"Um cinema que não quer ser cinema: resistência intelectual e cinematografia artística amadora."

Page 1

1


2

Um cinema que não quer ser cinema: resistência intelectual e cinematografia artística amadora. Arthur Caria, Outubro de 2020.

Tais trabalhos são golpes flagrantes no status quo. Eles são as vozes, os atos, e as imagens de individualidades pessoais destruindo completamente as ideias de como e de que pessoas e coisas devem aparecer na tela. (RENAN, An Introduction to the American Underground Film, 1967, p. 36).

Todos os homens são filmmakers, mas nem todos exercem a função de filmmaker em suas sociedades.1 A paráfrase da clássica afirmação de Antonio Gramsci sobre o que é um intelectual resume e enfeixa este esboço textual na sua tentativa de alinhar propostas estética, cronológica e geograficamente heterogêneas, a partir de um ímpeto por autonomia intelectual e liberdade artística comum a todas.2 O presente texto traz tão somente um delineamento feito por um forasteiro, e de maneira alguma pretende ser um tratado sobre a história da cinematografia alternativa. Muito pelo contrário, este outline busca apresentar elementos históricos, técnicos e artísticos na referida área, apenas quando eles nos auxiliem a exemplificar mais uma das facetas possíveis do intelectual contemporâneo, desta feita enquanto filmmaker artístico amador. Ao longo de quase cem anos, uma parcela significativa de produções fílmicas através do mundo tem destoado da forma e da proposta daquilo que se estabeleceu como cinema dominante (mainstream) a partir dos Estados Unidos nos anos de 1920. Os realizadores de tais filmes não são profissionais da indústria cinematográfica nem hobbistas ocasionais. Não dependem da atividade cinematográfica para viver, e ao mesmo tempo não a exercem como mero passatempo. A natureza do seu fazer fílmico é artística, e repousa no ímpeto pela liberdade de criar, condição primordial e inegociável para eles. Talvez o único abrigo terminológico possível (sob o qual poderíamos reunir comunidades de filmmakers bastante variadas) seja o de cinema artístico amador, em que a palavra "amador" esteja despida de toda a carga semântica pejorativa, angariada ao longo de décadas mas reestabelecida em sua significação primordial, como aquele indivíduo que faz determinado ofício exclusivamente por amor e o faz bem, ao contrário da expectativa negativa que o termo possa vir a GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. p. 7. 1

2

O termo em inglês “filmmaker” (fazedor/realizador de filmes) é preferido neste texto por resultar em uma neutralidade necessária à exposição do que se pretende discutir, evitando a imprecisão e a limitação que poderiam advir do uso de termos como “cineasta”, “videografista” e “cinematografista”, assim como, por outro lado, “videoasta” e “video-maker” poderiam ser termos igualmente limitadores.


3

suscitar.3 Nesse sentido, cinema artístico amador referir-se-ia às realizações fílmicas geralmente reunidas sob as rubricas Cinema Avant-Garde, Filme Experimental, Filme Underground, Filme Arte, e mais recentemente Cinema Contemplativo e Cinema de Stasis. AURA INICIAL E POESIA VISUAL

Nos primeiros momentos da cinematografia, começando na França e depois Inglaterra e Estados Unidos, logo quando surgiu a possibilidade de se registrar o movimento em filme e depois projetá-lo para uma platéia, tanto os equipamentos quanto os motivos dos filmmakers não diferiam muito uns dos outros. A recepção das produções fílmicas, ainda mudas, manteve por algum tempo a aura da fotografia, que por sua vez herdara os protocolos de recepção e apreciação das obras de artes plásticas. O 'cinema' de então, por assim dizer, teria sido uma espécie de registro em movimento da pintura de um estado de espírito4, muito mais do que um empenho predominantemente narrativo, como ele acabou se transformando rapidamente em seguida. Em especial com a adição do elemento sonoro, não mais como mero pano de fundo ao vivo fornecido por músicos e conjuntos musicais in loco, mas na forma dos diálogos, efeitos, sonoplastias e 'trilhas sonoras', reconfigurando de vez, impiedosamente, uma arte recém-criada. Nem todos os praticantes da cinematografia de então aderiram a esse upgrade sonoro em suas produções, nem à ênfase na narrativa como ponto principal de suas realizações fílmicas, nem às diretrizes e padrões que foram se estabelecendo e marginalizando, por assim dizer, as realizações que discrepassem do escopo ideal para o recém-descoberto produto comercial. Desde então, paralelo à própria trajetória histórica do cinema como conhecemos, constituiu-se uma linhagem de indivíduos que mantém viva a tradição em conservar "as ilimitadas possibilidades para o uso do filme como poesia visual e beleza formal"5. Para esses cinematógrafos artistas, não se trata de uma batalha para combater o cinema industrial, ou mesmo para advogar algum título de 'o verdadeiro' cinema para os filmes artísticos, mas uma batalha para contornar a massificação de uma certa lógica estética e receptiva feita por décadas de cinema mainstream, e ainda conseguir sensibilizar algum público que

3 O termo “amador” é aqui empregado como afirmação de autonomia intelectual e criativa do realizador do filme, de

uma opção por uma realização fílmica artística estritamente pessoal, em oposição a uma realização multipessoal como a produção “profissional” do grande cinema. ROUILLY, Benoit (Harry Tuttle). (Technical) Minimum Profile. Postado em 18 de janeiro de 2007. http://unspokencinema.blogspot.com/2007/01/minimum-profile.html. Define protocolos para a classificação do que é chamado de Contemplative Film. Último acesso em12/07/2019. 4

5

STEINER, Ralf apud MACDONALD, 2001, p71. Tradução nossa.


