cultura & lazer
entrevista
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Tarde cultural no Cemitério da Consolação
com Supla
aprovado!
personagens do centro
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bom exemplo
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Conheça a “Rainha da maloca”
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Sinal Wi-fi gratuito!
mau exemplo
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Assaltos na Praça da República
de tudo em pouco
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Atrativos do Mercadão
meu “point” no centro
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Empresário é fã do restaurante Vovó Helena
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Livro 1889 revela os bastidores do processo republicano
Os desafios das famílias que ocupam prédios abandonados
bem-estar
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Diabetes tipo 2 em jovens e crianças
coisa nossa
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Descaso com o Largo da Memória
crônica
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Menina do centro
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Para pintar, Cruzadinha e Ligue os pontos
editorial
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eja bem-vindo a mais uma edição do Estação Centro, o jornal dos trabalhadores e moradores do centro de São Paulo, e de todos aqueles que admiram e lutam pela valorização deste que é, sem dúvida, um dos bairros mais tradicionais e importantes da cidade. Dando continuidade ao nosso objetivo de realizar um jornalismo em defesa da região central e de suas comunidades, em consonância com o Plano de Desenvolvimento Institucional da FAPSP (Faculdade de Comunicação), trazemos uma reportagem especial (páginas 16-23) sobre as ocupações do centro. Hoje, há 30 edifícios ocupados no bairro por famílias que lutam pelo seu direito constitucional de moradia. São pessoas que por não terem como pagar aluguel, seja por falta de emprego ou por ganharem muito pouco, encontraram nos prédios vazios do centro
uma chance de poderem criar seus filhos sob um teto, longe da vida nas ruas. Mas o dia a dia nas ocupações está distante de ser uma maravilha. Ao ler essa matéria, o leitor perceberá os desafios e dificuldades diárias de se morar em um edifício abandonado. Além do risco permanente de serem retiradas à força do prédio, essas famílias não contam com espaço para lazer e enfrentam uma infraestrutura bastante precária. Nesta reportagem você conhecerá quem são essas pessoas e encontrará a opinião de conceituados especialistas no assunto, além do posicionamento da Prefeitura de São Paulo, na pessoa de José Floriano, que é Secretário de Habitação do Município. Outro destaque desta edição é uma entrevista que fizemos com o cantor Supla, que é morador do histórico edifício São Tomás, na República. Conhecido por atitudes polêmicas e canções de rebeldia, Supla revelou ao Estação Centro seu lado
crítico e social. Fã do centro de São Paulo, a única coisa que ele lamenta no bairro é a situação de abandono dos moradores de rua. Dentre seus locais prediletos no centro estão o Copan e a rua Augusta. Confira na entrevista nas páginas 4-8. Essa edição ainda aborda o projeto da Prefeitura que prevê sinal wi-fi gratuito no centro, o descaso com o Largo da Memória (monumento mais antigo da cidade de São Paulo e que hoje está completamente abandonado), um passeio guiado pelo Cemitério da Consolação, dentre outros assuntos interessantes. Permanecemos aguardando, ansiosos, a sua opinião, sugestão e/ou crítica. Envie-nos sua mensagem para o e-mail estacaocentro@ fapsp.com.br Participe deste projeto! Ajude-nos a lutar por um centro ainda mais belo!
expediente Estação Centro é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da FAPSP (Faculdade de Comunicação): www.fapsp.com.br Diretor geral: Profº Eber Cocareli Diretor acadêmico: Profº Miguel Valione Jr. Coordenadora do curso de Jornalismo: Profª Patrícia Paixão Editora-chefe: Profª Patrícia Paixão (MTb/SP 30.961) Editor de arte: Profº Miguel Valione Jr. Diagramação: Profª Patrícia Paixão, Ingrid Bossert (aluna do curso de Publicidade e Propaganda) e Washington Corrêa Projeto Gráfico: Washington Corrêa Repórteres (alunos de Jornalismo do 6º semestre): Ademir Plasa, Adriano Santos, Alcindo Silva, Alisson Magno, Ana Lucia Tibaldi, Carlos Araújo, Christiana Silva, Daiany Araujo, Daniela Gualassi, Izael Coelho, Quezia Barbosa, Edijane Araujo, Eduardo Furtado, Eduardo Rodrigues, Ester Vitkauskas, Fabiano Almeida, Flavio Nascimento, Givanildo Tavares, Jennifer Souza, Jessica Santos, Lilian Rebeca, Marcio Gonçalvez, Marli Mendes, Milene Morgado, Nelson Beraldo, Paulo Cesar Souza, Priscila Mazariolli, Rosana Skyrda, Ricardo Melo, Sidney Souza, Tátyla Almeida e Thayza Santos. Imagens: Ademir Plasa, Adriano Santos, Alcindo Silva, Daiany Araujo, Eduardo Furtado, Fabiano Almeida e Sidney Souza.
O OUTRO LADO DE SUPLA “O que mais me dói é ver a população de rua desassistida”
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com Supla
Eduardo Rodrigues Sidney Souza
orador do centro de São Paulo há mais de cinco anos, no histórico edifício São Tomás, na República, Eduardo Smith de Vasconcelos Suplicy, 47 anos, o Supla, costuma ser lembrado por seu jeito despojado e atitudes polêmicas. Mas em entrevista exclusiva à equipe do Estação Centro, o cantor revelou um lado pouco conhecido do grande público: o perfil humano, crítico e social. “Sempre gostei do centro de São Paulo e da agitação daqui. A única coisa que não gosto é de ver as pessoas abandonadas no chão. A gente não sabe se está morto ou vivo”. Paulistano, filho da ministra da Cultura, Marta Suplicy, e do senador Eduardo Suplicy, o rockeiro diz que as pessoas têm uma percepção errada de sua família. “Todo mundo acha que a gente é milionário, ou sei lá o quê. Isso é uma coisa que me irrita profundamente. É uma cruz que eu carrego sem ter culpa”. Irmão de João Suplicy, com quem é parceiro na banda Brothers of Brazil, que faz shows pelo país e no exterior, Supla iniciou a carreira cantando e tocando o rock norte-americano e britânico. Suas composições estão ligadas ao punk e hardcore. Nos anos 80 tocou em conjuntos como Metrópolis e Tokyo. Já participou de grandes festivais, como o Rock in Rio e Hollywood Rock. Participou de programas de televisão, novelas e até filmes. Em 2001, ganhou destaque aor virar o rei do programa Piores clipes do mundo, transmitido pela MTV Brasil, graças ao clipe Green Hair, de sua autoria, tido como uma “obra-prima trash”. Considerado um dos grandes nomes na Casa dos Artistas, reality show apresentado pelo SBT, também em 2001, vendeu mais de 700 mil cópias do álbum Charada Brasileiro. Recentemente, participou de outro reality show, o Papito In Love, na MTV. Passou dois meses (de outubro a dezembro) com 14 garotas em uma mesma casa para escolher uma delas como namorada. A felizarda foi Giovanna Lourenzetti, que escolheu ficar com Supla em vez de trocá-lo por R$ 100 mil, oferta feita pelo reality. Nesta entrevista, realizada no bar do tradicional restaurante Almanara, à Rua Basílio da Gama (um dos lugares prediletos do artista), Supla fala sobre sua vida e o seu envolvimento com o centro de São Paulo. Confira!
