, drogas, exploração sexual.
Programa Escolas do Amanhã na Rocinha Há alguns anos, a Escola Municipal CIEP Dr. Bento Rubião, localizada na favela da Rocinha, foi inserida ao Projeto Escolas do Amanhã10 11 pelo Decreto Municipal nº 31022 de 24 de agosto de 2009. Esse programa propõe mudar a realidade de alunos que estudam em áreas conflagradas da Cidade do Rio de Janeiro, diminuindo a evasão escolar e melhorando o rendimento dos alunos utilizando metodologias, estratégias e recursos diferenciados para contornar bloqueios de aprendizado das crianças que diariamente estão expostas a violência. A principal estratégia desse programa é a Educação em tempo integral, no conceito Bairro Educador, em que se mobilizam os potenciais da comunidade para ajudar na educação das crianças, no contraturno. Essa Escola Municipal oferece os cursos de Ed. Infantil e 1º, 2º e 3º ano do Ensino Fundamental, participa de projetos em parceria com o Governo Federal,1112. e desenvolve alguns projetos com ONGs que atuam em colaboração para atenderem as necessidades da população do entorno. Mas, a implementação dessas parcerias e as dificuldades para se adaptar à nova proposta pedagógica são grandes, porque faltam recursos humanos, físicos, financeiros estruturais e, principalmente, gestão nos processos de ações para ampliação do tempo diário de permanência das crianças na escola.
As oficinas e os oficineiros Para articular as ações do horário integral e das oficinas culturais dos programas Escolas do Amanhã e Mais Educação, a SME em conjunto com a direção escolar contrata educadores especializados ou não para trabalharem nas oficinas oferecidas. As modalidades escolhidas são aquelas que possuem maior número de educadores disponíveis e não aquelas mais desejadas ou próprias aos discentes da comunidade escolar. 10
Programa Escolas do Amanhã, contem basicamente os seguintes itens: - atividades no contraturno: artes, esportes e reforço escolar; - metodologia de ensino mais dinâmica, voltada a desfazer desbloqueios cognitivos gerados pela violência; - professores e funcionários ganhando um prêmio anual de desempenho maior se as crianças aprenderem mais; - laboratório de ciências em cada sala de aula, método centrado em experimentação que desenvolve a capacidade investigativa e o prazer de aprender, para combater a evasão escolar e aprofundar a aprendizagem; - computadores em sala de aula para solidificar o aprendizado das matérias, de forma lúdica; - mães e avós comunitárias que ficam no recreio e ajudam na busca de crianças que deixam de ir às aulas; - abordagem que integra diversas secretarias para resolver os problemas com que se defrontam os alunos, especialmente as Secretarias de Assistência Social, de Saúde, de Cultura, Esporte e Lazer e a da Pessoa com Deficiência. . 11 Programa Mais Educação, instituído pelo Decreto Nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010, tem por finalidade contribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliação do tempo de permanência de crianças, adolescentes e jovens matriculados em escola pública, mediante oferta de educação básica em tempo integral. Assegura a verba necessária ao andamento operacional do programa Escola do Amanhã.
Segundo a direção da escola, apesar de haver um número grande de ONGs na comunidade que desenvolvem trabalhos que visam à qualificação de mão de obra para atuarem em oficinas culturais, poucas são aquelas que se interessam em trabalhar em parcerias com SME. O discurso das ONGs é o da desistência da escola. Os profissionais alegam que o salário é pouco atrativo, as condições do espaço físico não são boas, o número de alunos é muito grande, não há um planejamento coletivo com a participação de todos os envolvidos, a escola geralmente é fechada ao diálogo, os professores são resistentes aos projetos e educam para outra perspectiva, falta continuidade aos projetos e é baixa a credibilidade nas intenções do governo municipal e federal no que se refere às políticas públicas em educação. Nesta UE há um grupo de docentes que já possui uma matrícula na escola e também trabalha nas oficinas do Programa Mais Educação. São oficinas de Esportes, Artes (cênicas e visuais), Informática e Inglês. O público alvo são as turmas de Educação Infantil e o 1º, 2º e 3º ano das séries iniciais. Para atuarem nesse projeto, os docentes assinam um termo de compromisso junto à SME e à Direção Escolar, concordando em sair da função, caso a SME venha a convocar novos concursados para preencherem as vagas na instituição. Há também um segundo grupo de educadores que fazem parte do Programa Escolas do Amanhã e não possuem vínculos com SME. São contratados pela Direção da escola. Como já foi dito, esses profissionais são indicados pelo Educador Comunitário que faz o intercâmbio entre a escola e as diversas ONGs existentes na Rocinha. Ele entrevista, faz o cadastro, depois os encaminha à direção da escola, que deverá avaliá-los e contratá-los. Os profissionais que ensinam nas oficinas do contraturno dessa unidade escolar são denominados oficineiros. Esse termo é muito usado no Terceiro Setor para designar o ministrante de oficinas, que foi convidado ou contratado, temporariamente, para ensinar determinado assunto ou técnica de forma remunerada.1213 A Secretaria Municipal de Educação adotou essa termologia nos contratos que estabelece com esses profissionais. Logo, para efeito de entendimento neste estudo, tanto os docentes quantos os educadores sociais serão denominados oficineiros, já que todos assinam um contrato de prestação de serviço para trabalharem em oficinas. Para se ter um perfil mais detalhado do trabalho que esses profissionais desenvolvem na escola, foram feitas algumas perguntas em relação a suas trajetórias pessoais e suas práticas e 12
Os oficineiros do Projeto Escola Integral recebem salário base de professor I mais benefícios. Os oficineiros do Projeto Cultural recebem R$ 60,00 por turma (5 turmas no máximo por mês). Fonte: Depoimento da coordenadora pedagógica do CIEP Dr. Bento Rubião em abril de 2010.
perspectivas em relação aos Programas desenvolvidos na escola, dando mais ênfase ao Programa Escolas do Amanhã. As respostas revelaram que parte dos oficineiros está no exercício do magistério há mais de 5 anos, possui escolaridade compatível com o cargo que exerce e escolheu a carreira pública por questões de estabilidade financeira. Demonstram que, por mais penoso que seja o trabalho em uma escola em área de risco, a remuneração diferenciada acrescida dos benefícios como difícil acesso e dupla regência são atrativos, tendo em vista a baixa remuneração que é direcionada à classe dos profissionais da Educação. Como destaca a professora de Educação Física que atua em uma oficina de esporte:
Estou há 26 (vinte e seis) anos trabalhando no Município do Rio de Janeiro como professora I da aludida matéria. Fiz outros concursos, tendo sido muito bem classificada. Mas, como tenho feito para a 2ª CRE onde as vagas, teoricamente, são poucas, o MRJ tem preferido se utilizar de contratações temporárias. Cheguei à condição de oficineiro para complementar a minha carga horária com a chamada DR (dupla regência). Ocorre que, afora a grandeza da proposta das oficinas, entendo que o maior problema está concentrado na forma como os oficineiros são tratados. Para começar, devem assinar um termo de responsabilidade no seguinte sentido: a dupla regência será cancelada com a possível chegada de professor oriundo de concurso público ou cedido. Ora, se há oficineiros, que são professores concursados, por que não convocá-los definitivamente, de forma efetiva, para ocuparem um lugar que lhes pertence por direito?
Por outro lado, os oficineiros que não possuem vínculo empregatício com o Município percebem que a possibilidade de trabalharem como oficineiros na escola seria uma maneira de interagir com outros profissionais, outras práticas, concepções que somam àquelas que já possuem, sendo uma forma de reconhecimento profissional por ganharem uma remuneração pelo trabalho que produzem e por terem sido escolhidos para atuarem naquele espaço escolar. É interessante observar que alguns desses profissionais são ex-alunos da escola e já atuam como voluntários em diversos programas sociais desenvolvidos na comunidade. Cheguei ao Programa Escolas do Amanhã através da Escola de Música da Rocinha, na verdade para substituir outra oficineira do Programa Mais Educação. Participo das atividades desde agosto de 2010. Minha oficina se dá através da voz (o canto) e o uso de instrumentos de percussão. Gosto de trabalhar com a criatividade das crianças, com a capacidade de elas improvisarem os ritmos, descobrir novos sons... Sou integrante de uma banda (Jazz) na EMR, da orquestra (Orquestra de sopros e cordas), mas não sei se a orquestra vai continuar, pois perdemos nosso apoio (Criança Esperança) e a EMR está sem verba para continuar pagando professores e regente. Ser uma oficineira do Ciep Dr. Bento Rubião é muito gratificante, pois sou ex aluna, e fico super feliz em estar na equipe, em ser chamada de tia. Fazer parte da equipe é um retorno, minha caminhada começou lá. Adoro chegar lá e encontrar as crianças, muitas delas filhos de ex alunos, colegas da minha época de estudo. Minha expectativa é contribuir para o crescimento deles. Apresentar diferentes ritmos, pois em nossa realidade o funk predomina. .
Analisando os relatos das oficineiras, percebe-se que suas expectativas em relação ao trabalho são bem diferenciadas. A professora de Educação Física tem uma visão crítica em relação à proposta da Secretaria de Educação pelo fato de não ver nenhuma necessidade de se contratar pessoas fora da comunidade escolar para realizarem as oficinas. De acordo com esse entendimento, a escola deveria dar conta da educação formal e não formal sem necessidade de buscar fora da escola educadores para atuarem como oficineiros. Ela explica que através das contratações de oficineiros o Município demonstra que a sua intenção é não convocar os docentes (Artes, Música, Educação Física) aprovados em concurso público, haja vista que representam um ônus maior aos cofres da prefeitura, pois serão admitidos como servidores estatutários. Já com a contratação de oficineiros da comunidade, não haverá tanto impacto aos cofres públicos, porque não possuem vínculos empregatícios, e as oficinas realizadas podem ser extintas a qualquer momento sem necessidade ou obrigação com a continuidade. Por exemplo, hoje a escola oferece oficina de Música, daqui a um mês pode ser extinta sem nenhum entrave administrativo, porque não há uma regulamentação especifica. Dessa forma, para ela, essa seria mais uma estratégia de a prefeitura mascarar um processo de privatização do ensino. Ao contrário, a oficineira de música encontrou na proposta da SME uma oportunidade para praticar toda a experiência que acumulou na ONG Escola de Música da Rocinha. Vê nas crianças da escola a possibilidade de realizar um trabalho mais significativo porque conhece bem o contexto das crianças que moram na comunidade. Demonstra que se sente bem quando percebe que está sendo útil em poder realizar um trabalho de alcance social e contribuir para o desenvolvimento pessoal e social de seus alunos. Atualmente no Brasil existe um crescente sentimento antiescola, muitos apontam a escola como o bode expiatório das crises econômicas, da falta de emprego etc. Esse sentimento desperta nos profissionais das instituições públicas uma desconfiança em relação a inferências advindas de setores privados que buscam parcerias, principalmente em escolas de áreas de riscos, com objetivos de melhorar a qualidade do ensino público através de projetos elaborados de forma unilateral sem a participação da comunidade escolar, desconsiderando as reais necessidades da escola.
Dilemas e contradições Basicamente, os oficineiros contratados preenchem uma ficha cadastral de identificação simplificada e não há uma justificativa com suas intenções, não há um relato sobre suas experiências, práticas, formação, um exame de saúde. Porém, no âmbito da educação formal, como mesmo ressalta Maria da Gloria Gohn (2010, p.16-17), o educador/oficineiro é fundamentalmente um professor que atua em espaços regulamentados por leis, organizados segundo diretrizes nacionais. O ambiente onde acontece o processo educativo é normatizado, com regras, legislações e padrões comportamentais definidos previamente, assim como o perfil do corpo docente e as metodologias de trabalho. Conhecendo o contexto da comunidade em matéria de risco e violência, obter informações precisas sobre as pessoas que irão frequentar a unidade escolar traria mais respaldo e segurança a todos os envolvidos. São centenas de crianças que estão expostas a pessoas que passaram por avaliações pouco criteriosas. As oficinas do programa Escolas do Amanhã e Mais Educação são inspiradas em concepções de projetos de educação não formal desenvolvida por ONGs. Essa outra forma de educação caracteriza-se justamente por não ter um caráter formal nos processos escolares e por não ser normatizada por instituições superiores oficiais. Mas, nos processos seletivos realizados em ONGs, segundo Lívia Marques Carvalho (2008, p.107), o propósito é selecionar um educador não somente com disponibilidade de horas semanais, deve-se traçar um perfil do profissional e definir critérios para julgamento, como por exemplo observar, além da formação e da experiência profissional, as concepções dos candidatos acerca do trabalho educativo realizados nas escolas e em ONGs, as suas percepções sobre o papel da sua oficina no campo de ensino, além de atributos especiais, tais como: liderança, autonomia, capacidade para trabalhar em equipe, habilidade no relacionamento interpessoal, capacidade para agir com responsabilidade. O relato a seguir exemplifica a formação desse profissional: Sou formada em pedagogia, tenho formação de brinquedista. e atuo na área de brinquedoteca em creches comunitárias em São Gonçalo, Rocinha e Baixada. Em 2007, conheci o projeto Escolas do Amanhã através do curso de brinquedista. Também participo do projeto Ação Griô na Rocinha, sou griô aprendiz que conta história, ouve história e busca dentro da comunidade, com idosos, alguns saberes para as crianças e jovens com os quais trabalhamos. Quanto às minhas expectativas é poder trocar experiências lúdicas e deixar as crianças realmente serem crianças. Acredito que a proposta do projeto de oficinas culturais do Programa Escolas do Amanhã pode devolver à criança o direito de brincar. A minha maior referência cultural é saber respeitar as brincadeiras e costumes de cada um. (Oficineira do CIEP Dr. Bento Rubião)
Segundo Enguita (2009 apud Gohn, 2010 p. 14), a aceleração da mudança social rompe com antigas coordenadas espaço-tempo do ensino aprendizagem. Toda mudança social que a escola não pode seguir e reproduzir por si mesma está nos entes sociais do entorno com os quais terá de aprender a trabalhar em redes de cooperação de estrutura e educação variável. Articular a educação com os processos de formação dos indivíduos como cidadãos ou articular a escola com a comunidade educativa é uma urgência e uma demanda. A escola deve trabalhar com um conceito amplo de educação que envolve campos diferenciados, com a educação formal de conteúdos demarcados; com a educação não formal que se aprende através dos processos de compartilhamento de experiências, em espaços e ações coletivas cotidianas; e com a educação informal na qual os indivíduos aprendem durante o processo de socialização proveniente das relações intra e extrafamiliares, incorporando valores, culturas e sentimentos herdados. Mas, não necessariamente dentro do espaço escolar. Para Antonio Nóvoa1314,a por uma série de motivos a escola foi tomando para si responsabilidades que deveriam ser compartilhadas e cobradas por outras instituições sociais. A dificuldade estaria em dividir o conteúdo escolar do conteúdo social, já que os alunos têm enormes carências sociais e, por isso, há necessidade de ceder espaços para atividades que ajudam na promoção da igualdade de direitos. Mas, para haver inclusão social, é fundamental que os alunos aprendam os conteúdos básicos do conhecimento e da cultura. Sou arte-educadora com licenciatura plena, e tudo que estudei, para colocar em prática com alunos da escola pública foi quase um choque a cada aula. A universidade não capacita para aplicar o erudito nas salas de aula, e por outro lado, nas instituições de ensino básico há uma demanda da diversão sem custo na aprendizagem rasa, as aulas de artes são um passatempo, sem conteúdo a ser dado, muitas vezes os planejamentos são superficiais, outra coisa que percebo que não há uma separação da arte para o artesanato e são coisas bem diferentes, esse pode ser um grande entrave para os oficineiros, nas oficinas de artes em algum momento há de se falar no conteúdo, ou seja, trazer o erudito, não é diminuir em nada a cultura local, ao contrário é permitir trocas simbólicas. Toco nessa questão porque sinto falta disso nas reuniões pedagógicas, me parece que as oficinas de artes ficam com o papel exclusivo da diversão, em nada impede que essas aulas se tornem um forte recurso para a aprendizagem, é lógico que isso vai determinar num número menor de analfabetos. (Arte Educadora do CIEP Dr. Bento Rubião)
As condições de trabalho nesta UE esbarram nas condições estruturais da escola: salas divididas para atender duas turmas, salas abertas com meias paredes, número de matriculas que aumenta a cada ano 45,69% por conta da pressão por vagas, mas sem recursos humanos e espaço físico adequado para essa demanda. Por isso, professores falam mais alto prejudicando a voz. Há dificuldade de se usar outros espaços além da sala de aula para executar atividades
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3 Revista Nova Escola- Gestão Escolar - Edição 008 | Junho/Julho 2010 | Título original: À escola o que é da escola.
mais livres, mantendo os alunos grande parte do dia executando apenas atividades na sala de aula em horário integral. As questões relatadas estão diretamente relacionadas à insuficiência dos recursos humanos e financeiros disponibilizados pelos programas de políticas públicas na Educação1415, que não contemplam de maneira eficaz e realista as necessidades que envolvem a implementação das ações propostas. Com a quantidade de problemas estruturais que compõem um estabelecimento de grande porte como um CIEP, os benefícios financeiros e de descentralização de gestão trazidos pelo PDDE, são insuficientes para provocar grandes mudanças na instituição. Mas para LIBÂNEO (1994, p. 116), o ambiente físico escolar exerce um efeito estimulador para o estudo do aluno. Por isso, devemos pensar que qualquer proposta de escola que imprima uma marca mais pedagógica ao seu dia a dia, deve se preocupar em ser um local agradável, prazeroso, estimulante à aprendizagem, onde alunos e professores possam trabalhar e criar com liberdade e segurança, interagindo com os espaços, as pessoas, os objetos. Esses projetos estão sendo executados de forma improvisada, sem a quantidade suficiente de suporte físico, técnico, financeiro e humano, numa perspectiva descendente de planejamento que não leva em conta a consolidação do PPP da escola. Ouvimos relatos de como essa escola já teve no passado mais atenção dos governos anteriores. Pelo que foi dito, parece que houve uma ruptura do Estado por conta da ascensão do narcotráfico que domina a comunidade. Desde então, a UE tem sido esquecida pela SME.
Considerações finais No passado, os movimentos sociais ligados à orientação da chamada educação popular caracterizavam-se pela luta e defesa de um ensino público de qualidade para todos. Atualmente, essa bandeira marca a atuação das ONGs que se dedicam especialmente à Educação, colaborando na ação direta de oferta dos serviços educacionais em que o Estado se retira ou não entra. Algumas ONGs foram escolhidas pela Prefeitura Municipal para produzirem materiais didáticos, capacitarem professores e atuarem no plano das orientações pedagógicas para
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4 O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) presta assistência financeira, em caráter suplementar, às escolas públicas da educação básica. Engloba várias ações e objetiva a melhora da infraestrutura física e pedagógica das escolas e o reforço da autogestão escolar nos planos financeiro, administrativo e didático, para elevar os índices de desempenho da educação básica.(http://www.fnde.gov.br/index.php/programas-dinheiro-direto-na-escola) O PDDE também é destinado à adoção de educação integral, com a oferta de, no mínimo, sete horas diárias de aula e reforço de atividades de aprendizagem, lazer, arte e culturai, entre outras. Os recursos servem para transporte e alimentação dos monitores, para a contratação de serviços e para a compra de material permanente e de consumo necessários para o desenvolvimento das atividades de educação integral. 2010. (http://www.fnde.gov.br/index.php/ddne-funcionamento).
desenvolverem atividades complementares em toda a rede municipal de educação a fim de viabilizarem os programas de políticas públicas de educação integral (Escolas do Amanhã e Mais Educação). Contudo, convém salientar que projetos destinados a oferecer atividades de caráter complementar à escola precisam de uma interação inicial com a comunidade local para que a definição das ações parta de suas demandas. Durante este trabalho de pesquisa, não foi encontrado documento, parecer ou pesquisa da SME que objetivasse conhecer as reais necessidades, interesses da comunidade escolar para que os impactos de implementação fossem mais discutidos e redimensionados. É mais difícil que alguém execute bem ou aceite na integralidade ser objeto de ações de cuja previsão não participou. Por mais competentes que sejam os técnicos, engenhosos, consistentes e oportunos seus diagnósticos e prognósticos, nada disso garante – mesmo que nos abstraiamos dos aspectos políticos e éticos – nada garante, repetimos, a eficiência de um planejamento assim elaborado, porque as metas e os objetivos só ganham consequência quando são incorporadas pela maioria. E essa maioria só incorpora bem qualquer proposta, na medida em que participa de sua concepção e formulação. (Gadotti; Romão, 2004 p, 79)
Foi possível também identificar diferentes perfis dos educadores sociais/oficineiros. Neste caso, foi observada a falta de formação específica a esses educadores a partir da definição do seu papel e das atividades que são realizadas, acesso às formas de conhecer a realidade social, alvo dos programas educativos, características dos processos culturais e socioeducativos locais. É necessária a criação de metodologias e indicadores para estudo e análise dos trabalhos em campo não sistematizados, pois as metodologias utilizadas na educação não formal, no processo de aprendizagem partem da cultura dos indivíduos e dos grupos e o método nasce a partir da problematização do cotidiano. Na prática, as oficinas culturais ocupam um lugar secundário na programação do Projeto Escolas do Amanhã. Vimos, também, que o quadro terceirizado de profissionais gera rotatividade na escola, impede a criação de um vínculo com a comunidade escolar, tão importante para o processo educacional e para a segurança. A presença de oficineiros, voluntários e estagiários traz ao ambiente escolar o convívio com pessoas estranhas, dificultando o reconhecimento diário de quem, de fato, trabalha e estuda na escola. O servidor público é um profissional que atua após passar na seleção de um concurso público, tendo sido verificada sua aptidão, que, de certa forma, garante sua idoneidade. Como vimos, à seleção dos oficineiros é pouco criteriosa. As parcerias público-privadas na promoção do horário integral podem trazer uma importante contribuição para a área educacional, mas é necessário que a população entenda que há um jogo de forças políticas dos agentes envolvidos nesse processo e a cobrança junto ao
poder público deve estar na agenda de prioridades dos conselhos e colegiados, reivindicando maior transparência nos procedimentos de escolha das instituições privadas contempladas para realização dos programas de políticas educacionais, uma vez que, por exemplo, não incluem o direcionamento dessas verbas no aumento do salário dos profissionais da educação. Cabe lembrar que a gestão participativa da escola deve ter em mente a formulação de estratégias que congreguem forças no intuito de promover movimentos sociais reivindicatórios para condições mais justas e humanas de trabalho " já que na escola pública, que atende às camadas populares, tanto diretor quanto professores, demais funcionários, alunos e pais possuem, em última análise, interesses sociais comuns, posto que são todos trabalhadores, no sentido de que estão todos desprovidos das condições objetivas de produção da existência material e social e têm de vender sua força de trabalho ao Estado ou aos detentores dos meios de produção para terem acesso a tais condições" (Paro, 1992, p.42).