4

se prostre em frente a uma tela/monitor e se disponha, se permita, uma 'outra' experiência estéticocognitiva. Tendo como predecessores filmes como Entr’acte de René Clair em 1924, Emak Bakia de Man Ray em 1926, e Un chien Andalou de Salvador Dali e Luis Buñuel em 1928, e em meio ao crescimento da indústria do cinema de entretenimento, os filmmakers Ralph Steiner e Henwar Rodakiewicz nos Estados Unidos dos finais dos anos de 1920 seriam os primeiros a se posicionar contra os excessos da linguagem repetitiva e da alienação estética na produção em massa do grande cinema americano. Eles se manifestaram publicamente em favor de um uso "imaginativo da câmera"6 e uma experiência pessoal da recepção. Seus filmes H2O (de Steiner em 1929) e Portrait of a Young Man (de Rodakiewicz em 1931) marcam o início de uma linhagem de produções realizadas por indivíduos já conscientes e críticos da padronização industrial na cinematografia, algo que será retomado na década de 1940 com o fim da Segunda Guerra Mundial e conduzido até os dias de hoje. Em um prólogo para o catálogo da Exposição Film as Film: formal experiment in film 1910-1975, David Curtis e Richard Francis ressaltam que aquilo que vai unir "os filmmakers dos anos de 1970 com aqueles dos anos de 1920 é uma insistência contínua na prática artesanal", uma vez que os "seus filmes são essencial e literalmente o trabalho de um autor" (DRUMMOND et alli, Org. Grã-Bretanha, 1979, p. 4 grifo nosso) TODOS SÃO FILMMAKERS (?)

Os surtos de desenvolvimento tecnológico são sempre acompanhados de uma massificação do consumo de produtos resultantes de tal avanço. A abundância tecnológica atual permeia os diversos setores da vida humana, atingindo, inevitavelmente, boa parte da população do planeta. De acordo com dados da GSMA, empresa multinacional que representa e gerencia o serviço de todas as operadoras de telefonia móvel celular mundo afora, cerca de cinco bilhões de pessoas têm smartphones7. Ou seja, setenta e um por cento dos seres humanos no planeta têm celulares com câmeras e são, potencialmente, filmmakers. Artes como as da cinematografia amadora nasceram e sempre foram alimentadas por essas levas de popularização de equipamentos com custos mais baixos em relação a equipamentos estritamente profissionais. A circunstância atual apresenta, de maneira antes impensável, possibilidades 6

STEINER, Ralf apud MACDONALD, 2001, p71. Tradução nossa.

7

https://exame.abril.com.br/tecnologia/5-bilhoes-de-pessoas-tem-smartphones/ Acesso em 12-07-2019.


5

instantâneas para o indivíduo que filma, tais como apreciar em tempo real o resultado da sua filmagem e expor mundialmente o trabalho realizado. Mas, sobretudo, o que o contexto atual nos traz, mais do que em qualquer período anterior, é a questão da natureza do filmmaker amador hoje. A internet, a partir dos chamados video-sharing websites como YouTube e Vimeo, disponibiliza a cada minuto milhares de novos vídeos, provenientes dos mais variados aparelhos espalhados pelo planeta (celulares, tablets, câmeras, laptops, desktops etc.). Diferente de períodos anteriores em que só tínhamos acesso a filmagens familiares ou a alguns poucos trabalhos de amadores dedicados, mesmo assim em círculos restritos a iniciados, hoje existe um incomensurável número de realizações fílmicas disponíveis gratuitamente para quem se interessar. No que diz respeito ao filme amador, é importante notar que após o advento do cinematógrafo nos fins do século XIX, e com sua popularização pelos irmãos Lumière na França, uma disseminação, por assim dizer, mais acentuada de equipamentos de filmagem caseiros (home movie) só veio a acontecer nos anos de 1920, com o sucesso das câmeras de 16mm, principalmente a partir do desenvolvimento do safety film pela empresa Kodak, que garantia rapidez, facilidade e segurança para o artista amador ou para o hobbista no manuseio do equipamento. Na década seguinte, a Kodak cria o formato 8mm (o chamado Regular 8), e surge também o Double 8 que consistia no uso das duas extremidades do filme 16mm por vez, fato que ajuda a popularizar ainda mais o filme amador. Câmeras cada vez mais compactas e mais portáteis logo passariam em seguida a ter filmes coloridos também. No meio dos anos de 1960, a mesma Kodak lança um desenvolvimento do formato regular de 8mm, com inovações e novidades que revolucionariam e popularizariam ainda mais o filme portátil amador no mundo: a empresa cria o formato ‘Super 8mm’, cujos filmes (a essa altura já com mais opções de stocks colorido e preto e branco) ficavam contidos em cartuchos plásticos que eram muito facilmente colocados e retirados. Além disso, o novo formato trazia com ele uma redução significativa de custos com o equipamento - tanto câmeras quanto filmes tinham preços bem mais acessíveis do que os dos anteriores. Para quem filmava com essas câmeras ‘Super 8’, havia a necessidade de, no mínimo, ter um projetor para assistir os filmes em casa. Todos estes filmes caseiros e amadores produzidos em película desde pelo menos 1920, eram revelados em laboratórios cada vez mais acessíveis, tal como os laboratórios dos filmes fotográficos comuns. Para quem se aventurava a revelar e a editar os seus próprios filmes, porém, o investimento e o trabalho cresciam consideravelmente, por outro lado havia maior controle sobre os resultados desejados. A última grande revolução significativa de larga escala na área da produção de equipamentos de filmagem para o uso caseiro que ocorreu antes da nossa atual era digital, foi a introdução do sis-


6

tema de Vídeo-Cassete (VHS - Video Home System) - no final dos anos 1970 e início do 1980, que permitia que se usassem as chamadas fitas VHS várias vezes, gravando e regravando em cima de filmagens anteriores. Comprava-se uma filmadora VHS, um punhado de fitas, gravava-se e tudo era assistido na televisão da sala conectada a um cassete-player (também gravador do sinal da TV). Logo no início da década de 1980, portanto, o VHS, com custo muito menos elevado e uso mais prático, decretou o fim da hegemonia do formato Super 8 para a gravação de vídeos caseiros. O formato sobreviveria até os dias de hoje, estoicamente, tanto através da fidelidade de filmmakers amadores independentes e entusiastas da película, quanto de alguns profissionais da indústria cinematográfica que não abrem mão da utilização esporádica de recursos e equipamentos com os quais eles próprios iniciaram suas carreiras. O VHS provocou, portanto, um significativo distanciamento entre as filmagens hobbistas caseiras e os trabalhos dos filmmakers amadores independentes. Com qualidade inferior à da Super 8 em termos de geração de imagens e durabilidade da mídia utilizada, o VHS não satisfazia as necessidades estéticas e artísticas dos filmmakers amadores independentes que prosseguiram com uso da película. Com isso, por longos anos foi sendo constituída uma diferença estética notória entre os trabalhos de registro caseiro e os filmes amadores artísticos. Três décadas depois, com o desenvolvimento vertiginoso da tecnologia de imagem digital, esse distanciamento de feição estética diminui drasticamente mais uma vez. Todos têm, mais uma vez na história, acesso a um mesmo recurso tecnológico para o registro de imagens. A Kodak, grande revolucionária do setor fotográfico e cinematográfico mundial, já havia encerrado a fabricação de filmadoras Super 8 mm no ano de 1982, porém, a própria Kodak e algumas outras poucas ao redor do mundo se mantiveram ativas ao longo de quatro décadas para atender à pequena mas persistente demanda por filmes virgens em película para a cinematografia independente artística e profissional. Diferentemente do contexto e do propósito de cinquenta anos atrás, quando foi lançada a primeira filmadora Super 8 com enorme popularização do seu uso caseiro, hoje os filmmakers independentes e amadores têem na película um recurso a mais para diferenciar, em termos estéticos, os seus produtos das realizações filmicas cotidianas postadas na web e, ao mesmo tempo, criar uma certa intertextualidade estética com o passado, uma vez que a granulação na imagem através do uso da película remete inevitavelmente ao aspecto visual de produções antigas. A despeito da enorme diferença de resultado que a película proporciona, a natureza dos filmes artísticos amadores não está - pelo menos não mais - condicionada a essa característica granulada da feição do filme. Ela hoje representa, obviamente, um dentre outros inúmeros recursos para a construção de um filme amador artístico, cuja natureza deve ser buscada em outros aspectos.