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entrevista com Supla
Conversando com a reportagem no bar do restaurante Almanara, Supla destaca: “A única coisa que eu não gosto do centro são as pessoas que estão abandonadas no chão e a gente não sabe se estão mortas ou vivas”
Estação Centro: Você é de uma família tradicional e poderia morar em um bairro refinado. Por que escolheu viver no centro?
Supla: Todo mundo tem essa percepção da minha família. Acham que a gente é milionário e que tudo pra gente veio fácil, ou sei lá o quê. Isso é uma coisa que me irrita profundamente. É uma cruz que eu carrego sem ter culpa. Eu corro atrás do meu dinheiro como qualquer pessoa, trabalhando. Claro que não dá para dizer que não tenho boas condições de vida. Estudei em boas escolas, que meus pais puderam pagar, mas não poderia ter uma casa no Jardim Paulistano, entendeu? Eu fiquei sete anos nos Estados Unidos e, quando voltei, estava com uma boa grana, mas pelo trabalho que eu fiz lá, não pelo dinheiro da minha família. Quando eu saí da Casa dos Artistas, fiz muitos shows. Cada show era R$ 70, 80 mil... Então eu soube ganhar em cima disso. Aí guardei meu dinheiro, fiz trabalhos publicitários, um monte de coisa pra ter o meu pé de meia, não fui burro. Quando fui procurar uma casa, meus pais já tinham se separado, então fiquei morando na casa que era deles por dois anos, no Jardim Europa, porque eu não tinha onde morar. Essa casa era do pai do meu pai, que foi um homem muito rico. Quando ele morreu, deu casa pra todo mundo nos Jardins, pra você ter uma ideia. Isso foi dividido entre os 11 irmãos. Estação Centro: Como foi o processo de escolher uma casa aqui na República?
Supla na portaria do edifício São Tomás, na República, onde ele
Supla: Meus pais conseguiram vender a casa em que eu estava morando e falaram: “Agora você tem que sair, porque a casa vendeu”. Era uma casa muito louca! Então eu comecei a procurar outro lugar. Eu sempre gostei do centro e meu tio-avô já morava aqui. Uma vez vim visitar o apartamento dele e fiquei encantado. Pensei: ‘Que apartamento da hora!’. Aí comecei a procurar em vários lugares, mas não gostei de nada. Nessa procura entrei no apartamento que moro hoje aqui no Edifício São Tomás. Quando eu entrei nele, pensei: “Nossa, que cheiro bom!”. O cheiro do lugar era muito bom, não sei se era o tapete ou sei lá o quê. O preço estava muito bom também. Não vou falar quanto foi, até porque reformei ele inteiro, fiz do meu estilo. Foi um dinheiro que eu guardei pra comprar a minha casa.
gosto do convívio, gosto de gente. E aqui no centro é um lugar cheio de gente diferente. Eu ando aqui e o cara me para e diz: “Seu pai falou legal lá no Senado, gostei!”, ou então, “Você foi mal no programa”. As pessoas falam comigo naturalmente aqui, isso é legal.
Estação Centro: Você procurou pela Internet ou por meio da indicação de amigos?
Supla: O que eu mais gosto é a agitação. Praticamente todos os protestos, começam e terminam na República, de certa forma. A única coisa que eu não gosto do centro são as pessoas que estão abandonadas no chão e a gente não sabe se estão mortas ou vivas. É uma situação muito delicada. Às vezes passo às 4, 5 da manhã e converso com a galera que limpa o centro e eles me dizem: “Supla, muitos que estão aí no chão são bandidos mesmo e estão largados, só que tem muita gente boa que realmente se entregou”. Eu acho mais difícil se entregar para uma vida assim do que arranjar um trabalho normal. É foda, você não saber onde vai fazer suas necessidades básicas, onde
Supla: Foi mais pela indicação das pessoas. Fui até ver uma casa no bairro Cidade Jardim, só que atrás da casa passava a Marginal Pinheiros. Então toda hora você ouvia o barulho dos caminhões, aquelas jamantas fazendo “pa, pa, pa”. A casa era demais! Tinha piscina, dava pra fazer meu estúdio, tinha tudo. Levei tudo em consideração na hora de escolher. Não só a casa, mas o lugar em si, a garagem, as pessoas. O que eu mais gostei enquanto morei sete anos em Nova York foram as pessoas. Eu
Eu gosto do convívio, gosto de gente. E aqui no centro é um lugar cheio de gente diferente.” Estação Centro: O que mais te chama a atenção na República?
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reside: “Sempre gostei do centro. Meu tio-avô já morava aqui
vai comer. Estação Centro: A realidade de São Paulo muitas vezes é distinta da situação de outras grandes cidades, como Nova York, onde você morou por sete anos. O que precisa ser melhorado aqui? Supla: Vou começar falando pelo transporte público. Logo que começou a ter metrô pelo mundo, o Brasil teve a oportunidade de aderir, mas o governo - creio que era o Jânio Quadros na época - não quis fazer! A gente não tem nada de metrô nessa cidade, é ridículo. Se o cara quer assistir a um jogo no Morumbi, precisa pegar um ônibus e vai todo espremido. Temos muitos problemas, cara! O transporte público é só um deles. Tem também a falta de moradia. Tem vários lugares abandonados aqui no centro e tem gente que ocupa esses locais por uma boa razão. As pessoas querem morar aqui. Eu tentaria arrumar, limpar os lugares que estão abandonados. Se ninguém está morando no local, por que não dar uma força a essas pessoas? Dizer: “Olha, você quer morar aqui? Tudo bem. Vamos registrá-lo, você vai trabalhar nisso ou naquilo”. Se eu fosse um político, com certeza isso estaria no meu projeto, era uma coisa que eu iria batalhar. Não sou a favor da violência e muita gente sofre com essa violência social. Meu pai sempre diz que podemos conseguir mais seguindo o método pacífico de Mahatma Gandhi [líder do movimento da independência indiana no século XIX], ou
Sidney Souza
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Construído durante a Segunda Guerra Mundial, o edifício São Tomás faz parte do patrimônio histórico de São Paulo. Possui acabamento refinado, com mármore italiano e fechaduras tchecas
Martin Luther King [pastor norte-americano que lutou contra a desigualdade racial através de discursos e protestos]. Eu realmente acredito nisso.
Ver o Copan ali debaixo é lindo, aquele visual é uma coisa São Paulo metrópole. Já tirei até foto. Simplesmente gosto muito de passar por ali, me dá um lance muito louco!”
