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CARTA DO EDITORIAL O entendimento da palavra Fronteira pode oscilar entre significados metafóricos e físicos. Fronteiras são criadas e quebradas todos os dias, sejam reais, imaginárias ou subjetivas. Nesta edição procuramos abordar e refletir sobre as diferentes fronteiras com que convivemos. Mantendo o foco em temas relacionados à cidade, a palavra se expande para além da relação cidade como espaço, para também incluir a cidade como olhar, vivência e concepção. Cidades em que os planos urbanísticos criaram bairros vizinhos tão diferentes quanto cidades, ou em que outras vezes a escolha do modelo de construção e a falta de normas urbanas resultaram em regiões sem distinção. Limites entre o privado e o público, entre o individual e o comum. As fronteiras intangíveis entre classes, que por vezes se concretizam em fronteiras físicas que reforçam a segregação. A transgressão do esperado e o explorar novos modos de ocupar e usar o espaço. Estes e outros temas são abordados aqui na quarta edição da Revista PARAHYBA. Os trabalhos apresentados trazem a revelação de novos limites e a proposta de dissolução de demarcações. A criação de um limiar pode promover riqueza e pluralidade; não sempre pobreza e segregação. O Editorial PET convida a todos para se juntar a essas discussões.
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PET Arquitetura e Urbanismo Escola de Arquitetura UFMG Rua Paraíba, 697, Sala 414B Belo Horizonte, MG Brasil Todo o conteúdo é de responsabilidade única de seus autores e não reflete necessariamente a opinião da revista. Para anunciar ou enviar material: editorialpet@gmail.com
Espaço aberto, horizontal e multidisciplinar de discussões sobre a cidade. Número 04 / Abril de 2015 ISSN 2237-1885 www.editorialpet.wordpress.com www.facebook.com/revistaparahyba Editoras Camila Félix e Katarina Grillo Conselho editorial Celina Borges, Ana Ferraz, Ariela de Oliveira, Camila Félix, Danielle Amorim, Heitor Costa, Fernanda Comparth, Júlia Candelária, Katarina Grillo, Mariana Belo, Mikael Guedes, Rayssa Carvalho, Sarah Coeli e Sofia Lages. Revisão Celina Borges e Francisco Polatscheck Tradução Francisco Polatscheck Projeto gráfico Camila Félix e Katarina Grillo Colaboradores Al Borde, Ana Paula Miranda, André Prata, Ariel Lazzarin, Ariela de Oliveira, Arlan Souza, Bárbara Rodrigues Tavares, Eduardo Rennó, Fernanda Goulart, Josiane Alves, Junia Mortimer, Kássia Borges, Maíra Oliveira, Mairla Melo, Marina Amaral, Marina Garcia Gomes Leite, Renato Tamaoki e Thiago Alvim. Capa Sarah Lambraio Fotografia convocatória Katarina Grillo Agradecimentos Débora Tavares, Eduardo Faleiro, Isabel Diniz, João Grillo, Luiza Bastos Lages, Peixaria Espaço Experimental e Renata da Matta.
NESTA EDIÇÃO 05 Acessos Ana Paula Miranda, Ariel Lazzarin, Mairla Melo, Kássia Borges 08 A desobediência do teatro Josiane Alves 12 Saber e objeto da fronteira Fernanda Goulart 18 Fronteira Urbana Centro-Floresta Marina Garcia Gomes Leite 24 Sinédoque Renato Tamoaki 28 Itatiaia Thiago Alvim 31 Vagon del saber - Litoral Al Borde 36 Do caos cinzento da metrópole Maíra Oliveira 40 Habite-se Bárbara Rodrigues Tavares 46 Terceiro lugar Junia Mortimer 56 Ponto a ponto da Lagoinha Ariela de Oliveira 62 Limitações ocultas urbanas André Prata e Marina Amaral 65 Fronteiras Eduardo Rennó 69 A fronteira do ser Arlan Souza
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ACESSOS Ana Paula Tavares Miranda Ariel Luis Lazzarin Mairla Melo Kássia Borges
“Acessos” é uma proposta para uma intervenção Urbana iniciada em 2009, na cidade de Uberlândia, Minas Gerais, e desenvolvida através de um exercício feito durante o Workshop “Arte no meio urbano”, ministrado por Sylvia Furegatti e realizado na Oficina Cultural de Uberlândia.
Arquiteta e Urbanista. Mestre em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo – IAU/USP Arquiteto e Urbanista. Mestrando em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo – IAU/USP Arquiteta e Urbanista – FAUeD/UFU Artista Plástica. Docente e doutoranda em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - UFAM
A partir de uma experiência urbana, guiada pela atração promovida pelos elementos que compõem a cidade, percorremos caminhos sem o estabelecimento de um ponto final. Uma espécie de “deriva”, com toda a condição de termos partido de um local consideravelmente íntimo, em um primeiro momento.
a_paulatavares@hotmail.com tmanapaula@gmail.com Uberlândia, MG
Uma situação de estranhamento, que se tornou confortável na medida em que nos dispomos a, simplesmente, sentir. Um ato atípico, para qualquer vida, mas que promove a apresentação de outros pontos de vista, que impulsionam o sentimento de desencontro com a particularidade banalizada por tempos e convenções. Nosso caminho passou a ser marcado por singelas marcações – a paginação de um canteiro central com os desenhos do piso de Copacabana, elementos da arquitetura moderna implantada na região central da cidade - onde nossa gradativa inserção como
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escala humana promoveu a possibilidade de experimentação de espaços não convencionais a nós, mas, quem sabe, banais à outras rotinas. Utilizamos o próprio corpo como alternativa de apreensão sensorial dos espaços construídos para servir outros corpos que não os nossos, até então, como, por exemplo, as rampas de acessibilidade. Esta experimentação denunciou a frequência de elementos arquitetônicos contemporâneos que nos conduziram a momentos, mas que percebemos não existirem em um imaginário formal criado nas relações de apropriação do espaço ou na memória referente a dado espaço. Elementos de deslocamento pensados para servir o homem, que se referem à uma necessidade real de transposição pública e que, por suas características de implantação, segregam e selecionam, anulam possibilidades de uso e criam fronteiras entre a continuidade do espaço público no espaço privado. Essas alternativas arquitetônicas, necessárias para a utilização pública do espaço, tornam-se um problema para o espaço construído quando são digeridas como simples necessidade espacial e que precisam ser anexadas aos novos espaços e/ou aos já antigos. Foi esse entendimento superficial, de configurações espaciais socialmente adequadas, que fizeram com que rampas de acessibilidade em edifícios de acesso público se tornassem nosso atrativo para a criação de um percurso em deriva. 8
Tendo em vista estas considerações, “Acessos” é pensado como a representação da reflexão desenvolvida sobre esses definidores espaciais que não somente desenham espaços urbanos, mas inclusive, se possível, desenham e programam o próprio uso da cidade. Esses elementos de apoio à transposições poderiam se tornar realmente coletivos a partir do momento em que os usuários do espaço urbano passassem a utilizá-los como meio para seus deslocamentos cotidianos, porém de maneira não familiarizada, ou estranha à acostumada. Desta forma, “Acessos” propõe uma intervenção urbana tridimensionalizada em um conjunto de módulos de madeira, como releitura dos elementos de acessibilidade, levado às ruas com diferentes combinações. Os módulos proporcionariam uma nova dinâmica ao cotidiano desanimado por horas marcadas e unificaria o acesso aos novos passantes, podendo oferecer outras percepções espaciais a partir do deslocamento vertical que estabelece. Com caráter efêmero, o conjunto confeccionado proporciona diferentes combinações entre os módulos, que devem ser adequados aos distintos locais de montagem, levando em conta as especificidades de cada entorno. Esses, devem ser montados e deslocados considerando-se os horários com pouco fluxo de pessoas no local, para que a estrutura exerça sua função apenas pelo fato de estar presente, ou seja, sem que o processo de montagem cumpra qualquer papel influente na percepção da intervenção. Em forma de arte urbana, “Acessos” discute a cidade contemporânea e as contradições encontradas em seus elementos de circulação entre o público e o privado, manifestadas nas diversas fronteiras da vivência cotidiana. n
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A DESOBEDIÊNCIA DO TEATRO: a transgressão do espaço cênico Josiane Alves Estudante de graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG.