7

A profusão de filmes artísticos e de filmes hobbistas caseiros, a partir da popularização de equipamentos de filmagem portáteis e de custos acessíveis, em períodos distintos ao longo dos últimos noventa anos, correu ao largo da criação e do estabelecimento dos conglomerados industriais para a produção padronizada e em larga escala de filmes comerciais de entretenimento. Os chamados filmes block busters (filmes com sucesso de bilheteria) são industriais por empregarem um número acentuado de indivíduos no processo de realização de um único filme, com diversos compartimentos, segmentações na produção e metas financeiras a serem alcançadas objetivando o lucro de seus investidores. O filme artístico amador surgiu antes do grande cinema industrial (que sempre se serviu de ideias, práticas e técnicas provenientes de produções amadoras experimentalistas), continuaram ao longo de seu desenvolvimento, e seguem paralelo a ele até os nossos dias. O filme amador de hoje tem, portanto, mais parentesco com o cinema em sua origem do que com o que se tornou depois sinônimo de cinema.

AVANT-GARDE(S), EXPERIMENTAL, UNDERGROUND

A década compreendida entre os anos de 1921 e 1931 testemunhou a cristalização de uma proposta artística na cinematografia que ficou conhecida como Avant-Garde e que se desenvolveu paralelamente a movimentos das artes plásticas como o Expressionismo, o Futurismo, o Cubismo e o Dadaísmo. "Uma proposta estritamente artística, não-comercial, não representativa, porém internacional." (RICHTER, Hans. apud RENAN, An Introduction to the American Underground Film, p. 57). O chamado cinema Avant-Garde propôs o exercício da liberdade de experimentar incondicionalmente e forjar uma arte sempre à frente do seu tempo, e com isso instaurou o traço fundamental de todo filme artístico amador feito daquele ponto em diante. A proposta se disseminou com grande intensidade e terminou por balizar e batizar a maioria das realizações feitas naquele período. De acordo com Dick Higgins, "o avant-garde consiste naqueles que se sentem suficientemente tranquilos com o passado a ponto de não ter que competir com ele ou repeti-lo"(HIGGINS apud RENAN, idem, p. 10). Mais que isso, como quer o crítico Sheldon Renan, o termo avant-garde se refere precisamente a três critérios de ordem discriminatória: "ele transcende as convenções estéticas de sua época, estabelecendo uma distância discernível entre ele e o grosso das práticas em voga"; o avant-garde irá também "necessariamente levar algum tempo considerável para achar sua


8

audiência máxima", e por fim, também "irá provavelmente inspirar realizações futuras e avançadas" (RENAN, idem, p.10). Para Phillip Drummond, em Notions of Avant-Garde, uma definição de avant-garde terá necessariamente de partir de um contexto cinemático maior inevitável chamado Cinema Mainstream, ou Cinema Dominante, cujas normas e valores ajudará a tipificar o Avant-Garde enquanto seu opositor. De acordo com Drummond, "o cinema dominante é fortemente marcado pelas suas alianças com a concentração de poder econômico e social" (DRUMMOND, Film as film. 1979, Grã-Bretanha, p.9), e mais importante: "Como produtos industriais, os filmes do cinema mainstream têm relações diretas com capital e classe, através de seus padrões restritivos de posse mesclados com o seu marketing massivo e exploração; esses filmes são 'dominantes' precisamente por sua reprodução das ideologias dominantes permeadas em seus interesses. Enormes implicações sociais e políticas derivam desse esquema de cinema dominante." (DRUMMOND, 1979, p.9.Tradução nossa)

Algo importante a ser considerado em termos de formação e controle de público, principalmente nos dias atuais em que se presencia o primado da imagem em alta definição junto com a capacidade de geração de efeitos visuais e sonoros, viria a ser o que Drummond chama de repertório de estratégias e efeitos que dão suporte "à hegemonia estética e ideológica do cinema mainstream". Para ele, o grande cinema não domina simplesmente através de uma coerção, por assim dizer, mas "através de seduções e apelos estilísticos e formais" (DRUMMOND, 1979, p.9). Sheldon Renan afirma que “houve três períodos de alcances excepcionais no campo da produção de filmes underground aos quais muitos se referem como “os três avant-gardes de filmes” (RENAN, 1967, p. 21). É interessante notar que os períodos a que Renan se refere coincidem temporalmente com as três levas de massificação de câmeras portáteis para filmagens caseiras, através do grande avanço tecnológico alcançado no período em questão. Outro ponto a ser observado é a preferência deste autor pelo termo "underground" cujo surgimento data da década de 1960 nos Estados Unidos, mas que Renan utiliza para referir-se aos perfis de filmes artísticos e eminentemente pessoais também classificados sob as rubricas avant-garde e experimental. De acordo com Renan, o “primeiro avant-garde de filme aconteceu nos anos de 1920” (RENAN, 1967, p.21), no mesmo período em que as câmeras com filmes de 16mm começaram a se popularizar. Esse primeiro avant-garde, de acordo com Renan, proveio da arte moderna, em especial do Dada e do Surrealismo, e tiveram como principais trabalhos alguns filmes que se tornaram pre-