Estação Centro: O fato de seus pais serem políticos influenciou sua opinião nesse sentido? Supla: Não, não. São ideias minhas mesmo, e da minha ex-namorada, que mora aqui no centro também. Quando minha mãe foi prefeita eu estava em outra batida, fazendo o meu pé de meia. Quando você é filho, não quer ficar muito envolvido. Se fosse hoje, talvez eu me envolvesse mais e tentasse ajudar. Estação Centro: Já pensou em se tornar político? Supla: Lógico, por que não? Mas é complicado, eu tenho essa noção. Política eu
posso fazer do jeito que estou fazendo aqui, inspirando as pessoas a fazer alguma coisa na vida. Ir atrás de um objetivo, acreditar em alguma coisa. Quem não acredita em nada, vai ser um nada também. Certamente muita gente criaria obstáculos para mim, mas já pensei nisso sim, para poder fazer mais pelo centro. É uma judiação, ele é tão bonito. Quando a gente caminha e vê a arquitetura dos prédios e se depara com as pessoas no chão... Estação Centro: Você costuma comer em quais restaurantes no Centro? Supla: Vou muito ao Da Giovanni [cantina italiana localizada à Rua Basílio da Gama], que está aqui desde os anos 40. É baratinho, muito antigo e tem um abacate muito bom na sobremesa. [risos] Como bastante no Almanara [também localizado à rua Basílio da Gama]. Vou em alguns lugares que vendem comida japonesa, frequento o Bar da Onça, o Terraço Itália. Mc Donald’s eu estou abdicando. Comida ruim, ração para cachorro, tá ligado? [risos]. Estação Centro: Qual é o seu lugar predileto no centro? Supla: O edifício Copan. Ver o Copan ali debaixo é lindo, aquele visual é uma coisa São Paulo metrópole. Já tirei até foto. Simplesmente gosto muito de passar por ali, me dá um lance muito louco! Adoro descer pela Rua Augusta também. Acho muito legal.
8 “... Do Centro de São Paulo à periferia, dar um rolê com os amigos era tudo que eu queria, pra violência peço clemência e, para o trânsito, paciência...” Sidney Souza
Trecho da música “São Paulo”
Supla: Ah, quando você entra na Rua 7 de Abril e vira à esquerda, na Barão de Itapetininga, essa parte me lembra muito a Fourteen Street, em Nova York. O tipo de gente que tinha andando por ali, as lojas. Mas eu acho São Paulo muito peculiar. São Paulo é muito São Paulo. Estação Centro: Qual é a sua opinião sobre a visão preconceituosa que algumas pessoas têm do centro de São Paulo? Supla: Eu não julgo. São pessoas que moram e vivem em outra realidade. Eu curto aqui, gosto dessa loucura, dessa mistura. Estação Centro: Você já trabalhou como ator, apresentador, tem alguns trabalhos na publicidade, é cantor. Como se define? Supla: Sou músico. Comecei com isso e é o que eu sou até hoje.
Paulo, a Barão de Limeira, faz uns dois anos. A gente toca direto no Brasil e fora daqui também. Eu tenho 47 anos e toco desde os 13, desde a época em que o John Lennon [cantor, guitarrista e compositor dos Beatles] morreu. O dia em que ele morreu, por sinal, foi o mais triste da minha vida. Hoje a carreira do Supla está aposentada. Isso já faz uns seis, sete anos. Agora o Brothers está ganhando reconhecimento no Brasil, tocando nas rádios Kiss, na 89 FM.
Não sou a favor da violência e muita gente sofre com essa violência social. Meu pai sempre diz que podemos conseguir mais seguindo o método pacífico de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King.”
Estação Centro: O Brothers of Brasil já tocou no centro de São Paulo?
Estação Centro: Você fez a música São Paulo, em homenagem à cidade. Já pensou em gravar alguma canção específica para o centro, que falasse da noite ou das questões sociais?
Supla: Tocamos sim, duas vezes. Na Virada Cultural, no Largo do Arouche, de madrugada. Um horário meio infeliz, mas tudo bem, foi legal. Me lembro que tocamos uma música, a “Chute a bunda do seu chefe” [risos], a galera gostou muito. Tocamos as mais conhecidas. Já tocamos também na rua da Folha de São
Supla: Nunca fiz uma assim. Até já pensei, mas não ficou muito boa não, por isso que eu nem gravei [risos]. Essa música São Paulo já diz tudo. Ela diz: “Do Centro de São Paulo à periferia, dar um rolê com os amigos era tudo que eu queria, pra violência peço clemência e, para o trânsito, paciência”.
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Estação Centro: Existe algum lugar que você tenha visto nos EUA que se pareça com o centro de São Paulo?
Estação Centro: Deixe um recado para as pessoas que trabalham, moram e/ou estudam no centro de São Paulo. Supla: Vamos fazer do centro um ótimo lugar para viver. O que mais me dói é ver a população de rua desassistida. Temos que pensar em uma forma de ajudar essas pessoas, porque elas querem trabalhar, querem uma vida digna.
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personagens do centro
“Quente na área!” Adriano Santos Edijane Araujo Givanildo Tavares Nelson Beraldo Thayza Santos
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aniela Souza, 40 anos, é figurinha conhecida no centro de São Paulo por seu jeito exótico de se vestir e seus bordões. Vendedora ambulante de café e pinga, ela é vista todos os dias, por volta das 6h, na Rua Barão de Itapetininga e região com um figurino indiscreto, dizendo em alto e bom som os chamamentos “Quente na área!” ou “Chega quente!”, para atrair a clientela que, segundo ela, é difícil de ser mantida. “Quem trabalha no corre não tem cliente não, o que você tem é conhecimento, porque às vezes tem de quatro a cinco cafezeiras disputando o público. Então as pessoas não são obrigadas a comprar diretamente de você”, afirma. Daniela nasceu no interior da Paraíba e foi criada por seu avô. “Quer dizer, fui criada pelo pai do homem que diz que é o meu pai. Meu pai mesmo eu não conheci”, explica melhor. Depois que seu avô morreu, quando ela tinha 16 anos, foi morar em Piracicaba (interior de São Paulo) com seus irmãos, mas a experiência não deu certo. “Vi que eles queriam me prender e eu sempre fui mulher arteira.” Nesse período até chegar a São Paulo, trabalhou em circo, durante dois anos, engravidou e perdeu o bebê, devido a problemas que a impediram de ser mãe até hoje e que ela evita comentar. A “cafezeira” tem orgulho de suas roupas justas, com estampas de bichos, como onça, cobra e zebra. Tem quase sempre a barriga de fora e usa perucas e chapéus. “Pode ver que é raro encontrar alguém vestido como eu. Se tiro a peruca, meu cabelo vai até o teto dessa banca [refere-se à banca de jornal atrás dela]. É igual ao cabelo do Bob Marley”. Em um primeiro contato, a “cafezeira” se mostra um pouco resistente e arredia. “Eu fico ligeira com as maldades do povo”, justifica. Mas basta alguns segundos de conversa para descobrir uma mulher alegre e desenvolta. Índia, cigana, rainha da maloca. É assim que Daniela é chamada. “Eu me orgulho
Adriano Santos
Com esse bordão e roupas exóticas, vendedora ambulante chama a atenção na região da Praça da República de me chamarem dessa forma. Gosto de estar no meio da maloca, porque vivo noite e dia com ela”, afirma, referindo-se aos moradores de rua e outros andarilhos que costumam comprar suas bebidas. “Levanto quatro horas da manhã e já chego acordando todos. Eles já sabem que é a Daniela, a cigana que chegou. Essa é minha rotina todos os dias”.
Gosto de estar no meio da maloca, porque vivo noite e dia com ela. Futuramente gostaria de abrir uma porta pra encher o local de maloqueiro louco pra beber cachaça”
Quando o assunto é futuro, a vendedora ambulante tem um sonho nada convencional. “Futuramente eu gostaria de abrir uma porta pra encher o local de maloqueiro louco pra beber cachaça. Se por ventura eu abrir alguma coisa, é pra esse tipo de gente que eu quero trabalhar. Gosto de povão”, reforça. Ao mesmo tempo em que demonstra um comportamento um pouco avoado, Daniela surpreende demonstrando determinação, ao revelar que recentemente teve que tirar uma mama devido a um câncer. A doença não tirou sua vontade de trabalhar. Ela mora sozinha em um apartamento na República. Quando bate a solidão, tem um jeito de fazê-la passar rápido. “Eu fecho o meu apartamento e venho para a maloca, que é minha alegria. Venho para a Praça da Sé, São Bento. Às vezes até durmo na rua com os maloqueiros. Assim é a vida de artista”.