Do francês frontière (a dianteira das tropas militares), a palavra fronteira implica o que está na frente. Acompanhando a evolução de suas vertentes dramatúrgicas, a vanguarda teatral do começo do século XX questionou o fazer teatral hegemônico e a separação entre artistas e plateia criados pelo uso recorrente do palco italiano. Mas nem sempre foi assim: antes e depois desse modelo muitas tipologias cênicas foram experimentadas, embora, apesar da diversidade e da evolução destas, o que percebemos é que o padrão italiano se estabeleceu absoluto. Da Antiguidade Greco-Romana à Idade Média, o teatro constituiu uma atividade amadora, feita ao ar livre, em arenas e semi-arenas, odeons, dentro e fora das igrejas. Sua vertente renascentista começou em 1574, quando a Carta dos Comediantes proibiu a apresentação teatral nas ruas, fazendo necessária a criação de um suporte arquitetônico para abrigar os espetáculos. Foram erguidos os primeiros edifícios teatrais. Dos corrales espanhóis da “era de ouro” ao teatro elisabetano, passando pelo Teatro Olímpico, em Vicenza e o Teatro Farnese, em Parma, temos exemplos variados da evolução do espaço e da maquinaria cênica. Na França, o teatro barroco adaptado a partir
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das quadras de tênis (jeu de paume) desenvolveu-se rapidamente dando origem a grandes óperas, como o Palais Garnier, com “plateia em forma de ferradura, fosso de orquestra, proscênio e boca de cena para apresentação de cenários formados por telões pintados”. Um ano depois da inauguração do Palais Garnier, o compositor Richard Wagner inaugurou na Alemanha sua casa de ópera, a Bayreuth Festspielhaus, projeto revolucionário que eliminava a hierarquia do público em uma plateia única em forma de leque. Curiosamente, é o modelo do que hoje conhecemos como teatro italiano, que podemos definir como: “plateia frente ao palco abertura, a boca de cena. Entre o palco e a plateia, o fosso da orquestra. Acima do palco, a caixa cênica, as bambolinas, a grelha e o urdimento”. Porém, não obstante a popularidade e difusão da tipologia italiana graças à sua geometria favorável quanto à acústica e visibilidade, o pensamento de alguns encenadores se transformou a partir das revoluções do começo do século XX. Bertolt Brecht, Adolphe Appia e Gordon Craig lideraram a busca por um novo fazer teatral, uma vez, que para eles, o espaço teatral, ao se transformar no espaço da experimentação, deveria subverter a geometria e a tipologia preestabelecida, pois ambas limitavam o fazer teatral. Assim, a ruptura dos limites do tradicional palco italiano tornou as fronteiras do espaço cênico palco/plateia não-frontal imprecisas, sem barreiras, sem ribalta, sem quarta parede. Fronteira deixou de ser “limite” e se tornou “território a descobrir e conquistar”. Em uma primeira experiência, que depois se tornou muito comum na América do Norte, o Thrust Stage combinou uma caixa cênica rasa
com um proscênico avançado e uma plateia em semicírculo; meio elisabetano, meio romano. Jacques Copeau e Louis Jouvet, contra a tendência naturalista da época, reformaram um antigo teatro tradicional de palco italiano e criaram um teatro de Open Stage, o Théâtre Du Vieux-Colombier, com plataformas e escadas e, principalmente, sem o enquadramento da quarta parede. Em 1919, Hans Poelzing reformou um edifício para construir o Grosses Schauspielhaus, com plateia em forma de U e proscênio avançando sobre o público. Peter Brook viajou pelo mundo convertendo e reformando espaços para seus espetáculos. É o princípio do Found Space, de que um lugar qualquer pode ser transformado em teatro. A Cartoucherie de Vincennes e o Théâtre des Bouffes DuNord, ambos em Paris, são exemplos bem-sucedidos. Grande avanço na arquitetura cênica, os projetos de Norman Bel Geddes e o Teatro Total de Walter Gropius propunham utilizar mecanismos para transformar a geometria da sala de modo a que ela se tornasse um equipamento cultural democrático. Essa inédita possibilidade de transformação do espaço físico representaria o fim da submissão do encenador ao espaço sem a necessária negação dele, tal como o obtido pelas Black Box: o Schaubuhne, em Berlim, e o Cottesloe Theatre, em Londres, são experiências bem sucedidas que negam a tipologia frontal italiana. Mais tarde, a revolução cênica também levantou a questão da disposição dos espectadores sentados na plateia e da separação entre o edifício e a sala de espetáculo. De forma que a evolução arquitetônica dos espaços cênicos foi consequência não só do
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desenvolvimento da cenografia, mas também – e principalmente – da revolução dramatúrgica que se sucedeu ao longo dos anos; evolução essa que caminhou lado a lado com as transformações sociais. Rompendo com os modelos pré-estabelecidos de fazer teatral, vemos na encenação anti-tradicional de uma montagem do grupo paulista Lume Teatro o uso de um salão de baile fictício para experimentar a relação palco/platéia/sociedade/ dramaturgias atuais. Baseando-se na tríade arquitetura teatral – cenografia – sociedade, o teatro continua em constante evolução. O século XXI trouxe a natureza cibernética da construção cenográfica e a performance, que abriga manifestações artísticas de diversas naturezas, além das mídias mais diversas em espaços alternativos. A partir dessas intervenções virtuais e na cidade, a performance abandona o placo convencional e faz surgir o espaço físico no momento em que a ação teatral se desenvolve. Serão estas as novas fronteiras do experimentalismo teatral contemporâneo? Será esta a última transgressão do espaço cênico? n
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Imagem cedida pela autora As possibilidades tipológicas do Teatro Total (http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/09.104/85).
Referências Bibliográficas HILDY, Franklin J. Arquitetura teatral histórica: história do teatro aplicada em três lições. Tradução de Evelyn Furquim Werneck Lima. O Percevejo Online. Periódico do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC/UNIRIO. Disponível em: <http://www.seer. unirio.br/index.php/opercevejoonline/article/view/2401/pdf_650>. Acesso em: 13 Out. 2014. ZILIO, Daniela Tunes. A evolução da caixa cênica transformações sociais e tecnológicas no desenvolvimento da dramaturgia e da arquitetura teatral. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, [S.l.], n. 27, p. 154-173, jun. 2010. ISSN 2317-2762. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/posfau/article/ view/43685>. Acesso em: 26 Nov. 2014. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2317-2762. v0i27p154-173. LANFRANCHI, Gustavo. A evolução do espaço cênico através dos tempos. Disponível em: <http://www.gslanfranchi.com.br/?page_id=308>. Acesso em: 29 Nov. 2014.
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SABER E OBJETO DE FRONTEIRA Fernanda Goulart Professora na UFMG, artista e designer. Formada em Artes Visuais, mestre em Comunicação Social e doutora em Arquitetura. https://pt-br.facebook.com/UrbanoOrnamento urb.ornamento@gmail.com Belo Horizonte, MG.
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Tendo como amplo norte a presença do ornamento no espaço urbano, “Urbano Ornamento” é uma abrangente iniciativa que envolve pesquisa acadêmica, inventário de desenhos e de fotos, site, financiamento coletivo e livro, além de inúmeras caminhadas e conversas pela cidade. Através de um olhar interdisciplinar para as grades ornamentais em Belo Horizonte, o projeto aproxima os campos de saber da Arquitetura e das Artes, não apenas pela evidente força gráfica que caracteriza esses bens integrados, mas também por outras interfaces – etnográfica, histórico-crítica, poético-ficcionais – que lhes possibilitam comunicar. Adota, como ponto de partida, a documentação fotográfica de fachadas de casas situadas em bairros mais antigos da cidade e, cumprida essa etapa, a digitalização dos modelos encontrados, disponibilizando desenhos vetoriais gráficos em arquivos abertos, editáveis.