De acordo com o critério de implementação do programa Escolas do Amanhã, ou seja, desempenho escolar versus exposição à violência, o programa deveria ser estendido a praticamente todas as escolas públicas do município da cidade do Rio de Janeiro, uma vez que a violência em nossa cidade não se restringe somente a áreas apontadas pela Prefeitura como conflagradas. A clientela atendida pela rede é a que apresenta maiores índices de carências sociais e econômicas da cidade. Todas as regionais enfrentam problemas diários por conta do descomprometimento do poder público não somente no que se refere à Educação, mas nas diversas necessidades básicas voltadas às populações desfavorecidas.
Referências bibliográficas BARBOSA, Maria Carmem S. Projetos Escolares: um modo seguro de provocar aprendizagem. 3º Seminário Internacional de Educação. Rio de Janeiro, UERJ, 2003. BRENNER, Ana Karina. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro: um campo de interações e conflitos entre governo e sociedade. Dissertação de Mestrado (Políticas Públicas e Movimentos Instituintes) – Universidade Federal Fluminense - Faculdade de Educação, Niterói/RJ, 2006. CARVALHO, Lívia Marques. O ensino de arte em ONGs. São Paulo: Cortez, 2008. CUNHA, Luiz Antônio. Educação, Estado e democracia no Brasil. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2009. ENGUITA, Mariano F. Centros, redes, proyets. In: Caderno de Pesquisa Pensamento Educacional Curitiba: PPGE - Universidade Tuiuti, UTP, v. 4, n. 7, p. 23-39, 2009.
GADOTTI, Moacir; ROMÃO, José E. (orgs.) Autonomia da escola: princípios e propostas. 6.ed. São Paulo: Cortez e Instituto Paulo Freire, 2004. GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010. _______, Movimentos Sociais e Educação. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009. _______, Conselhos gestores na política social urbana e participação popular. In: BÓGUS, Lúcia; Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz (Orgs). Cadernos Metrópolis, São Paulo, Edc, n. 7, 2002. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994. MONTAÑO, Carlos. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002. PARO, Vitor Henrique, et al. A escola pública de tempo integral: universalização do ensino e problemas sociais. Cadernos de Pesquisa, s.l., n. 65, p. 11-20, 1988. __________. Participação da comunidade na gestão democrática da escola pública. Série Idéias, São Paulo, n.12, p.39-47, 1992. __________. 1945- Administração Escolar: introdução crítica.10. ed. São Paulo: Cortez, 2001. SHERER-WARREN, Ilse. ONGs na América Latina: trajetória e perfil. In: Coletivo de Autores. Meio ambiente, desenvolvimento e cidadania. São Paulo: Cortez, 1995.
Leis e Estatutos BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394 de 20 de dez.1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF. _______, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8069 de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF. BRASIL, Ministério da Educação. Decreto Nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010. O Programa Mais Educação. PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO, Secretaria Municipal de Educação, Decreto Municipal nº 31022 de 24 de agosto de 2009. Projeto Escolas do Amanhã.
Capítulo 2
Arte e democratização da cultura
A Escolinha de Arte do Brasil e a invenção da expressão criadora da criança Juliene Raquel Neves
Introdução Em certa ocasião, o artista plástico e educador Hélio Rodrigues realizou encontros com oficinas e palestras para os professores no meu ambiente de trabalho. Sua fala motivou em mim esses olhares disparadores no que diz respeito à infância, arte educação, bem como quanto à importância de essas áreas estarem atreladas. O tema da expressão da criatividade reapareceu recentemente nas palavras de Hélio Rodrigues (BRITTO; PALMA, 2019, p.102 e 103): “É emocionante também porque todo o meu princípio não foi na Escolinha de Arte do Brasil, mas uma referência, está aqui muito presente; é bom esse valor presente nesse universo. Quando a gente fala em arte-educação, se tem uma ideia muito romântica da profissionalização do artista ou a descoberta de talentos. Não deixa de ser uma descoberta de talentos, mas não necessariamente a formação do artista. O talento, a pessoa, o desenvolvimento do sujeito, arte na verdade permeia tudo. Ela vai estar presente em todas as escolhas que a gente faz pela vida. Sem ela temos capacidade, por exemplo, de transformar informação em conhecimento. De informação a gente está cheio, com a internet trazendo tanto conhecimento. É algo que depende minimamente de um sujeito para subjetivar isso e ver o que realmente interessa. A arte na educação cumpre esse papel tão importante de revisão da estética, de contato e valorização da diversidade. Hoje se fala tanto em diversidade e se aprofunda tão pouco nela: é ela que nos garante crescimento.”
A pesquisa foi baseada na pergunta: qual é a contribuição da Escolinha de Arte do Brasil na percepção moderna sobre a expressão criadora da criança? A identificação do problema e o interesse em investigá-lo partiu da minha experiência com educação infantil no contato com propostas de arte, a qual privilegia o processo, a interação com os materiais, as descobertas, a exploração, a criatividade a espontaneidade, de forma que valorize o processo da produção de cada criança. Observar esse movimento me fez conhecer a precursora Escolinha de Arte do Brasil, um fenômeno fundamental que surgiu a partir da ação de um grupo interdisciplinar liderado pelo artista plástico e educador, Augusto Rodrigues (1913 – 1993), influenciando até hoje, espaços e escolas do Brasil através da arte na educação. É a partir dessa iniciativa que este estudo acentua a contribuição da Escolinha na percepção moderna sobre a expressão criadora da criança, em
uma ruptura com as práticas tradicionais. Este trabalho tem como objetivo apresentar a contribuição da Escolinha de Arte do Brasil, destacando o diálogo moderno da escola nova com ênfase na expressão criadora da criança. Para isso, utilizamos referências de filosofia da educação que irão embasar nosso olhar, para ilustrar o modernismo como ruptura de um ensino tradicional, explicitando concepções que embasaram a Escolinha de Arte do Brasil. Este texto retoma reflexões inicialmente apresentadas na Monografia que apresentei ao término do Curso de Pedagogia na Faculdade de Educação da UFRJ com Orientação do Professor Dr. Alexandre Palma e discute concepções das vanguardas do modernismo educacional na primeira metade do século XX com ênfase na infância. Tal movimento inspirou e caminhou com a criação da Escolinha de Arte do Brasil. A filosofia da educação moderna desta instituição é norteadora para análise do movimento de ruptura com o modelo pedagógico tradicional.
Referências do modernismo no ensino da arte As autoras Ferraz e Fusari (1993) sintetizam sobre a história educativa em arte e caracterizam a Pedagogia Nova, bem como as escolas de arte. Elas iniciam apontando as práticas educativas que surgiram a partir de mobilizações sociais, filosóficas e pedagógicas no Brasil. A partir do século XIX diversos movimentos culturais impulsionaram a introdução do ensino artístico até sua expansão por meio da educação formal e de outras experiências. As autoras destacam as principais transformações que marcaram o ensino e a aprendizagem artística em nosso país. No geral, essas iniciativas estavam relacionadas com a metodologia de ensino de arte. Segundo Ferraz e Fusari (1993), na década de 1980 estudos com essa delimitação cresceram consideravelmente com pesquisas que buscavam intervir nessas práticas educativas. As propostas visavam à atuação em arte baseada nas necessidades psicológicas dos alunos e às demais implicações ao seu redor, como problemas ambientais, comunitários e sociais pensados a partir da própria arte. Como parte dessa preocupação também enfatizaram os seguintes temas: as articulações dos atos perceptivos dos alunos tendo como base a experiência estética; os alcances e limites da interdisciplinaridade e as novas possibilidades de aprender e ensinar os conhecimentos em arte; as necessidades de mudanças da formação do educador em arte, a fim de uma melhoria da qualidade de escolarização desde a infância. As novas propostas para o ensino de arte estavam sendo construídas através da prática e pesquisa entre professores e alunos. As autoras Ferraz e Fusari (1993) trouxeram uma breve síntese das tendências
pedagógicas mais influentes no ensino de arte do Brasil, tais como a Pedagogia Tradicional, a Pedagogia Nova e a Pedagogia Tecnicista. A Escola Nova, segundo Ferraz e Fusari (1993), teve seu nascimento fora do Brasil, suas primeiras motivações foram semeadas na Europa e nos Estados Unidos. No território brasileiro, ela surgiu em meados da década de 1930, disseminando-se entre 1950 e 1960 nas escolas experimentais. A diferença dessa nova perspectiva é que ela valorizará a expressão como um dado subjetivo e individual em todas as atividades, com variações entre os aspectos intelectuais para afetivos. O que caracteriza a Pedagogia Nova é um novo olhar sobre o aluno, de maneira que o método de ensino esteja relacionado com o seu interesse, a sua espontaneidade e o seu processo de trabalho. Assim, ela se caracteriza como uma pedagogia experimental fundamentada na psicologia e na biologia. Ferrari e Fusari (1993) trazem em sua síntese as palavras do artista plástico e educador Augusto Rodrigues (1913 -1993), pois, para elas, o depoimento do autor sintetiza as ideias da Escola Nova, visto que enxerga o aluno como um ser criativo, com potências, e para desenvolvê-las cabia ao professor oferecer condições possíveis de expressão artística, além de estimular a criança a trabalhar sobre ela mesma, valorizando seu processo. Augusto Rodrigues defendia um ideal escolanovista, o “aprender fazendo”, fator de reconhecimento da importância do que era feito pela criança e da observação do que ela produzia. O depoimento do artista plástico Luiz Áquila traz uma pista importante sobre esse aspecto: "Eu acho que Augusto e a Escolinha de Arte do Brasil mudaram muito a mentalidade brasileira. Mudaram mesmo, até porque a Escolinha se espalhou para o Brasil todo em 63 lugares. Todas lidando com essa questão de infância; ou seja, para os intelectuais daquela geração não existia criança. Pai não conversava com a criança, criança era assunto da mãe e dos pobres, ou das babás dos ricos. Quer dizer, essa ideia de que o adulto conversa com a criança é completamente novidade. E aí Augusto trazia os contemporâneos dele para algo novo: a criança da segunda metade do século XX. Então eu acho que esse era um trabalho pioneiro mesmo, do grupo da Escolinha: a descoberta da criança e a afirmação da possibilidade de expressão. (Britto; Palma, 2019, p. 44)
Vamos apresentar neste estudo algumas concepções modernas que julgamos dialogar com a filosofia de arte na educação da Escolinha de Arte do Brasil. A primeira referência é o educador brasileiro Anísio Teixeira (1900 – 1971). Gadotti (2003) situa Anísio Teixeira como um grande interlocutor de Dewey no território brasileiro, abrangendo todos os setores da educação, incluindo arte e educação
infantil. Anísio é discípulo de Dewey e ambos foram referências para o modernismo no ensino de arte. Barbosa (2008) ressalta a “contaminação” de Anísio pelos ideais de Dewey, de maneira a reformular radicalmente seus princípios educacionais e a sua práxis política anterior. Após sua experiência nos Estados Unidos em uma pesquisa sobre organização escolar, Anísio trocou seus preceitos conservadores por um ideal de educação baseado nos pressupostos da democracia e da ciência, segundo Barbosa (2008). Sua análise aponta a todo momento as ações e os objetivos que Anísio Teixeira iniciou no Brasil, relacionando diretamente com as convicções de Dewey. Segundo sua observação, Anísio deixou de lado a robustez em suas colocações, para uma transição de conceitos utilizados por Dewey, ou seja, para ela, o “bacharel” alternou para o “educador”, de certa forma, literalmente tornando-se um discípulo do autor norte-americano. Barbosa (2008) apresentará o trabalho de Anísio Teixeira e a formulação do pensamento a partir da teoria do positivismo. E, justamente nessa fase, com a inspiração nos trabalhos de Dewey, o qual buscava a modernização educacional por meio da valorização dos traços psicológicos individuais dos alunos, sem desviar a escola de suas funções socializadoras, que a educação brasileira instaura um processo evolutivo. Uma consequência dessa mudança é o movimento da Escola Nova que foi difundido pelo país, especificamente por Anísio Teixeira após a década de 1930, com a Escola Parque na Bahia.
Concepções da Escolinha de Arte do Brasil Neste momento apresentaremos uma análise de Mauro Sá Costa (1994) sobre a filosofia de arte na educação da Escolinha de Arte do Brasil. Em seguida, analisaremos uma importante publicação da Escolinha (BRITTO, 2008) na tentativa de identificar algumas expressões que sintetizam este trabalho. Por último, resgataremos uma importante referência da expressão criadora moderna na infância, tendo como vértice o desenho e o diálogo desta contribuição com uma proposta contemporânea para o ensino de arte. Segundo Costa (1994), a escuta do educador em relação à Escolinha de Arte do Brasil (EAB) é singular, e podemos logo de início exemplificar através da escolha do nome da instituição citada. O nome Escolinha surgiu a partir da observação e sensibilidade em perceber os discursos das crianças quando se referiam à EAB, pois foram elas que de certa forma
oficializaram o nome do espaço. Para Augusto Rodrigues, era notória a distinção que as crianças faziam do ambiente escolar para os encontros de arte. Não era apenas um nome qualquer e sim uma expressão de afeto, de experiências, de algo novo e significativo. Pode-se dizer que esse é um primeiro exemplo de sensibilidade e escuta da criança e sua capacidade criadora. Costa (1994) faz análise da escuta do arte-educador da Escolinha de Arte do Brasil a partir dos registros de observações diárias do trabalho de Lucia Alencastro Valentim. Ele destaca alguns exemplos e relaciona-os com a Psicanálise, no sentido de haver o movimento do educador para seguir um caminho que é sugerido a partir da prática ou fala do outro e a principal ferramenta dessa ação educativa não são os “programas pedagógicos prontos” a serem seguidos, e sim a escuta e o acompanhamento atento e bem-informado do que o outro fornece, incluindo, para além da palavra, a imagem em sua expressão criativa. Para Costa (1994), a escuta do educador no que diz respeito à Escolinha de Arte do Brasil está atrelada à ação de observar, reagir, agilizar, interpretar, interferir, seja verbalmente ou corporalmente, sobre o processo e comportamento criador do sujeito. Costa (1994) sublinha os conceitos em relação à atuação em prontidão do educador mediante os processos criativos das crianças. A intuição, fluência e flexibilidade são categorias que são apontadas como importantes atitudes do educador artístico. Costa (1994) enfatiza a influência desses conceitos da Psicanálise e da Psicologia na Escolinha de Arte do Brasil, no entanto ele pondera que as ações dos educadores artísticos daquele espaço não se contentavam em apenas teorizar e interpretar psicologicamente o processo criativo, mas,sobretudo descobrir e redescobrir através da experimentação do processo criador. Anteriormente à Tese de Mauro Costa (1994), é fundamental destacar o reconhecimento de Anísio Teixeira no texto “As Escolinhas de Arte de Augusto Rodrigues”: “A criação de Augusto Rodrigues cai já no conceito mais amplo de nosso século, representando inovação corajosa, que a sensibilidade do artista procurou disfarçar na designação mimosa e feliz de “escolinha de arte”. Trata-se de instituição, hoje espalhada por vários pontos do país, proposta a oferecer à criança nada mais e nada menos que a oportunidade para atividades de criação artística. Representa, no Brasil, alguma coisa que se podia considerar óbvia, e que, entretanto, é, no gênero, talvez o que de mais significativo se faz entre nós no campo da educação infantil.” (TEIXEIRA, 1970. p. 3) A expressão criadora, quando relacionada ao desenho, alcançou um importante patamar no trabalho do pesquisador de educação artística austríaco Viktor Lowenfeld (1903 -
1960). Segundo Lowenfeld (1977), o ato de criar na infância independe do montante de conhecimentos que é acumulado ao longo da vida escolar da criança. Para ele, a própria ação de construir pode fornecer novas perspectivas e nova compreensão para ação futura. Lowenfeld (1977) acredita que um ambiente que possibilite à criança criar constantemente com os conhecimentos que possui é de grande relevância para prepará-lo para o seu futuro ato criador, isto é, o processo da criação, o seu pensamento, os seus sentimentos e as suas percepções em relação ao seu ambiente, são mais válidos que o produto final. O significado da arte para a criança segundo Lowenfeld (1977) vai além do que qualquer adulto possa classificar. Para ele, a arte é algo muito diferente e estabelece essencialmente um meio de expressão e uma comunicação de pensamento, pois a criança é um ser dinâmico, que possui profundos impulsos criadores. E sua expressão está diretamente ligada a um reflexo de si própria. Dessa forma, é importante que o educador esteja atento para estimular a criança, a fim de reforçar a identificação com suas próprias experiências e impulsioná-la a desenvolver e reconhecer os conceitos que expressam os seus sentimentos, as suas emoções e a sua própria sensibilidade estética. A primazia no processo educativo, segundo Lowenfeld (1977), “não é a resposta do adulto, mas o esforço da criança para formular sua própria resposta. Lowenfeld (1977) destaca a importância da autoidentificação e autoexpressão, sendo essas concepções de grande relevância para o próprio sistema da educação. “Não há expressão artística possível sem auto-identificação com a experiência revelada, assim como no material artístico utilizado para esse fim. Este é um dos fatores básicos de qualquer expressão criadora; é a autêntica expressa do eu.” (Lowenfeld 1977, p.28).
A arte para Lowenfeld (1977) é uma facilitadora para potencializar e estimular a criança a se autoidentificar, reconhecer-se, expressar-se através da experiência prática (ver no Anexo figuras A, B, C, D – imagens retiradas da publicação do autor). À medida que a criança se expressa de acordo com seu nível, é encorajada em seu próprio pensamento independente com suas ideias e suas reflexões, utilizando seus próprios meios. É crucial que a criança construa suas experiências e conceitos através de suas tentativas, ensaios, experimentações, dado que a criança que imita torna-se dependente ao padrão do outro, e não de si próprio: “se a criança que imita não pode dar expressão às suas reflexões, sua dependência dos outros pode levá-la ao malogro. A criança inibida, contraída, mais acostumada à imitação do que à auto-expressão, apóia-se nos pais, nos professores ou nos companheiros, para receber orientação.” (Lowenfeld 1977, p. 30).
Para Lowenfeld (1977), a arte através da autoexpressão pode ser uma pertinente ferramenta para desenvolver o eu como importante ingrediente da experiência. O desenvolvimento criador da criança está atrelado em suas primeiras ações ao ato de desenhar, quando ela traça os primeiros riscos, elaborando suas próprias formas e colocando em seus registros algo de si própria. Partindo dessa simples e importante ação do próprio eu até chegar à mais complexa forma de produção criadora, são inúmeros os caminhos intermediários: “Dentro dos desenhos e das pinturas das crianças, podemos facilmente vislumbrar desenvolvimento artístico numa abordagem independente e imaginativa da obra de arte. As crianças não precisam ser habilidosas para ser criadoras, mas, em qualquer forma de criação, existem graus de liberdade emocional: liberdade para explorar e experimentar, e liberdade para envolverse, emocionalmente, na criação” (Lowenfeld 1977, p. 48).