Daniela Souza, 40: “Sou conhecida como índia, cigana e rainha da maloca. Gosto de ser chamada assim!”
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bom exemplo
Sinal wi-fi gratuito no centro
Parque da Luz, Praça Roosevelt, Largo do Arouche e Vale do Anhangabaú estão entre os pontos a serem contemplados no projeto da Secretaria de Serviços Halley Pacheco de Oliveira
Ana Lúcia Tibaldi Cristiana Silva Daniela Gualassi Jessica Santos Rosana Skyrda
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os próximos meses, 23 localidades da região central de
São Paulo ganharão pontos de acesso gratuito à internet. Dentre elas estão o Parque da Luz, a Praça Roosevelt, o Largo do Arouche e o Vale do Anhangabaú. A iniciativa faz parte do Projeto “Praças Digitais”, coordenado pela Secretaria Municipal de Serviços através da Coordenadoria de Conectividade e Convergência Digital. A ideia é levar o acesso à internet para 120 espaços públicos em toda a cidade de São Paulo. Os locais foram escolhidos através de consulta pública às subprefeituras, a outras secretarias e à população, por meio de listas que ficaram disponíveis na internet entre os meses de maio e junho de 2013. No Mercado Municipal e no Pateo do Collegio o serviço já está em funcionamento. Para fazer a conexão, basta clicar na rede Wi-Fi Livre SP e realizar a autenticação por meio do browser instalado no celular. Segundo o secretário de Serviços da Prefeitura de São Paulo, Simão Pedro Chiovetti, o projeto vai ao encontro da necessidade tanto de quem mora na cidade quanto de quem vive em outro município, mas trabalha ou estuda em São Paulo. “Ao contrário de outras cidades do mundo como Nova York, São Paulo não oferecia acesso gratuito à internet em nenhum espaço público aberto”, destaca Chiovetti.
Testes Em outubro de 2013, a Prefeitura, em parceria com a Prodam (Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município de São Paulo), testou o serviço na Praça Dom José Gaspar, localizada atrás da Biblioteca Mário de Andrade, bem no coração de São Paulo. Durante 30 dias, os trabalhadores e moradores da região puderam ter acesso gratuito à internet e relataram as dificuldades e falhas apresentadas, as quais foram repassadas para as empresas que administram o serviço (a WCS e a Ziva).
No Pateo do Collegio (acima) o serviço já está em funcionamento. Para fazer a conexão, basta clicar na rede Wi-Fi Livre SP e realizar a autenticação por meio do browser instalado no celular
Velocidade e segurança De acordo com a Secretaria Municipal de Serviços, o projeto permite o acesso à Internet com uma conexão de 512 Kbps por usuário para download e upload. As empresas prestadoras do serviço devem garantir qualidade e estabilidade, além de banda que contemple diversos usos da Internet, inclusive streaming, voz sobre IP e vídeo. Ainda segundo a secretaria, o sinal wi-fi assegura a navegação a partir de diferentes dispositivos como smartphones, tablets, notebooks e netbooks. A Coordenadoria de Conectividade e Convergência Digital está elaborando um documento voltado a garantir a segurança dos dados dos usuários do Wi-Fi Livre. Desta forma, as pessoas poderão navegar gratuitamente sem correrem o risco de ter seus dados coletados ou usados sem sua devida autorização.
Outros pontos do centro que contarão com o sinal wi-fi gratuito: ● Parque da Luz ● Vale do Anhangabaú ● Praça Ramos de Azevedo ● Praça da Liberdade ● Praça Roosevelt ● Praça da República ● Praça Marechal Deodoro ● Largo Santa Cecília ● Largo São Bento ● Praça da Independência ● Praça da Sé ● Praça Dom José Gaspar ● Praça do Patriarca ● Parque Dom Pedro II ● Praça Dom Orione
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mau exemplo
Praça da República é palco de assaltos e má conservação
Polícia Militar diz que intensificará policiamento na região; Subprefeitura da Sé alega fazer ações diárias de limpeza no local Eduardo Furtado Izael Coelho Lilian Rebeca Márcio Gonçalves Paulo Cesar Souza
O
que era para ser um dos cartões de visita de São Paulo
Lilian Rebeca
virou um dos locais mais temidos da região do centro, em especial à noite. Assaltos diários, pessoas portando facas, essa é a realidade atual da Praça da República. A operadora de telemarketing Michele de Araújo Domingos, 18 anos, que trabalha em uma empresa no entorno da praça, foi uma das vítimas dos assaltos frequentes. “Estava saindo do Metrô República, às 7h, quando os caras me abordaram com uma faca e apertaram o meu braço. Exigiram que eu entregasse o tablet e o celular”, relata. Na opinião da jovem, deveria haver mais câmeras na praça para coibir a ação dos assaltantes, mais policiamento e algum tipo de medida social que resolvesse o problema dos moradores de rua. “Já presenciei outras cenas parecidas com a que aconteceu comigo. Infelizmente é uma situação comum”, complementa.
Outra pessoa que enfrentou problema semelhante foi a operadora de cobrança Kellen Cristina Leopoldo, 17 anos. “Estava indo trabalhar cedo. De repente apareceu um cara tentando pegar meu celular. Alguns homens que estavam vindo logo atrás do assaltante não deixaram que ele levasse o aparelho”, lembra Kellen. Em 24 de junho de 2013 a violência na praça ganhou repercussão na grande mídia. Tiago Henrique Costa, 22 anos, que trabalha com equipamentos de som, estava há duas semanas hospedado no Hotel Caravelas. Ele saiu para dar uma volta na praça à noite e foi abordado por três criminosos que queriam sua carteira e celular. Tiago reagiu e foi esfaqueado. Enquanto fazíamos essa reportagem, entrevistando a guarda municipal da praça, observamos que alguns agentes estavam atendendo a uma ocorrência. Um indivíduo ameaçava as pessoas que passavam pela praça com uma faca. Além da falta de segurança, o estado de má conservação da praça, que é tombada pelo patrimônio histórico, é desapontador. O local vive com cheiro de fezes e urina, há muito lixo no chão e o coreto parece abandonado. Procurada pela reportagem, a Subprefeitura
Coreto da Praça da República: aparência de abandona e cheiro de fezes e urina.
da Sé, que é responsável pela manutenção e fiscalização dos serviços de limpeza no centro (executados pela Secretaria de Serviços), alega que a praça recebe ações diárias de limpeza (varrições e lavagens) e, quando necessárias, intervenções de manutenção dos pisos e orlas e das áreas ajardinadas. No caso do coreto, a Subprefeitura afirma que está sendo proposta a contratação de um projeto executivo de restauro.