Tal inventário deve ser detentor de uma memória patrimonial e outra mais livre, a partir das reflexões que os saberes, que nele tangenciam, possam suscitar. Se o objeto é a grade, seu lugar é a fronteira, e é na fachada que objeto em sua singular espacialidade se revela, onde também as discussões sobre o ornamento podem ganhar sentido renovado. Um interior pode se revelar através da fachada, se pensarmos que tais fronteiras não apenas afastam, mas aproximam. Porosas, ventiladas e ornamentadas, essas grades negam a separação entre os espaços urbano e doméstico, imantando uma interioridade no contexto da rua.
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As fronteiras devem ser também identificadas nas conversas plásticas entre a Arte e a Arquitetura. No caso das grades, a presença do desenho no espaço urbano imprimirá nosso olhar, com linhas que preenchem a cidade de ontem e hoje, de modo voluptuoso ou mais sóbrio, conferindo graça discreta aos caminhos, em distinto tom dos atuais muros de vidro e os arames cortantes e encaracolados. Desenhos em um “mundo sem legendas” ao qual se refere Edith Derdyk (2007, p. 24): “linhas que se projetam no espaço do mundo, provocando tessituras de significados sempre emergentes e em trânsito”. Assim, talvez seja preciso imaginar que se tratam de fronteiras em movimento, para perceber e fazer vibrar e reverberar sua porosidade. Que língua falam essas grades e fachadas? Como são capazes de exteriorizar domesticidades? Que histórias elas nos contam, sobre as cidades, as casas e o habitar dos homens? n
Referência Bibliográfica
DERDYK, Edith. Disegno. Desenho. Desígnio. São Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2007. 311p.
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Fronteira Urbana Centro-Floresta Marina Garcia Gomes Leite Artigo elaborado a partir de aprofundamento do projeto de graduação em Arquitetura e Urbanismo “Conexão Urbana Centro-Floresta”, desenvolvido pela autora sob orientação da Professora Dra. Denise Morado – Escola de Arquitetura da UFMG, 2010. Belo Horizonte, MG
“Bahia e Januária são a mesma rua cortada pelo Arrudas e pelos trilhos da Oeste. Entretanto parece que a segunda começa logo abaixo da Estação de Bondes pois a primeira, ali, perde o caráter de central e vira via de bairro, vira rua da Floresta.” Limitada por um traçado enrijecido devido ao seu projeto fundador, Belo Horizonte apresenta algumas incongruências em sua extensão, principalmente nas interseções dos limites da área inicialmente projetada, conformada pela avenida do Contorno, com as adjacências ocupadas posteriormente de forma mais espontânea. No caso da área em foco neste estudo – a extensão que separa a avenida do Contorno da rua Célio de Castro – a cicatriz existente entre os tecidos urbanos vizinhos, o Hipercentro e o bairro Floresta, é ainda agravada pela presença da linha de metrô de superfície que corta Belo Horizonte no sentido Nordeste/Oeste, pela via de alto tráfego da avenida do Contorno (atual Boulevard Arrudas) e pelos terrenos residuais anteriormente ocupados pelas instalações da Rede Ferroviária Federal, que atualmente encontram-se subutilizados.
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Com tamanha fragmentação de tecidos, denota-se que bairros fisicamente vizinhos são percebidos por seus moradores e frequentadores como completamente distantes, gerando áreas de sensação de insegurança que inibem o tráfego de pedestres e resultando na subutilização do potencial grandioso de qualidade urbana que uma área tão estrategicamente localizada poderia oferecer. Formação territorial Inaugurada em 1897, Belo Horizonte teve seu traçado urbano inicial definido em projeto como uma rígida malha ortogonal notadamente influenciada pela estrutura espacial da Paris de Haussmann. Para além da avenida que circundaria o limite da cidade formal, o projeto delimitava zonas suburbanas e rurais que dariam suporte à área urbana da cidade, instalando os trabalhadores que se encarregavam da construção da nova capital e dando lugar a áreas rurais para abastecimento da cidade. Entretanto, a ocupação prevista para as áreas suburbanas pelo projeto inicial foi bastante transformada, dando espaço a um caráter de espontaneidade de apropriação que não se via Contorno adentro. O principal motivo da reinterpretação da ocupação prevista originalmente, em face da que efetivamente se deu, se deve ao fato de o projeto inicial não tratar de soluções concretas para áreas de habitação popular. A primeira favela de que se tem registros na nova Belo Horizonte foi a Alto da Estação, na atual rua Sapucaí, e tem forte relação com a consolidação do bairro Floresta, adjacente ao limite da avenida do Contorno. O bairro foi ocupado desde o período da construção da cidade por
população diversificada: operários, membros da elite local, e pessoas modestas vindas de outros municípios. A Floresta começava atrás da Estação de Minas, atual Estação Central do metrô de Belo Horizonte, na região já então delimitada pela estrada de ferro e pelo Ribeirão Arrudas. A presença desses elementos foi grande responsável pela ocupação inicial da área e surgimento de hotéis e pensões em seu entorno. Daí possivelmente o nome do bairro, devido à construção em 1896 do Hotel Floresta, na atual avenida do Contorno. Uma cicatriz urbana Territórios vizinhos que não são percebidos como tal. Assim é a sensação territorial compreendida por aqueles que circulam pelas imediações da avenida do Contorno, divisor geográfico entre o Centro e a Floresta. A percepção vai além da simples mudança do nome das ruas nas placas. As ruas com nome de estados brasileiros fatalmente nascem e morrem na avenida do Contorno. Algumas dessas ruas insistem em se transpor para além do limite estabelecido, ganham outros nomes e seguem para territórios desconectados da malha central. Um pedestre que desça a rua Rio de Janeiro, a partir da Praça Sete, cruza um território homogêneo característico do Hipercentro, atravessando as ruas dos Tupinambás, dos Caetés e assim por diante até chegar à avenida do Contorno. A partir daí, se o pedestre estiver disposto a cruzar a fronteira urbana e seguir até a Floresta, precisa se conformar
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a vencer as oito pistas da avenida em uma passarela de mais de 100 metros de extensão – e menos de 2 metros de largura, quando então lhe será forçoso seguir em uma via inóspita que desemboca no viaduto que vence o obstáculo da linha do metrô de superfície da cidade, quando finalmente então se sentirá em território da Floresta, na ladeira da rua Barão de Varginha. “Aurélio, no seu dicionário, dá vinte e oito acepções do verbo descer. Não cita a vigésima nona, a que tinha curso em Belo Horizonte, a partir de dez e meia da noite. Dessa hora em diante, descer era fazê-lo para os cabarés, os lupanares – para a zona prostibular da cidade, em suma. Nessa hora notava-se como que um branle-bas no Clube Belo Horizonte, onde encerravam-se as rodas de jogo, esvaziava a sala de leitura, passava o último cafezinho, as luzes iam se apagando; (...) Acontecia o mesmo no Bar do Ponto, no Fioravanti, no Estrela. Formavam-se grupos e todos tomavam a mesma direção, em Afonso Pena, sob os fícus, até virarem em Espírito Santo, Rio de Janeiro ou São Paulo, que eram os caudais que desaguavam no quadrilátero da Zona. Este compreendia tudo que ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque, vasta área de doze quarteirões de casas. A partir da crista de Caetés, as ruas ladeiravam até despencarem no Arrudas. Assim, esse trecho da cidade ficava numa depressão. Para nele chegar era preciso marchar rampas abaixo e daí o significado especial de descer dado pelos belorizontinos à ação de ir à zona, à patuscada, à farra, ao cabaré lá embaixo (...).”¹
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A única linha do metrô de Belo Horizonte se desenrola em grande parte de sua extensão na superfície da cidade, conformando uma barreira tanto horizontal na largura dos trilhos, quanto vertical pela impropriedade de ser fechada ou construída em no mínimo 7 metros de altura a partir do solo. Com isso, podemos dizer que seu traçado compõe uma declividade invisível na fronteira entre os tecidos urbanos que o margeiam. No trecho estudado, esse obstáculo é atualmente vencido através de passarelas grosseiras localizadas no término de ruas sem saída. A desconexão urbana é ainda agravada pela alta coincidência de situações de interrupção de fluxo, como as vias de alto tráfego, grandes quarteirões com terrenos vazios, becos de ruas sem saída, pela escassez de paradas de transporte público e pela ausência de equipamentos públicos ou privados que ocasionem a circulação casual de pedestres pela região. O cenário exposto faz com que as ruas de conexão hoje existentes ali fiquem vazias, e consequente gerem a sensação de insegurança que leva ao ciclo que retroalimenta a maioria das áreas degradadas das cidades contemporâneas: transeuntes evitam a área, por considerarem-na perigosa, e sua ausência colabora para que na região erma não desponte a vitalidade urbana desejada.
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Costura de Tecidos “Íamos à Floresta, descíamos no fim da linha exatamente na esquina de Januária, onde tínhamos morado embaixo e depois em frente do meu tio Júlio Pinto. Seguíamos a pé as ribanceiras que terminavam a rua do Pouso Alegre daqueles lado do poente. Olhávamos à esquerda, a cidade tornada suntuosa e começando a luzir das purpurinas da tarde. Adivinhávamos longe a torre de Lourdes, mais embaixo a do Conselho Deliberativo, as duas de São José. (...) Voltávamos os olhos e subíamos o curso do Arrudas que, nos pontos visíveis, parecia de ocra vermelha.” ¹ Em projeto elaborado em 2010 como trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo pela EA-UFMG, objetivei propostas com a finalidade de propor intervenções que possibilitassem transpor as barreiras previamente levantadas, devolvendo à cidade áreas possíveis para ocupação pública com qualidade e segurança. Para elaborar a proposta de costura dos tecidos possibilitando a conexão urbana desejada, levou-se em conta a necessidade de conciliar as demandas particulares e coincidentes de cada tecido. As demandas do bairro Floresta foram levantadas junto à Associação de Moradores da Floresta (FloLeste), quando foi identificado o perfil dos moradores do bairro, a necessidade de áreas livres de lazer para referência da população, e a relação que os habitantes tem com a localização relevante da região dentro da articulação geral de Belo Horizonte. Já as demandas do Hipercentro foram identificadas em pesquisa prévia, junto aos dados disponíveis sobre a região. Assim levantou-se que a região passa por um crescimento residencial, saturação da
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infraestrutura urbana disponível gerando a necessidade de criação de zonas de absorção do alto fluxo de usuários em novos locais de permanência. A proposta de conexão urbana foi pautada então em três pontos básicos, a saber. O primeiro e primordial foi a criação de espaço público de qualidade para livre apropriação, a partir da devolução do terreno imaginário sobre os trilhos do metrô, através de uma praça elevada cobrindo toda a extensão da linha na área estudada, sugerindo então uma cicatrização dos tecidos urbanos. O segundo se baseou na concepção de um nó de mobilidade urbana através de uma alça viária que atravessasse a área em estudo, com paradas de ônibus auxiliares e a sugestão de uma estação adicional do metrô, a Estação Floresta. Com isso, visou-se fortalecer o nó de atividades e fluxo criado no interior do quarteirão, vitalizando novas rotas de pedestre na região até então erma. O terceiro ponto se deu com a proposta da alocação de um albergue como exemplo de um equipamento de médio porte que atrairia público à região, ajudando ainda a dinamizar o novo espaço oferecido, criando um novo vetor de ações que sustentasse a conexão urbana. Enfim, em termos lúdicos, podemos dizer que a proposta manifesta o desejo de tratar da cicatriz territorial, suturando, remendando e alinhavando tecidos urbanos até então fragmentados. Tornando, pois, o que é fronteira, possibilidade. n
“Ruávamos quase o dia inteiro. Nossa vida era um ir e vir constante nas ruas de Belo Horizonte. E o mais estranho é que hoje elas se esvaíram completamente. Mesmo voltando, mesmo palmilhando os lugares essenciais da nossa mocidade, é impossível captar as velhas ruas como elas eram a não ser refazendo-as imaginariamente ou agarrando fragmentos fornecidos pelo sonho.” ¹ Referência Bibliográfica ¹ NAVA, Pedro. Beira-Mar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. ARQUIVO PÚBLICO DA CIDADE DE BELO HORIZONTE. História de Bairros. Coleção História de Bairros de Belo Horizonte. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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SINÉDOQUE Renato Tamaoki Estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP São Carlos). São Paulo, SP.
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A sinédoque é uma figura de retórica cujo significado corresponde a tomar a parte pelo todo ou vice-versa. O conjunto de trabalhos apresentado, livremente baseado na leitura da filosofia da imagem fotográfica proposta pelo filósofo Vilém Flusser e influenciado pela ideia da sinédoque, é uma tentativa obsessiva de uma apreensão totalizadora da visualidade que se apresenta mediada pelo aparato fotográfico. Atualmente, o acesso espontâneo à informação livre nos torna detentores de um saber potencialmente absoluto. Na impossibilidade de lidar com tão repentina exposição, tornamonos individuos fascinados e desfocados. As cidades, por meio de seus fluxos mais ou menos dinâmicos – como a massa edificada, os veículos automotivos e a movimentação humana – são aqui estruturas metaforicamente análogas ao fluxo e à acumulação de informação a que estamos expostos. Por meio do agrupamento e sobreposição de sucessivos momentos e enquadramento, faz-se aqui uma síntese visual mal acabada, sobreposta e deformada de um singular instante, buscando assim expressar a vontade e a impossibilidade de uma apreensão totalizada da aparente realidade.
O procedimento, que é iniciado no ato fotográfico e culmina na reorganização das imagens por meio da edição digital de imagens, força um grande número de fotografias a uma síntese visual prestes a romper a barreira entre o figurativo e o abstrato. Sufocante e imprecisa, utiliza o excesso de informação como canal da desinformação. Reforma e reavalia o excesso, tornando-se a síntese autônoma dos elementos que inicialmente a compuseram, e conforma uma reflexão visual da parte que, incapaz de compreender o todo, tenta produzir para si sua própria representação. n
Referência Bibliográfica FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
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ITATIAIA Thiago Alvim Desenhista, grafiteiro, gravador, entre outros. Utiliza a técnica de Graffiti, na maioria das vezes com tinta látex, spray, raspagem na parede e outras formas de trabalho que convém ao suporte específico. http://thiagoalvim.blogspot.com.br/ Belo Horizonte, MG.
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VAGÓN DEL SABER LITORAL Nome: Vagón del Saber - Litoral Cliente: Ministerio de Cultura y Patrimonio, Ecuador Arquitetos: AL BORDE Direção do projeto: Jorge Noreña Desenho industrial: Juan Subia Cobertura téxtil: AAMAXIMA, Ing. Hernan Arias + Ing. Marcelo Pazmiño Infografía: Rolando González Localizacão: Itinerante Construtor: Arq. Juan Carlos Castillo Área: 36 m2 Projeto: 2012 Construção: 2012 Créditos Fotográficos: Cyril Nottelet y AL BORDE contact@albordearq.com www.albordearq.com Equador
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“Todos esos años de cargar lo han dejado deforme. A pesar de que le faltaba un boje y de estar descarrilado, cuando uno lo veía no podía evitar sentir respeto. Distinto a todo lo que vemos ahora... ya no hacen las cosas como antes.” Así describe Nelson, el maquinista, al vagón de carga mil quinientos trece.
“Todos aqueles anos puxando carga tinham deixado ele bem deformado. Mas, mesmo descarrilado e com uma roda faltando, quem olhava não deixava de sentir respeito. Diferente de tudo que a gente vê hoje em dia... não se faz mais as coisas como antes.” É assim que o maquinista Nelson descreve o vagão de carga nº 1513.
El vagón ha sido seleccionado para formar parte de la recuperación del sistema ferroviario ecuatoriano por parte del Ministerio de Cultura y Patrimonio. Pero a diferencia de las demás partes que integran este proyecto de recuperación, este vagón no lleva turistas ni carga sino cultura y espacio público.
O vagão foi escolhido pelo Ministério de Cultura e Patrimônio do Equador como parte de um programa de recuperação do sistema ferroviário local. Mas, diferentemente de outros elementos que compõem o projeto de restauração, esse vagão não carrega carga ou turistas, mas sim cultura e espaço público.
La reactivación del ferrocarril significa un gran suceso en las comunidades que están en su ruta. Después de doce años de ausencia estos asentamientos no solamente recuperan una vía de comunicación y se reactivan económicamente, sino que recobran en muchos casos su vocación.
A reativação da ferrovia é um grande acontecimento para as comunidades que vivem ao longo de sua rota. Após doze anos sem ela, esses vilarejos não apenas recuperam agora esse meio de ligação – e são assim reativados economicamente – como também, em muitos casos, retomam sua vocação própria.
Gestores culturales se valdrán del vagón como activador de espacio público en las estaciones del litoral por las que pasará. El proyecto deberá ser capaz de posibilitar presentaciones musicales, teatrales, capacitación a las comunidades, festejos, etc. Esto significa que estrictamente el vagón no tiene programa arquitectónico definido. Lo que implica un desafío: que funcione para cualquier actividad que los gestores culturales programen.
Promotores culturais irão utilizar o vagão como um ativador de espaços públicos nas estações do litoral por onde irá passar. O projeto deve incluir apresentações musicais, teatro, capacitação comunitária, festejos, etc. Isso significa que o vagão não tem um projeto arquitetônico estritamente definido, o que implica em um desafio: ele precisa funcionar para qualquer atividade que os promotores culturais venham a programar.
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MÍNIMO COMÚN MÚLTIPLO
MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM
Para resolver este proyecto multifunción, la búsqueda se enfocó en aplicar matemática básica a las funciones arquitectónicas. Todo se resuelve bajo una lógica de mínimo común múltiplo, o mejor dicho una mínima función común: la mayor cantidad de funciones con la menor cantidad de elementos.
Como solução para este projeto multifunção, buscou-se aplicar matemática básica às funções arquitetônicas. Tudo se resolve de acordo com uma lógica de mínimo múltiplo comum ou, em outras palavras, de uma função mínima comum: a maior quantidade de funções com a menor quantidade de elementos.
Así concluimos que para una plaza pública, un teatro para un aforo de 60 a 80 personas y espacios de trabajo para capacitación de 20 usuarios, necesitamos anexar al vagón solamente tres elementos: cubierta con varias opciones de despliegue, mobiliario retráctil y dos bodegas.
Assim, concluímos que, para uma praça publica, ou um teatro com capacidade para 60 a 80 pessoas, ou oficinas de trabalho para treinamento de até 20 usuários, precisávamos adaptar ao vagão três elementos apenas: uma cobertura com várias opções de colocação, mobiliário retrátil e dois compartimentos para guardar materiais.
Trabajamos con varios diseñadores industriales, cada uno especializado en un área específica: cubierta, mobiliario y bodegas, esto permitió optimizar los procesos y los tiempos de construcción.
Trabalhamos em conjunto com vários designers industriais, cada um deles especializado em uma área específica: cobertura, mobiliário e compartimentos fechados, o que permitiu otimizar os processos e reduzir o tempo de construção.
El vagón puede convertirse en plaza, teatro u oficina con sistemas sencillos operados por los gestores. Pronto el vagón recorrerá las estaciones de la costa y el uso le sumará moretones a la deformada carrocería de hierro que dejamos intacta para que siga acumulando historias.
Sistemas simples operados pelos promotores culturais permitem transformar o vagão em espaço público, teatro ou oficina de trabalho. Em breve o vagão estará percorrendo a costa, parando nas estações, e acrescentando novas marcas à sua carroceria, que deixamos deformada como se encontrava, para que siga acumulando histórias. n
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DO CAOS CINZENTO DA METRÓPOLE A HARMONIA COLORIDA DA CIDADE Maíra Oliveira Estudante de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, intercambista na University College Dublin, artista e designer. mairahso@gmail.com Belo Horizonte, MG
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Das varandas enxergamos uma praça que nasceu junto da cidade. Não da cidade que sempre existiu, mas da cidade construída para ser cité, para ser metrópole. Quem não conhece Belo Horizonte costuma não saber o significado da “Praça 7” para a cidade. Posso dizer que é um dos lugares mais democráticos de BH. Vemos nesse panorama o espaço da diversidade, do comércio, dos ambulantes, dos protestos e das festas. Não há lugar mais significativo do que o obelisco, o tal pirulito, que marca o centro da praça, que não é um espaço único, mas se divide em quatro, e é rasgada por duas grandes avenidas.
O que representa a cité e a metrópole para nós, já era assim considerado pelos músicos e poetas do século passado. Nossos avós diziam que iam “para a cidade”. Mas espera! A cidade não é aqui e ali? A cidade é o caos, os carros, o mar de gente que percorre as ruas do centro? Essa metrópole de concreto é exatamente assim, mas há vida nesse lugar. É de fato um Lugar. Onde o inesperado e imprevisível acontecem. Onde existem fortes relações sociais, que nós jamais enxergamos quando mergulhamos pelas ruas. Digo que são fronteiras e laços invisíveis que marcam o lugar da praça. Onde caos e harmonia existem juntos e andam um do lado do outro. Alguns veem o caos, mas é possível enxergar as notas harmônicas que fazem a “Praça 7” ser o lugar vivo e dinâmico que é. n
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HABITE-SE Bárbara Rodrigues Tavares Arquiteta Urbanista graduada pela Escola de Arquitetura da UFMG barbarartavares@gmail.com Belo Horizonte, MG
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Habite-se pode ser considerado a mistura indissociável de uma pesquisa acadêmica teórica com uma ação reflexiva na cidade. O projeto foi idealizado e produzido durante o ano de 2014 como trabalho de conclusão de curso sob orientação da professora Celina Borges, mas a pesquisa extrapolou os limites temporais, permitindo que ele continue existindo, de forma material e/ou imaterial, enquanto se provar eficaz. Estudar as exposições de arte na contemporaneidade requer uma compreensão dos caminhos percorridos por elas e da relação entre os elementos “arte, homem e espaço” ao longo do tempo. As reflexões teóricas e discussões em torno desse tema fizeram surgir questionamentos quanto ao papel da arte na sociedade e no espaço urbano e quanto ao lugar preparado para receber essas obras de arte. Essas questões serviram como fundamentação para uma experimentação onde se pretendeu criar novas relações entre os três elementos em questão, na forma de uma exposição artística alternativa, mais livre e pensada a partir do ponto de vista dos artistas.
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O acesso – mais facilitado e desprovido de barreiras físicas – ao objeto artístico torna a arte mais democrática e pode acabar induzindo manifestações mais criativas, já que as possibilidades são inúmeras e infinitamente mais livres. Neste sentido, surgiram os seguintes questionamentos: O que o posicionamento da arte na rua causa na sociedade? O que aconteceria se expuséssemos alguns trabalhos de arte no meio de uma praça? Como o espaço público se comportaria? Como as pessoas reagiriam? Como os próprios artistas se posicionariam? Foi então que chegou-se à proposta de uma ocupação crítica de um espaço em que o pedestrianismo, a vida urbana e a cidade como local de encontro foram praticamente anulados. Assim, o lugar escolhido foi a Praça Milton Campos, na zona sul, no cruzamento das avenidas Afonso Pena e Contorno. Durante seis meses foram realizados encontros e convites aos artistas, o que foi importante para gerar uma aproximação deles com o local e para que houvesse uma fundamentação maior em relação ao tema, caracterizando um processo coletivo e horizontal. O resultado foi uma ação no dia 27 de setembro de 2014, com a participação de quatro artistas plásticos e um músico. A partir das 15hs, Ana Pedrosa, Dagson Silva, Diego Hemétrio, Gabriel Nast e Mariana de Matos se posicionaram na praça em uma ação conjunta e simultânea. Acontecia uma nova experiência artística e urbana, aberta a todos os materiais e técnicas e sujeita a surpresas durante o processo. Entre instalação, intervenção artística, escultura, performance, ativismo social, obras site specific e happening, estava difícil definir o formato da ação que acontecia; o que se percebia era a mistura de todos esses elementos, possibilitando relações diversas entre arte, homem e espaço.
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No dia seguinte à realização do evento todos os trabalhos haviam desaparecido, evidenciando o caráter efêmero da experimentação e a sua característica de processo e não de determinação conclusiva. A ação de caráter nômade mudou a paisagem urbana por um dia, refletindo sobre a utilização do espaço público e apontando alternativas para as formas de se expor arte. Entre percalços e sintonias, funcionou como uma ação contestatória e propositiva. Iniciativas como essa não surgiram agora e não vão deixar de existir; é importante acreditar na arte como forma de ocupação da cidade e na possibilidade de manifestações independentes e que considerem a potência da liberdade criativa. É importante promover acontecimentos que transmutem os espaços públicos em lugares de emancipação, onde haja uma vivência desregrada. Habite-se foi uma ação efêmera extremamente significativa e densa; o que nos moveu foi o amor pela rua. n Agradecimentos:
Créditos imagens:
Celina Borges Lemos
01: Mariana Gonçalves
Ana Pedrosa
02: Lorena Vaccarini
Dagson Silva
03: Mariana Gonçalves
Diego Hemétrio
04: Vitor Araújo
Gabriel Nast
05: Vitor Araújo
Mariana de Matos E todos os envolvidos no Habite-se.
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TERCEIRO LUGAR Junia Mortimer Fotógrafa, doutoranda em arquitetura pela UFMG, mestre em artes e humanidades, pela Université de Perpignan e pela Universidade Nova de Lisboa, e graduada em arquitetura pela UFMG. Atualmente é professora no curso de arquitetura da PUC-Minas, e participa de projetos autorais voltados para a imagem e a cidade. www.juniamortimer.com Belo Horizonte, MG.
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Nesta série, proponho sequências de dois fotogramas, dentro de um filme 35mm, que representam diferentes visadas de um mesmo espaço. Essas duas visadas, cujas formas tendem à simetria, constroem uma terceira imagem quando vistas uma ao lado da outra. Construir essa terceira imagem implica superar a fronteira entre os dois espaços-tempos distintos dos fotogramas para construção de um lugar e de um tempo contínuos próprios da representação. Acredito que a presença da fronteira entre os dois tempos dos fotogramas torna visível o espelhamento entre as duas imagens. Simultaneamente, é preciso superar essa divisão para imaginar um espaço mesmo e contínuo, próprio da representação. A fronteira é ao mesmo tempo o limite entre mundos e a possibilidade de superação dessa separação para construir um terceiro lugar, que existe nesta série na medida em que os dois fotogramas constroem juntos um terceiro espaço. Esse terceiro espaço está na junção entre o espaço da película 35mm (a tarja de filme), os espaços-tempos dos fotogramas, o espaço do referente, o espaço criado do espelhamento das representações, o espaço do fotógrafo, o espaço do livro, o espaço do leitor.
Ainda que seja uma tira contínua de filme, a sequência de fotogramas indica dois momentos distintos, dois cortes dentro da continuidade do tempo, separados por uma faixa preta de película não exposta. Essa faixa de separação, fronteira entre uma imagem e outra, entre um espaço e outro dos fotogramas, é também a fronteira entre um momento e outro da experiência do fotógrafo com o referente, sugerindo o movimento do corpo do artista no espaço do referente. Assim, essa faixa é a fronteira entre dois lugares dentro do espaço da representação (direita e esquerda), entre duas áreas de exposição (fotograma 1 e fotograma 2), entre duas imagens (lado a e lado b do edifício), entre dois tempos (clique 1 e clique 2), entre dois espaços (do referente e da representação), entre dois sujeitos (fotógrafo e leitor). Mas é a superação dessa fronteira que constrói a ideia da experiência do espaço do referente. Proponho apresentar essas imagens, pares de fotogramas, em um suporte tipo livro, revista, impresso. No espaço da página dupla do livro, a faixa de separação entre um fotograma e outro deve coincidir com o encontro das páginas na costura do corpo do livro. Assim, a fronteira do espaço fotográfico, a faixa preta de película não sensibilizada entre um clichê e outro, coincide com a fronteira do espaço de experiência criado pelo formato do livro. A estrutura de apresentação das imagens no livro repete a estrutura de representação das imagens: as duas páginas, apesar de formarem um espaço de leitura contínuo, estão separadas por uma fronteira que divide também os tempos e os espaços de uma experiência de leitura.
Se de um lado reitera-se a presença da fronteira, tanto no espaço da tira fotográfica, entre os dois fotogramas, como no espaço do livro, entre as duas páginas, de outro a experiência fotográfica exige do leitor unir as duas imagens para construir um lugar contínuo de experiência visual. Assim, a experiência visual resulta menos da ordem da separação e mais da ordem da relação entre dois para construção de um terceiro lugar, um terceiro sentido a partir do encontro dos dois fragmentos, espelhados ou não. A fronteira, ao dividir o espaço da tira fotográfica, ao limitar os distintos espaços do livro, ao fragmentar a passagem do tempo, chama atenção para o seguimento, para a continuidade da experiência do vivo – ou da chair, da flesh, como sugere Maurice Merleau-Ponty. (MERLEAU-PONTY 1968, p. 153). n
Referência Bibliográfica MERLEAU-PONTY, Maurice. The visible and the invisible. Northwestern University Press: Evanston, 1968. p. 153.
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PONTO A PONTO DA LAGOINHA Ariela Oliveira Estudante de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG
Quando se fala de fronteiras, pensamos em grandes divisões de terras, em grandes diferenças ideológicas. Não pensamos em pequenos acontecimentos e eventos que estão no nosso cotidiano e, muitas vezes, nos separam mais do que as tais fronteiras “oficiais” que dividem grandes espaços. Este projeto fala de uma fronteira, mas uma fronteira um tanto contraditória porque foi feita para ligar espaços e, sem querer, acabou dividindo outros. Não se dará aqui, contudo, uma discussão exaustiva sobre essa fronteira, sobre como surgiu ou como age hoje. Este projeto propõe romper com sua característica de fronteira e criar novas ligações entre espaços separados por ela. Assim, ela não deixará de existir, ou melhor, deixará sim de existir como a conhecemos e terá um novo significado. Não pense que precisamos de grandes movimentos para ultrapassar fronteiras, pequenos pontos podem criar uma cadeia, talvez pequena fisicamente, mas enorme ideologicamente e é justamente através desses pequenos grandes pontos que surge a proposta de ultrapassar uma nova fronteira: uma costura invertida, que evidencia a ligação de pontos, mas finaliza com a união de espaços.
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Contexto Histórico A Lagoinha era um bairro de Belo Horizonte com características particulares muito interessantes. Tais características contam com sua famosa vida boêmia, a rua como lugar de encontro, e a grande quantidade de antiquários presentes em sua paisagem, que se estendiam para os espaços públicos com feiras e mostras. Sua localização, próxima ao terminal rodoviário, lhe trouxe uma enorme importância cultural como ponto de hospedagem para os viajantes que chegavam a Belo Horizonte. Com a implantação da Avenida Presidente Antônio Carlos, que atualmente divide o bairro ao meio, muitas dessas características foram perdidas e a imagem do bairro foi desgastada. A rua deixou de ser um lugar de encontro, os moradores se fecham em suas casas na procura de segurança e as feiras nunca mais foram vistas. O bairro hoje pode até ter um aspecto de abandono, mas,
ao se entrar em um antiquário ou abordar um morador, em poucas palavras é possível perceber que ainda existe uma forte memória do que era a Lagoinha em cada um, apesar de todo um novo contexto que existe na região. Proposta Tendo esse contexto em mente, proponho uma intervenção urbana que trabalhe esse novo contexto, usando dessa memória ainda presente no coração da Lagoinha. Não se trata, no entanto, de uma intervenção impactante, mas sim de pequenas intervenções que estimulem a população a tomar a rua de volta para seu cotidiano e a usar como espaço de lazer. Assim, a Lagoinha voltará a ter elementos característicos, evidenciando sua singularidade no contexto de Belo Horizonte; sem contar o benefício aos moradores, que poderão contar com um ambiente receptivo.
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Na Prática A proposta, na prática, consiste numa reforma na mobilidade local, apresentando o bonde elétrico como alternativa de transporte local. Ele foi escolhido por ser um transporte elétrico, com fortes características históricas e geralmente usado como positivo elemento turístico. Trata-se da implantação de um trajeto que contaria com dois bondes: um deles saindo em frente ao beco na Rua Itapecerica, entre os números 434 e 440, virando à esquerda na Rua Machado de Assis, novamente à esquerda na Rua Evaristo Veiga e, pela última vez, virando à esquerda na Rua Sete Lagoas e prosseguindo até a Praça 15 de Junho; e outro saindo da esquina da Avenida Dom Pedro II com a Rua Sete Lagoas e indo até a Praça 15 de Junho. Chegando em seu ponto final, retornarão pelo mesmo trajeto até seus respectivos pontos iniciais. Assim, os bondes se complementam e percorrem espaços curtos, o que permite fácil acesso aos usuários e passagens constantes em diferentes pontos. Além de ligar duas avenidas importantes de Belo Horizonte: a Avenida Dom Pedro II e a Avenida Antônio Carlos (cujo beco inicial dá acesso à linha). No decorrer dos trajetos, proponho quatro elementos que serão chamados sob este plano de ‘estações’. No entanto, não devem ser vistos como tal, pois, afinal, o bonde permite várias paradas em seu percurso, assim como a possibilidade de “pegá-lo” em movimento. Essas estações, por sua vez, agirão como pequenas centralidades, que estimulam o contato entre os moradores e seu uso das mais diferentes formas. 60
1. Em um beco na Rua Itapecerica, entre os números 434 e 440; 2. Na esquina da Rua Itapecerica com a Rua Machado de Assis; 3. Na praça 15 de Junho; 4. Na esquina da Rua Sete Lagoas com a Avenida Dom Pedro II. 61
Detalhes
Perspectivas Futuras
Ainda seguindo o princípio de caracterizar o bairro com a memória que se tem do espaço, proponho alterações no fluxo das vias, por exemplo, a Rua Itapecerica, que deverá ser fechada para veículos. No caso, a Rua Além Paraíba agirá como rota alternativa. O fechamento da Rua Itapecerica prevê estimular os antiquários presentes na região a voltarem a realizar feiras na rua. Da mesma forma, a Rua Machado de Assis, Rua Evaristo Veiga e a Rua Sete Lagoas deverão ser modificadas, tanto com trechos fechados para veículos como com trechos transformados em mão única.
Esta proposta liga espaços pontuais da Lagoinha com a intenção de estimular a vivência dos espaços com base na memória, desconstruindo a fronteira causada pela implantação da Avenida Antonio Carlos. Apesar de este projeto não atravessar a Avenida Presidente Antonio Carlos, ele estimula que esta seja atravessada pela população que fará uso dessas intervenções. No entanto, deixa-se abertura e estimulo para eventual ampliação da linha de bonde, permitindo que, através do beco onde será implantada a Estação 1, o bonde cruze a Avenida Presidente Antônio Carlos e ligue as duas regiões da Lagoinha. n
A sugestão é que o bonde siga a tipologia tradicional, com cores e formatos que remetam aos tempos passados. Tais características reforçarão o bonde como um elemento turístico, além de estimular a memória de tempos passados dos usuários, sendo este um dos principais objetivos desse projeto. Um outro detalhe sugerido é que o bonde tenha um sistema que possibilite prender bicicletas nele, assim auxiliando ciclistas que estejam passando pela região acidentada da Lagoinha. A implantação dessa intervenção acontecerá em diferentes momentos, para não ser brusca no cotidiano dos moradores e e para que cause pouca dificuldade de locomoção aos moradores durante seu processo.
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LIMITAÇÕES OCULTAS URBANAS André Oliveira Prata Silveira Marina Bahia Amaral Estudantes de Arquitetura e Urbanismo no Instituto de Educação Izabela Hendrix. Belo Horizonte, MG.
Agressivas ou ocultas, as fronteiras refletem a autoridade e a dominação de um povo, ou determinam a existência de diferentes organizações sociais, econômicas e culturais. Categoricamente as fronteiras protegem a soberania e delimitam as esferas de competência, podendo ser consideradas mostras de libertação quando rompidas. As fronteiras se tornaram símbolos de limites, e as suas rupturas tornaram o propósito do processo de globalização, que almeja o livre trânsito de mercadoria e informações. O enfoque desta presente obra é a discussão da existência de uma fronteira imperceptível sensorialmente, mas tão real quanto as demais materialmente existentes. As metrópoles modernas já nascem demarcadas por elas - as fronteiras invisíveis - aquelas que não são concretas, mas possuem as mesmas funções: serem seletivas e discricionárias. O surgimento de identidades e culturas diversificadas ocorre concomitantemente à criação das fronteiras invisíveis, sendo este um processo cíclico. A partir do momento em que há uma delimitação do espaço por uma fronteira inicia-se a formação de um território, uma organização espaço-social distinta em áreas paralelas. Esses territórios, então peculiares, se transformam e se redefinem constantemente, pois a sociedade está sempre em movimento.
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Assim surgem identidades comuns aos indivíduos na mesma região que são diferentes das identidades das demais populações em áreas nas imediações. Ao longo da história, é possível identificar vários tipos de fronteiras invisíveis, pois onde existe aglomeramento humano existirão divisões em todos os setores sociais. As diferenças se fazem marcantes desde a fundação dos núcleos populacionais. O fator econômico é determinante nas ocupações das terras, quando os mais abastados se alojam em localizações favorecidas pelo relevo, abastecimento de água e facilidade de acesso a bens e serviços . Aqueles que não têm condições de acessar o mercado imobiliário se acomodam em regiões periféricas. Porém, com o crescimento urbano acelerado, as periferias são absorvidas pela exploração imobiliária, surgindo algumas ilhas de pobreza, antigas áreas periféricas. É comum encontrar comunidades carentes envoltas por áreas de grande valor econômico e ocupadas por edificações luxuosas. É nesse contexto de exclusão social que o Aglomerado Morro do Papagaio surgiu, iniciado por uma segregação espacial que se acentuou ao longo dos anos, e hoje gera outros tipos de apartação. As fronteiras reais, lógicas e bem aceitas socialmente, por estarem afastadas dos centros, deixaram de existir com o crescimento da cidade e se tornaram muralhas invisíveis. Somam-se ao muro invisível, por exemplo, o preconceito devido às diferenças culturais, o difícil acesso à comunidade e o surgimento de um novo poder paralelo por ausência do poder público. Em Belo Horizonte, como exemplo dessa situação, o Aglomerado Morro do Papagaio situa-se na Zona Sul, bem próximo aos
metros quadrados mais caros da cidade, margeando uma das mais importantes vias de conexão entre o centro e bairros nobres como Belvedere, Mangabeiras e Savassi. Inicialmente, ainda no século XIX, o planejamento da cidade propunha que a área fosse mantida como área verde, pois tratava-se de um terreno íngreme, de difícil acesso. Tal área fazia parte da “Fazenda Cercadinho”, pertencente à Serra do Curral, que foi desapropriada com a finalidade de proporcionar um cinturão verde para a recém criada capital mineira. No início do século XX surgiram os primeiros barracos na região, pois se situavam mais próximos às vias de acesso e centro da cidade. Em 1940, foram documentadas as primeiras tentativas, por parte do governo, de desocupação da área. Porém, a proximidade com a área central intensificou a vinda de moradores nas décadas de 1960 e 1970, sem qualquer tipo de planejamento urbano ou autorização de órgãos governamentais. O Morro do Papagaio é atualmente um aglomerado do qual fazem parte as comunidades de Vila Barragem Santa Lúcia, Vila Santa Rita de Cássia, Vila São Bento e Vila Estrela. A atual visão governamental busca uma conciliação do morro e das regiões vizinhas, e o melhoramento da urbanização, pacificação e humanização do Aglomerado Morro do Papagaio. O fenômeno da globalização vem alongando e sobrepondo fronteiras. Esta tendência repete-se em âmbito local atuando na comunidade do Morro do Papagaio e sua vizinhança nobre. Existe uma enraizada dependência das regiões vizinhas abastecidas pela mão de obra do aglomerado. Contudo, a fronteira invisível continua presente. Além da especulação imobiliária que aos
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poucos absorve a comunidade do Morro do Papagaio, outro aspecto é o fascínio, por vezes internacional, que as favelas adquiriram nos últimos anos, valorizando “o morro como morro”, com todas as suas peculiaridades. Tais fatores enfraquecem a ideia de divisão e fazem com que a comunidade/governo busquem meios que possibilitem essa fusão do aglomerado com a estrutura urbana global, buscando melhorias em saneamento básico, contenção de encostas e melhorias das condições em que a comunidade se encontra. n
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FRONTEIRAS Eduardo Rennó 1. “Fronteiras da memória” (1998) 2. “Fronteiras do passado histórico” (1999) 3. “Cercas” (1996) Belo Horizonte, MG
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A FRONTEIRA DO SER Arlan Souza Estudante de economia na Universidade Mackenzie e blogueiro nas horas vagas. http://camaleaosentimentalista.blogspot.com.br/ São Paulo, SP.
O rapaz caminhava sobre o muro, o divisor do ocidente e oriente. Pensava sobre qual dos lados seria melhor para morrer? Teria ainda forças para decidir sobre qual lado tombar após a bala atingir seu peito? Faria realmente alguma diferença morrer a esquerda ou à direita? - Engraçado, pensou ele. Até mesmo na antevéspera da hora da morte o ser humano podia ser confrontado. Antes do descanso eterno uma escolha corriqueira para findar seus dias na terra. Para dissipar o tormento dos últimos instantes ele decidiu caminhar até outrora e reviver as escolhas que o levaram até ali. A primeira vez em que defendeu sua retórica e foi a fundo com suas convicções acabou sendo expulso de casa, mas isso pouco importava, afinal de contas, sairia de casa de qualquer modo, pois tinha se alistado para ir à guerra, lutaria como colaborador das forças anti governo e assim o fez aos vinte e dois anos. Alguns anos antes, quando entrou na faculdade, lembra-se da noite em que teve o quarto queimado após defender o direito dos afrodescendentes, bixas e mulheres em seu primeiro artigo para a aula de literatura moderna. Mesmo agora, depois de formado, não conseguia entender como uma simples defesa do outro podia gerar tanto ódio. O que queriam afinal, que não houvessem contrapontos? Que não existisse uma segunda, terceira ou quarta opinião? Mas hoje nada disso importa, ele vai morrer em alguns instantes. 71
Vai morrer porque defendeu suas convicções, vai morrer porque tomou partido. - Droga! - pensou em voz alta. Maldita ideologia existencialista, maldita preferência, maldito gosto. - Olá Rupert, você é Judeu? Você é cristão? Muçulmano? Homossexual? Negro? Poliglota? Afegão? Porra de divisão socioeconômica e cultural. Drama, romance, comédia, sá porra toda é uma sucessão de escolhas forçadas. Nos estereotipamos o tempo todo. Nos dividimos, nos separamos. Desde a primeira infância aprendemos a separar, a dividir: rosa para as meninas, azul para os meninos, branco é paz, preto é guerra, vermelho é sangue. Meninos não podem dar beijo no rosto uns dos outros, e meninas devem brincar de boneca, e não jogar futebol. O rapaz voltou ao muro quando ouviu tiros ao longe. Estavam perto, seus carrascos estavam chegando, mas ele não iria correr, fugir ou se esconder. Já estava decidido, ficaria ali mesmo onde estava e esperaria por eles, não ia fugir porque concluiu que no mundo todo nenhum lugar lhe despertava mais a atenção, não importava onde fosse, porque tudo e todos não passavam de réplicas menos ou mais piores. Todo lugar na terra onde possa existir gente humana é uma bomba preste a explodir, e sendo assim que ele se deixasse explodir ali mesmo, sem maiores sacrifícios. Era só esperar mais um pouquinho. - Com leite ou puro, senhor? Senhor?! Era um domingo de manhã, um domingo gelado e o homem estava divagando lá pelas terras geladas do ártico. - Perdão senhorita. Eu quero puro, sem açúcar e sem leite, por favor.
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- Claro, é para já. - Obrigado. Escolhas, escolhas, escolhas. Eu não escolho nada. Mas até isso é uma escolha. Ficar a margem, ao centro, isso também é escolher. O rapaz se lembrou do Marcus, um professor socialista que tivera no ginásio. O cara tava sempre falando das escolhas que tomamos ao longo da vida. A lista é enorme: comunista, capitalista, esquerda, direita, centro esquerda, alternativo, passivo, ativo, pró-governo, cabelo longo ou curto, careca talvez. Mas o que o levou realmente a pensar no Marcus foi porque o seu professor era uma cara loucão, um anarquista, um sem partido algum na vida e vivia dizendo pros alunos que ser alguém nesse mundo é o primeiro passo para não ser ninguém. Isso porque segundo ele tudo que achamos que podemos ser é na verdade uma concepção anterior a nossa ideia de ser, portanto não escolhemos porra nenhuma, apenas optamos por um alguém já pronto, e sendo assim, o Marcus se autodenominava senhor ninguém. - Eu sou nada, dizia ele. Mas e eu, pensou o rapaz, - o que sou? - Quem sou? O que ele é o levou a não ser mais nada. Estava prestes a morrer exatamente porque decidiu ser alguém, decidiu ter opinião formada, e o pior, ele decidiu expressar e disseminar suas opiniões e concepções a respeito do mundo. O garoto em cima do muro na fronteira entre oriente e ocidente é só um garoto, comum. Ele tem vinte e três anos e se formou em
literatura na universidade de Israel. Seu nome é Nadim, ele morava do outro lado da fronteira, fora do estado de Israel. Nadim sempre defendeu as minorias, sempre foi amigo dos desertores, dos negros, das bixas. Ele sempre apoiou a contra cultura e sempre foi anti governo. Nadim talvez tenha nascido no pais errado, na época errada, ou não. O fato é que Nadim jurou nunca negar quem é, o que é e no que acredita. E é por isso que Nadim está sobre o muro, é por isso que ele está na fronteira do ocidente e oriente, porque ambos o rejeitam, um lado fecha os olhos e finge que não o vê, o outro lado o vê tão bem que se sente incomodado e o quer expulsar, e assim Nadim ficou sem terra, sem lar, sem norte. Na fronteira do mundo ele decidiu se deixar cair, ou melhor, ele decidiu não mais correr, talvez ali fosse como na área de embarque e desembarque internacional de um aeroporto, talvez ali fosse a terra de todos e de ninguém. Nadim decidiu ser alguém e elevar o seu ser até a sua morte.
para matar Nadim não eram mais os donos de si mesmos. Eram desde muito tempo escravos do pensamento de outros homens, homens esses que talvez também não fossem donos de deles mesmos. Nadim se declarava um homem livre, a única coisa que lhe estava sendo roubada era a possibilidade de ser ele mesmo por mais tempo. - Mas isso seria recompensado - pensou Nadim, com o fato de morrer sendo ele mesmo, morrer sendo quem ele decidiu ser. - Eu escolho flutuar sobre todos vocês, seus otários, gritou o rapaz ao mesmo tempo em que se lançou no ar. Seu corpo foi atingido ainda suspenso por sessenta disparos de espingarda que o fizeram se contorcer de mil e uma formas. Ao fim caiu bem no centro do muro, e assim morreu metade árabe metade judeu, embora não fosse nenhum dos dois e nem mesmo outra coisa além de ser ele mesmo. n
Ali em cima do muro aquele rapaz, aquele homem, aquele ser humano estava prestes a cruzar a fronteira do ser. Uma vez não renegando ser quem é, uma vez morrendo afirmando e defendendo ser quem ele é, o garoto imortalizaria suas convicções. Na fronteira entre ser ou não ser, Nadim escolher SER, decidiu caminhar mesmo que sozinho, na infinita companhia de sua própria crença. Apesar do destino maldito que o aguardava dentre em breve, Nadim se sentia um homem de sorte, pois tinha ali a liberdade e a sabedoria em poder ver no mundo milhares de alternativas de vida e de pontos de vista. Não culpava os seus carrascos, não os queria mal, pois sabia que, diferente dele, aqueles pobres homens estavam corrompidos, a liberdade de ser os havia sido roubada, sequestrada e destruída. Como boa parte das pessoas deste mundo, aqueles homens que marchavam
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PARAHYBA 05: Vestígios Afetivos
Convocatória
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para mais informações editorialpet@gmail.com facebook.com/revistaparahyba
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