Em vista disso, é fundamental que a criança não se sinta inibida em sua criatividade, por regras ou forças que lhe são alheias, pois essas intervenções podem retrair e induzir à recorrência da cópia ou ao desenho mecânico. Esse movimento pode resultar uma adoção da criança ao estilo do outro, como também solicitar ajuda constantemente, seguir os exemplos do trabalho que está sendo realizado pelos seus companheiros. Esse comportamento, para Lowenfeld (1977), constrói na criança a carência de não criar por conta própria. Assim, é necessário que a atividade artística não seja imposta, e sim aconteça a partir de um movimento natural e experimental de si mesmo. O trabalho da criança vai refletir o seu desenvolvimento criador, tanto no próprio desenho, como no processo de realizar a forma artística. Considerando o legado desse importante subsídio moderno, a artista visual e educadora Edith Derdyk (1994) parece rever contemporaneamente o trabalho de Lowenfeld, especialmente no impacto da cultura visual aos diferentes momentos do desenvolvimento gráfico da criança. Derdyk (1994) é uma autora relevante nessa pesquisa, porque sua obra destaca a importância da experiência, da prática, do fazer no que diz respeito à expressão gráfica. Ela também ressalta que, para ingressar no mundo do imaginário infantil, é necessário, sobretudo, a vivência da linguagem: o ato de desenhar. A experiência é crucial para que haja aproximação, sensibilidade e integração com o universo infantil, de maneira que o adulto passe a reconhecer em si a capacidade e exercer o ato criativo. Derdyk (1994) também destaca uma ação importante relacionada a um dos conceitos destacados neste trabalho: o processo. Sua análise em relação ao desenvolvimento gráfico da criança é orgânica e processual. Para ela esse momento oscila, vai e volta, e não necessariamente é analisado de maneira cronológica, como sugere Lowenfeld.
O processo nesse caso é importante para fundamentar o que ela acredita como conteúdos vivenciais. Derdyk (1994) é importante nessa pesquisa para sublinhar um dos ideais que surgiram no movimento de ruptura ao ensino de arte mais clássico e tradicional. Assim como em Augusto Rodrigues e Lowenfeld, ela também é favorável à liberdade no processo de desenhar, pintar, dançar. Em relação a imitação e cópia, Derdyk (1994) acredita que qualquer ensino baseado nessas convicções não é inteligente, pois é como se anulasse a criança como um ser cognitivo (ver no Anexo a Figura E, imagem retirada da publicação da autora). Oferecer um “modelo” para ser copiado exclui a possibilidade de a criança selecionar seus interesses e necessidades reais. Derdyk (1994) pontua a relevância em a criança selecionar seus gostos, pois nessa ação está inclusa uma leitura de realidade que, em si, é um exercício reflexivo e criativo. Esse apontamento aproxima-se dos conceitos da Escolinha de Arte do Brasil. Para Derdyk (1994), ir contra as atividades formais e “prontas” traz autonomia, visto que o ensino inteligente e sensível é aquele que depende de ensaio e erro, de pesquisa, investigação, experimentação na busca de solução de problemas que geram dúvidas e incertezas. “E aí vai um bando de exercícios e propostas visando o controle motor, o domínio da observação, equilíbrio, a cópia. Acompanhando os resultados, vão os atributos de valor, tais como: bonito, feio, limpo, sujo, certo, errado. Imagine estes conceitos e métodos aplicados a uma criança de dois, três, ou quatro anos! Este procedimento impede o desenvolvimento e o desabrochar de um imaginário pessoal, que expresse uma visão e uma leitura de mundo. A estratégia educacional visando apenas o adestramento motor exclui o entendimento do desenho como uma forma de construção do pensamento através de signos gráficos, maneira de apropriação da realidade e de si mesmo.” (Derdyk, 1994, p. 108).
O ensino quando baseado na cópia impossibilita toda e qualquer manifestação expressiva e original. O que Derdyk (1994) destacou significa que a criança quando inicia seu processo gráfico artístico dessa maneira possivelmente irá repetir fórmulas conhecidas diante de qualquer circunstância que exija dela respostas. A questão dessa atitude é que, ao agir dessa forma, ela deixa de arriscar, de se projetar, enfraquecendo seu desenho, tal como o seu próprio ser. Os apontamentos de Derdyk (1944) neste trabalho vão ao encontro das minhas primeiras inquietações neste estudo: a observação do sistema escolar, de uma forma geral, encara o desenho como um manual de exercícios com fins utilitários e pedagógicos bem definidos e determinados. E, para Derdyk (1994), essa dinâmica é exercitada de maneira impessoal, observando o desempenho e a eficiência da mão e do olho, visando apenas a técnica e destreza, banalizando o desenho e fazendo com que ele perca a possibilidade do significado lúdico e a
sua carga simbólica. Essa prática é o contrário do que a Escolinha de Arte do Brasil oferecia: o respeito e a liberdade da manifestação artística da criança.
Conclusão A contribuição textual apresentada foi apenas o resumo de uma pesquisa bibliográfica, porém é importante frisar o impacto positivo que o trabalho proporcionou em minha prática educacional. Decerto que o espaço em que atuo me possibilitou chegar a esta iniciativa, no entanto abordar a Escolinha de Arte do Brasil valorizou ainda mais a minha prática, refinou minha intervenção e principalmente inspirou minha autoavaliação como iniciante pesquisadora ao perceber que a criança é a grande protagonista da expressão criadora. Retomar a leitura e rever pensadores que em algum momento compreendem a potência da infância e da arte é renovador. Nos dias atuais, é de grande relevância que utilizemos esse olhar para enxergar novos caminhos na área educacional. Além disso, trago a palavra respeito, pois se aproximou do que foi e tem sido a Escolinha de Arte do Brasil. A iniciativa de Augusto Rodrigues, com sua sensibilidade no olhar para a educação por meio da arte, demonstrou uma forma de respeito à infância em suas práticas artísticas, valorizando as experiências, trocas e processos. Essa evidência prova a contribuição da EAB na era moderna para a expressão criativa da criança.
Referências bibliográficas BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino da arte no Brasil. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2008. BRITTO, Jader de Medeiros; PALMA, Alexandre. Escolinha de Arte do Brasil: memória e legado. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2019. BRITTO, Jader de Medeiros. 60 anos de Arte-Educação, através da Escolinha de Arte do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. do Livro, 2008. COSTA, Mauro José Sá Rego. O Artista na sala de aula. 1994. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1994. DERDYK, Edith. Formas de Pensar o Desenho. São Paulo: Panda Books, 1994. FERRAZ, Maria Heloisa C. de T. Ferraz; FUSARI, Maria F. de Rezende. Metodologia do Ensino de Arte. São Paulo: Cortês, 1993. GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. São Paulo: Ática, 2003. LOWENFELD, V.; BRITTAIN W. L. Desenvolvimento da capacidade criadora. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Mestre Jou, 1977. MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. TEIXEIRA, Anísio. As Escolinhas de Arte de Augusto Rodrigues. Jornal Arte e Educação. Rio de Janeiro, n°0, p.3, set. 1970.
O programa de extensão Núcleo de Arte como uma possibilidade de educação integral no município do Rio de Janeiro Priscilla Alves
Introdução Em 1992 surge (na rede municipal do Rio de Janeiro) o projeto Núcleo de Arte, que integrava a Secretaria de Educação e a Secretaria de Cultura a um departamento de Ação Comunitária que consistia na prática de atividades artísticas e culturais variadas. Tamanha foi a aceitação da iniciativa por seu público participante que a Secretaria de Cultura criou um polo com realização de oficinas das variadas linguagens artísticas. Em seguida, diante de algumas mudanças, esse projeto sociocultural expandiu o número de polos e tomou o formato de extensão educacional. 1516 Este artigo buscará analisar o programa de extensão Núcleo de Arte da Prefeitura do Rio de Janeiro e avaliar se é possível considerá-lo como uma experiência de educação integral. É diante dessa perspectiva que pensaremos esse projeto sociocultural vinculado à prefeitura do Rio de Janeiro. Embora suas atividades sejam desenvolvidas em todo o campo das variadas linguagens artísticas – Artes Visuais, Música, Teatro e Dança -, nosso foco será essencialmente relativo às questões do Ensino das Artes Visuais. O objetivo deste trabalho é caracterizar a importância dessa ação e analisar o programa de extensão visando a identificar elementos que aproximam ou distanciam essa política pública do conceito de ampliação da jornada de permanência de tempo do aluno na escola. A partir desse problema inicial, buscaremos responder às seguintes questões: A) O pensamento de Herbert Read (2001), ao afirmar que “a arte deve ser a base para a educação”,
15Em 2016, através da resolução SME Nº 1222, ocorre uma nova reformulação e o NA passa a compor o Centro de Pesquisa e Formação em Ensino Escolar de Arte e Esporte. Apesar da nova denominação, na prática, não há uma mudança efetiva, exceto pela criação de um polo misto com atividades artísticas e esportivas. Além disso, permanece a contradição entre reformular, criar novos polos e fechar polos já existentes.
influencia de algum modo as diferentes práticas de ensino de Artes Visuais no Núcleo de Arte, doravante denominado NA?; B) Após vinte anos de NA, quais motivos explicariam a tímida expansão desse projeto?; C) Em que medida o Ensino de Artes Visuais no NA é distinto do ensino obrigatório regular da disciplina Arte na rede municipal?
A Educação Integral e o Ensino da arte Providos de inúmeras semelhanças, duas propostas de educação integral marcantes diferenciam-se em alguns aspectos das atuais políticas públicas de educação integral no Brasil: a Escola Parque idealizada por Anísio Teixeira em Salvador e o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) concebido por Darcy Ribeiro na década de 1980. Como podemos observar: “O aspecto a destacar nessa proposta, que se diferencia da utilização do conceito em outros momentos históricos, é o reconhecimento de que a educação integral não é obra apenas da escola, ainda que essa esteja no centro do processo. O significado da expressão educação integral no conjunto dos documentos não se limita às inovações no interior da escola, como por exemplo o aumento da jornada escolar ou a ampliação da ação cultural. Eles reforçam os sentidos de responsabilização coletiva da sociedade pela educação das crianças e jovens. Esse significado, a depender da plasticidade do conceito, poderá ou não ser incorporado à noção de educação integral que, de resto, não faz parte do vocabulário escolar tradicional brasileiro” (CAVALIERE 2010 p.7).
Enquanto as referidas propostas tiveram como marco a construção de escolas próprias para suas implementações e atendiam apenas os alunos da própria unidade, a mais recente proposta de educação integral promovida pelo atual governo federal consiste na inserção das atividades, oficinas, em escolas já existentes, além de não estarem restritas apenas a unidades escolares. Como já vimos, as atividades podem ser desenvolvidas em outros ambientes como centros comunitários, clubes e praças. Outra diferença significativa em relação a propostas como o Mais Educação1617 é não restringir o acesso de estudantes, embora sua implementação priorize as escolas que não atingiram notas satisfatórias no índice de desenvolvimento da educação básica (IDEB). O programa contém mais de 53 atividades, dentre elas no macrocampo Cultura e Artes as atividades Pintura, Grafite, Desenho, Escultura, Cineclube e Mosaico; e no macrocampo Educomunicação: Histórias em quadrinhos, Fotografia e Vídeo.
16 Disponível em: www. portal.mec.gov.br
Assim como os demais projetos de educação integral envolvendo o ensino da Arte, existem inúmeras críticas relacionadas à realidade de sua prática, tais como a falta de profissionais qualificados ministrando as oficinas, problema que guarda semelhança com a conflituosa inserção do Animador Cultural nos CIEP’s. Ao lado disso, há pouco comprometimento de professores e gestores e incompreensão do objetivo da referida proposta. É comum pais manterem o filho na escola para que eles possam trabalhar ou a escola encaminhar um aluno com problemas de comportamento para essa ação. Também existem questionamentos no que se refere à falta de investimentos básicos em infraestrutura material e física. A partir dos estudos de Cavaliere (2009), podemos entender que a Escola Parque, os CIEP`s e CIACs são práticas organizadas dentro da própria unidade escolar, estruturando o espaço do modo que possam suprir as necessidades das atividades propostas, enquanto no Mais Educação a oferta de atividades não está restrita dentro da própria unidade escolar, tendo em vista que busca fora da escola espaços que ofereçam atividades no contraturno da escola para que o aluno possa participar. O Art. 211, inciso 2ª, da Constituição Federal de 1988 determina a oferta do ensino fundamental como competência das prefeituras. Entretanto, no Município do Rio, a maioria dos CIEP`s funciona em tempo integral com a oferta de 1ª ao 5ª ano:
“a política atual, que visa ao aumento do número de alunos atendidos em tempo integral, se aproxima do segundo modelo, através do Programa de Extensão Escolar, que supervisiona Clubes Escolares, Núcleos de Arte e Pólos de Educação pelo Trabalho, com opções disponíveis para os alunos em algumas escolas da rede” (CAVALIERE, 2009, p 54 )
É importante compreender o pensamento que existe na essência dessas políticas públicas. A educação estética e a Arte são áreas de conhecimento e elementos necessários à constituição humana; “toda graça do movimento e da harmonia de vida - a disposição moral da própria alma – estão determinadas pelo sentimento estético: pelo reconhecimento do ritmo e da harmonia.” (READ, 2001, p. 67). Dessa maneira, a educação estética objetiva a formação integral do aluno e o desenvolvimento de aspectos psicológicos e cognitivos, elementos fundamentais para a natureza individual do ser e para o contexto do grupo social que ele representa.
O programa de extensão educacional Núcleo de Arte: um breve histórico O Núcleo de Arte é uma das propostas do Programa de Extensão Educacional da Secretaria Municipal de Educação (SME) do Rio de Janeiro e consiste na oferta de atividades Artísticas e Culturais, priorizando atender alunos da rede municipal de ensino. Atualmente existem nove polos distribuídos entre as Zonas Oeste, Norte, Sul e Centro que possuem oficinas de Artes Visuais, Vídeo, Música, Teatro, Dança e Arte Literária. A última oficina inclusa no programa de extensão educacional NA foi a oficina de Arte Literária. Essa atividade nos faz questionar o real motivo de sua inserção no referido programa, uma vez que não consta como linguagem artística no PCN Arte e sim como conteúdo de Língua Portuguesa. De acordo com dados do site oficial da SME1718, além do NA, fazem parte também do Programa de Extensão Educacional o Programa de Educação para o Trabalho (PET) e o Clube Escolar (CE). O PET consiste na oferta de atividades de cunho interdisciplinar voltadas para o conhecimento profissional com a oferta das oficinas de Informática, Fotografia/ Vídeo, Cosmética e Educação Ambiental. Nesse desenho, um NA pode oferecer oficina de fotografia ou capoeira, um CE pode oferecer oficina de Dança ou um PET pode oferecer oficinas de Teatro ou até mesmo de atletismo; enfim, existe autonomia nos polos para promoverem as atividades de acordo com suas necessidades. A SME também propõe uma integração entre as três unidades de Extensão Educacional e há uma identidade na promoção de atividades conjuntas. A primeira Unidade de Extensão Educacional foi o NA, que surge como proposta no início da década de 1990, mesmo período de implantação dos CIAC`s, coexistindo também com o fim da “segunda fase” do processo de construção dos CIEP`s. Como podemos observar no trabalho de WILNER (2009), o Núcleo de Arte foi criado por Carlos da Silveira na gestão de Marcelo Alencar, com iniciativa da Secretaria Municipal de Educação e do Departamento Geral de Ação Comunitária da Secretaria de Cultura, a partir de alguns projetos culturais desenvolvidos na época. Diante do bom êxito, a ação provocou a necessidade de criação de um polo que oferecesse oficinas nas mais variadas linguagens artísticas, instalando-se inicialmente na Escola Municipal Didia Machado Fortes, localizada na Barra da Tijuca. Cabe lembrarmos o contexto social do país quando o projeto surge. Com o fim da ditadura militar em 1985, José Sarney assume a Presidência, mas foi apenas em 1989 que o país, a população, experimentou o direito de escolher seu representante através do voto direto
17 Disponível em: http://www0.rio.rj.gov.br/sme/projprog/programas/nucleoarte.htm. Acesso em: 30 mar. 2012.
conquistado através do movimento “Diretas Já”. Com isso, a partir de uma turbulenta campanha, Fernando Collor de Mello foi eleito e, após dois anos de medidas que causaram a insatisfação da população, um escândalo de corrupção provocou o processo de impeachment do presidente em 1992. É nessa sociedade entusiasmada pelo sentimento democrático que se desenvolve a primeira configuração do Núcleo de Arte, através do Departamento Geral de Ação Comunitária criado por Silas Ayres de Mattos (WILNER, 2009). A vinculação entre as Secretarias de Educação e Cultura mostrava intensas transformações do ensino da arte na rede municipal. Essa primeira etapa do processo de implementação do Núcleo de Arte é pensada de acordo com os ideais presentes em todo um processo envolvendo a Arte/Educação, pois na Secretaria de Cultura estavam presentes pessoas que fizeram parte de alguma forma da Escolinha de Arte do Brasil, da Escola Villa-Lobos, do Conservatório Brasileiro de Música e que com isso estavam desenvolvendo inúmeros projetos bem sucedidos na área de arte e cultura, tais como o Festival da Canção e o Encontro de Corais (WILNER, 2009). Quando ocorreu a mudança de prefeito, Cesar Maia assumiu a prefeitura e promoveu mudanças, nomeando outras pessoas para chefiar as secretarias e departamentos, no entanto: “Discutiu-se então a possibilidade de formalizar e estruturar um projeto a partir daquela experiência piloto. Regina de Assis apostava na ideia da extensividade como forma de ocupar o tempo ocioso do aluno com atividades educativas. A ideia de criar programas de extensão educacional configurava como alternativa à inviabilidade de expansão do projeto de educação integral (CIEP), devido a dificuldades orçamentárias e de atendimento ao quantitativo de alunos que a escola em dois turnos possibilita.” (WILNER, 2009, p.27)
Não havia a condição financeira de implementar um projeto grandioso como o CIEP, criando prédios e mantendo os alunos em tempo integral na escola. Carlos da Silveira foi convidado a redigir o projeto piloto sendo inicialmente pensado como “Ateliê Livre”, oferecendo oficinas de arte em específicas áreas dentro das amplas linguagens. Por exemplo, oficinas de pintura, escultura, gravura, artes plásticas na linguagem de Artes Visuais; na linguagem de Música, oficinas como violão, flauta e teclado, focalizando a aprendizagem de variados instrumentos musicais. Vale destacar que todas as oficinas seriam ministradas por artistas-professores. Além das oficinas, seriam também oferecidas visitas a espaços de promoção de arte, como, por exemplo, museus e recitais. Foram implementados nesse momento mais dois polos, o atual Núcleo de Arte Nise da Silveira, localizado em Engenho de Dentro, e o Núcleo de Arte Prof. Souza Silveira, localizado em Piedade.
De acordo com Wilner (2009), para atuar nos polos da nova configuração do NA, os professores foram selecionados a partir de um processo no qual o interessado relataria de forma escrita o motivo pelo qual gostaria de atuar no Núcleo de Arte, faria uma proposta de atividade e enviaria seu currículo. O critério de seleção priorizaria professores da rede, independente da disciplina, com atuação artística e cursos na área em que desejasse lecionar. Não interessava apenas um professor de arte, ele deveria ser professor-artista1819, alguém que pintasse, esculpisse, tocasse violão, dançasse balé, enfim, o professor deveria produzir a arte que se propunha ensinar. Artista e pesquisador, como mostra contemporaneamente o artigo Os professores e os alunos no cinema, de Claudio Motta Lima (2009) apresentado no Seminário Nacional de Educação Popular em Audiovisual, o autor relata sua experiência como professor da oficina de vídeo no Núcleo de Arte: “Podemos afirmar que o desenvolvimento de projetos na área do audiovisual, seja ele, animação, documentários, ficção, curtas e até longasmetragens, é essencial para a prática pedagógica da comunidade escolar. Assim, quando alunos e professores forem entendidos como produtores, realizadores, parceiros de um projeto que visa discutir a sua realidade, estaremos diante de uma educação crítica, passando a interagir com esta realidade para modificá-la, buscando uma sociedade mais justa” (LIMA 2009, p.4).
No projeto de Carlos Silveira, além do Núcleo de Arte existe a proposta de uma Escola Municipal de Arte. O aluno passaria por uma formação inicial no NA e, mais tarde, a Escola Municipal de Arte serviria como aprofundamento, dentro de uma linguagem específica, à sua escolha. Segundo Wilner (2009 p.28-29), Carlo da Silveira relata que: “Se eu crio um espaço que só vai trabalhar isso [(arte)] e, além disso, vai trabalhar com aluno que foi para lá para fazer isso, aí eu tenho chance de trabalhar bem com esse aluno. E qual era a ideia: se eu criar uma Escola Municipal de Arte, quem vai para lá já passou pelo Núcleo, faria uma triagem.”
O projeto sociocultural seria um recurso para proporcionar o acesso à cultura, promovendo a produção artística e possibilitando a autonomia e o aprofundamento, se assim fosse de sua vontade, ou apenas absorção do conhecimento importante e necessário para sua formação enquanto ser humano. A Escola Municipal de Arte nunca saiu do projeto escrito por Carlos Silveira. Os Núcleos de Arte tiveram continuidade, no entanto podemos dizer que em praticamente vinte anos a partir de sua primeira experiência não houve progresso no que se refere a sua expansão. 18 A questão do “professor-artista” é analisada sob diferentes aspectos no trabalho de Almeida (2009).
De acordo com os Documentos Pedagógicos Núcleo de Arte (2002), elaborados pelos professores do núcleo nos períodos de 1998/01 e 2004/05, “os Núcleos de Arte passam a existir de direito a partir de 1998, com a criação das Unidades de Extensão, porém, ainda nos dias de hoje, existem apenas dez polos para atender, além de toda a rede municipal de ensino, alunos oriundos de outras instituições.