Já presenciei outras cenas como a que aconteceu comigo. Infelizmente é uma situação comum” Michele de Araújo Domingos, 18 anos, que foi assaltada na Praça da República Quem passa diariamente pelo local sabe que essas ações não vêm sendo suficientes. “Há muito lixo e marcas de urina e fezes. Limpar uma vez por dia é pouco pela quantidade de pessoas que passam por aqui.”, destaca Claudinete dos Santos, 30 anos, que trabalha como copeira na região. Já com relação à segurança, o Comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ao ser procurado pela reportagem, limitou-se a enviar uma nota de esclarecimento, alegando que adota medidas na região da praça por meio de programas de policiamento, com destaque para o Radiopatrulhamento, Força Tática, Policiamento Comunitário e Rondas com Motocicleta. O texto informa, que nesta área, nos meses de janeiro a agosto de 2013, foram apreendidos 7.043 kg de entorpecente, recuperados 46 veículos, produtos de roubo ou furto, apreendidas 9 armas de fogo e detidas 245 pessoas em flagrante delito. A nota diz ainda que a polícia “está atenta aos problemas no local, sendo certo que intensificará o policiamento na região com vistas a prevenir ocorrências”.
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de tudo em pouco
Mercadão garante qualidade e atendimento diferenciado
Famoso por seus sanduíches de mortadela servidos no espaço gastronômico, o local é ponto de encontro de turistas de toda parte do Brasil e do mundo Carlos Araújo
Alcindo Silva Carlos Araújo Jennifer Souza José Ricardo Luciana Andrelino
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ocê já comeu abiu? Conhece rambutan? Já saboreou cupuaçu? Experimentou pitaya? Ou pelo menos já ouviu falar de decopom? Estas são algumas das frutas, pouco conhecidas do grande público, que podem ser encontradas no Mercado Municipal de São Paulo, o famoso “Mercadão”. Além delas, o mercado oferece grande variedade de alimentos in natura, brasileiros e importados, como legumes, verduras, aves, peixes e frutos do mar e queijos que dão água na boca. Por exemplo, o da Serra da Estrela (português), feito de leite de ovelha e que chega a custar R$120 o quilo. “Aqui se encontram de grãos a chocolates, de frutas a embutidos, passando por vinhos, doces, queijos, carnes e temperos. São mais de 40 ramos de atividade. O público, não menos eclético, é composto por comerciantes, amantes da gastronomia, consumidores ávidos por novidades, turistas de todos os cantos do país e do mundo, donas de casa, visitantes eventuais e gourmets”, afirma Aparecida Dolores Veronesi, administradora do Complexo Cantareira, do qual fazem parte o Mercadão e o mercado Kinjo Yamato (localizado em frente ao Mercado Municipal). Para Aparecida, o Mercadão é a “cara de São Paulo”: “Ele espelha a vocação da cidade para a gastronomia e a diversidade cultural”.O mercado é formado por 275 boxes. Cerca de 40% dos comerciantes são atacadistas do ramo frutícola. Eles atuam à noite, fazendo com que o mercado acabe tendo movimento 24 horas por dia. Trabalham no Mercadão, aproximadamente, 1600 funcionários diretos, afora os prestadores de serviços.
Atendimento especial Outro diferencial do Mercado Municipal é o atendimento. Diferentemente de uma feira livre ou de um supermercado, no Mercadão os funcionários conhecem profundamente os produtos vendidos,
Mercadão chega a receber cerca de 100 mil visitantes em semanas de feriados prolongados
o f e r e c e n d o informações sobre sua origem, sabor e benefícios para a saúde. Por isso, apesar dos preços serem um pouco acima da média, muitos consumidores procuram o local. Entres os trabalhadores do Mercadão, que se destacam por esse atendimento diferenciado, está o carismático Raimundo Nonato, 54 anos, da Casa Gonzalez (um quiosque de frutas), que está há 32 anos no local. Ele conta seu segredo. “A gente pega o cliente tal como a esposa pega o marido: pela boca! Tem que ser na degustação”, destaca. Raimundo diz que a história de sua vida se confunde com a do Mercado Municipal. “Esse lugar é a minha vida. Minha família foi criada toda a partir daqui, tenho um filho formado economista e outro que está se formando doutor em fisioterapia. A garantia da formação dos dois saiu do Mercado
Municipal”, conta emocionado. O Mercadão também é uma excelente opção para um lanche. Em seu espaço gastronômico é possível degustar pratos saborosos e populares. Seus famosos sanduíches de mortadela e os tradicionais pastéis e bolinhos de bacalhau atraem pessoas de todo o país e do mundo. Anualmente, o Mercadão recebe mais de cinco milhões de turistas. Dentre os visitantes, há alguns ilustres. Raimundo afirma que já viu pelo local os jogadores Ronaldo, o Fenômeno, Adriano e Dinei. Também diz que passam pelo Mercadão políticos conhecidos e artistas como o padeiro Olivier Anquier, apresentador do programa “Diário do Olivier”, no canal GNT.
Mercadão em números
SERVIÇOS
● 275 boxes; ● 1.600 funcionários; ● 1 mil toneladas de alimento/dia; ● 5 milhões de turistas por ano ● Cerca de 100 mil visitantes em semanas de feriados prolongados ● 90 caminhões abastecem o Mercadão diariamente.
Local: Rua Cantareira, 306 - Centro. Atendimento ao público: de segunda a domingo, das 6h às 18h Telefone: (11) 3313-3365 Mais informações: http://www.oportaldomercadao.com.br
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meu “point”no centro
Empresário recomenda restaurante “Vovó Helena”
Variedade de saladas, grelhados e opções de frutos do mar são vantagens do estabelecimento
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ntonio Carlos Coelho, 56 anos, mais conhecido como “Toninho do posto” (por ser proprietário de um posto de gasolina na Avenida São João), é frequentador do centro de São Paulo há mais de 20 anos. Amante do motociclismo, ele costuma se reunir, nos finais de semana, com seus amigos motoqueiros na Av. São João, no Shopping Moto Aventura. Gosto de viajar para o interior com uma das minhas motos, uma Yamaha XJ 6600 cilindradas. Vou para Piracicaba, Guarujá, Serra Negra”, conta. Toninho aprecia diversos “points” para beber e comer no centro, como o bar Brahma, o bar Vilemar e a padaria Aurora. “Em cada lugar guardo uma história, diferente. Eu poderia ficar um ano falando desses lugares”, afirma o simpático empresário, que mora no bairro São Francisco, na divisa com Osasco, Grande São Paulo. Mas o lugar favorito de Toninho do posto é o restaurante Vovó Helena, localizado à Avenida São João nº 844, na República. “Conheci o Restaurante Vovó Helena por indicação de amigos. Inicialmente fiquei meio receoso, pois já estava acostumado com outros restaurantes do centro, mas, desde que fui pela primeira vez, nunca mais consegui deixar de frequentar”, relata o empresário. Apesar de o restaurante possuir grande variedade de saladas e ser especialista em grelhados, Toninho dá preferência ao local pelo fato de o estabelecimento oferecer muitas opções de peixe e frutos do mar: “O que mais gosto são os pratos de frutos do mar e do salmão e do bacalhau acompanhados de um macarrão muito gostoso”, explica. Toninho tem o restaurante “como sua segunda casa”. Ele também vê no local uma oportunidade de se encontrar com os amigos:
“Eu aproveito para bater um papo com eles aqui”, diz.
Famosos
O restaurante Vovó Helena é frequentado também por personalidades. Cauby Peixoto, Agnaldo Timóteo e Nilton César são apenas alguns dos artistas que já foram vistos no local, de acordo com Toninho. Ele diz que chegou a se tornar amigo de Nilton César. “Ele vem sempre aqui, a gente já teve várias conversas, ele se tornou um amigão.”