9

decessores do movimento do filme underground, como Un chien Andalou de Salvador Dali e Luis Buñuel; assim como Entr’acte de René Clair, e Emak Bakia de Man Ray. O segundo momento de avant-garde fílmico deu-se nos anos de 1940. Período importante em vários aspectos, pois apontou alguns dos princípios segundo os quais os filmes avant-garde se apoiariam até hoje: Alguns filmes feitos nessa época são hoje chamados de underground. Quando eles estavam sendo produzidos, entretanto, eles eram frequentemente chamados de filmes “experimentais”. Originalmente, nos anos 20, “experimental” era um termo usado para descrever os filmes “montage” dos russos. Mas, lá pelos anos 40, esse foi o termo para filmes como “Meshes of the Afternoon” de Maya Deren; “Fireworks” de Anger, e “The Lead Shoes” de Peterson. ‘Experimental’ está atrelado a uma lógica de tentativa e erro. Esses filmes foram chamados de experimentais por tentarem fazer coisas que ainda não haviam sido feitas antes. Mas o termo não era preciso, pois os film-makers eram artistas expressando-se e não cientistas conduzindo um processo lógico. Muitos film-makers se opuseram à ideia de que seus filmes eram experimentos ou obras de arte inacabadas. O termo, contudo, é ainda usado para descrever esses filmes e filmes ainda feitos hoje em dia. (RENAN, 1967, p. 21)

No período acima descrito estava em voga a segunda leva de popularização de filmadoras portáteis, com as câmeras de filme em 8mm (o Regular 8). O terceiro período de avant-garde do filme, segundo Sheldon Renan, começou na segunda metade dos anos de 1950, mas teve o seu auge justamente com o surgimento do formato Super 8mm pela Kodak em 1965, embora os formatos de 16 mm e 35 mm (este mais dispendioso) continuassem a ser amplamente usados. Nesse período, em que a indústria cinematográfica já havia se estabelecido fortemente, Renan ressalta que Dois termos têm se tornado populares ao descrever o filme pessoal durante esse período: “independente” e “underground”. Independente, nesse contexto, significa livre de Hollywood. Mas o nome tem sido usado por uma variedade de film-makers, incluindo film-makers de trabalhos comerciais que produzem filmes tipo Hollywood mas fora desse sistema de estúdio. A despeito disso, muitos film-makers independentes, mas não comerciais, têm dissociado os seus filmes desse termo. (RENAN, 1967, p. 21)

Avant-garde, experimental, underground e filme arte resultaram como denominações que até hoje são empregadas. Nunca foram termos sinônimos, embora algo equivalentes, refletindo as necessidades dos períodos em que eram realizados, e cada um dos modos com os quais eram concebidos trabalhos tão diferentes quanto numerosos. Na verdade, em relação a tais questões de nomenclatura e classificação de um determinado trabalho, a atitude do filmmaker que está imerso em seu esforço de criação artística poderá ser sempre evasiva ou negativa. A problemática da nomenclatura importará, talvez, para o filmmaker que sentir a necessidade de criar uma rotulação que condiga minimamente com a apresentação e os princípios do seu trabalho, e que lhe seja útil para direcionar a recepção do seu trabalho como ele desejaria.


10

Para muitos, não só os filmes underground nasceram como consequência direta das levas de popularização das filmadoras portáteis, mas o fato é que, segundo essa crença, a realização dessa classe de filmes mantém para com a porção chamada mainstream da cultura e da indústria cinematográfica uma relação praticamente simbiótica. Tal é a opinião de Malte Hagener, em Moving Forward, Looking Back: avant-garde and the invention of film: O avant-garde ocupou a posição de detector de minas em relação à cultura como um todo: ele testou o terreno, marcou os locais perigosos e limpou o caminho para as grandes levas da cultura mainstream passar. O posicionamento do avant-garde para com essas relações extensas com essa cultura é tão interdependente quanto paradoxal: a cultura mainstream precisa do avant-garde como seu trilheiro e guia para explorar regiões desconhecidas, enquanto que o avant-garde, por sua vez, simultaneamente precisou do mainstream como uma oposição, algo do qual ele tem que se distinguir (…) (HAGENER, 2007, p. 13. Tradução nossa)

Para Hagener, o avant-garde ficaria irresistivelmente preso em uma espécie de armadilha de duas opções: “perder contato com o mainstream e tornar-se obscuro e esotérico, ou mover-se lentamente para a cultura como um todo e se tornar datado e estagnado” (HAGENER, 2007, p. 14. Tradução nossa). Tanto em uma quanto em outra situação, sugere Hagener, isso significaria o fim do(s) movimento(s). Ainda sobre a questão, Hagener traz as palavras da crítica de cinema Lotte Eisner (1896 -1983), de tom mais insubmisso: Se o avant-garde não é mais um privilégio de bravos verdadeiramente pioneiros, o perigo pode estar em ele se tornar a base comum da massa vagarosa… O avant-garde precisa gritar alto e definir seus próprios caminhos; ele precisa se livrar daqueles que podem lhe causar danos… O avant-garde tem que estar ciente de permanecer avant-garde. Ele tem que saber os seus amigos e aceitar críticas dos seus pares. Ou então ele se tornará, apesar do seu nome, notícia velha. (EISNER apud HAGENER: Avantgarde – Achtung! In: FilmKurier, vol. 10, no. 126, 25.06.1928. Tradução nossa).

Nesse sentido, o estatuto do avant-garde a que ele se refere, mas por extensão os estatutos de todos os filmes de perfis relacionados, portanto, seja pela natureza de sua relação simbiótica com a indústria do cinema, seja pelos contextos que atravessaram, sempre foram marcados pela instabilidade. Nunca conheceram uma instituição plena e consensual do seu perfil, nem um consenso em relação a nomenclaturas. Isso decorre provavelmente do fato de que há inúmeras maneiras de se realizar um filme experimental, underground ou um filme arte. E muitas vezes cada um dos realizadores tem peculiaridades e preferências que são específicas demais para serem generalizadas para um enquadramento em uma tendência ou escola.