Conhecendo os atuais espaços do Núcleo de Arte A opção pelo sigilo sobre as unidades visitadas se deu devido à dificuldade e à burocracia existentes para a realização de pesquisas de campo nas instituições municipais de ensino por parte da SME, onde leciono a disciplina Arte desde o início de 2012. Com o intuito de agilizarmos o trabalho, a escolha pelos referidos polos foi feita por conta de vínculos existentes: Núcleo de Arte Zona Oeste ocorreu pelo fato de ser ex-aluna desse polo; o Núcleo de Arte Zona Sul, por contato do meu orientador; e o Núcleo Zona Norte, por indicação obtida no NA Zona Sul. Relato nesse momento as primeiras impressões de acordo com as visitas realizadas durante o mês de março de 2012 a três núcleos que passaremos a denominar nesta monografia de: Zona Sul, Zona Oeste e Zona Norte. As visitas foram feitas de acordo com a disponibilidade dos diretores dos núcleos. A primeira visita foi realizada no NA Zona Sul, onde, além das coordenadoras, pude ter contato com os professores de Música, Teatro, Arte literária e Artes Visuais. Sendo muito bem recebida, fui convidada pelos professores para assistir às aulas que estavam em andamento. O ambiente era de modo geral bastante agradável, com alguns responsáveis, muitos alunos. Embora existam documentos organizados pelos próprios docentes mencionando uma organização estrutural das oficinas em módulo básico, módulo de continuidade e módulo de prática de montagem, foi possível notar que estas atividades são compostas por alunos de idades distintas, em “níveis” distintos de conhecimento. Pude presenciar um projeto entre teatro e arte literária onde todos estavam muito animados com a participação especial de aluna do balé; essa aluna passou em um processo seletivo e agora é bailarina do Teatro Municipal. O professor de música, que pretende realizar um estudo sobre o ensino da música no NA, ressaltou a dificuldade em encontrar materiais específicos para o projeto.
Em relato, a coordenadora adjunta mencionou a desvalorização do NA pela própria SME. Em sua opinião, uma das piores ações da SME foi a redução do número de atividades em que um aluno pode se matricular. No início, um aluno poderia se inscrever em quantas atividades quisesse; em 2011, poderia se inscrever em três; e em 2012, somente em duas. Houve essa restrição com o intuito de dispor de vagas para um maior número de alunos, sem precisar aumentar a oferta de turmas nos polos. Segundo a coordenadora, o NA não pode ser considerado como proposta integral por conta das tantas limitações que o programa possui. No NA Zona Oeste, por ser dia de planejamento, estava ocorrendo apenas uma aula (extra) de Dança. Não foi possível presenciar a realização das demais oficinas, tendo também pouco contato com os professores. Um dos professores questionou se eu possuía um documento da SME autorizando a pesquisa no NA. Frisei que as identidades dos coordenadores, professores e polos seriam mantidas em sigilo. Apesar do leve desconforto, o coordenador me atendeu muito bem. Levou-me até as salas, muito bem estruturadas. Explicou como as atividades são planejadas. Compreendi que as diretrizes curriculares do núcleo são mediadas a partir de um tema, chamado de fio condutor, o planejamento é feito semanalmente para o desenvolvimento das atividades e, segundo o próprio coordenador, “todos os projetos são organizados durante o final de um ano e o início do ano seguinte.” No início, o núcleo funcionava em um corredor com apenas quatro salas de aulas, sendo a de Dança um pouco maior que as outras. Hoje, além dessas salas, o núcleo possui mais quatro ambientes grandes, como a sala de Teatro, totalmente adaptada com palco e equipamentos de iluminação feitos por eles mesmos. O coordenador disse que há um tempo o núcleo estava em alta e conseguiam muitos benefícios, mas hoje o núcleo não é mais o mesmo. No ano passado, surgiu da parte da Secretaria Municipal de Educação a hipótese de acabar com o núcleo, porém na última reunião eles foram informados de que a 10º CRE (Coordenadoria Regional de Educação) ganharia um núcleo a partir daquele ano. Alegaram mudanças no projeto em virtude de modificações na política educacional de movimentação de professores. O último NA visitado foi o Zona Norte, onde duas oficinas estavam em curso, a de dança e a de vídeo, podendo conhecer a aula de vídeo, que ainda não havia presenciado em nenhum dos outros NA. Soube da qualidade do trabalho desse professor através da coordenadora do NA Zona Sul. Como ocorrido no primeiro núcleo visitado, percebi variedade de idade e tempo de aula. Uma aluna frequentava há pouco menos de um ano e a outra aluna, portadora de
necessidades especiais, há três anos. Em seguida, conheci o monitor da oficina de vídeo, exaluno que estudou no núcleo por mais de cinco anos e passou a auxiliar o professor nas aulas. O professor de vídeo é responsável por projetos bem sucedidos, alguns premiados e mantém uma atual parceria com a professora da oficina de fotografia. O coordenador reafirmou a qualidade dos trabalhos da oficina de vídeo. Explicou um pouco como funcionava aquele polo e apontou as deficiências. Compreendi que, devido à carência de atividades culturais na região, o polo sofre com uma sobrecarga de alunos não pertencentes à prefeitura, que por falta de opção buscam o NA. Assim, o NA passa a suprir uma necessidade social. Além disso, torna-se a referência cultural e artística local. Outro fator abordado pelo coordenador foi a dificuldade enfrentada pelos NA’s durante as mudanças políticas na SME. Em entrevista, o coordenador adjunto do Núcleo Zona Norte disse que “a realidade do Núcleo é muito melhor em relação à da disciplina Arte na Escola Municipal regular, embora esbarre em vários problemas como a falta de pessoal, apoio, entendimento da gestão da escola, em alguns casos da própria direção do núcleo”. Lamentou não poder receber mais alunos por conta da falta de espaço físico e de materiais, como, por exemplo, instrumentos musicais. “Não é interessante para a secretaria retirar um professor que atende uma média de seis turmas com mais de trinta alunos por turma do ensino regular para alocar no Núcleo”. Nitidamente a procura por vagas é grande e infelizmente não há condições de atender a todos. O coordenador ressaltou que a CRE responsável pelo polo zona norte apoia muito o NA, mas essa não é uma realidade para as demais unidades do projeto. Desse modo, pôde-se compreender, nesse breve panorama do universo cotidiano dos Núcleos de Arte, suas propostas educacionais, suas práticas pedagógicas, seus procedimentos didáticos e metodológicos, seus impasses e meios de articulação.
A Oficina de Artes Visuais Nos documentos internos do NA é explicitada sua fundamentação metodológica baseada na Abordagem Triangular, organizando seus conteúdos “através da exploração, pesquisa e percepção” de espaço, forma, cor, luz, do volume, ritmo, equilíbrio, suportes e materiais, e apreciação de produções visuais.
Nas oficinas do Núcleo de Arte parece não ocorrerem atividades de atelier livre no sentido da antiga prática do laissez-faire numa interpretação errônea das ideias de Read (2001). Nesta interpretação refratária de liberdade de criação, percebemos algumas propostas sem objetivos claros. Por outro lado, o documento norteador interno das aulas de Artes Visuais era planejado junto às demais oficinas semanalmente com o direcionamento de um tema condutor. Segundo relato, obtido no NA Zona Oeste, os seguintes fatores diferenciam a prática do NA e a prática da disciplina curricular Arte na rede municipal: “O fato de se ter um quantitativo menor de alunos por turmas é importante para o rendimento. Outro fator é a disponibilidade de recursos específicos para o ensino da arte e uma coordenação voltada para o desenvolvimento deste processo.” Além disso, como pude observar durante as visitas aos Núcleos de Arte, a estrutura física é bem mais apropriada para o desenvolvimento das atividades. Além disso, como pude observar durante as visitas aos Núcleos de Arte, a estrutura física e o número de alunos reduzido são características mais adequadas para o desenvolvimento das atividades.
Conclusão Consciente de nossa limitação nesta breve análise, pois poucas observações em três espaços são insuficientes para caracterizar um quadro geral da realidade desse projeto sociocultural, tentaremos responder às questões inerentes ao nosso tema-problema. A primeira delas consiste na indagação sobre a possibilidade de se considerar o Núcleo de Arte como uma proposta de educação integral. Do mesmo modo, tentaremos responder às demais questões lançadas na introdução da pesquisa. Como tomamos conhecimento mediante leituras de Wilner (2008 e 2009) e Cavaliere (2002, 2009 e 2010), o Núcleo de Arte surge devido à inviabilidade de uma proposta de educação integral, tendo em vista a necessidade de investimento financeiro. O mesmo motivo justificaria por que a expansão dos Núcleos de Arte não ocorreu de forma satisfatória. Como mencionado pelos coordenadores dos NA`s entrevistados, não há vontade política em investir no Núcleo de Arte. Embora não tenha se expandido de acordo com a proposta de Carlos da Silveira, o Núcleo de Arte adquiriu uma função sociocultural muito importante, como foi possível perceber durante as observações, não se limitando apenas ao desenvolvimento das oficinas. Ele promove um espaço de troca no contato dos alunos com a arte e as atividades culturais são a ponte entre
essas relações. Como mencionado em entrevista pelo coordenador do NA Zona Norte, a região não possui um espaço de promoção cultural, pois, apesar da existência de uma Lona Cultural, os moradores da região permanecem sem acesso a arte e atividades culturais. Segundo depoimentos, a lona não se mostra muito ativa, não desenvolve atividades que supram a necessidade local e, mesmo que houvesse uma grande movimentação, apenas uma lona não seria suficiente para suprir a demanda da região. Desse modo, o NA passa a ser a única referência da região, o que gera uma sobrecarga nas unidades, que são poucas para abranger longas áreas e ainda suprir uma carência que ultrapassa sua proposta educacional. Assim, é possível encontrar, como mencionado pelos coordenadores dos NA Zona Norte e Zona Sul e pelo professor em entrevista disponível no blog projetos sócio-culturais1920, alunos que terminam o ensino fundamental e que não conseguem se desvincular do NA por não terem outro local que possua o que o NA oferece. Outra questão inerente ao NA é a descontinuidade que as mudanças políticas acarretam às Políticas Públicas de modo geral, como visto em CUNHA (1991). De acordo com o coordenador do NA Zona Oeste, essas mudanças limitam o desenvolvimento do NA em nível de estrutura, de investimento, em materiais e profissionais. E, diante de um número insuficiente de unidades, a atuação do Núcleo de Arte torna-se limitada, não suprindo a necessidade em seu raio de atuação. Essa limitação restringe o atendimento da demanda e observa-se a matrícula do excesso de alunos em uma tentativa de minimizar a procura. Nas observações e entrevistas feitas nos três Núcleos de Arte, foi possível perceber o envolvimento dos professores com o projeto, não por suas falas, mas pelas práticas que pude presenciar, sobretudo, na Oficina de Artes Visuais. O discurso e as lamentações são muito diferentes dos demais professores da rede. Eles questionam suas dificuldades em oferecer mais, por serem totalmente limitados pela falta de investimento. É nítido acreditarem no trabalho pedagógico-artístico. As condições estão longe das ideais e ainda assim muito melhores das existentes no ensino regular. É muito revelador o fato de existir uma procura de alunos maior do que o previsto, professores comprometidos com as propostas e inúmeros projetos bem sucedidos.
19 Disponível em: www.projetossocio-culturais.blogspot.com. Acesso em:
O distanciamento entre o ensino do NA e o ensino obrigatório regular começa pelo número de alunos por turma ser bem menor nas oficinas em relação ao das aulas regulares, propiciando um atendimento bem individualizado, além dos recursos materiais e estrutura física. Por exemplo, a Oficina de Artes Visuais possui um espaço preparado para as atividades a serem desenvolvidas, mesas grandes, cavaletes, balcões, pias, prateleiras, enquanto a aula de arte do ensino regular é promovida em uma sala de aula tradicional, com pequenas mesas, sem nenhuma estrutura para o desenvolvimento das atividades. Nas Oficinas de Artes Visuais do NA, de acordo com as observações feitas nos três polos, teoria e prática são trabalhados de forma simultânea enquanto nas aulas de Artes Visuais do ensino regular a teoria toma uma posição bem maior devido às condições físicas e materiais inadequadas. Essas diferenças entre as práticas de ensino das Artes Visuais no NA e nas aulas regulares são relativamente voltadas para as condições impostas entre ambas. Não é possível pensar em propostas que, como o NA, promovam uma educação apartada da escola regular, sem reforçar que suas práticas não substituem ou solucionam os problemas/dificuldades da Educação Básica. Não podemos desconsiderar que o ensino da Arte é obrigatório em todo o Ensino Fundamental, atendendo um percentual bem maior de alunos, com relação às propostas não obrigatórias de ensino. Além das condições precárias, já mencionadas (superlotação de salas, falta de estrutura, falta de materiais etc.), o ensino da arte depara-se, ainda nos dias de hoje, com inúmeros entraves, como a falta de compreensão de gestores com relação ao ensino da arte, a hierarquização das disciplinas que submetem a disciplina Arte a baixa importância. Um outro aspecto da distorcida implementação disciplina Arte nas séries iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil das Escolas Municipais é que esse processo ocorreu nestes segmentos para que as professoras obtivessem tempo “livre” para realizarem as suas reuniões de planejamento semanal. Assim, com relação à prática de ensino das Artes Visuais no NA, não podemos tomá-la como substituta das aulas regulares ou utilizá-la para atenuar a deficiência da rede de ensino, tampouco ignorar a necessidade de combater as carências do ensino regular. Pensar na melhoria e na expansão do programa de extensão educacional Núcleo de Arte não anula a necessidade de melhoria do Ensino Regular. O pensamento de READ (2001) faz-se de algum modo presente, uma vez que ressalta a importância do ensino da arte como meio de educação estética. Após vinte anos de NA, de
acordo com os relatos dos entrevistados, a tímida expansão do projeto se dá por inúmeros fatores políticos relacionados à descontinuidade decorrente de mudanças administrativas na prefeitura e à pouca visibilidade que projetos em Arte proporcionam a campanhas políticas. Contudo, passamos a observar o NA de acordo com os conceitos que regem as inúmeras práticas de educação integral e as atuais ações de propostas, como, por exemplo, o Mais Educação. São notáveis as características existentes no NA de acordo com concepções de educação integral presentes nos debates contemporâneos. Oficinas de Arte são oferecidas no contraturno com a oferta de vagas não restrita a alunos da unidade onde os polos são instalados. Esse fator reforça que deveria haver um número maior de polos e um maior investimento em infraestrutura e em profissionais para suprir a procura que a própria proposta possibilita. Contudo, devido às questões acima mencionadas, é possível que o Núcleo de Arte sozinho não possa se caracterizar como uma proposta de educação integral. Embora o campo empírico pesquisado não nos permita uma afirmação concreta sobre o NA, vislumbramos a possibilidade de compreender o Programa de Extensão Educacional da SME - Núcleo de Arte junto ao PET e ao Clube Escolar - como um elemento potencialmente convergente para a educação integral.
Referências bibliográficas ALMEIDA, Célia Maria de Castro. Ser artista, ser professor: razões e paixões do ofício. São Paulo: Ed. da Unesp, 2009. BARBOSA, Ana Mae. Arte-Educação no Brasil: realidade hoje e expectativas futuras. Estud. av., dez. 1989, vol.3, no.7, p.170-182. ISSN 0103-4014. (disponível em: http://www.scielo.br) BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o ensino da arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001. CAVALIERE, Ana Maria Anísio Teixeira e a educação integral. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Paidéia mai./ago. 2010, Vol. 20, No. 46, 249-259. (disponível em: http://www.scielo.br) ________, Escolas de tempo integral versus alunos em tempo integral. Em Aberto, Brasília, v. 22, n. 80, p. 51-63, abr. 2009. (disponível em: http://www.rbep.inep.gov.br) ________, Educação Integral: uma nova identidade para a escola brasileira? Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 247-270, dez. 2002.(Disponível em http://www.scielo.br)
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Documentos Oficiais
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A animação cultural em São Gonçalo/RJ na década de 1990: saberes e práticas essenciais para uma escola integral de qualidade Heloisa da Silva Ferreira de Siqueira
Introdução A educação brasileira passou por diversas reformulações, notadamente a partir da década de 1930. Entretanto, as conquistas, em termos de oferta por parte do Estado de uma educação de qualidade para atender à população brasileira, têm avançado lentamente. Isso mostra que ainda estamos muito aquém daquilo que se coloca como um modelo educacional ideal para país. Na nossa sociedade, a escola vem sendo questionada por diferentes setores acerca de seu papel em face das transformações econômicas, políticas e culturais no mundo contemporâneo, relativizando seu papel no processo de formação humana. Ao realizar um corte temporal nessa análise, tomando por base o período que se inicia a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96), observa-se que a escola tem sido o centro do processo de reforma e, nesse sentido, várias políticas definidas pelos órgãos centrais, no caso o Ministério de Educação e Cultura - MEC e as secretarias estaduais e municipais, têm afirmado o eixo cultura e educação nas unidades escolares. A base dessa reflexão sedimenta-se em minha experiência junto à Secretaria Municipal de Educação de São Gonçalo, atuando diretamente nas escolas ou na Superintendência de Projetos, na qual fiz acompanhamento sistemático dos projetos e programas das escolas da rede municipal. Lado a lado, no curso de Políticas Públicas da UFRJ busquei explicitar essa trajetória e, assim, resolvi enfrentar o desafio de construir um estudo sobre o desenvolvimento das atividades culturais nas escolas através da instituição da Coordenação de Cultura na década de 90, vinculada à Secretaria de Educação no Município, na qual exerci durante algum tempo a função de coordenadora em algumas escolas.
Diante desse quadro e da proposta que ora apresentamos, algumas reflexões nos permitem repensar a educação brasileira em suas mais diversas experiências, principalmente quando ligadas a novas formas de elaboração e de atuação da escola frente aos interesses sociais. Assim, uma questão permeia o nosso trabalho: o que pensavam na década de 80, os envolvidos, os idealizadores da proposta e os animadores culturais sobre os significados de suas práticas nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) que marcaram a população fluminense, especialmente São Gonçalo, naquele contexto da educação brasileira? Partindo desse interesse, procuraremos resgatar a Coordenação Cultural por meio do olhar dos próprios idealizadores, visando a localizar, historicamente, em que medida uma política para educação se consolida como um projeto de governo e principalmente como suas práticas podem trazer avanços para a educação brasileira. Como critério para a metodologia deste trabalho, foi necessária a colaboração espontânea de ex-coordenadores que atuaram no programa em diversas unidades escolares, fornecendo seu testemunho de vivências na execução das atividades pertinentes à função. Neste estudo, utilizamos pesquisa bibliográfica e dados obtidos a partir de um questionário semiestruturado. Apresentamos uma breve análise do Projeto de Animação Cultural de Darcy Ribeiro no âmbito dos CIEPs na década de 1990 no Estado do Rio de Janeiro e sua relação com o Programa da Coordenação de Cultura do município de São Gonçalo.
O projeto de animação cultural de Darcy Ribeiro no Estado do Rio de Janeiro na década de 1990 A animação cultural surge como um dos vértices da educação de Darcy Ribeiro no Rio de Janeiro, a partir da percepção e das experiências vivenciadas por artistas-educadores intelectuais da Escolinha de Arte do Brasil, que estabeleciam sintonia a fim de interpretar a brasilidade. A demanda para a contribuição da comunidade situada no entorno das escolas tinha como proposta a participação popular no processo educativo. A ação reflexiva na vida social à frente dos ideais da escola conservadora buscava o envolvimento e a emancipação desse extrato desfavorecido da sociedade, em virtude de uma realidade desigual e sem perspectivas de inclusão. Também, convém ressaltar que o termo animador cultural, utilizado nos CIEPs, teve sua ancoragem no homônimo francês. Como um movimento que inovava no cenário educacional, não surgiu como proposta de mera diversão. Tal compromisso encontra-se
registrado nos documentos – “Animação Cultural: Elo integrado” (1986) e “Animação Cultural” (1995). Assim, se o quadro educacional a ser implementado e pensado por Darcy Ribeiro relacionava-se diretamente com os universos sociais, culturais e com as escolas de tempo integral, premissas básicas da vida em sociedade, entende-se a necessidade de uma reviravolta em todo o sistema educacional, possibilitando um pensar compromissado com as demandas evidenciadas no novo momento. Justamente por esses, entre outros fatores, o projeto dos CIEPs explorava as manifestações de ordem comunitária, através de atividades que, para além de preencherem o tempo integral de permanência da criança na escola, criariam uma nova atmosfera de participação escolar frente à comunidade. Para isso, caberia à Animação Cultural enquanto elo integrador, dentre outras atividades, abrir e efetivar um canal consistente de diálogo com a comunidade e a escola. Historicamente Darcy Ribeiro cria essa proposta a partir de uma forte influência francesa (MOUNIER, 1976), sem deixar de citar a marcante Pedagogia da Esperança de Paulo Freire (1992). Nessa perspectiva, explanando sobre as potencialidades presentes na Animação Cultural, Darcy Ribeiro (1986, p.133) afirmava a existência de uma certa simbiose entre educação e cultura: “a cultura irriga e alimenta a educação, que por sua vez é um excelente meio de transmissão da cultura.” Dessa maneira, como afirmamos anteriormente, os CIEPs voltavam-se para o que a escola tradicional renega - os valores culturais e o diálogo com uma comunidade. Percebendo e reforçando essa demanda, a Animação Cultural, mais do que apenas orientar, pretendia instrumentalizar e possibilitar uma maior propagação das manifestações culturais a essa população, normalmente distante dos sistemas formais de ensino e não poucas vezes entregue a atividades marginais. Ribeiro (1986, p.147) trabalhava com essa ideia, exposta de forma oficial no regimento interno dos CIEPs, (capítulo X, art. 60, incisos 1° e 2°, art. 60): “o programa de animação cultural, desenvolvido nos CIEPs, busca concretizar o trabalho de cultura.; os coordenadores de animação são produtores de cultura, articulam a cultura local e a escolar; os animadores culturais são em número, de pelo menos 3, por CIEP”
.