Serviço Restaurante Vovó Helena Local: Av. São João, 844. República Horário: de terça a domingo, a partir das 11h Preço: a partir de R$ 37,00 o kg ou self service R$ 42,50 TV, acesso para deficientes, estacionamento, aceita Cartão e Ticket. Site: www.vovohelena.com.br
Givanildo Tavares
Adriano Santos Edijane Araujo Givanildo Tavares Nelson Beraldo Thayza Santos
Proprietário de um posto de gasolina na Av. São João, Antonio Carlos Coelho tem o restaurante Vovó Helena como sua segunda casa
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cultura & lazer
História, arte e cultura no Cemitério da Consolação
A mais antiga necrópole de São Paulo reúne centenas de túmulos de personalidades e mais de 300 obras de escultores renomados Adriano Santos Edijane Araujo Givanildo Tavares Nelson Beraldo Thayza Santos
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Túmulos mais visitados No local estão enterradas centenas de personalidades como os modernistas Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade; escritores como Monteiro Lobato e Alcântara Machado; os expresidentes Campos Sales e Washington Luís; os ex-governadores Jorge Tibiriçá, Ademar de Barros, Bernardino José de Campos Júnior, Carvalho Pinto e Roberto Costa de Abreu Sodré, o arquiteto Ramos de Azevedo, os empresários Cândido Fontoura, Patrícia Paixão
á imaginou passar uma tarde com a Marquesa de Santos, Oswald de Andrade, Líbero Badaró, Paulo Vanzolini, Tarsila do Amaral, Monteiro Lobato entre outros expoentes da nossa história? Existe um passeio, no cemitério da Consolação, que torna isso possível. Basta agendar uma visita guiada. Elas acontecem às terças e sextas-feiras e podem ser marcadas entre as 9h e as 14h. O guia? Um simpático cearense, de 46 anos, da cidade de Crateús, chamado Francivaldo Gomes, conhecido popularmente como “Popó”. Ele sabe contar, de maneira detalhada e apaixonante, a história de todos os túmulos do local e das personalidades que neles estão enterradas. Ao seguir os passos de Popó e ouvi-lo explicar como se tornou guia do Consolação, impossível não se emocionar: “Entrei aqui como coveiro, com o objetivo de sustentar minha família. No cemitério havia o professor Délio, que era o antigo administrador. Além de advogado, ele fazia passeios com os visitantes contando as histórias das celebridades aqui enterradas e explicando a arquitetura dos túmulos. Comecei a ficar fascinado por aquilo e passei a
ouvi-lo com atenção, enquanto fazia meu serviço de coveiro. Um dia tomei coragem e pedi para ele me contar com detalhes aquelas histórias. Délio contou, com muito prazer e carinho, e repetiu aquela ‘aula’ para mim muitas vezes. Sempre foi muito atencioso. Quando ficou doente, resolveu passar o bastão para mim. Hoje também está enterrado aqui. Sou eternamente grato a ele”, afirma o coveiro, com os olhos marejados, em frente ao túmulo de Délio. Popó diz que se sente realizado com seu trabalho, pois é uma forma de manter viva a memória de pessoas que foram importantes para o país. “A família vem aqui e se despede pela última vez do ente querido. Daquele momento em diante eu passo a ter a missão de manter a memória daquela pessoa que se foi, para que todos os visitantes saibam valorizá-la. É gratificante”.
Francesco Matarazzo, Oscar Americano, Roberto Simonsen e Rodolfo Crespi; além de personagens históricos como a Marquesa de Santos, o Barão de Antonina (João da Silva Machado) e sua filha Maria Antonia da Silva Ramos. Também estão no Consolação famosos que têm seus nomes em municípios, ruas, avenidas e hospitais, como Líbero Badaró, Anália Franco, Pérola Byington, Jorge Street, Franco da Rocha, Emílio Ribas e Júlio de Mesquita. Dentre os túmulos mais visitados está o da família Matarazzo, construído em 1925 e que é o maior mausoléu da América Latina, com 25 metros de altura, do subsolo ao pico.
Arte tumular
Mas as personalidades não são o único atrativo do Consolação. Há mais 300 esculturas, conhecidas como “arte tumular”, projetadas entre os séculos 19 e 20 por mestres da escultura como Bruno Giorgi, Enrico Bianchi, Celso Antônio de Menezes e Luigi Brizzolara. Na época era comum a elite paulistana decorar os túmulos, encomendando obras de grandes artistas. Uma das obras mais importantes é “O Sepultamento”, de Victor Brecheret, presente no jazigo da paulista Olívia Guedes Penteado, incentivadora do modernismo no Brasil. A escultura foi premiada no Salão de Outono de Paris, em 1923. O cemitério é visitado comumente por professores, alunos e historiadores. “Pesquisadores de outros países, como EUA, Canadá e Alemanha, também já passaram por aqui”, complementa Popó.
Mais sobre o Consolação É o mais antigo cemitério de São Paulo e tem 76.343 metros quadrados. Foi inaugurado em 15 de agosto de 1858, com o nome de Cemitério Municipal. Antes eram enterrados nele pessoas de todas as classes sociais, incluindo escravos. Porém, a partir do século 20, passou a receber especialmente pessoas de classe média alta.
O guia “Popó”e algumas das artes tumulares do Consolação. À esquerda (parte inferior) o túmulo da Marquesa de Santos
* Endereço: Rua da Consolação, 1660 - Centro * Visita guiada: às terças e sextas-feiras. * Agendamento: das 9h às 14h pelo telefone (11) 3256-5919 * Duração da visita: 1h30. *Entrada gratuita.
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aprovado!
Nos bastidores da República Em “1889”, terceiro livro de sua trilogia sobre a História do Brasil, Laurentino Gomes desmistifica alguns “heróis” da República e revela detalhes da personalidade de D.Pedro II
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uando se trata de Proclamação da República, quem são os seus heróis? Você conhece a fundo esse importante período da história brasileira, que deu início ao regime político que vivemos hoje? É sobre essa fase polêmica que Laurentino Gomes, autor de 1808 e 1822, escreve no livro 1889, que completa sua trilogia sobre grandes acontecimentos da história brasileira. O subtítulo “Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil” ilustra como, de fato, ocorreu esse acontecimento que até nos dias de hoje parece um tanto quanto nebuloso no consciente dos brasileiros. O escritor, nascido em Maringá (PR), é jornalista e trabalhou na revista Veja por 15 anos. Durante uma reportagem especial sobre história do Brasil, que não foi publicada, recolheu material que deu origem ao primeiro livro da trilogia. Em meio às pesquisas que realizou para esse projeto, descobriu a contramão do que é ensinado nos livros escolares. Histórias pitorescas descritas em diários de época e o contato com trabalhos de pesquisas de diversos historiadores resultaram no livro 1808, que tem como subtítulo “Como Uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. Esta obra obteve recordes de venda, proporcionando ao autor o prêmio Jabuti e o prêmio de melhor ensaio pela Academia Brasileira de Letras. A trilogia é marcada com o título correspondente ao ano do principal acontecimento retratado e sempre traz um subtítulo curioso sobre as descobertas do autor.