11

CINEMA DE STASIS E CINEMA CONTEMPLATIVO Alguns entendimentos teóricos mais recentes dentro do universo da cinematografia artística têm proposto novos olhares e nomenclaturas para um certo número de trabalhos de variadas épocas. Porém, o grande mérito desses esforços é o fato de estarem em pleno funcionamento nos dias de hoje, catalogando filmes recém-lançados e filmmakers, produzindo resenhas críticas sobre os mais variados trabalhos, classificando-os e categorizando-os, mas também disponibilizando artigos e listas de trabalhos. Algumas dessas principais rubricas teóricas atuais em uso são o Cinema of Stasis e o Contemplative Cinema, para as quais os filmes em questão não são meras tendências estilísticas passageiras ou técnicas inovadoras que cedo ou tarde acabam cooptadas pela indústria do cinema. Antes, tais produções, para utilizar uma expressão de Paul Schrader, estariam mais para uma linhagem distinta de realizações fílmicas. Dois autores cujos esforços se destacam, pelo fôlego de suas produções textuais e pela abrangência de trabalhos atingidos, são Justin Remes e Benoit Rouilly. Remes é autor do livro Motion[less] pictures: the cinema of stasis, de 2015, pela editora Columbia University Press (EUA), e Rouilly (com parte de sua produção feita sob o pseudônimo Harry Tuttle) é editor do longevo blog Unspoken Cinema, ativo desde 2006, e que trata estritamente do Contemporary Contemplative Cinema. Rouilly/Tuttle tem sido uma referência constante em discussões sobre o cinema artístico contemporâneo, sendo citado e discutido em trabalhos acadêmicos nos últimos anos. A partir dos parâmetros propostos por esses dois autores, toda tentativa de entendimento do que vêm a ser o contemplative cinema ou o cinema of stasis, no âmbito da cinematografia, terá que levar em conta a ideia de estase (estagnação, paragem) e a de contemplação, o que implica na problematização das noções de movimento (da câmera, e/ou do que aparece, ou não, em tela) e a de duração (o tempo despendido na[s] cena[s] e/ou no filme como um todo). Para Justin Remes, os Filmes Stasis "são ostensivamente filmes sem movimento", filmes que "se caracterizam por não conter movimento de câmera ou nenhum movimento dentro do frame" (REMES, p.3), mesmo entendimento de alguns críticos e filmmakers, citados por Remes, tais como Peter Wollen, para quem "o movimento não é uma característica necessária do filme". Outros como Douglass Crockwell problematizam "a presumida centralidade do movimento para a prática cinematográfica", e afirma que "visualmente, o cinema é uma arte sequencial... Movimento não é nada mais que um subproduto incidental". Já Peter Kubelka salienta que "o cinema não é movimento. Cinema é a projeção de imagens estáticas". (REMES, p. 6 e 7)


12

Justin Remes amplia a questão a partir do entendimento do diretor e escritor Paul Schrader sobre o assunto, para quem os filmes stasis "são uma linhagem completamente diferente de filmes" (REMES, p.7), porém ressaltando que "mesmo em filmes tradicionais, a estase está profundamente embutida na ontologia do filme" (REMES, p.6). Ou seja, a estase enquanto recurso não é privilégio do cinema de estase, pois sempre esteve no repertório de ferramentas da cinematografia como um todo desde seu início. Remes salienta que seu interesse recai em filmes nos quais a estase é o elemento padrão. (REMES p.8) Nos filmes comerciais podem ser encontradas gradações de uso da estase. Um filme deste circuito pode abrigar várias cenas com estase, enquanto outro pode conter apenas uma cena, mas isso não os fazem dignos de figurar numa lista de filmes stasis. A utilização da estase enquanto atmosfera criativa proporciona mudanças significativas nos protocolos de recepção de filmes, que passam a contar com a atividade do espectador como um propenso co-criador, muito mais do que com a sua passividade. Ou seja, convida-o a participar, preenchendo ele mesmo lacunas que a obra tenha a oferecer, construindo o seu entendimento da realização artística à sua frente. Para Remes, tais filmes "trazem a estase em primeiro plano e consequentemente borram a linha divisória entre as artes visuais tradicionais e a cinematografia" (REMES, pág. 3). Ressonando o espírito oposicionista ao cinema mainstream característico dos filmmakers dos anos de 1920, tanto o Cinema of Stasis quanto o Contemplative Cinema se constituem em formas de arte que procuram descartar a centralidade da narração enquanto norte artístico, tornando-a muito mais próxima da fotografia e da poesia do que da literatura e do drama. A definição de contemplativo, nesse contexto, vem a ser “o ato de considerar com atenção: um estudo persistente ou morbidamente atento” (TUTTLE, 2009). O Contemplative Cinema é “um tipo de filme que rejeita a narração convencional para se desenvolver quase que essencialmente através de uma atmosfera e de uma linguagem visual minimalista, sem a ajuda de música, diálogo, melodrama, montagem de ação e estrelas”(TUTTLE, 2006). Para Benoit Rouilly, portanto, "o objetivo desses filmes não é contar uma história, mas pintar um estado mental" (TUTTLE, 2006). Essa é uma arte fílmica que tem se colocado conscientemente em oposição ao modus faciendi dos trabalhos comerciais do cinema tornado tradicional que, como já testemunhava Ralph Steiner nos anos de 1920, trazem sempre abordagens superficiais, temas piegas, narrativa linear encharcada de suspense, de freneticismo das cenas ultra-rápidas, da estética do susto e do final feliz . Geralmente silenciosos, os filmes do Contemplative Cinema têm tomadas longas (às vezes uma só grande tomada é o filme inteiro), não têm áudio (ou tem áudio mínimo, ou mesmo ambiente), geralmente são filmes de realização espontânea, sem roteiros predeterminados. Os Contemplati-


13

ve Films procuram deixar o espectador ativar a si próprio, se cogitar, incentivando-o sutilmente a perceber o que está à sua volta, a concentrar-se na unicidade de cada momento. Enfim, assumir a "habilidade de contemplar arte através dela mesmo" (TUTTLE, 2011), sem a necessidade de tutela. Para a percepção dessa unicidade do momento, a duração terá um papel preponderante. Como numa apreciação dedicada de uma escultura, uma pintura ou de uma fotografia, o tempo despendido a partir dos parâmetros da composição de tal linhagem de filmes torna-se um elemento mais propiciador de insights, descobertas e interpretações. No entendimento de Justin Remes, "se o cinema possui algum componente indispensável, esse deve ser a duração", pois "a experiência da duração é uma das preocupações principais do cinema de estase" (REMES p. 12 e 13). Maya Deren já havia ido mais além quando afirmou que "o cinema - apesar de composto por imagens concernentes à noção de espaço - é primordialmente uma forma-tempo" (REMES, p12). A proposta de filmar o "não-movimento", como o tempo decorrido e "nada" acontecendo diante da câmera provoca no espectador a descoberta (muitas vezes incômoda) da duração. Proporcionada pela potencialização dos recursos peculiares aos filmes Stasis e Contemplative, a percepção da duração, muitas vezes com o estranhamento enquanto se assiste ao filme, o estar atento à passagem do tempo, enfim, o despertar crítico perante um objeto artístico, por assim dizer, não convencional, constitui-se num artifício pedagógico relevante para a construção de uma autonomia intelectual. É salutar que o filmmaker amador faça com que os seus espectadores consigam “ouvir a língua fora do poder”, como diria Roland Barthes em Aula (2002, p. 16), fora da grande ordem discursiva [Foucault] da cinematografia industrial. Ou ainda, que o seu filme/vídeo estimule a sua audiência a procurar ser, ela também, “autora de sua própria linguagem” (SAID, 2005, p. 15). Que ela banque a si mesma, que pague para ver e para que outros vejam o seu trabalho e sejam minimamente tocados, ou mesmo instados a produzirem, também, o seu próprio material, o seu próprio discurso. O FILMMAKER AMADOR ENQUANTO INTELECTUAL

A oposição ao cinema mainstream de uma determinada linhagem de filmes através das décadas não é uma oposição somente de ordem terminológica e de ordem técnico-criativa (recurso rapidamente tornado ineficaz com as apropriações pelas produções cinematográficas de grande orçamento), mas uma afirmação do caráter pessoal que impregna a sua produção e se constitui num sentimento comum a todos esses filmmakers.


14

É significativo notar que essa oposição ao cinema mainstream se inicia tão logo as consequências do seu desenvolvimento comercial começam a aparecer. Num artigo intitulado Peter Hutton: The Filmmaker as Luminist, o professor e crítico americano Scott MacDonald salienta que no final dos anos de 1920, enquanto os filmmakers começavam a se preocupar com a alta velocidade do desenvolvimento comercial do cinema, indícios de uma sensibilidade mais meditativa se tornam evidentes como em H2O (1929) filme de Ralph Steiner e, ainda mais claramente, em Protrait of a Young Man (1931), de Henwar Rodakiewicz. Nesses dois filmes, e particularmente neste último, a sensibilidade, próxima daquilo que mais tarde iriam tomar forma no trabalho de Peter Hutton, já está em evidência. (MACDONALD, 2001, p. 69. Tradução nossa)

Nas próprias palavras do fotógrafo e filmmaker Ralf Steiner (1899-1986), de uma entrevista de 1935 à revista New Theater, pode-se perceber mais detalhadamente o seu descontentamento em relação à grande indústria cinematográfica: Durante os anos de 1920 nós fomos ficando enojados com o filistinismo do filme produto comercial, sua abordagem superficial, temas triviais, e sua padronização do tratamento fílmico: a história em linha reta progredindo de evento para evento puramente na base do suspense, descasado de qualquer uso imaginativo da câmera… O que era importante, nós sentíamos, era fazer aquelas coisas das quais o filme era capaz de fazer, coisas que o filme comercial não fazia e não tinha a possibilidade de fazer. Havia ilimitadas possibilidades para o uso do filme como poesia visual e beleza formal. (STEINER apud MACDONALD, , 2001, p. 70. Tradução nossa)

O descontentamento de Steiner não fica por conta das questões meramente técnicas ou da opção de um caminho sem volta feita pela indústria do filme com a redução da atividade criativa a fórmulas e a receitas usadas à exaustão, significam uma preocupação com o papel cultural e social da arte, por assim dizer, cinematográfica como um todo. Para MacDonald, “o interesse dele [de Steiner] era ajudar os cidadãos a verem mais daquilo que os cerca” (MACDONALD, 2001, p. 71.Tradução nossa). A preocupação de Steiner para com o público espectador contrasta com o mero compromisso com o lucro no negócio do filme. São contrastes de princípios: o pessoal versus o empresarial. Para Sheldon Renan, o filmmaker underground é “o artista que propaga sua afirmação pessoal sem compromisso” (RENAN, 1967, p. 6 Tradução nossa), ou seja, sem nenhuma subordinação ou comprometimento a uma ordem superior, nem a prazos e orçamentos. E o seu filme é “concebido e feito essencialmente por uma pessoa, e é uma afirmação pessoal daquela pessoa. É um filme que diverge radicalmente ou em forma, ou em técnica ou em conteúdo, ou nos três juntos talvez.”(RENAN, 1967, p. 17. Tradução nossa).


15

O grande trunfo da popularização, da facilidade de aquisição e manuseio dos equipamentos de filmagens diversos, disseminados ao longo das décadas, foi sem dúvida a liberdade de expressão pelos seus usuários, como nos mostra Renan: A acesso e a portabilidade do equipamento de filmagem têm resultado em liberdade. Isso significa não apenas liberdade para fazer filmes, mas liberdade para fazê-los por pura satisfação e padrões estéticos pessoais. Significa liberdade para fazer filmes complexos, filmes íntimos, filmes próximos da vida ou feito de sonhos, filmes como poemas e filmes como pinturas. Underground diz respeito a tudo isso.” (RENAN, 1967, p. 18. Tradução nossa).

Para Renan, o nível de intimidade, variedade e vida que estão presente nos trabalhos que ele classifica de underground, são muito raramente atingidos por filmes comerciais. Para ele, o que importa é que “o filme underground descreve uma atitude: a determinação de que os filmes devam ser feitos e devam ser vistos apesar de todas as barreiras econômicas e legais” (RENAN, 1967, p. 22. Tradução nossa). Já em meados da década de 1960, Sheldon Renan asseverava que um grande contingente de pessoas produzia filmes arte e que “muitas das pessoas que realizam o filme underground são estudantes, e outras são também artistas conhecidos por seus trabalhos em outros campos.” (RENAN, 1967, p. 18. Tradução nossa). Como uma grande parcela das produções ditas “amadoras”, “experimentais”, “underground” ou “arte” não se constituem (nem por sua natureza, nem pelo seu perfil estético) em atividades comerciais lucrativas, aqueles que as realizam não sobrevivem delas, e buscam um objetivo que os distinguirá tanto dos simples fazedores de vídeos, quanto dos sofisticados fazedores de negócios da imagem. O objetivo está no caminho do meio, sem esbarrar em nenhum dos lados. Essa vontade de afirmar o seu “personal statement” ao status quo, equivale à postura do intelectual contemporâneo que se utiliza de representações (SAID, 2005), aquele que se cerca dos meios possíveis ao seu redor para que a sua mensagem seja disseminada. Um filmmaker contratado de um grande estúdio cinematográfico ou de uma grande produtora certamente não goza da liberdade de expressão (nem verbal e nem criativa) e da coragem de afirmar determinadas posições pessoais, pelo fato dos grandes filmes serem um trabalho de centenas de mãos (e milhões de dólares) e mesmo pelo receio de ter seu contrato rescindido. Sendo o diretor do filme ou um membro de sua produção, ele estará subordinado às mesmas condições e comprometimentos com orçamentos e diretrizes contratuais. O valor da posição do filmmaker enquanto “amador” está nessa possibilidade que o seu equivalente da indústria não tem. Pelo fato de serem de “outros campos” de atuação, ou seja, não serem profissionais da área da produção de filmes, artistas, esses escritores, e também professores, arquitetos entre outros, tais in-


16

divíduos (os intelectuais autônomos contemporâneos) sempre lançarão mão de uma ferramenta a mais (e não só o vídeo), para se fazerem ouvidos. O sujeito proveniente de um outro campo de atuação quando faz uma incursão, ao seu modo, pela realização de filmes, ele está à margem do processo dito profissional, mas se encontra isolado e contente por estar realizando algo com o qual está intelectual e emocionalmente ligado. Algo em que só ele põe a mão. De acordo com Edward Said, em Representações do Intelectual (2005): o principal dever do intelectual é a busca de uma relativa independência em face de tais pressões. Daí minhas caracterizações do intelectual como um exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que tenta falar verdade ao poder. (SAID, 2005, p. 15) [grifos nossos]

Nesse entendimento, o termo “amador”, portanto, é um indicador positivo de uma opção sóbria e significativa, feita por alguém que não está preocupado com a carga semântica pejorativa que o mesmo termo angariou ao longo das décadas e, de fato, faz a sua parte contribuindo para ressignifica-lo. Maya Deren (1917-1961), uma reconhecida filmmaker underground americana de origem ucraniana, em respeito a isso afirmava que O maior obstáculo para os filmmakers amadores é o seu próprio senso de inferioridade frente às produções profissionais. A própria classificação “amador” tem um halo apologético. Mas a palavra mesmo - do latim [francês] “amateur” - “amante” significa aquele que faz algo pelo amor da coisa e não por razões econômicas ou necessidade. E esse é o significado no qual o filmmaker amador deveria investir. Ao invés de invejar os roteiristas e os atores tarimbados, as equipes preparadas e os sets, o enorme orçamento de produção do filme profissional, o amador deve fazer uso da grande vantagem que ele tem e é invejada por todos, a saber, liberdade - tanto a liberdade física quanto a artística. (DEREN, Film Culture n. 39,1965, p. 45-46. Tradução nossa)

As opiniões de Said e de Deren se harmonizam no sentido de proporcionar um senso de justiça e reabilitação ao termo “amador”, deixando à mostra um deslocamento semântico desonesto, há muito incorporado ao senso comum, que relega à falta de credibilidade os trabalhos artísticos que não se orientam a partir das lógicas das grandes autoridades mercadológicas culturais. O editor e crítico Broderick Fox, em Repensando o Amador: uma palavra suja - atos de produção midiática na Era Digital, questiona se com todo o desenvolvimento trazido pela revolução digital que “fez de todo computador um website e um editor de vídeos em potencial, um designer de CD/DVD-ROM, e um operador de rotas de distribuição alternativas, não estaria a tradicional oposição amador/profissional ficando obsoleta?” (FOX, 2004, p. 5). A resposta para esta pergunta seria não.


17

Colocá-la de lado é ignorar a história e o sentido das Artes do Filme Amador. Esta oposição amador/profissional deve ser ressignificada, cada vez mais sendo mostrado, sendo indicado através das próprias realizações fílmicas e suas produções discursivas “amadoras”, e da sua crítica especializada e em sintonia com as preocupações do intelectual contemporâneo, que “profissional” não é simplesmente sinônimo de “melhor”, que imagem sofisticada em alta qualidade não garante a credibilidade do que é veiculado e que a “realidade” que é exibida em imagens nítidas é apenas uma versão dentre inúmeras possíveis “realidades”. É uma versão editada por profissionais que cumprem rigorosamente pautas elaboradas de acordo com as diretrizes ideológico-financeiras de suas empresas. Enfim, a oposição amador/profissional estaria obsoleta somente numa situação, algo impensável, em que todas as realizações fílmicas (facultadas pela facilidade tecnológica informacional de hoje, como quer Fox) fossem absorvidas pelo mercado. Há certamente alguns modos disponíveis para identificar realizações fílmicas que possam constar no rol das Artes do Filme Amador, embora todos esse modos terminem sendo arbitrários, pela própria natureza díspar dos filmes em questão. Mas um dos caminhos possíveis é justamente o de explorar essa via de mão dupla: amador-intelectual; intelectual-amador. Um intelectual, de fato, é um amador - é livre, tem autonomia e confiança para expor o que pensa, sem receio de pressões externas, buscando o que quer que esteja ao seu alcance para atingir o seu intento. Em geral, define-se o intelectual como um indivíduo que “possui dotes de espírito, de inteligência” e também a “pessoa que tem gosto predominante ou inclinação para coisas do espírito, da inteligência” (GRAMSCI, 1968, p.7). O cientista político Antonio Gramsci (1891-1937), no seu livro Os intelectuais e a organização da cultura, defende que a atividade intelectual é algo inerente a todos os homens, com a exceção de que, para alguns deles, a intelectualidade se constitui numa função: “Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 1968, p.7). Não se pode referir-se a alguém como intelectual tão somente porque tal pessoa realiza uma atividade intelectual no seu labor ordinário cotidiano. Antonio Gramsci explica que “do mesmo modo, pelo fato de que alguém possa em determinado momento fritar dois ovos ou costurar um buraco do paletó, não quer dizer que todo mundo seja cozinheiro ou alfaiate” 8 (GRAMSCI, 1968, p.7). Ao tratar do mesmo tema, Michel Foucault enfatiza a mudança na extensão do raio de atuação do intelectual como um dado importante no entendimento da questão. Michel Foucault conclui que

8 Tomando esse mesmo raciocínio de Gramsci no campo do perfil de filme em questão, poder-se-ia dizer que todos os portadores de equipamentos de filmagem são filmmakers em potencial, mas nem todos os portadores de câmeras exercem a função de filmmakers, no caso a de intelectual enquanto filmmaker amador.