A experiência piloto teve seu início no CIEP de Ipanema, onde um de seus andares foi transformado em um Centro de Integração Cultural. Uma equipe formada por educadores especializados nas diferentes linguagens artísticas promovia diversas oficinas. Darcy Ribeiro,
através dos CIEPs, desejava a transformação da escola em um espaço inteiramente democrático, mesclando o processo educacional formal à vida comunitária e integrando alunos, pais, vizinhos, artistas e professores em um processo igualitário de tomada de consciência perante as condições sociais existentes. Assim, eram efetivadas relações com indivíduos comprometidos permanentemente com o fazer cultural da comunidade, onde a necessidade social local exerceria uma função prioritária nas atividades desenvolvidas pelos animadores culturais “egressos de grupos de teatro, de música, de poesia de movimentos criados espontaneamente ou de associações comunitárias” (RIBEIRO, 1986, p.134).
Existia vinculação, preferencialmente, com os movimentos de base locais, a fim de estimular o florescimento da capacidade de organização presente na comunidade, compreendendo, nesse aspecto, possibilidades de emancipação e de organização social. Logo, caberia ao animador cultural desenvolver aspectos da cultura popular dentro dos espaços formais de ensino, caracterizando o entendimento sobre a transformação da escola em um grande centro cultural. Darcy Ribeiro (1986, p. 27) expressa bem sua ideia para a animação cultural, quando trata das contribuições planejadas pela equipe de pessoas que a representavam: A animação está, portanto, integralmente vinculada à noção de participação, que significa intervir, agir, envolver-se numa base de motivação acrescida pelo fato de participar de um projeto, de uma ação ou mesmo de uma simples atividade. Sem um processo participativo não existe animação. É o que explica J.V. Merino Fernández ao mencionar que a participação não se resume numa ideia, mas também numa ação que implica uma atitude positiva e uma esperança que recusa o fatalismo frente à vida. Ela aproxima esta dialógica (expressão que podemos observar no sociólogo Edgar Morin) com as idéias de Paulo Freire em seu livro À sombra desta mangueira.
Enquanto produtores de cultura, dentro dos CIEPs passam a não conviver mais somente com a educação não formal, isto é, com sua prática fora da escola. E, para uma ação precisa, sistematizada e bem estruturada, os animadores são previamente treinados para que as duas formas de ação pedagógica – formal e não-formal – possam caminhar juntas ocupando o mesmo espaço. Através de reuniões com a equipe central da Secretaria de Estado de Ciência e Cultura e da Secretaria Municipal de Educação, os animadores, durante três meses, aprofundam questões relativas à cultura brasileira e às diversas linguagens expressivas, assim como fundamentam aspectos do processo de arte-educação e de animação cultural (RIBEIRO, 1986, p.135). Com isso, compreende-se que a animação cultural possuía um potencial constitutivo em um diversificado campo de atuação, situado principalmente no que diz respeito às manifestações culturais da comunidade. Isso possivelmente possibilitaria o contato da comunidade com sua própria cultura.
O processo educativo não tem um fim além de si mesmo, mas é seu próprio fim; o processo de educação é o processo de contínua transformação, reconstrução, reajustamento do homem ao seu ambiente social móvel e progressivo (TEIXEIRA, 1968, p.21).
É também o que propunha Paulo Freire: “Só um ser que é capaz de emergir de seu contexto, de ‘se distanciar’ para permanecer consigo, capaz de contemplá-lo para objetivar, transformar, e, ao transformá-lo, saber transformar-se por sua própria criação [...] somente ele é capaz, por todas estas razões, de se engajar” (ARREGUI; WANDERLEY, 2006, p.9). Eis o significado da educação para a liberdade e o fato de poder se proclamar educador. O educador se instrui favorecendo as condições de um engajamento possível por parte de outros homens e mulheres que compartilham da vida da sua comunidade, reunindo, portanto, a autodidaxia pela interação, idealizada por J. Dumazedier (1994), na participação em atividades sociais e culturais. No processo de implementação, a ideia foi levar o projeto prioritariamente às comunidades com acentuados índices de vulnerabilidade social, pobreza e violência, criando alternativas de cidadania à população, instituído para coordenar as políticas sociais existentes na área da educação integral no país, tais como: as atividades extraclasses de educação ambiental, de lazer, esporte e atividades culturais. Visando a contemplar a ampliação do tempo e do espaço educativo de suas redes e escolas, pautada pela noção de formação integral e emancipadora, seus objetivos consistiam em: promover a articulação, em âmbito local, entre as diversas políticas públicas que compõem o Programa e outras que atendam às mesmas finalidades, integrando as atividades ao projeto político-pedagógico das redes de ensino e escolas participantes; promover, em parceria com os Ministérios e Secretarias Federais participantes, a capacitação de gestores locais; contribuir para a formação e o protagonismo de crianças, adolescentes e jovens; fomentar a participação das famílias e comunidades nas atividades desenvolvidas, bem como da sociedade civil, de organizações não-governamentais e esfera privada; possibilitar a geração de conhecimentos e tecnologias sociais, inclusive por meio de parceria com centros de estudos e pesquisas, dentre outros; desenvolver metodologias de planejamento das ações, que permitam a focalização da ação do poder público, estimulando a cooperação entre as diferentes esferas da sociedade. Apesar de parecer uma estratégia perfeita, para se alcançar para uma educação de qualidade, o programa causou inúmeras reações adversas de cunho político, a ponto de incomodar as elites excludentes que torciam por seu desmantelamento. Mesmo assim, os “Brizolões” em seu período de vida e sobrevida provaram que o pobre e o povo mantêm um
rico acervo cultural que lhes é próprio e vai além dos conhecimentos científicos. Como isto acontecia? Na proposta original, os animadores culturais tinham comprometimento com a ação cultural e não com o ensino da arte, capaz de fomentar a quebra da ditadura cultural disseminada pelo sistema de comunicação de massa e pela indústria de consumo. A tarefa do animador cultural se propunha a valorizar a cultura popular, sem se influenciar pelo fluxo do controle social. Nesse sentido, ele também seria um revolucionário cuja bandeira seria democratizar todo e qualquer conhecimento técnico, científico e artístico, como patrimônio da comunidade. Nos CIEPs, o animador cultural atua como elo para a ampliação das vias de participação que se iniciaria na escola. Seria o espaço de construção de novos valores perante o sentimento conservador do regime civil-militar. A participação social começaria a assumir uma nova conotação no quadro contextual, não mais reivindicatório, mas sim de colaboração para com o progresso social e o desenvolvimento econômico, assim como se constituía no cenário políticosocial europeu, com as similitudes de formulação compensatória das políticas sociais. Nesse sentido, com o sentimento de comunitarismo presente, e mesmo com o sentimento das lutas sociais pela terra, contra a desigualdade de raças e gênero, a organização das camadas sociais nos apresenta uma forma heterogênea, fragmentada, porém organizada e bastante efetiva, no que tange às reivindicações específicas daquelas comunidades. Nos CIEPs, esses reflexos eram evidentes em seu início, o entendimento das diferenças seria algo equalizado pelos animadores culturais (CONDE, 2007).
A coordenação de cultura no espaço escolar do município de São Gonçalo A implantação e implementação da Coordenação de Cultura em São Gonçalo surgiu a partir da forte influência dos CIEPs de Darcy Ribeiro e mais especificamente do programa de animação cultural. No relato do então subsecretário de Cultura de São Gonçalo, João Luiz de Sousa, ele se refere aos laços de interesse comum que o ligavam a Darcy Ribeiro. Logo adiante, na roda-viva dos anos 80, ele afastou-se de Darcy Ribeiro e foi chamado para assessorar Cecília Conde, então Coordenadora de Animação Cultural do programa dos CIEPs que acabou batizando o de número 45, a unidade implantada em São Gonçalo: O Brasil é um grande país. Precisamos acertar mais na educação pública e privada. Precisamos ler mais. Precisamos resgatar as ideias do Mestre Darcy Ribeiro. Precisamos defender a escola de horário integral e rica de imaginação criativa para todas as crianças e adolescentes, de modo que elas apaixonem-se pelo aprender coletivamente e por produzir conhecimentos. No mais, a sociedade vem avançando e o Brasil nos últimos anos disse ao mundo: PRESENTE! (SOUZA, 2014)
Nessa perspectiva, utilizava-se do diagnóstico da realidade local e das experiências bem-sucedidas de programas em âmbito estadual, redundando numa proposta de Coordenação de cultura no âmbito municipal, a partir da valorização de todas as vertentes da cultura até então conhecidas. Embora a pesquisa tenha constatado, entre outros aspectos, a relevância da proposta, questões políticas e partidárias extinguiram-na da rede pública de São Gonçalo pelos idos de 2000. É válido reiterar que, por mais que se reconheça a importância das atividades culturais, neste período, a criança e o adolescente estão sob a responsabilidade da escola de modo a desenvolver uma rica diversidade de atividades favorecendo o maior domínio dos conteúdos escolares, das oficinas pedagógicas e temáticas. As atividades fomentadas eram organizadas nos diversos campos multiculturais do saber, cada um agregando suas atividades específicas de apoio metodológico, procedimentos e materiais, voltados às atividades pedagógicas e lúdicas para o ensino e a aprendizagem da matemática, de práticas de leitura e escrita, de história, de geografia e das ciências. Tais práticas eram contextualizadas em projetos de trabalho educacional e de acordo com a necessidade e com respeito ao tempo de aprendizado de cada criança, adolescente e jovem. O desenvolvimento de ações e processos estruturantes de educação ambiental, numa perspectiva sistêmica e integrada, abrangia: o planejamento interdisciplinar; a inserção qualificada de temas socioambientais no currículo e de ações educadoras integradas no projeto pedagógico da escola; o fortalecimento do diálogo escola/comunidade; a construção da Agenda 21 na Escola; e a articulação em rede de Comissões de Meio Ambiente e Qualidade de Vida. Além disso, havia a criação de "ecossistemas comunicativos" nos espaços educativos, que cuidassem da saúde e do bom fluxo das relações entre as pessoas e os grupos humanos, bem como do acesso de todos ao uso adequado das tecnologias da informação. Contribuíram para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica com ações de prevenção, promoção e atenção à saúde, através de projetos interdisciplinares, teatro, oficinas, palestras, debates e feiras com temas de saúde, como saúde bucal, alimentação saudável, cuidado visual e auditivo, práticas corporais, educação para saúde sexual e reprodutiva, prevenção ao uso de drogas (álcool, tabaco e outras) e prevenção à violência no espaço escolar, reforçando a prevenção de agravos à saúde e vulnerabilidades, fortalecendo a relação entre as redes públicas de educação e de saúde.
Nesse momento houve o reconhecimento de que professores e professoras ocupavam junto aos coordenadores culturais uma posição relevante na construção de valores e práticas condizentes com uma sociedade justa e democrática através de estratégias para a consolidação de uma educação inclusiva e integral com grande interesse na relação entre arte/educação, considerando a cultura clássica e a cultura popular e o conceito de Multiculturalismo. As atividades eram fundamentadas em práticas corporais e lúdicas através de oficinas esportivas promotoras de práticas de sociabilidade, com ênfase no resgate da cultura local, bem como o fortalecimento da diversidade cultural. No seu desenvolvimento, preconizava-se o sentido lúdico, a livre escolha na participação e a construção pelos próprios sujeitos. Deve-se ressaltar o duplo aspecto educativo do esporte e do lazer, a possibilidade de educar para e pelo esporte de lazer. Isso requer o acesso ao conhecimento de novas práticas de esporte e de lazer e a exploração das reflexões resultantes dessas práticas. Para tanto, a escola poderia realizar atividade em outro espaço da cidade, cinema ou teatro: Essa estratégia promove a ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas e o compartilhamento da tarefa de educar entre profissionais da educação e de outras áreas, famílias e diferentes atores sociais sob a coordenação da escola e dos professores. Isso porque a Educação Integral, associada ao processo de escolarização, pressupõe a aprendizagem conectada à vida e ao universo de interesse e de possibilidades das crianças e jovens. O ideal de educação integral traduz a compreensão do direito de aprender como inerente ao direito à vida, à saúde, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária e como condição para o próprio desenvolvimento de uma sociedade republicana e democrática. (BRASIL, 2010, p.7)
Passaremos a compreender melhor este e outros aspectos a partir de depoimentos obtidos no questionário deste trabalho aplicado aos próprios personagens - coordenadores de cultura-leitura local – no âmbito da animação cultural no município de São Gonçalo, e, aqui, preferimos utilizar nomes fictícios por naturais implicações éticas: “As ações extracurriculares desenvolvidas na década de 90 junto à coordenação mobilizavam e incentivavam os alunos em relação aos processos culturais de nosso país.” (ROSA) Corroborando com a afirmação, Margarida reafirma o fato: “O programa de cultura entre as escolas inseria atividades que favoreciam a cultura local” (MARGARIDA) Já Girassol ainda acrescenta que: “o programa possibilitava aos alunos uma gama de atividades que motivavam a suapermanência na escola de modo a descortinar um universo até então obscuro para os alunos das periferias, além de respeitar a cultura local.” (GIRASSOL)
Lírio ressalta: “a enorme contribuição e a integração que havia em todas as escolas e a forma como eram compartilhados os saberes.” (LÍRIO) Os discursos vinculados à escola tradicional, na maioria das vezes, são cansativos e autoritários. Geralmente tendiam a reafirmá-la, como única entidade fornecedora de um saber pedagógico de qualidade essencial ao desenvolvimento, de papel insubstituível com objetivo de assegurar a competitividade da economia. No entanto, as falas das entrevistadas contrapõem a esse estereótipo: “A ideia central do Projeto era ter como ponto de partida a participação com o fazer entre os alunos e professores e a alegria dos alunos em participar das apresentações culturais.” (LÍRIO) “O fazer pedagógico ganhava um novo colorido, a informação e o saber popular eram valorizados.” (ROSA) “Levavam o aluno a conhecer um universo que até o momento era distante de sua realidade, como, por exemplo, as obras literárias de renome em nosso país de modo acessível ao nível de suas vivências eram maravilhosas.” (MARGARIDA) Assim, verificamos que a Coordenação de Cultura, ao propor que os planejamentos apresentassem práticas diversificadas, traduzidas por atividades que incluíam artes, dança, pintura, esporte e meio ambiente, entre outras, acabavam por priorizar um currículo abrangente que almejava a formação integral para alunos da escola pública. A ampliação do contato com práticas de leitura e escrita pode ser possível através de um elemento que hoje se visualiza indispensável para a escola: a extensão de sua jornada. Assim, a extensão do tempo de permanência do aluno na escola ou sob sua responsabilidade, particularmente, para aqueles oriundos das classes populares, pode (e deve) possibilitar o incremento de atividades educativas complementares, instaurando uma “experiência escolar multidimensional, que atue integradamente em aspectos da vida dos alunos, relacionados ao seu bem-estar físico (saúde, alimentação, higiene); ao seu desenvolvimento como ser social e cultural e à sua capacidade como ser político” (CAVALIERE, 1996, p.12).
Daí surge um questionamento: Estávamos preparados para avaliar o impacto desse programa em sala de aula? Acreditamos que, para alcançarmos uma nova perspectiva educacional, deveríamos trabalhar com ela diretamente no meio social, e não apenas perante as ideias. Sinto que esse foi o primeiro passo para abrirmos um diálogo mais democrático sobre responsabilidade social de
todos os sujeitos envolvidos através do incentivo à formação profissional direcionada, além do acompanhamento e monitoramento das ações e dos resultados da escola em reuniões periódicas. A natureza fundamental dessa proposta foi possibilitar o acesso, a permanência e o sucesso das crianças e adolescentes nas escolas públicas. O aluno tem na assistência integral suas necessidades básicas e educacionais atendidas, melhorando o aprendizado escolar, aumentando a autoestima, resgatando e incentivando manifestações culturais próprias de sua identidade local, reduzindo, assim, os índices de evasão, de repetência e de distorção de ensino/aprendizagem (idade/série). Reforçando esse ideal, o programa de coordenação de cultura tinha sua filosofia própria ressaltada pelas entrevistadas: “A filosofia de trabalho básica era simples, levando para o interior da escola o conhecimento da cultura popular brasileira e o incentivo à leitura.” (ROSA) A partir dessa afirmativa, podemos concluir que a educação popular voltada para o conhecimento e a valorização da cultura local oferecia também um leque infindável de possibilidades sociais não apenas destinadas os alunos, mas a uma comunidade que em muitas vezes está em situação de vulnerabilidade social e as vivências experimentadas pelas atividades propostas lhes ofereciam um novo horizonte a ser descortinado. Dessa forma, a criança deixa de ser pensada apenas como aluno e passa a ser um indivíduo percebido também como vítima das mazelas sociais. Nesse plano, fica evidente que alguns depoimentos mostram os avanços alcançados pelo programa: “Creio que este momento foi ímpar para a cultura de São Gonçalo, já que na escola se plantavam as sementes iniciais de todo um processo maior que estaria por vir: a valorização da cultura das periferias.” (LÍRIO) “Bem aquela geração de alunos foi alcançada com as ações fomentadas, trazendo melhoria como um todo para as escolas, no entanto necessitamos de oferecer continuidade.” (GIRASSOL) Outros reafirmam que, embora os benefícios tenham sido grandes, houve retrocesso de ideias e atitudes que se perderam no decorrer do tempo: “Não observo nenhuma melhoria, ao contrário acredito que deveríamos resgatar e reconstruir o projeto cultural no âmbito das escolas municipais de São Gonçalo.”(ROSA) Orquídea concorda com Rosa e ainda acrescenta: “Hoje perdemos muito do esforço conquistado a duras penas. O maior trabalho que foi desenvolvido foi o trabalho de convencimento e sob meu ponto de vista tudo foi perdido, muito esforço despendido em vão.” (ORQUÍDEA)
Na escola, tínhamos a proposta de promover em primeiro lugar a popularização da educação, no sentido de uma escola universal, equânime de qualidade, que preparasse o cidadão para a vida, com integração dos conhecimentos em abordagens interdisciplinares, transdisciplinares e transversais. Assim propunha a escola de tempo integral, um ideal do grande educador Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e tantos outros. Não se tratava apenas uma educação com fins de proteção social, em virtude do risco em relação à pobreza e exclusão que afeta grupos de crianças, seja nas ruas, seja em seu próprio ambiente. Pensávamos para além disso; a priori devem-se dar oportunidades e experiências para acontecer. Outro ponto importante é que o conhecimento não seja restrito aos muros escolares, podendo ser estimulado o desenvolvimento também fora deles. Hoje temos certa dificuldade em perceber propostas que contemplem esses ideais. Os inúmeros mecanismos de avaliação governamentais reafirmam essa ideia, pondo em pratica provas que só conseguem mensurar conhecimentos “bancários” (FREIRE, 1992), sem levar em conta a cultura local em que as comunidades escolares estão inseridas, menosprezando toda a riqueza cultural, como se pudéssemos valorizar conhecimentos acadêmicos em detrimento da riqueza cultural passada de geração em geração, ofuscada por um modelo arcaico de avaliação cujos números são incapazes de mensurar. Nos dias de hoje, muitos projetos e programas têm sido instituídos sem que haja sequer uma consulta ou mesmo debates que venham a redundar em propostas reais para uma sociedade real que anseia por uma mão de obra qualificada que não pensa e age apenas em cima de uma realidade própria. Assim, voltamos a reafirmar que: “No momento, não temos qualquer programa que se assemelhe aos projetos de Coordenação de Cultura e Animação Cultural dos CIEPs no interior de nossas escolas, apenas atividades extracurriculares de rotina sem grandes ênfases.” (JASMIM) “Creio ser difícil encontrar algo parecido com o que já foi feito e em minha opinião era levado a sério, tanto que tenho ex-alunos que são atores, diretores teatrais e músicos.” (LÍRIO) No passado, além das atividades cotidianas em que projetos eram desenvolvidos no decorrer do ano, havia a grande culminância que ocorria normalmente em agosto com a Feira de Artes e Tradições Populares, todos os anos, cuja programação, além de dar oportunidades para as escolas se apresentarem, contava com grupos folclóricos locais e profissionais. Era uma verdadeira Festa da Cultura na qual as mais variadas formas artísticas eram expostas. (ROSA) Hoje o governo federal e suas instâncias estaduais e municipais criam pacotes prontos do tipo “Mais Educação” e “Segundo Tempo”, entre tantos outros, sem se preocupar com qualquer valor que a comunidade venha a dar. Conteúdos muitas vezes tão distantes da realidade são oferecidos por “profissionais despreparados”, com a desculpa de se tirar as
crianças das ruas. Onde está o direito de ir e vir garantido na Constituição? A escola virou depósito de crianças? Na escola elas estão protegidas de quê? (MARGARIDA) Embora, muitas vezes, os programas culturais estejam manipulados por objetivos partidários, o campo do empirismo vai sendo abandonado, impondo maior aprofundamento e sistematização de suas linhas. Mesmo assim, muito do que vai sendo feito dá lugar à propaganda cultural em lugar da prática cultural, sob os auspícios do Estado ou da iniciativa privada. Em contrapartida, encontramos uma entrevistada que acredita nas propostas oferecidas pelo governo, porém deixa claro que precisam ser ampliadas e diversificadas: “É possível estabelecer uma certa semelhança entre os programas de Animação Cultural e Coordenação de Cultura com o programa Mais Educação que engloba o desenvolvimento de várias atividades, além do Segundo Tempo, que contempla os esportes.”(GIRASSOL) Alguns pontos não podem deixar de ser frisados, conquistas alcançadas que se perderam na maioria das vezes, como a sensibilização do professor que encontramos nas escolas. Por não se sentir inserido na proposta, sobressai o desinteresse, deixando de ser um referencial e um orientador, a reforçar e perpetuar a “crise da educação”. Nesse caso, a participação do aluno fica resumida, resultante da falta de estímulo, podendo comprometer todo o trabalho. Por que a cultura e a sociedade estão tão doentes? Se eu não sinto prazer no trabalho, se eu não trabalho minha autoestima, quando volto para casa volto muito mal [...] passamos a maior parte de nossa vida sem termos no espaço do trabalho com quem dividir as imensas frustrações (FARIA, 2002, p.102)
O professor de modo algum deve isentar-se às suas responsabilidades frente ao contexto sociocultural de sua comunidade. Sua presença é fundamental para o êxito das propostas que venham ao encontro das necessidades da comunidade escolar. Da mesma forma, os pais e responsáveis são elementos-chave na promoção de uma educação de qualidade; jamais devem se ausentar frente a seu compromisso social na formação do educando. Precisam estar atentos quanto à necessidade de participação em conjunto, na tomada de decisões criando vínculos importantes para o bom funcionamento da escola na promoção dos saberes. “A democracia constrói-se a curto, médio e longo prazos, e a educação precisa de tempo. Não se faz educação sem tempo [...] Nós temos três dimensões: somos feitos de passado, presente e futuro.” (FARIA, 2002, p.105)
Há necessidade de aprimoramento com base teórica e prática no que diz respeito à gestão democrática para o bom exercício da autonomia pedagógica e administrativa dos processos que envolvam as metas, resultantes do esforço comum. Mesmo que neste momento já se mostrem
atuantes, necessitam de traçar estratégias que viabilizem um futuro consistente para a sociedade, através da proteção social aos cidadãos do amanhã.