Derrubando mitos O conteúdo do livro 1889 vem desmistificar a imagem de Marechal Deodoro como “o grande proclamador da República”. Acabamos descobrindo que, além de ser monarquista convicto, Deodoro não chegou a proclamar a República na data exata do golpe militar que destituiu D. Pedro II do trono, ou seja, o famoso dia
Divulgação
Daniela Gualassi
satisfeito. Já não tinha mais forças para conter as mudanças e, na ocasião da Proclamação da República, não reagiu ao exílio, partindo do país que tanto amava. De acordo com o livro, o injustiçado da história (pelo fato de ter sido a pessoa que verdadeiramente lutou pela Proclamação da República), foi o professor da Escola Militar da Praia Vermelha, Benjamin Constant, que realmente aderiu às causas positivistas e se tornou um republicano convicto, influenciando toda a juventude militar da época e sendo responsável pela articulação em prol desse novo sistema político.
Fácil entendimento
15 de novembro. O marechal só decidiu por fim ceder ao apelo dos republicanos na madrugada do dia 16, quando soube que seu adversário político, o senador Silveira Martins (que havia se casado com a Baronesa de Triunfo, paixão de Deodoro), havia sido nomeado pelo imperador ao cargo de chefia de um novo ministério. A obra também traz detalhes e curiosidades interessantes sobre o perfil de D.Pedro II. O imperador é retratado no livro de Laurentino como um homem muito culto. Era leitor ávido das obras de Victor Hugo e foi ter com ele em uma de suas viagens. A princípio, não foi bem recebido, devido às convicções antimonárquicas do autor francês, mas, depois, acabaram se tornando grandes amigos. Pedro de Alcântara, como assinava em viagens ao exterior, acabou se posicionando de maneira mais branda frente aos acontecimentos do período final de sua vida, como a Abolição da Escravatura, fato com o qual teria ficado
Bem diferente dos livros de história convencionais, 1889 trata de assuntos não divulgados da história do Brasil, que fazem toda a diferença para melhor compreensão do que herdamos cultural e politicamente no cenário público brasileiro. Laurentino traz um perfil psicológico de cada personagem retratado, o que acaba justificando certas atitudes e incoerências na tomada de algumas decisões. Com um texto de fácil entendimento, espelhando a linguagem jornalística, o livro é enriquecido por 150 fontes que o autor usou como referências, documentos arquivados nos EUA, visitas a Petrópolis e a vários outros centros históricos do país. Uma verdadeira aula para todos que se interessam pela política brasileira, e que almejam mudanças para nosso país. Como destacou Laurentino em uma entrevista dada à revista Exame: “Uma sociedade que não estuda o passado não consegue entender a si mesma, porque desconhece as suas raízes. Só pelo estudo da história é possível compreender o presente e preparar as pessoas para a construção do futuro.”
Serviço * Editora: Globo Livros * Lançamento: 2013 * Valor (em média): R$ 30,00
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OCUPAÇÃO
Ademir Plasa Alisson Magno Daiany Araujo Fabiano Almeida Ester Vitkauskas Priscila Mazariolli Tátyla Almeida
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Meu “lar” até quando?
ogo que o portão de entrada do número 344 da Rua Conselheiro Crispiniano, no centro de São Paulo, se abre, pode-se ter uma ideia do que vai ser encontrado no local. Na recepção, ao lado direito da entrada, o auxiliar de cozinha Rodrigo de Souza, 29 anos, nos recebe com um largo sorriso no rosto, sentado diante de uma mesa retirada de entulhos, e em meio a restos de móveis e outros objetos deixados pelos ex-ocupantes do imponente prédio construído na década de 1940 e inaugurado em 1952, o antigo Cine Marrocos. O local um dia foi palco do Festival Internacional de Cinema. Agora, fios, paredes quebradas, escadas mal iluminadas e canos à mostra revelam o contraste entre o hoje e o que já foi um dos símbolos do luxo paulistano. O prédio foi ocupado em 1º de novembro de 2013 por famílias desesperadas que lutam por seu direito à moradia na mais rica cidade do país. São pessoas que convivem com a ameaça de que hoje ou amanhã, a qualquer hora do dia, possam ser retiradas à força de um espaço que, mesmo em condições precárias, chamam de “lar”. Uma situação vivida em outros 30 edifícios do centro da cidade – públicos ou particulares – todos comandados por movimentos sociais, que defendem a ocupação de prédios que não estão sendo utilizados. MSTS (Movimento dos Sem Teto São Paulo), MMC (Movimento de Moradia do Centro), MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) e MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) são alguns desses movimentos. Nosso “cicerone” no edifício do Cine Marrocos, Rodrigo de Souza, que aos domingos trabalha como catador de papelão, faz as vezes de porteiro do prédio. Ele, que é morador de uma outra ocupação situada quase em frente à do Cine Marrocos (no número 317 da Conselheiro Crispiniano), já foi entrevistado pela revista da Folha de S.Paulo, por ter investido R$ 4000 em sua carroça, colocando DVD, home theater, entre outros acessórios. Também trabalhou como assistente de plateia do apresentador João Kleber. Mas os momentos de fama foram breves e insuficientes para lhe dar melhor condição de vida. Há 21 anos em São Paulo, vindo do Rio Grande do Norte, ele destaca que não mora em ocupação (é assim que são chamados os prédios invadidos) por vontade própria. Se tivesse condições, não estaria no local. “Com o movimento [referindo-se à ocupação] eu tenho um teto em que eu posso tomar banho. O meu sonho é ter uma casa ou um apartamento e não morar em um barraco. Por isso prefiro estar aqui do que na rua”. Juliana Alves de Oliveira, 28 anos, sabe bem o significado de morar em ocupações. Já esteve em diversos endereços. No último - um edifício no Brás, na zona leste - um morador que era usuário de drogas ateou fogo em seu colchão e causou uma tragédia. “Uma vizinha ficou com os filhos em um quarto, só que eles respiraram muita fumaça. Acabou cozinhando o cérebro [SIC] de um deles. Depois de uma semana na UTI, desligaram os aparelhos e ele morreu”, conta Juliana. Morando atualmente no prédio ocupado da Avenida Prestes Maia, nº 911 (que abriga 468 famílias), ela afirma se sentir mais segura, explicando que essa ocupação conta com regras específicas: “Participamos de reuniões periódicas para definir normas de moradia. Aqui, por exemplo, não se pode fazer uso de bebida alcoólica e nem de drogas. Não podemos ligar o rádio alto e nem fazer barulho depois das dez da noite. Quem não cumpre é convidado a se retirar”. A falta de moradia própria não é o único problema enfrentado por essas famílias. Segundo Juliana, o que a deixa mais triste é a dificuldade na hora de conseguir um emprego. “Assim que descobrem nosso endereço, as empresas logo dão uma desculpa para não nos efetivarem após o período de experiência”, relata. O próprio marido de Juliana sofreu com o problema em duas ocasiões. Em uma delas uma empresa
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Rodrigo de Souza, 29 anos, morador de uma das ocupações da rua Conselheiro Crispiniano. O breve período de “celebridade” não foi suficiente para que ele conseguisse uma moradia própria
prestadora de serviços para a Prefeitura não o manteve no trabalho. Gracione Freitas do Nascimento, 48 anos, que vive com seus três filhos na ocupação da Prestes Maia - dois maiores e uma menina de 15 anos que está grávida, destaca que outro ponto negativo de morar em ocupação é o clima de tensão constante: “A gente pode ser despejado sem direito a nada. Morar em uma ocupação é estar sujeito a riscos”. Gracione, que chegou em São Paulo há 40 anos, também passou por diversas ocupações antes da atual e já viveu na rua. “Fico triste com a desigualdade. Tanto lugar vazio, não custa nada ajudar! Eu sei que não é meu, mas preciso de ajuda”, desabafa.