18

a figura do intelectual “universal”, como um indivíduo que fala às massas, deixou de existir: “ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos” (FOUCAULT, 2003, p. 8), principalmente nos moldes marxistas, porém, o intelectual universal deu lugar ao que ele chama de intelectual “específico”. Na opinião de Edward Said sobre esse entendimento de Foucault, o intelectual seria então alguém habituado a “trabalhar não no 'universal', no 'exemplar', no justo-e-verdadeiro-para-todos, mas em setores determinados” (SAID, 2005, p. 24). [grifo nosso] Edward Said constata exemplos contemporâneos da previsão de Antonio Gramsci sobre a difusão do intelectual orgânico, e utiliza as definições de Julien Benda para estipular um determinado número de ações e habilidades que se deve esperar de um intelectual em nossos dias. De acordo com Edward Said, “hoje em dia, todo aquele que trabalhe num campo qualquer, quer ligado à produção quer à distribuição de conhecimento, é um intelectual na acepção de Gramsci.” (SAID, 2005, p. 26) [grifo nosso]. Por outro lado, Edward Said destaca algumas das principais definições de Julien Benda, recordando que os intelectuais “têm de estar num estado de quase permanente oposição ao status quo”, ou se “arrisquem a serem queimados na fogueira, ostracizados ou crucificados.” (SAID, 2005, p. 27) [grifo nosso]. Na concepção de Edward Said, o intelectual é, portanto, um indivíduo “enquanto figura representativa – alguém que visivelmente representa um ponto de vista qualquer, alguém que articule representações a um público, apesar de todo o tipo de barreiras” (SAID, 2000, p. 27). [grifo nosso]. Para ele, o intelectual deve usar de sua inflexão e sensibilidade pessoal para dar sentido ao que é dito e falado, e até mesmo, sempre que necessário, ser “embaraçoso, do contra, até mesmo desagradável” (SAID, 2005, p. 27). O intelectual para Said deve ser sempre um outsider, como o amador por natureza o é. A sua invejada liberdade o coloca numa “condição solitária, sim, mas é sempre melhor do que uma tolerância gregária para o com o estado das coisas” (SAID, 2005, p. 17). O filmmaker amador, no seu labor pessoal para articular seus princípios e visão de mundo através do seu filme/vídeo - desde a ideia inicial, passando pelas filmagens e pela edição até o momento da divulgação ao seu modo, solitário e com o que tem ao seu alcance - durante todo esse processo ele é um intelectual contemporâneo. Muito diferente do intelectual orgânico, que responde e reporta à sua organização, obedecendo à sua pauta, o filmmaker amador se manterá um intelectual enquanto os seus trabalhos se pautarem por esses termos, enquanto representarem essa função que lhe dá sentido e enquanto ele puder e quiser exercer sua liberdade criativa e sua autonomia intelectual. //


19

Sobre o autor: Arthur Caria é músico, escritor, doutor em Letras e Linguística e praticante entusiasta da cinematografia artística amadora. (clipoems.com) REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Aula. 9a Edição. Cultrix, São Paulo, 2002. DEREN, Maya. Amateur Versus Professional. In Film Culture n. 39 (revista), Estados Unidos, 1965, pp. 45-46. DRUMMOND, Phillip et ali. (Org) Film as Film: formal experiment in film 1910-1975. Ed. The Arts Council of Great Britain. Great Britain, 1979. FOX, Broderick. Rethinking the Amateur: Editor´s Introduction - A Dirty Word… Acts of Media Production in the Digital Age. Spectator 24:1 (revista) Spring 2004, pp. 5-16. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1968. HAGENER, Malte. Moving Forward, Looking Back: the european avant-garde and the invention of film culture 1919-1939. Amsterdam University Press, 2007. KOSTELANETZ, Richard. A dictionary of the avant-gardes/by Richard Kostelanetz with contributions from H.R. Brittain... [et al.] A Cappella Books/Chicago Review Press, Inc., 1993. MACDONALD, Scott. Peter Hutton: The Filmmaker as Luminist. Chicago Review. Vol. 47, n.3, 2001, p. 67- 87) REMES, Justin. Motion[less] Pictures: the cinema of stasis. Columbia University Press, Nova Yorque, 2015. RENAN, Sheldon. An introduction to the American underground film. E.P. Dutton & CO., INC., Nova Iorque, 1967.

SAID, Edward. Representações do intelectual: as conferências de Reith. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. TUTTLE, Harry (Benoit ROUILLY alias). Unspoken Cinema. "[Non-]Narrativity": http:// unspokencinema.blogspot.com.br/2006_10_01_archive.html . Access 11-06-2020. TUTTLE, Harry (Benoit ROUILLY alias). Unspoken Cinema. "Contemplative Cinema Blogathon." https://unspokencinema.blogspot.com/2006/10/contemplative-cinema-blogathon.html Access 19-06-2020. TUTTLE, Harry (Benoit ROUILLY alias). Unspoken Cinema. "(Technical) Minimum Profile" : http:// unspokencinema.blogspot.com/2007/01/minimum-profile.html Access 11-06-2020.


20

TUTTLE, Harry (Benoit ROUILLY alias). Unspoken Cinema. "Slower or Contemplative?" http:// unspokencinema.blogspot.com/2010/03/slower-or-contemplative.html Access 1906-2020. TUTTLE, Harry (Benoit ROUILLY alias). Unspoken Cinema. "Home":http:// unspokencinema.blogspot.com.br/2009/06/ccc-timeline-2008.html . Access 11-06-2020.

WEBSITES

http://unspokencinema.blogspot.com.br https://unspokencinema.blogspot.com/p/recommended-ccc.html https://theartsofslowcinema.com/tag/contemplative-cinema/ https://unspokencinema.blogspot.com/2020/01/ccc-2010-2019-decade-top10.html

WEBSITES (Arthur Caria)

• • • • • • • • • • • • • • • •

paraamarosamadores.wordpress.com, clipoems.com, theimagematters.wordpress.com, theimageremix.wordpress.com, transmutedmotions.wordpress.com, smartphilming.wordpress.com, aframeapartisaworldofart.wordpress.com, youtube.com/user/clipoems/videos, OUTUBRO DE 2020/ABRIL DE 2022.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.