Considerações finais [...] ao rever a trajetória histórica da escola, [...], podemos afirmar que a educação consiste em um direito ainda a ser conquistado em nosso país, [...], através de um projeto político de nação que possibilite o pleno exercício da cidadania, respeitadas as nossas raízes rurais, locais e regionais, base constituinte da identidade nacional (FARIA, 2011, p. 106).
Embora o CIEP represente um significativo parâmetro de desenvolvimento social, é notório que muitas iniciativas permaneceram mesmo com a extinção do projeto, por consequência de gestões comprometidas com a Educação Pública. Não foi um movimento de massa e sim individualizado, no qual profissionais envolvidos “que vestiram a camisa” pela melhoria do ensino assumiram posturas idealizadoras com metas pré-estabelecidas através de um trabalho de cumplicidade entre comunidade, corpo docente, discente e equipe técnica, traduzindo as várias formas de saber na riqueza da cultura de todos nós, valorizada, respeitada e perpetuada para as gerações futuras. Sabemos que a construção do conhecimento só se dará através do encontro entre cultura e sociedade se concebermos o processo ensino-aprendizagem como uma relação entre atores sociais envolvidos - educador e educando, comunidade e poder público – que, por estarem voltados para o mesmo foco, respeitando-se as diferenças e divergências motivados e envolvidos no processo, terão cada um suas responsabilidades. À escola caberá a apropriação de saberes e conhecimento socioeducativos das mais variadas vertentes, a interação do sujeito com o meio e as expressões artísticas em conjunto com o conhecimento. No processo de ensino, congrega as informações preexistentes unidas a um novo saber, que se integra em uma rede ampla, provocando a aquisição de saberes significativos que implicam em elaborar, construir e resolver problemas. Nesse contexto, o estudante é o condutor de sua aprendizagem e não mero receptor de informações. Ensinar/aprender é uma ação compartilhada e cíclica entre educador, educando e sociedade, que acontece através da dinâmica contínua que se estabelece entre os significados de história social e individual das relações cognitivas. Dentro dos fundamentos, a escola será a problematizadora da ação pedagógica construída numa atitude dialógica dentro da comunidade. Mas ela não precisa estar só; nesse
contexto, é de fundamental importância que todos exerçam seu papel, tal como um organismo vivo em harmonia, gozando de plena saúde física, mental e social. Ao final deste trabalho, fica explicitada a histórica tendência de elitização da escola pública, mas ao mesmo tempo assinalamos possibilidades de avanço, em direção a uma educação de tempo integral que tenha por finalidade atender aos interesses coletivos de aprendizagem e formação humana, sobretudo das classes populares, bem distante do que se vê na atualidade. Por isso, nunca é demais lembrar que políticas de redistribuição de renda representam a melhor reforma tributária que o país possa sonhar. Além disso, o investimento de recursos para o ensino constitui-se uma etapa fundamental para assegurar a qualidade na educação, cuja proposta seja a construção de uma escola cidadã. Acreditamos que, dentro de um planejamento estratégico do poder público na área de educação para os próximos anos, as propostas devem ser repensadas, com o objetivo de alcançar as metas de desenvolvimento, passando por amplas reestruturações, buscando o aperfeiçoamento das políticas públicas em debates contínuos com os pares da sociedade. Devese garantir: a superação dos “pacotes” que chegam às escolas de cima para baixo; a valorização dos profissionais da educação de forma sólida e consistente; a instauração de um currículo mínimo; a formação continuada dos professores; a adequação real dos ambientes escolares e as estratégias de gestão democrática. Assim, será permitido ao aluno construir seu saber para a vida através da escola, que assume a construção de uma nova identidade socioeducacional. E então caminharemos com muita tranquilidade para a apropriação de um ensino público de qualidade, comprometido com valores reais, dentro de uma sociedade íntegra, igualitária e equânime, ou melhor dizendo, equilibrada, que é o sonho de todos nós.
Referências bibliográficas ARREGUI, Carola Carbajal; WANDERLEY, Mariangela Belfiore (Orgs.). Colóquio de Animação Sociocultural. São Paulo: IEE/PUC, 2006. 126 p. BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Manual da Educação Integral para Obtenção de apoio Financeiro através do Programa Dinheiro Direto na Escola – PDDE/INTEGRAL, 2010. ____. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de diretrizes e bases. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, MEC, 1996. CAVALIERE, A. M. V. Escola de educação integral: em direção a uma educação escolar multidimensional. 1996. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996. CONDE, Cecília. Animação Cultural. In: RIBEIRO, Darcy. Carta: fala, reflexões, memórias. Brasília, DF: Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, Gráfica do Senado Federal, n. 15, 1995. ______ Inédito. Rio de Janeiro, 05 nov. 2007. Entrevista Concedida a Bruno Adriano R. da Silva. DUMAZEDIER, J. A revolução cultural do tempo livre. São Paulo: Studio Nobel, 1994. FARIA, Lia. Chaguismo e Brizolismo: territorialidades políticas da escola fluminense. Rio de Janeiro: Mimeo, 2011. ______. Palavra de mulher. Rio de Janeiro: Quartet, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1976. RIBEIRO, Darcy. O livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986. SIQUEIRA, Heloísa... CESPEB, 2014... SOUZA, João Luiz de. Jornal O Globo. Perfil. Entrevista publicada na edição de 21 jul. 2014. TEIXEIRA, A. A educação não é privilégio. 2.ed. São Paulo: Cia Nacional, 1968.
Capítulo 3 Arte, ideologia e formação humana
Tempo de criação Raphael Teixeira da Silva
O ano de 2015 marca o meu estágio obrigatório não remunerado de 420 horas; um lento suicídio e o meu primeiro contato com as vísceras do ensino bancário (FREIRE, 1996) em uma instituição militar de educação básica no Rio de Janeiro. A visão bancária considera o estudante um ser vazio; sendo assim, cabe ao professor a tarefa de preenchê-lo. Desse modo, as respostas mais parecidas com a do professor são as mais recompensadas. O método bancário depende de uma hierarquia rígida. Nela, o professor ocupa a posição de quem fala, de quem sabe, de quem enche, cabendo ao aluno apenas a posição de quem ouve, de quem não sabe, de quem é vazio. Em uma ocasião em que refutei um policial palestrante sobre o tema “Guerra às drogas” o diretor me disse: “estagiário vem aqui para aprender e não para ensinar”. Em outra circunstância quando vi o colégio retirar uma semana depois os trabalhos do mural reservado para Arte, cujo tema era: “Como seria a escola dos seus sonhos? obtive a reciprocidade de meu orientador, em relação à instituição escolar; o meu estágio foi uma mistura de ensino bancário com hierarquia militar. Naquele momento, ao lado dessa experiência bancária/militar, acompanhava as ocupações escolares em São Paulo contra a proposta de Geraldo Alckmin em fechar 93 escolas. Nela, durante quarenta dias, os alunos defendiam o que é seu por direito, como aulas de qualidade, bons professores, infraestrutura digna, salas com menos alunos, entre outras. Por fim, a insubordinação dos alunos, durante mais de um mês, mudou o tom de Geraldo Alckmin, constrangendo-o a manter as escolas abertas. Quando entrevistados, os alunos ocupantes relataram ter aprendido mais sobre política nas ocupações do que nos anos de escola. Esse meio para o aprendizado despertou meu interesse: inteligência que vem da mão, as ocupações como lugar de conhecimento, o tempo extraescolar, a educação em conjunto. Em resumo, este trabalho se propõe a esboçar uma pesquisa sobre o poder do tempo de criar, de nos moldar; além dos desdobramentos do gesto criador na educação e como o tempo extraescolar deveria pautar mais a escola. Dessa maneira, busco apontar as relações entre cópia e criação no tempo extraescolar e as suas implicações em nossas vidas. Além de relacionar a solidão contemporânea com as
exigências que a criação impõe ao amor-próprio e as consequências de relegar esse tempo aos cuidados de outros, busco problematizar a solidão como um lugar para a disciplina do corpo. Para isso dialogo com Nietzsche, Rubem Alves, Michel Foucault e outras referências. O tempo fora da escola é o tempo por excelência da criação: a escola que se aprofundar nesse espaço extraescolar estimulará o aluno na busca de si mesmo. Dessa forma, o sentido da informação é a instrução, que, quando transborda, vira criação. Consequentemente, a informação passa a dar senso ao aluno para escrever a sua própria história. Há uma metáfora útil: figure uma cebola cortada ao meio; é um modelo de mundo em que cada camada dessa cebola são mundos, onde só podemos avançar para a próxima camada depois de termos comido a camada anterior. “Conhecer é ir comendo o mundo. Quando se come o mundo, ele passa a ser parte do corpo da gente.” (ALVES, 2010, p. 10). Logo, cada um de nós ocupa o centro dessa cebola, mas o que estaria contido nesse centro, antes da primeira camada? Nossa casa. Esse paradigma proposto por Rubem Alves (2010) é a maneira, para ele, de como os currículos escolares deveriam se organizar. No livro Pedagogia dos Caracóis, Rubem Alves aponta para uma escola onde as crianças aprendiam o que precisavam construindo uma casa viking, querendo dizer com isso que muitos negligenciam “o poder que a mão tem de ajudar o cérebro a aprender” (ALVES, 2010, p. 11). Não que alunos fossem criar uma casa por completo, mas o ambiente da casa é um universo de possibilidades ao conhecimento. Além de ser na solidão de casa onde mais o aluno é livre para criar ou, ao menos, deveria ser assim. Se, para Rubem Alves, é da casa que o currículo parte, para Nietzsche (???) é para a casa, na nossa solidão, que ele nos recomenda a ir, rumo à criação, ao caminho do criador. Assim, a casa é para os dois pensadores, concomitantemente, fonte do modelo curricular escolar e o lugar da solidão para criar. Portanto, a solidão e o tempo extraescolar deveriam pautar mais as aulas devido ao seu poder de emancipar a dor através criação e de dar sentido à informação da escola. Sendo a criação o transbordar de um conhecimento, deveria ser ela a tônica curricular das aulas. Além disso, o ato de criar, também transborda a dor, “criar – eis a grande libertação do sofrer, e o que torna a vida leve. Mas, para que haja o criador, é necessário sofrimento, e muita transformação; sim, é preciso que haja muitos amargos morreres em vossa vida, ó criadores!” (NIETZSCHE, 1883, p. 77). Desse ponto de vista, o sentido da informação obtido em sala de aula tem na solidão extraescolar a possibilidade de expandir através da criação. Assim, a informação atravessa o corpo do aluno e o ensina a lidar com sua solidão e dor.
Entretanto, se na solidão o aluno não se encontra, e se a sua solidão passa a ser a solidão do outro, um fruto para a desorientação é semeado. Como desdobramento: “esse vai ao próximo porque busca a si mesmo e o outro, porque busca se perder. Vosso mau amor a vós mesmos transforma em prisão vossa solidão”, (NIETZSCHE, 1883, p. 57). A coragem que exige o criar, se transforma assim, em medo à solidão; e a própria vida passa ser a busca pela meta do outro, uma meta fora do próprio corpo. Segundo Nietszche (NIETZSCHE, 1883, p. 40), “com o homem sucede o mesmo que com a árvore. Quanto mais quer alcançar as alturas e a claridade, tanto mais suas raízes se inclinam para a terra, para baixo, penetram na escuridão, na profundeza — no mal.”. A maneira mais eficiente de disciplinar a direção do seu crescimento é cortando a raiz pivotante, responsável por ligar a árvore ao mais profundo da terra e ao mais profundo de si mesmo. Quanto mais cedo for esse corte, mais dóceis se tornam as mudas e os corpos. Para isso, a domesticação da solidão é a forma disciplinar menos dispendiosa de força, portanto mais eficiente e sutil. O panóptico de Bentham é a figura arquitetônica dessa composição; através do sequestro da solidão, torna o corpo “objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação.” (FOUCAULT, 1975, p. 216). Afinal, o gesto criador requer solidão; negá-la e maldizê-la é uma forma de introjetar nos corpos a meta de outras pessoas. Dessa maneira, dissociamos o poder do corpo, pois “aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos) (...) a coerção disciplinar estabelece no corpo o laço coercivo entre uma aptidão aumentada e um domínio acrescido” (FOUCAULT, 1975, p. 163). Isso gera aptidões individualmente caracterizadas, mas coletivamente úteis. O ensino bancário aparece como arte de disciplinar, com o objetivo de sujeitar o corpo a novas formas de domínios e novas formas de saber. “Com efeito, em vez de extorquir e de cobrar, o poder disciplinar tem por função principal “adestrar”; ou, sem dúvida, adestrar para cobrar e extorquir mais e melhor.” (FOUCAULT, 1975, p. 191). Logo, serve para manter a dinâmica estrutural das classes dominantes e conduzir à dominação das consciências oprimidas, impedindo, assim, a libertação do oprimido. Para isso, a disciplina aposta todos os esforços no nivelamento e no anonimato coletivo em detrimento do indivíduo, mostrando o medo visceral que a nossa sociedade tem diante da figura que assume a sua singularidade. “Na escola todos devem fazer os mesmos exercícios, repetir a resposta única pensada pelos autores do livro-texto e de seu profeta, o professor. Todos olham para o mesmo horizonte” (HERNÁNDEZ, 2007, p.15). Dessa forma, o horizonte se converte em grades.
O Estado herdou o “dedo ordenador de deus” e se utiliza dos ricos de coração, através de títulos, como isca para os demasiados. “Sim um cavalo da morte a retinir nos adornos das divinas honrarias foi aí inventado” (NIETZSCHE, 1883, p. 46). O professor bancário é o seu algoz, baluarte e vítima ao mesmo tempo. Desse jeito não ocorre a esses defensores do conhecimento “que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 20). O aluno nota dez na matéria na qual não cria nem se vê mostra mais valor pelo trabalho do professor do que pelo conteúdo em si. Perdido, sem saber para onde ir, o dinheiro marca de dourado os caminhos que levam para longe de si mesmo. A busca única por dinheiro desnorteia o sentido da educação e transforma o “ser” em “ter”. Assim, a educação deixa de ter como meta a humanização e passa a ser “um mero meio de distinção, de obtenção de honras, de prebendas, de poder e de dinheiro.” (RODRIGUES, 2002, p. 66). Nesse sentido, “quando você vai à escola pensando em se formar e ganhar dinheiro, está praticando o que Weber chama de ação social racional com relação a fins.” (RODRIGUES, 2002, p. 55). A influência do dinheiro em nossa vida na escola se dá de modo gradual, a busca por mais dinheiro atravessa a carreira acadêmica e pauta a escala de importância de cada conteúdo. Assim, quanto mais rápido for o lucro e menor o esforço para sua obtenção, mais tem valor esse conteúdo, dentro e fora da escola. Um exemplo disso é a linguagem poética e a linguagem acadêmica, fôrma na qual a mão do aluno deve crescer. Talvez o problema da palavra estudar esteja na palavra “s”, “s” muitas vezes em associação com o cifrão (“$”) como é possível ver neste exemplo de um grafite que vi certa vez; “E$TUDAR”, grafado com “$”, ou seja, o dinheiro como símbolo de tortura, uma cruz, para o estudo. Nesse cálculo, uma pesquisa inédita, feita em parceria entre Fundação Roberto Marinho e Insper, calcula o custo social que o país tem todo ano pelo fato de seus jovens não concluírem a educação básica. A pesquisa traz a resposta para uma pergunta objetiva: quanto custa não priorizar a educação? A conclusão do estudo “Consequências da Violação do Direito à Educação Básica” é que o Brasil perde R$ 214 bilhões por ano pelo fato de os jovens não concluírem a educação básica. Segundo a publicação realizada por Tamiris Almeida no site da TV Futura, em 16 de setembro de 2020: Inicialmente, a pesquisa calculou quantos jovens não concluirão a educação básica, mantido o ritmo atual. Depois, quais seriam as consequências, em valores monetários,
por jovem nas quatro dimensões. Por fim, estimou o custo total para o país da evasão escolar de jovens (...). Os jovens que têm a educação básica completa passam, em média, mais tempo de sua vida produtiva ocupados e em empregos formais, com maior remuneração; têm maior expectativa de vida com qualidade - estima-se que cada jovem com educação básica viverá quatro anos de vida a mais que um jovem que não terminou a escolaridade-; e tendem a ter um menor envolvimento em atividades violentas, como homicídios - o cálculo é que a evasão representa uma perda de 26% do valor da vida de um jovem.
Em outras palavras: “o Brasil gasta anualmente em educação pública cerca de 6% do Produto Interno Bruto” (OLIVEIRA, 2018). Assim a perda total anual para o país é um prejuízo bilionário, o que equivale uma grande perda do PIB investido em educação. A cada ponto percentual de redução na evasão, seriam 550 homicídios a menos a cada ano. Uma morte que poderia ser evitada, caso o jovem concluísse a educação básica, custa R$ 25 bilhões por ano e, portanto, tem valor de R$ 44 mil por jovem que não conclui a educação básica. Os motivos que levam adolescentes e jovens a abandonarem a escola são diversos e, para enfrentá-los, é importante entender suas diferentes naturezas. Algumas questões, por exemplo, estão relacionadas à própria escola, que não tem qualidade e é pouco atraente para o estudante ou não está conectada com as expectativas dele (é muito difícil ou parece pouco útil, por exemplo). De acordo com a publicação de Tatiana Klix no site da TV Futura, de 30 de julho de 2019, a plataforma GESTA (Galeria de Estudos e Avaliação de Iniciativas Públicas) identificou 14 fatores de desengajamento: acesso limitado, necessidade especial, gravidez e maternidade, atividades ilegais, mercado de trabalho, pobreza, violência, déficit de aprendizagem, significado da escola, flexibilidade, qualidade da educação, clima escolar, percepção da importância, baixa resiliência emocional. A criação pode ajudar a combater a evasão escolar, pois ela se relaciona diretamente com quatro dos motivos citados acima pela GESTA. O aluno que é desde sempre incentivado a criar descobre afinidade, e escolher em qual curso ingressar na faculdade se dá de modo contínuo. Não reconhecer a educação como propulsora do desenvolvimento do país traz um gigantesco prejuízo financeiro. A importância da solidão extraescolar, como momento de encontro com o próprio pensamento, se estende do aluno ao professor. Assim, “as atividades de ler e aprender, quando em excesso, são prejudiciais ao pensamento próprio. As de escrever e ensinar em demasia
também desacostumam os homens de clareza e profundidade do saber e da compreensão, uma vez que não lhes sobra tempo para obtê-los” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 21). A formação bancária do professor ganha amplitude no aluno através do seu ouvido. Sendo a formação bancária baseada principalmente na memorização, o que só dá conta da silhueta do objeto. Sendo assim, “não só os de orelha comprida e vista curta caem de joelhos” (NIETZSCHE, 1883, p. 46) aos herdeiros estimulados a criar, o professor bancário também os compra através das “honras divinas”. Dominar um corpo consiste em entrar pelos ouvidos e não o ensinar a ter filtro, a só repetir as informações sem as problematizar. Mas a mão anseia por liberdade, por gerar o descobrimento. Nesse cenário, o professor que tem sua ciência como fim e não como meio alcança a excelência nas suas obras, ou seja, nas aulas, pois é fruto das diversas camadas da cebola que digeriu e agora sim pode alimentar os outros “com o leite que se formou a partir do próprio sangue.” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 22). Somente assim é possível alimentar os outros de outra maneira. A cabeça do professor “é semelhante a um estômago e a um intestino dos quais a comida sai sem ser digerida.” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 22). Nesse desengolir temos o ensino bancário. Por sua vez, o professor que realmente digeriu a terra e a si mesmo sabe que a nata do seu leite está na abertura da sua aula para a participação do aluno. Nesse contexto, cabe ao professor coragem, ao problematizar, junto com o aluno, sempre que possível as informações das suas aulas. Dessa maneira, a possibilidade de criação no tempo extraescolar começa em sala de aula, a partir do diálogo. Estimular a conversa é valorizar a voz do aluno e o pensar por si mesmo. O gosto pela própria voz não relega esse prazer a terceiros, busca assunção da própria vida; “cada vez mais honestamente aprende ele a falar, o Eu: e, quanto mais aprende, tanto mais palavras e homenagens encontra para o corpo e a terra” (NIETZSCHE, 1883, p.30). Portanto, o gosto pela voz, em sala de aula, fala “Eu quero”, “Eu sou”, “Eu acho que ...”. Nesse contexto, o aluno vai para a sua solidão, no seu espaço extraescolar, e o gosto pela própria voz se cala e o corpo se impõe como senhor. “Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa maior, porém, em que não queres crer — é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu”. (NIETZSCHE, 1883, p.32). Desse modo, o si mesmo sempre escuta e procura, domina e é também dominador do eu.
Portanto, o “teu si-mesmo ri de teu Eu e de seus saltos orgulhosos. “Que são para mim esses saltos e voos do pensamento?”, diz para si. “Um rodeio até a minha meta. Eu sou a andadeira do Eu e o soprador dos seus conceitos.” (NIETZSCHE, 1883, p.32). Assim posto, a maneira de o corpo transbordar, sair de si, de lavar a dor é através da criação. O professor deveria proceder igual ao “governante autêntico” de Platão, visto que; “o governante autêntico não deve visar ao seu próprio interesse, mas ao do governado” (PLATÃO, 2000, p.42). Deve o professor “saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1996, p. 12). Quando alfabetizadas com liberdade, as crianças não copiam palavras, mas expressam juízos e quanto mais palavras aprendem, mais profundas ficam as homenagens. É nesse exercício, de perguntar e responder, que o professor incentiva cada vez mais o aluno a procurar as suas próprias respostas. É no exercício de procurar cada vez melhores respostas, que a curiosidade ingênua se transforma em curiosidade epistemológica, como diz Paulo Freire. “Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, torna-se curiosidade epistemológica.” (FREIRE, 1996 p.17) Como imagem da ideia, da inteligência temos a lâmpada: “A inteligência se parece com as lâmpadas. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60, 100, 150 Watts.” (ALVES, 2010, p. 69). Tal como os professores, as lâmpadas, não foram feitas para olharmos para elas, mas sim para elas iluminarem os nossos objetos de interesse. Logo, as lâmpadas valem pelas cenas que iluminam. Quando abre espaço na sua aula, o professor ilumina a voz do outro, mas, para isso, o professor precisa de tempo. Abrir esse espaço é cumprir a normas curriculares previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para algumas matérias, como arte, filosofia e outras com apenas um tempo na grade de horários, em um contorcionismo quase impossível. Alguns professores também são vítimas da estratégia bancária e têm suas vozes caladas, direcionadas a apenas repetir as informações dos livros. Por sua vez, o professor que ajudou o aluno a se superar, tem o seu papel feito. Pois sabe que foi corrimão no caminho do aluno. Afinal como diz Nietzsche “retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos.” (NIETSZCHE, 1883, p. 72). Nesse contexto, é possível relacionar o livro Pedagogia da Autonomia, com A República de Platão, quando Freire (1996) define sua base educativa, título do 1º capítulo do seu livro: “Não há docência sem discência”. Mais adiante, o autor sublinha: “ensinar inexiste sem
aprender e vice-versa”, algo que está em relação direta com Sócrates: “tens razão quanto ao fato de que me instruo com os outros” (PLATÃO, 2000, p.34). Assim, a razão da docência socráticafreireana faz-se na relação de aprendizagem com o aluno. Diante desse contexto, qual seria a melhor contribuição da arte na educação? Acredito que a melhor contribuição é a aprendizagem que vem da mão, do poder que a mão tem para ajudar a inteligência a aprender: “Da mesma maneira que os poetas adoram seus versos, e os pais aos filhos, um comerciante preza sua riqueza por ser obra sua.” (PLATÃO, 2000, p.26). Como afirma Rollo May “Expressamos nossa existência criando” (MAY, 1975, p. 7). A teoria da relatividade, o avião ou a Capitu são obras que atravessam seus criadores “Para ser ele próprio a criança recém-nascida, o criador também deve querer ser a parturiente e a dor da parturiente.” (NIETZSCHE, 1883, p. 72). Por exemplo: “Quando se fala em “um frankenstein” pensa-se num monstro disforme e desajeitado, e não no engenhoso cientista de Genebra. Assim, por vias tortas e inesperadas, realizou-se com o tempo aquilo que talvez a própria Mary Shelley já tivesse presente em algum lugar de sua inquieta mente: a identificação entre cientista e monstro, autor e obra, criador e criatura.” (SHELLEY, 2015, p. 221). Finalizo concordando com Décio Pignatari (2004) sobre a necessidade urgente de criarmos um Brasil e não ensiná-lo. E reafirmo uma proposição ao considerar tempo de criação em tempos de pósmodernismos; “Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.” (Freire, 1996, p.?).
Referências bibliográficas
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PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. 3. ed. Cotia/São Paulo: Ateliê, 2004. PLATÃO. A república. Coleção a obra-prima de cada autor. 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2000. RODRIGUES, Alberto Tosi. Sociologia da educação. 6. ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2002. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2005. SHELLEY, Mary. Frankenstein: ou o moderno prometeu. 1. ed. São Paulo: Penguin, 2015.
Percepções sobre os primeiros anos do projeto autonomia e o neoliberalismo no estado do Rio de Janeiro (2009 – 2011)2021 Fábio Souza Lima
Introdução O Projeto Autonomia foi implementado pela Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro num momento em que a ordem era a de informatização de tudo quanto possível na área da Educação. A então Secretária de Educação, Tereza Porto (2008 – 2010), distribuiu computadores aos professores com internet 2G sob forma de empréstimo, iniciou a instalação de computadores alugados nas salas de aula e outorgou aos docentes a função de controlar digitalmente – além do já feito convencionalmente com os diários de papel – o calendário, a pauta, o lançamento de notas, além do próprio horário de trabalho, através de um sistema controlado e mantido por uma empresa privada terceirizada. Além disso, as conexões entre os computadores que mantiveram o sistema funcionando e as conexões com a internet foram mantidas por outra empresa, a OI Corporação. No campo pedagógico, a Secretaria Estadual de Educação do RJ (SEEDUC), seguindo a perspectiva do Governo Sérgio Cabral (2007 – 2014) de parceria público-privada, adotou também o Projeto Autonomia, da Fundação Roberto Marinho, cuja metodologia é o já conhecido Telecurso® Telessalas™. Paralelamente, no mesmo período também foi criado o SAERJ (Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro), o Currículo Mínimo e o sistema Conexão Escola. Esse quadro de “modernização” da secretaria culminou com a parceria fechada entre a SEEDUC e a Fundação Roberto Marinho, para que fosse usado o sistema telecurso como base do novo projeto da secretaria de Estado. A implantação de tal metodologia junto à rede pública estadual fluminense, focada em recursos audiovisuais, não ocorreu sem acalorados debates no meio educacional, acontecidos a partir do ano de 2009. Segundo a secretaria estadual de educação, a justificativa de introdução dessa proposta era corrigir a distorção causada pela 2021 Este artigo foi revisado, atualizado e ampliado para publicação neste livro. Originalmente, é possível encontralo na Revista Cadernos do Aplicação, v. 31, n.º 12, 2018. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/CadernosdoAplicacao/article/view/89512. Acesso em: 29 jun. 2020.
repetência e minimizar as consequências resultantes desse atraso escolar, inclusive a evasão, utilizando-se do Projeto.
Os contornos da crise no estado do Rio de Janeiro O Projeto Autonomia foi iniciado dentro da Secretaria Estadual de Educação no ano de 2009. Seu contexto segue uma série de características históricas que estão presentes não apenas no ambiente educacional, mas disseminado por todas as áreas em que o empresariado brasileiro está, de uma forma ou de outra, envolvido. O Projeto Autonomia é classificado como uma modalidade de ensino à distância, por ter a maior parte de seu processo de aprendizagem desenvolvido por meio de vídeos e apenas um professor responsável por estimular a produção intelectual dentro de sala. Apesar da expansão do Projeto e da sua metodologia nos últimos anos, isso não impediu que ele estivesse ainda nos dias de hoje em meio a uma discussão sobre a sua qualidade. Apesar das discussões, o Projeto Autonomia atende a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que no artigo 80 aponta que “O Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (LDB 9394/1996). Ao rever esta legislação, podemos perceber lacunas em variados momentos. No caso do ensino a distância e uso da tecnologia, essas ausências e lacunas acabam por se tornar brechas onde surgem oportunidades para a atuação empresarial dentro da educação (CAMPOS; SOUZA JÚNIOR, 2011). Em nosso país, o primeiro documento que refletiu a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, de 1990, foi o Plano Decenal de Educação para Todos (1993 – 2003) e, posteriormente, a própria Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/96). Em ambos os documentos, a influência do pensamento economicista e neoliberal do novo modelo educacional ficou bem clara. De fato, segundo escreveu Libâneo (2012, p. 21), o Plano Decenal adotado pela União é praticamente uma reprodução da Declaração Mundial sobre a Educação para Todos. Embora a palavra naquele momento fosse o uso da informática/ tecnologia na SEEDUC a falta de especificações na sua utilização acabava por abrir mais possibilidades a um experimentalismo pedagógico que interferiu diretamente na vida dos docentes e dos discentes. O educador Pedro Demo (1997), em seu livro A nova LDB: ranços e avanços, aponta que a falta de especificidade da LDB quanto ao uso de tecnologia (informática educativa) acaba por
tornar esse tipo de ensino (a distância) um exemplo de aprendizagem de má qualidade, ou pior, que as lacunas deixadas pela LDB tinham mesmo o intuito de oferecer “oportunidades” a serem aproveitadas pelas grandes redes de televisão. No primeiro ano de mandato, traçando um perfil de sua administração pública, o governo Sérgio Cabral tentou implementar o primeiro concurso para o magistério que aconteceria sob o regime celetista, isto é, seria o primeiro concurso a submeter os professores à CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), e não mais ao Estatuto do Servidor Público. No mesmo ano, por forte pressão popular e sindical, o intento do governador malogrou. Contudo, ainda em seu primeiro mandato, com grande intervenção de propaganda na imprensa, Cabral alugou computadores e aparelhos de ar-condicionado para colocar nas salas de aulas dos Colégios Estaduais. A despeito das denúncias de que os aparelhos não funcionavam, de que estariam parados, de que as escolas não teriam estrutura para recebê-los ou de que eles teriam sido alugados a valores mais altos do que seriam os valores de compra2122, o governo recebeu forte apoio e promoção da mídia. Muitos contratos foram firmados com empresas terceirizadas que ficaram responsáveis por setores da administração da secretaria dos colégios e pela manutenção dos computadores e dos aparelhos de ar condicionado das unidades escolares: Diante da crise política e de imagem ligada a denúncias de proximidade excessiva a empresários com interesses no Estado - que o atingiram em junho -, o governador do Rio, Sérgio Cabral Filho (PMDB), mais que dobrou as verbas oficiais destinadas ao setor de publicidade e imprensa em 2011. Em dois decretos publicados após as acusações, Cabral elevou de R$ 55,7 milhões para R$ 120,7 milhões a autorização para gastos com Serviços de Comunicação e Divulgação da Subsecretaria de Comunicação e Divulgação - elevação de 116,75%. Até ontem, foram empenhados R$ 75,6 milhões e liquidados R$ 67 milhões. O governo nega relação desse aumento com a crise 2223.
Outros contratos foram firmados com as empresas privadas que ficaram responsáveis por fornecer sinal de internet para os colégios e professores. E, no ano de 2009, aconteceu o que viria a se tornar símbolo da campanha de melhoria nas condições de trabalho dos professores, o governador passou aos docentes computadores portáteis das empresas Positivo e CCE. Novamente houve denúncia. Desta vez, os computadores comprados no atacado, cerca de 31 mil no primeiro lote (70 mil no total), teriam sido adquiridos a um valor superior ao de varejo nas lojas de shoppings do Rio de Janeiro. Esses computadores, que não foram dados, mas emprestados sob a condição de o professor continuar na rede de ensino, foram colocados
2122 “Eu posso ser candidato a governador, né?” Disponível em: http://www.sinfrerj.com.br/eu-posso-sercandidato-governador-ne. Acesso em: 08 ago. 2020. 2223 Jornal O Estado de São Paulo. Após crise, Cabral dobra gastos com publicidade. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,apos-crise-cabral-dobra-gastos-com-publicidade,744338,0.htm>. Acesso em: 19 set. 2012
pelos meios de comunicação de massa como se fosse o principal fator promotor do avanço pedagógico e tecnológico, visando à melhoria da educação no Rio de Janeiro. Não obstante, apesar de todo o trabalho com tecnologia, em 2010, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica em 2011 (IDEB) revelou que o ensino estadual do Rio de Janeiro era o segundo pior do país. Em um escalonamento feito pelo índice, o Estado do Rio, com 2,8 em uma graduação que vai até 10, ficou com o penúltimo lugar entre as unidades da federação, apenas à frente do Piauí, uma das unidades mais pobres da federação. Apesar de a imprensa não repercutir muito o caso de desempenho pífio da SEEDUC, no início do ano de 2011, época em que o índice foi divulgado, foi impossível conter a crise dentro do setor. Enquanto jornalistas especulavam insistentemente sobre a qualidade da formação dos professores, pressionando o governo por resultados melhores, acadêmicos como o professor Doutor Roberto Leher, raramente ouvidos pelos meios de comunicação de massa, continuaram a apontar que é inadmissível, por exemplo, um sistema de educação que aprove alunos sem terem cumprido o currículo, com todas as disciplinas da grade. De acordo com o SEPE – Sindicato Estadual de Profissionais de Educação do Rio de Janeiro –, de janeiro a junho de 2010, a rede estadual perdeu quase quatro professores por dia, sem contar com os que se aposentaram, os que faleceram ou que foram demitidos, pois, se esses fossem levados em consideração, o número subiria para onze por dia. Anualmente, o Estado tem realizado concursos para a admissão de professores. O maior deles, anunciado e realizado no ano de 2008, ofereceu 15 mil vagas, um concurso gigantesco até para o nível federal, maior ainda se considerarmos a situação do Estado do Rio de Janeiro. Apesar do grande quantitativo de vagas, nos dois anos seguintes as vagas foram preenchidas e criadas novamente. Ainda segundo o Sindicato, e também nas palavras do Educador Nicolas Davis, professor da Universidade Federal Fluminense, vemos a seguinte constatação: “O professor não permanece na rede porque o salário é muito ruim. Eu mesmo fui professor durante nove anos, mas, assim que pude, prestei concurso para a UFF”2324. No ano de 2011, a falta de professores continuava grande. Então, o governador anunciou que os professores desviados de função, ou seja, aqueles que têm licenciatura, mas decidiram trabalhar em funções administrativas, teriam que voltar à sala de aula. Aqueles que foram
2324
DAVIES apud UOL Educação. Disponível em: < http://educacao.uol.com.br/noticias/2010/08/26/redeestadual-do-rj-perde-quatro-professores-por-dia-baixo-salario-seria-motivo-da-desistencia.htm>. Acesso em: 19 set. 2012.
cedidos para outros órgãos, retornariam a sua unidade escolar para voltar a assumir turmas. Eram cerca de dois mil professores que, mesmo sem querer, tiveram que voltar a dar aulas. E ainda, no mesmo ano, também foi anunciado que os professores das séries iniciais, chamados de PII, deveriam ser aproveitados nas salas do Ensino Médio. Eram professores que lecionam nas séries de alfabetização e que foram transformados em professores de disciplinas do Ensino Médio. As séries iniciais da Educação Básica, que segundo a LDB são de responsabilidade dos municípios, realmente tornaram-se exclusividade dos municípios, graças à política educacional do governo Cabral. Com isso, mais professores foram liberados para atuarem no Ensino Médio. Cerca de vinte e dois mil professores, como anunciados nos jornais, foram conduzidos às salas de aula do Ensino Médio. Mesmo assim, segundo as entidades da classe, faltavam professores. Todos os anos, milhares de alunos se formavam – e ainda se formam – sem terem estudado disciplinas básicas como física, química, filosofia, entre outras matérias. Mas a solução do Estado continuava sendo a mesma há anos: para corrigir o problema da falta de docentes, a invenção da sigla “SP” (Sem Professor) possibilitava a aprovação do aluno após um ano inteiro sem o docente da disciplina. Diante desse quadro, as evidências mostravam que, em um Estado como o Rio de Janeiro, com variadas instituições públicas superiores, não havia uma verdadeira falta de profissionais, mas uma desistência da profissão de professor. As condições de trabalho, a qualificação e os salários, com foco no professor, que inclusive fizeram parte da campanha de Sérgio Cabral, deveriam ser o foco de ação do Estado (MENDONÇA, 2010). Porém, esse não era o verdadeiro projeto do governo Sérgio Cabral. Caso as suas promessas de campanha fossem realizadas, haveria uma política pública que reforçaria a responsabilidade e a intervenção do Estado na educação, o que estaria em lógica contrária às políticas neoliberais, com bases economicistas estabelecidas pelo Banco Mundial (TORRES, Apud LIBÂNEO, 2012).
O Projeto Autonomia como solução de uma crise programada O significado do termo Autonomia relaciona-se, em um primeiro momento, com a liberdade política de uma sociedade, capaz de governar-se por si mesma de forma independente e com autodeterminação. Porém, mais tarde, será com o desenvolvimento do Iluminismo e da filosofia kantiana (2000) que o termo autonomia ganhará contornos de caráter pessoal, individual. Originalmente, a palavra Autonomia remete à cultura helênica clássica. O adjetivo pronominal autos vem do grego “por si mesmo”, “o mesmo”, “ele mesmo”. Já o substantivo
nomos, também de origem grega, quer dizer instituição, lei, convenção, norma ou uso (CASTORIADIS, Apud SCHRAMM, 1998). O pensador brasileiro Paulo Freire, consonante com as ideias apresentadas sobre o conceito de autonomia, em seu livro “Pedagogia da Autonomia”, motiva-se contra a perspectiva de que as pessoas devem se conformar com a sua posição social. Põe-se contra a ideia de que não deve ser dado aos jovens e adultos o conteúdo e a postura suficiente para o desenvolvimento de um pensamento crítico, capaz de intervir na sociedade em que vivemos. Coloca-se contrário, ainda, aos que acreditam em uma educação técnica ou bancária, que visa a incutir na cabeça dos discentes apenas o conteúdo necessário a uma vida submetida à Ordem Social estabelecida pelas elites sociais (1996). O livro Pedagogia da Autonomia, do referido autor, apresenta um referencial que se relaciona com a definição da palavra autonomia e da proposta kantiana, quando aponta que os alunos devem ser encorajados a buscar e construir o saber, sendo a eles fornecida apenas a orientação para que esse processo ocorra naturalmente. Isto é, os alunos não devem estar passivos diante das informações que a eles chegam, pois o resultado seria o oposto do desenvolvimento crítico: a alienação ideológica. Naturalmente, a ideologia, como propõe Marx e Engels (1987), funciona como um processo de submissão das ideias de um sujeito a outro sujeito. Quando esse processo de submissão está completo, temos um sujeito alienado ao outro através das ideias. Trata-se então, para o desenvolvimento de nosso trabalho, importante entender, mesmo que brevemente, o funcionamento desse conceito. Isso por que, de acordo com a filósofa Marilena Chauí (1980), a educação e os meios de comunicação de massa são alguns dos principais disseminadores de ideias que atendem a determinados grupos sociais. O Projeto Autonomia, como apontamos, é lançado dentro desse contexto de aumento da participação do empresariado em um governo de perfil administrativo neoliberal, de uma verdadeira evasão escolar de professores e de um discurso vagaroso de inserção de tecnologias novas (novas para Secretaria Estadual de Educação) na Educação do Estado do Rio de Janeiro. Percebemos, então, em conformidade com o que apontamos aqui, que o colocado pelo filósofo Pierre Lévy, em sua obra Cibercultura, fundamenta-se como pretexto para a utilização de um ensino quase completamente audiovisual: falta de professores e altos custos na formação tradicional: (...) duas grandes reformas são necessárias nos sistemas de educação e formação. Em primeiro lugar, a aclimatação dos dispositivos e do espírito do EAD (ensino aberto e a distância) ao cotidiano e ao dia a dia da educação. A EAD explora certas técnicas de ensino a distância,
incluindo as hipermídias, as redes de comunicação interativas e todas as tecnologias intelectuais da cibercultura. Mas o essencial se encontra em um novo estilo de pedagogia, que favorece ao mesmo tempo as aprendizagens personalizadas e a aprendizagem coletiva em rede. Nesse contexto, o professor é incentivado a tornar-se um animador da inteligência coletiva de seus grupos de alunos em vez de um fornecedor direto de conhecimentos (LÉVY, 1999; 157).
Assim, dentro dessa já configurada situação educacional de evidente crise, a Secretaria de Educação trabalhou para a expansão desse Projeto nos períodos de 2009, 2010 e 2011. Um projeto que aplicava a metodologia de uma empresa de comunicações de massa prescinde da formação universitária dos professores, pois só utilizava um docente por turma e, colocando uma televisão e um DVD player dentro de sala de aula, atestava o discurso de modernização da educação. Durante nosso período de pesquisa, escolhemos um colégio noturno e implementamos um questionário sobre a idade dos alunos da turma do Projeto Autonomia e alunos de uma turma do 1º ano do ensino regular. Em ambas as turmas, 100% dos alunos apresentaram distorção da idade/ série, que deveria ser de 15 anos. Os alunos realizavam a inscrição para o Projeto na secretaria do colégio como alunos regulares. Somente mais tarde, eles eram escolhidos pelo professor que leciona no Projeto Autonomia para participar do programa. Durante a pesquisa, questionamos sobre os seus índices de evasão escolar. Os números apresentados aproximaram-se do curso regular. Realizamos também duas entrevistas com um professor do Projeto. A primeira ocorreu logo no início do Projeto e outra entrevista, quando o ano letivo já estava por terminar. Desde antes da publicação deste artigo, com receio de sofrer sansões da SEEDUC, o docente entrevistado pediu para não ser identificado, ficando identificado, para efeitos deste trabalho, com a sigla V.A. Vejamos então, nas palavras do Professor V.A. do Projeto Autonomia em sua 1ª entrevista, as condições das aulas: VA - Junto com a Fundação Roberto Marinho, eles estão trabalhando aí... ...trazendo uma coleção de livros bem bacana, né. Então o material didático é muito bom, então há um investimento legal. O livro é dos alunos. Os alunos manuseiam, escrevem... Mas, assim como no Estado, depois, eles têm que devolver... Mas é legal porque eles têm um material muito rico em termos de conteúdo. Tem... a gente recebeu verba para comprar televisão, DVD, né. A gente recebe verba para o material todo específico do projeto. É claro, é bem aquém do que a gente gostaria ou do que a gente precisa, mas a gente vê que há um interesse do governo em investir em educação, principalmente desse pessoal que está fora, pra resgatar mesmo. E quanto a pessoal, a gente tem uma capacitação, uma vez a cada quatro meses, pra poder trabalhar as matérias, já que nós não somos específicos todas as matérias. Eu por exemplo, sou de educação física, tem que estudar matemática, tem que estudar física... Então eles proporcionam essa capacitação pra gente de quatro em quatro meses, pra poder ajudar. Tem supervisor, tem uma equipe multidisciplinar que ajuda a gente.
FSL - E no final do ano você sai... VA - Sim, após os cursos de capacitação e as aulas ministradas, a gente sai pós-graduado em Políticas Públicas (SOUZA LIMA, F. Projeto Autonomia – 1ª Entrevista. Maio de 2011).
Dessa forma, vê-se na precarização do Sistema de Ensino, no que diz respeito a sua eficácia e produtividade, uma oportunidade de expansão dos serviços destinados à competência da iniciativa privada. A falta de professores pode então ser resolvida com uma metodologia que exige apenas um professor por turma no ensino médio. Tratava-se de um curso de dezoito meses em que o docente recebe apenas seis aulas de capacitação para lecionar todas as matérias do ensino médio. A referida capacitação, citada na entrevista, que acontece quadrimestralmente, durava cerca de 40 horas, divididas pelos cinco dias de uma semana. Segundo Libâneo (2012), as políticas de universalização do acesso ao ensino acabam por prejudicá-lo, uma vez que há maior preocupação com os números de acesso do que com a qualidade da aprendizagem. Ocorre uma inversão das funções da escola: o direito ao conhecimento e à aprendizagem é substituído pelas aprendizagens mínimas para a sobrevivência. Isso pode explicar o descaso com os salários e com a formação de professores: para uma escola que requer apenas necessidades mínimas de aprendizagem, basta um professor que apreenda um kit de técnicas de sobrevivência docente (agora acompanhado dos pacotes de livros didáticos dos chamados sistemas de ensino). (LIBÂNEO, 2012; p. 23).
E após as seis capacitações, segundo o Estado, os professores estariam tão bem preparados que além de lecionarem todas as disciplinas, também seriam considerados especialistas em Políticas Públicas. Segundo o professor V.A., a pós-graduação lato sensu foi prometida aos docentes ao final da primeira turma formada. De fato, apesar da promessa, os professores não foram contemplados com certificação alguma. Tomaz Tadeu Silva e Pablo Gentili explicam como a propaganda de uma crise e a proposta de sua resolução são apresentadas para a sociedade: Segundo os neoliberais, esta crise se explica, em grande medida, pelo caráter estruturalmente ineficiente do Estado para gerenciar as políticas públicas. O clientelismo, a obsessão planificadora e os improdutivos, labirintos do burocratismo estatal explicam, sob a perspectiva neoliberal, a incapacidade que tiveram os governos para garantir a democratização da educação e, ao mesmo tempo, a eficiência produtiva da escola. A educação funciona mal porque foi malcriadamente peneirada pela política, porque foi profundamente estatizada. A ausência de um verdadeiro mercado educacional permite compreender a crise de qualidade que invade as instituições escolares (SILVA; GENTILI, 1996. p. ???).
Para dissolver a crise formada, o Governo do Rio de Janeiro iniciou o ano de 2011 com propostas já conhecidas dentro dos meios acadêmicos. Sua política educacional, seguindo a cartilha neoliberal conservadora, criou provas bimestrais que serão aplicadas pelo Estado para verificar e ranquear a aprendizagem dos alunos e a dedicação dos docentes. Estes últimos serão
premiados segundo as notas dos alunos, de forma a se adequarem aos conteúdos específicos determinados pelos currículos mínimos estabelecidos pela Secretaria de Educação. Trata-se, como apontam os educadores Tomaz Tadeu Silva e Pablo Gentili, na obra Escola S.A., da resolução dos problemas educacionais segundo o modelo neoliberal: princípios meritocráticos e competitivos; preocupação com produtividade e eficiência; subordinação às necessidades do mercado de trabalho e empregabilidade (SILVA; GENTILI, 1996). É importante ressaltar que entendemos como empregabilidade, as competências necessárias para buscar um emprego, neste caso, no mercado de trabalho; como já citamos, um kit de sobrevivência e colocação dentro da sociedade. Nas palavras do professor V. A., a formação rápida acontece da seguinte forma: VA - O Projeto é que esses alunos tenham uma síntese do conteúdo que abrange todo o Ensino Médio, mas de uma forma bem resumida e em módulos. Mas como assim em módulos? Para esses alunos, a Fundação Roberto Marinho entende, já que é a proposta deles, que o conteúdo é muito pesado e extenso para que seja dado concomitantemente. Então eles fazem da seguinte forma: eles separam módulos, de alguns meses, e os alunos, nesses módulos, trabalharão determinados conteúdos específicos e que se entrelaçam para facilitar a interdisciplinaridade e de uma forma mais prática, mais concreta do que a linguagem simplesmente abstrata dos livros. Então o que acontece, o aluno vê, num período curto, somente três ou quatro disciplinas e a gente trabalha com vídeos; a educação é 70% visual (...) (SOUZA LIMA, F. Projeto Autonomia – 1ª Entrevista. Maio de 2011).
O Projeto Autonomia visava a formar o aluno nos anos finais da educação básica (Ensino Médio) no prazo de um ano e meio. E, embora o curso fosse presencial, ele funcionava necessariamente com vídeos, dentro de um modelo de educação à distância. Os alunos passavam cerca de setenta por cento de seu tempo sendo educados por vídeos e o restante em trabalhos de grupo com os colegas sobre os vídeos apresentados. No Projeto, apenas um professor era treinado para desenvolver as competências dos alunos em todas as disciplinas. Sem dúvida, resumir uma grade de cerca de dez professores em apenas um docente, além de capacitá-los com cursos que são ministrados de quatro em quatro meses, parecia gerar, na linguagem neoliberal, lucro certo. Em entrevista, o professor do Projeto Autonomia ainda apontou que o salário do docente envolvido no Projeto é de duas vezes o salário de um professor regular do Estado, isto é, cerca de R$ 2.000,00 atualmente (SOUZA LIMA, F. Projeto Autonomia – 1ª Entrevista. Maio de 2011). Isto é, tínhamos um professor que trabalhava por 10 e ganhava por dois, e ainda diminuía o tempo de estadia do aluno na escola em 50%, pois o Projeto, que cobria todo o Ensino Médio, durava apenas um ano e meio. Vale ressaltar que esse docente tinha a responsabilidade de ministrar aulas durante todos os dias da semana e em todos os tempos. Considerando que no ensino regular uma turma
teria algo em torno de dez professores que ministrariam aulas de duas a quatro horas na semana, o valor gasto com a educação desses alunos que cursavam a educação básica regular seria muito maior. Além disso, os ganhos com a estrutura de ensino, como energia, limpeza, alimentação, água, etc., diminuíam de acordo com o menor tempo em que o aluno ficava na escola. Essa “flexibilização” do currículo, visando ao treinamento de competências voltadas à formação rápida era parte dos objetivos da classe social dominante para a manutenção da Ordem Social no país, pois atendia a uma formação acrítica necessária à reprodução do atual estado da sociedade. Evidentemente, como já apontamos, para que uma ideologia funcione de forma eficaz, é imprescindível que ela apareça para toda a sociedade como acessível e/ou necessária. Ou seja, aqueles que são dominados, as classes mais baixas, dependentes do ensino público, devem crer que a ideologia, as ideias disseminadas pelos grupos que controlam o capital cultural não servem a ninguém em específico, devem crer que não beneficia nenhuma classe social, e que funciona como uma verdade incondicional, incontestável a todos. E claro, devemos ressaltar que é impossível realizar esse processo de convencimento e influência sem gastar muito dinheiro com a propaganda. Preferível é, e as elites sabem disso, possuir ou controlar os meios de comunicação de massa ou telas ao seu lado, por onde serão disseminadas ideias e valores concernentes ao modus vivendi de uma parcela da sociedade. Os valores são propagados pelas emissoras de televisão e rádio, e através das escolas, como já vimos. Mesmo os professores, enquanto alunos universitários, sofrem a influência das ideias dentro da academia. E isso é normal, até entendermos que muitos projetos e bolsas universitárias são financiadas por instituições privadas nacionais e internacionais, que tolhem a independência intelectual dos muitos acadêmicos. Dessa forma, são difundidos o pensamento e as práticas empresariais dentro da academia e para fora dela, quando os formandos são atirados no mercado de trabalho nas mais variadas funções sociais, notadamente, para os professores do ensino básico. O caso do Projeto Autonomia é ainda mais incisivo, pois uma empresa de televisão, rádio e jornal impresso tornou-se responsável pelo currículo e pelo método aplicado na aprendizagem e na construção do saber do jovem nos setenta por cento do tempo em que ele está na escola. No caso da Fundação Roberto Marinho, ela possui uma série de projetos voltados para a educação, dentre eles o TeleCurso TEC, Aprendiz Legal, Olá Turista e o Projeto Autonomia. Em todos os exemplos, a Fundação aplica a metodologia que se tornou uma marca registrada: o telecurso/ telessala. Seus principais parceiros eram: Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Serviço Social da
Indústria (SESI) e agora, os Estados, notadamente o Estado do Rio de Janeiro, onde fica a sede da Fundação e das Organizações Globo. Contudo, coroando as relações públicas estaduais com setores do capital privado e o futuro educacional sombrio que se acerca do Estado do Rio de Janeiro, ao final do ano letivo de 2012, os professores da rede estadual ainda foram surpreendidos pela notícia de que seriam observados em suas aulas por agentes enviados pelo Banco Mundial. — Os observadores que vamos treinar ficarão no fundo da sala e, seguindo um método padronizado adotado nos Estados Unidos, farão anotações sobre os materiais que os professores usam, as atividades que promovem e o grau de envolvimento dos alunos — explicou a economista-chefe do Banco Mundial para Educação na América Latina e na região do Caribe, Barbara Bruns, em uma das mesas do Global Economic Symposium, que aconteceu nesta semana no Rio. Segundo Barbara, a indústria da educação é a única em que os “operários” (professores) não têm sua performance avaliada de forma direta e objetiva em busca de uma otimização do tempo2425.
Conclusão O termo autonomia necessariamente leva à produção de conhecimentos que partem de um esforço individual. O aluno, como entidade que com esforço próprio requer se tornar autônomo, deve desenvolver a capacidade subjacente de construção de saberes que propiciarão a sua relativa independência. Dentro dessa ideia de emancipação moral e intelectual – e podemos incluir também, como desejo de todos, material –, segundo Kant (2000), o discente alcança a responsabilidade de seus direitos e deveres correspondentes, sendo capaz de discernir e escolher racionalmente. Identificamos, em contrário, aquilo que é mais preterido dentro da noção de autonomia; justamente o que o pensador brasileiro Paulo Freire (1996), afirma ser a educação bancária. Diariamente os alunos do Projeto Autonomia estão submetidos à passividade de assistir pela maior parte do tempo em que estão em sala de aula, a vídeos idealizados de situações cotidianas que não necessariamente correspondem às suas. O telecurso, antigo Telecurso 2º grau, frequentemente levava aos alunos situações de empregos em fábricas e indústrias de todo tipo, com personagens ligados às linhas de produção, com dúvidas e questionamentos que pouco levam o espectador passivo além da relação patrão/ empregado. Junto a esse trabalho, as atividades em sala de aula, que aconteciam sempre com variados componentes, propunham um pensamento de grupo, comum, base do que é a alienação intelectual.
2425 Disponível em: <http://oglobo.globo.com/educacao/desempenho-de-professores-da-rede-estadual-do-riosera-monitorado-6446886#ixzz2AKUCvtNX>. Acesso em: 25 out. 2012.
As implantações de projetos que estão tão aquém das fórmulas propostas pelos filósofos, acadêmicos e outros pensadores da educação só poderiam ser realizadas em uma situação considerada de exceção conjuntural, isto é, em um momento passageiro, quando administração do “remédio adequado”, feito por autoridades (governantes e respectivos secretários), resolveria o problema visando a um próximo passo. Mas, é desta forma que se revela hoje a falta de especificidade na legislação educacional que trata do uso de tecnologias educacionais, e é assim que aparece a oportunidade para a infiltração de empresas privadas e entes políticos que veem como negócio a Educação. De fato, o aluguel de equipamentos e a compra de outros movimentaram muitos dos valores transferidos da União para o Estado na forma de verbas direcionadas à Educação. E, ainda, a falta de profissionais de ensino dentro das salas de aulas e os péssimos resultados no Índice de Educação Básica de 2010 ofereceram o pretexto necessário para a ampliação do Projeto Autonomia. Tivemos como resultado o fato de que a formação profissional de cada docente, especialista em sua área de estudo, foi completamente suprimida em função da colocação de apenas um profissional responsável por coordenar os trabalhos de grupo e responder às possíveis dúvidas existentes ao final de cada apresentação de vídeo. O uso da televisão e do DVD aliados ao programa audiovisual da Fundação Roberto Marinho passaram a formar oficialmente dentro das salas de aula do Estado do Rio de Janeiro do novo Ensino Médio. Um método de educação que anteriormente era usado como exceção por meio da tevê aberta para o operariado adulto que demonstrava vontade de continuar seus estudos até o final do ensino médio generalizou-se como método e prática de ensino público. O Projeto Autonomia iniciou no Estado em 2009, mesmo sem participação da sociedade e diálogo com os professores, nem a formação básica de equipes multidisciplinares. Segundo a Secretaria de Educação, o Projeto seguiu em expansão pelos anos consecutivos de 2009, 2010 e 2011, atendendo no último ano 500 turmas, com cerca de 20.700 alunos no total. Segundo os professores que nele atuaram, o Projeto tornou-se no período a “menina dos olhos” do Estado. Acreditamos que o Projeto Autonomia não torna qualquer aluno autônomo, pelo contrário, torna-o intelectualmente dependente, assegurando a manutenção de uma Ordem Social que tem como propriedade a exploração de algumas classes por outra classe. Contudo, sobre a qualidade da educação oferecida pelo ensino formal, isto é, oficial, intencional, organizado por normas e de responsabilidade do Estado, gostaríamos de trazer
ainda uma citação do Professor José Carlos Libâneo, que em seu livro Democratização da escola-pública: a pedagogia crítico-social dos conteúdos (1985), afirma: “(...) educar (em latim, educare) é conduzir de um estado a outro, é modificar numa certa direção o que é suscetível de educação. O ato pedagógico pode, então, ser definido como uma atividade sistemática de interação entre seres sociais, tanto no nível do intrapessoal como no nível da influência do meio, interação essa que se configura numa ação exercida sobre sujeitos ou grupos de sujeitos visando provocar neles mudanças tão eficazes que os tornem elementos ativos desta própria ação exercida. Presume-se, aí, a interligação no ato pedagógico de três componentes: um agente (alguém, um grupo, um meio social etc.), uma mensagem transmitida (conteúdos, métodos, automatismos, habilidades etc.) e um educando (aluno, grupos de alunos, uma geração etc.) (LIBÂNEO, 1985; p. 97).
No decorrer de nosso estudo, abordamos a afirmação colocada por Libâneo sobre as mudanças causadas nos educandos, que de tão eficazes, poderiam fazê-los realmente elementos ativos da própria ação exercida por eles. E então nos questionamos sobre que tipo de ser humano era formado a partir da educação exposta pelo Projeto Autonomia. Alunos sem professores especializados, capacitados por apenas alguns meses, em detrimento dos anos em que os profissionais passam aprendendo a processar os conteúdos e a redistribuí-los de forma a assegurar o desenvolvimento crítico e a buscar nossos saberes. Não é apenas a forma diferenciada de mediação do currículo proposto por uma empresa privada que ocasiona queda na qualidade de aprendizagem do público participante, mas também a própria qualidade do conteúdo do currículo, que mesmo em um pequeno prazo, não abordava de forma intensa os assuntos tratados no ensino regular. Esses discentes ainda eram alijados de todas as possibilidades que a tecnologia pode oferecer em um curso com verdadeiras preocupações de um ensino a distância. O uso da tecnologia para construção de novos saberes em redes sociais, a possibilidade de construção e publicação para a construção de novos saberes em rede não era a realidade do Projeto Autonomia. Vimos apenas alunos compelidos a escrever trabalhos de grupos, com pensamentos de grupos e sem a profundidade que caracteriza o termo Crítica. Crítica e Autonomia são dois dos termos que estiveram presentes durante todo o nosso trabalho. Isto porque o primeiro significa analisar, ir à raiz do problema para poder conhecê-lo, dividir o objeto para melhor estudá-lo e, então, emitir um juízo de valor. O segundo significa basicamente ter um sujeito capaz de se arvorar titular de direitos e deveres; um responsável e maduro cidadão, com a capacidade racional de buscar voluntariamente pelo bem individual e comum. Para a sociedade do conhecimento e do futuro, seriam esses indivíduos transformadores, como é a característica de entidades críticas ou seriam reprodutores passivos de uma Ordem
Social que já existe? Nas palavras de Paulo Freire, o qual trouxemos como citação inicial para orientação deste estudo, realizamos nosso pensamento de conclusão: “(...) o saber-fazer da auto reflexão crítica e o saber-ser da sabedoria exercitados, permanentemente, podem nos ajudar a fazer a necessária leitura crítica das verdadeiras causas da degradação humana e da razão de ser do discurso fatalista da globalização” (FREIRE, 1996, p. 5).
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Sobre os autores (De 5 a 10 linhas para cada autor)
Victor Hugo de Oliveira Pinto
Cecília Bevilaqua
Maria Auxiliadora Pessôa
Juliene Neves
Priscilla Alves
Heloísa Siqueira
Raphael Teixeira da Silva
Fabio Souza Lima