O meu sonho é ter uma casa ou um apartamento e não morar em um barraco. Por isso prefiro estar aqui do que na rua.” Rodrigo de Souza, morador da ocupação da Conselheiro, nº 317 A convivência entre os moradores no dia a dia, mesmo em um prédio ocupado há três anos (e que, portanto, já possui certa infraestrutura) não é fácil. O cheiro no local é forte e as famílias não contam com espaço para lazer. “Aqui temos apenas um banheiro para 13 famílias. Também não tem espaço
para as crianças brincarem. Não conseguimos levá-las ao Parque da Luz, que fica aqui do lado, porque lá há muitos drogados.”, explica.
Preconceito Além dos problemas de falta de infraestrutura e do medo eminente de despejo, os moradores das ocupações enfrentam o preconceito da sociedade. “Quando a gente sai do portão para fora as pessoas olham para nós e dizem: Vejam os ladrões. Tem uns que olham para as nossas crianças e dizem que elas são a semente do mal. Mas não é assim, nossos filhos são educados, muitas vezes mais do que um filho de um rico.”, comenta Juliana, em tom de indignação. Rodrigo de Souza avaliza a opinião de Juliana. Ele se lembra de um episódio em que foi xingado gratuitamente: “Um cara passou por mim, quando eu estava com minha carroça, e disse: Esse cara é um lixo, está atrapalhando o trânsito”.
Uma promessa chamada São Paulo Depois de visitarmos diversas ocupações para a produção dessa reportagem o que observamos é que muitas pessoas que vivem hoje nos prédios invadidos vieram das regiões Norte e Nordeste do país, em busca de uma vida melhor. Acabaram não voltando para seus estados de origem, muitas vezes por falta de
Ocupação da Avenida Prestes Maia, nº 911, que abriga 468 famílias, dentre elas a de Juliana Alves de Oliveira, 28 anos, e Gracione Freitas do Nascimento, 48 anos
condições financeiras ou por vergonha de terem fracassado nesse intento. O casal Luiz José da Silva, 47 anos, e Edilene Francisca da Conceição, 39 anos, moradores do prédio ocupado que fica quase em frente ao antigo Cine Marrocos, é um espelho dessa situação. Naturais de Caruaru, cidade do sertão de Pernambuco, Luiz e Edilene, que estão juntos há 11 anos, enfrentaram diversas dificuldades desde a infância até migrarem para São Paulo, procurando uma vida mais estável. Dona Edilene, uma senhora com o
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Nas imagens acima e à direita, detalhes do interior da ocupação da Avenida Prestes Maia, nº 911. Apesar de estar ocupado há três anos e já possuir certa infraestrutura, prédio ainda tem vários ambientes precários. Mau cheiro predomina
estados até chegar à capital paulista, aos 17, com o sonho de ter uma vida digna e enviar dinheiro para sua mãe. Trabalha atualmente como carroceiro em Santo André, na Grande São Paulo e, durante a semana, dorme em um ferro velho naquela cidade para economizar a condução e sobrar mais para a família. Diz que já enfrentou a polícia por conta das ocupações, mas, segundo ele, não tem o que fazer, já que não tem condições para comprar a casa própria: “Meu maior sonho é ter um teto pra eu chegar à noite e dizer: Aqui é meu! Pagar meus impostos, ter um endereço certo, pagar minhas contas. Porque lar, para mim, é ter a nossa família em um canto apropriado, ter liberdade para os nossos filhos, uma escola para eles. Faz um ano que eles não sabem o que é escola, porque a gente não consegue matricular por falta de endereço fixo”.
Quando a gente sai as pessoas olham para nós e dizem: Vejam os ladrões. Tem uns que olham para as nossas crianças e dizem que elas são a semente do mal. Mas não é assim, nossos filhos são educados, muitas vezes mais do que um filho de um rico.” Juliana de Oliveira, moradora do edifício da Av. Prestes Maia
Eterna angústia “Para aonde iremos caso aconteça a reintegração de posse do prédio?”. Esse é o eterno temor de Luiz e Edilene. Uma angústia que não é somente deles, mas de todas as famílias que moram em edifícios ocupados,
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rosto cansado e olhar distante, mãe de oito filhos do primeiro casamento e mais quatro do segundo (com Luiz), trabalhou desde muito cedo para ajudar nas despesas de casa. Mesmo assim, ela e seus irmãos tiveram que pedir ajuda nas ruas para terem o que comer: “A mãe trabalhava para sustentar a gente e nós pedíamos nas portas para termos o que comer em casa, a vida era dura”. Ela conta, com a voz embargada, que teve de deixar quatro dos seus filhos do primeiro casamento em sua cidade natal para vir para São Paulo em busca de uma vida melhor, não só para ela, mas para a mãe que ficou com a responsabilidade de cuidar daqueles que permaneceram. “Viemos para cá de carona em um caminhão, porque não dava para pagar a passagem. Aí eu comecei a trabalhar e mandar alguma coisa para minha mãe.”, lembra. Logo que chegou a São Paulo, foi morar com seu irmão, mas, por conta de uma desavença, saiu de lá com seu marido e filhos e foram parar embaixo do Viaduto do Chá, onde permaneceram por quatro meses. Um dia, alguns usuários de entorpecentes começaram a se drogar diante das crianças. O instinto de mãe falou mais alto e ela resolveu enfrentar o grupo de drogados. Após a discussão, tiveram que sair dali para não sofrerem represálias. Foi aí que foram procurar abrigo nas ocupações, onde conseguiram um lugar para permanecerem. “Tinha uns rapazes usando droga na frente deles. Falei para eles não usarem ali. Aí vieram todos pra cima de mim e começaram a falar um monte de coisas, que a vida era deles e tal. Discuti com eles e, por isso, saí de lá”. Luiz, seu esposo, saiu de casa aos 11 anos em um “pau de arara”. Passou por outros
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destaque do Cine Marrocos será sede da Secretaria Municipal de Educação e, portanto, em breve sofrerá intervenções para retirada dos que o ocupam. Em tom de indignação e ironia, ele questiona: “As pessoas nas periferias ganham um baixo salário, ficando entre pagar o aluguel ou comer, justamente por conta de o Estado não oferecer a oportunidade de ensino ou uma educação de qualidade. É justo, portanto, que esse povo esquecido seja despejado de um prédio que vai ser destinado à Educação?”. Robinson diz que a coisa mais dolorida é saber que existem milhares de pessoas nas ruas da capital, procurando uma moradia e esbarrando na burocracia. Também critica a falta de transparência no processo, pois, segundo ele, embora a Prefeitura tenha informado sobre a intenção de fazer ali a Secretaria, o prédio não tem obra nenhuma iniciada, apenas a placa de identificação na frente, sem valores e sem data de início. “Cadê a obra?”, ele questiona. O projeto do MSTS para ocupação do edifício do Cine Marrocos prevê a instalação de 850 famílias, sem contar com a área do cinema, que seria utilizada para que fossem realizadas sessões entre o poder público e a população. No primeiro mezanino, seria um local para atendimento da associação com advogados e outros profissionais. