HISTÓRIAS DA ANTENA Juliana Ramos e Mateus Lira Graduandos em Arquitetura e Urbanismo pela UFMG Bolsistas de iniciação científica do grupo MOM (Morar de Outras Maneiras) mateusliramm@gmail.com / jujuvramos@gmail.com Belo Horizonte, MG
Quando eu cheguei aqui na Vila das Antenas, não tinha nada, era tudo mato. Meu pai comprou o terreno com um cômodo construído, a troco de um acordeon, de um senhor que morava lá no Conjunto e tinha o apelido de Zé Pisca Pisca. E não tinha documento não, dava era um recibo. Não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto. Tinha só uns barracõezinhos que dava pra contar quantos, todos de um cômodo, feitos de adobro e cobertos com sapê. A gente mesmo fazia o adobro: juntava água suja, pegava terra do terreno mesmo, misturava, amassava, colocava nas forminhas, batia o barro e depois ia tirando, fazendo os tijolos. Outras casas eram de lata: buscava essas latas de 20 litros, abria e ia pregando na madeira, fazendo a parede de lata mesmo. E daí ia aumentando a casa, fazendo os cômodos aos poucos. Mas a gente não mudava pra construir não, ficava construindo ali dentro. E era construído por tarefa, não era feito tudo de uma vez. Aproveitava dinheiro de férias, décimo terceiro. Ventava muito, porque os barracões eram poucos e não tinha nenhum prédio em volta. A gente chegava a ouvir o barulho do vento batendo na antena à noite, e a maioria dos barracões não aguentavam a chuva e o vento e caiam. Quase todo ano tinha que levantar as paredes de novo.
Essa narrativa foi elaborada a partir dos depoimentos de diversos moradores da Vila das Antenas, localizada no Morro das Pedras, em Belo Horizonte. Os relatos foram coletados em entrevistas, no contexto do projeto História em Construção, que é uma parceria entre o grupo de pesquisa MOM e os moradores da Vila. Para assistir ao vídeo, busque por “Vou me acabar aqui” no YouTube.com
Os caminhos eram uns trilhozinhos de terra, de uma largura que não passava duas pessoas junto. E quando chovia dava aquelas valetas de terra. Entre as casas tinha aquelas cerquinhas de bambu, com arame. Em alguns becos, quando morria uma pessoa que era velha no lugar, eles punham o beco com o nome da pessoa. Ali em baixo tem umas meninas que desceram por água abaixo, morreram, e o nome ficou beco Mara, que a Mara também desceu por água abaixo. E o outro morreu também então pôs o nome beco Canudo. A água era buscada longe, tinha que descer a pé até o córrego, lá em baixo na Vila São Domingos. Já pensou buscar lata d’água na cabeça? Às vezes até pagava os outros pra trazer pra mim. Quando tinha que lavar roupa, fazia uma trouxa com as roupas sujas pra levar na cabeça e as crianças levavam umas marmitinhas com a comida. A gente ficava
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lá embaixo até secar a roupa, pra ficar mais leve pra trazer de volta. E depois subia aquele morro todo com a lata cheia. Em casa a gente enchia o tambor d’água, e aos poucos ia usando pra lavar louça e tomar banho. Aí tinha um chuveiro de balde, que era o chuveiro da gente. Meu marido arrumou um balde, furou ele todo e arrumou uma tampa. A gente pendurava o chuveiro e na hora que você ia tomar banho, puxava a tampa e caía a água. A gente tomava banho nesse chuveiro mesmo. Aí a água acabava, um corria, e enchia o balde de novo. Aqui não tinha esgoto, então a gente abriu uma fossa. Mas a água suja que sobrava do banho e de lavar roupa a gente não jogava na fossa. Fazia uns regos dentro do lote e essa água descia lá pra baixo. Não era encanado, cavava com enxada e fazia o rego. O rego do vizinho de
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cima vinha e jogava no meu, que encontrava com o do outro mais em baixo, e ia descendo. Comida a gente comprava na venda do Seu Gastão ou do Seu Afonso, tudo no quilo: açúcar, arroz, macarrão. O leite no litro, querosene no litro. E cozinhava era com gordura de porco. Muita gente criava galinha e porco. Eu criei dois porcos, um casal. Do lado do meu serviço tinha um restaurante, eles me davam comida e eu trazia comida limpinha, a lavagem dos porcos. Dava banho neles todo dia, porque se não desse banho eles não dormiam. E criamos tanto amor que quando matou tivemos que repartir pelos vizinhos todos, porque ninguém aqui em casa teve coragem de comer. Depois disso eu não quis mais criar bicho.
No fundo da casa tinha abacate, laranja, bananeira, cana. Os meninos carregavam telha pra mim e eu pagava eles com cana. Tinha muita horta também. Em um pedacinho do terreiro eu plantava uns pés de couve, aquela couve que vira árvore. Tinha até que subir na escada pra pegar as folhas. E tinha tanto que dava para repartir entre os vizinhos. Fim de semana ia todo mundo pro campo de futebol. Cada vila do morro tinha o seu time. Lá no Pavilhão tinha o Pavilhão Esporte Clube, nós aqui da Antena, Antena Futebol Clube. Então fazia assim, um torneio. Dia das mães as mulheres jogavam futebol, as mães jogavam contra as mães. E quando não tinha jogo oficial, juntava aquela molecada, dez pra cada lado, e fazia a pelada, a “arranca unha”. Essa era a nossa diversão. Sempre tinha alguma festa junto com uma religiosidade. Todo mundo esperava o seu Hugo fazer a festa de Cosme e Damião, era uma festa muito bonita, juntava todo mundo pra ir. A Dodora fazia a festa de
queimar o boneco, a do Judas. Queimava o Judas na rua mesmo, perto do chafariz. Igual todo lugar tem, tinha um que tocava o cavaquinho, outro o violão, um que gostava de cantar. Então chegava um momento que eles reuniam e faziam um conjuntozinho. Chegava sábado e domingo juntava aquela turma de moça e rapaz, e a gente dançava a noite inteira. Lamparina acesa e todo mundo dançando, poeira subindo, e nem confusão tinha. A maioria dessas festas acabou, foi reduzindo a quase nada hoje. Festa junina ainda tem, mas não compara. Aos poucos foi chegando mais gente e a Vila foi crescendo. Muita gente aqui tinha parente no interior, que falava: “Essa roça tá ruim.” E os moradores daqui chamavam: “Vamo lá pra Belo Horizonte!” Aí dava um pedacinho do terreno pra algum parente construir. Outros vinham de outras vilas, porque tinham sido idenizados ou expulsos. E todo mundo daqui tinha uns pedacinhos grandes, com quintal. Aí chegava o pessoal de fora, dava um chorinho, e o dono do terreno vendia ou dava uma parte. Em outros casos o pessoal da Vila falava: “Aquele pedacinho ali não tem dono não.” E a pessoa vinha e fazia o barracão ali mesmo. Assim a Vila ia crescendo, os quintais e as hortas iam virando casa, os barracões iam aumentando. Antes da iluminação era lamparina, vela, lampião de gás, tudo isso eu usei. Aí depois os vizinhos foram puxando a luz, colocando poste e puxando. Um punha um relógio na casa dele, e da casa dele ele ia soltando os bicos pra todo mundo. Era aqueles postinhos de madeira, de pau mesmo, e saía fincando na rua e levando a luz da casa de um pro outro. E todo fim de mês a gente dividia as contas. Um dia um morador aqui conseguiu a luz na prefeitura, não sei como, e chegou pra gente e falou “Olha, vai trazer a luz, mas todo mundo vai ter que arredar a cerca.” Aí a gente foi diminuindo no quintal e abrindo a rua, alargando o beco. Tirava um um pedacinho: “Eu vou tirar um metro”, e o outro falava: “Eu vou tirar meio metro”, então foram aumentando. O primeiro lugar a ter água aqui na região foi o Conjunto Santa Maria.
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Eles falavam que não davam água pra gente porque eles tinham que pagar por essa água. Então, juntou o pessoal da Vila e entrou num acordo com o pessoal do Conjunto: “Então vamos fazer o seguinte, vocês fazem um preço e a gente paga a água que a gente levar pra casa”. Um tempo depois o pessoal da Vila juntou de novo e começou a fazer manifestação. Juntava a turma toda, levavam panela pra rua, lata, batia na lata, batia na panela, gritando “queremos água”, aí vinha a reportagem. Então eles puseram um chafariz aqui na esquina. A fila virava pra pegar água, era uma brigaiada. E ali o povo buscava a água a noite toda, eu mesma buscava até uma hora da madrugada. Mas água encanada mesmo só depois da gente entrar com uma pressão na Copasa. Aí botaram água nuns tubozinhos e arrumaram os becos. Há um tempo atrás os vizinhos eram mais unidos. Antigamente parecia família. Nesse sentido de comunidade, naquele tempo tinha mais união do que agora. E a Vila diminuiu muito porque ela ia até pro lado de lá da Avenida. Onde tem os prédios agora era cheio de casinha, mas aí os ricos tomaram conta. Foi idenizando o povo e fazendo esses prédios. E eu acho que eles são doidos pra tirar essa Vila pra enfiar mais prédio aqui pra dentro. Eles tão só chegando, só crescendo o olho, o pessoal cheio da grana. E nós sabemos que aqui é um progresso muito grande, o valor imobiliário aqui também é muito grande. Porque no início eles chegaram aqui pixando as casas sem falar nada com a gente o que era, com o jaleco da prefeitura. Quer dizer, já pondo na cabeça da gente que a gente tá destinado a deixar aquele espaço que a gente tá morando. Quantos barracões eles tiraram aqui pra construir uma rua. E tá aí hoje aberto sem terminar a rua, essa bagunça toda, esse poeirão. A maioria dos moradores que moravam aqui nesse beco, que hoje vai virar rua, a gente era praticamente família. Eles esperaram o povo vir e construir a favela pra depois acabar com o sossego do favelado. E parece que a intenção deles é levar todo mundo pro predinho. Mas se for pra mim sair da minha casa aqui pra ir pra esses predinhos aí, quero não. Porque o lugar melhor pra morar é esse lugar aqui. Eu não tenho vontade sair daqui, não. Posso até mudar, mas contra o meu gosto. Eu acho que aqui, eu vou me acabar aqui.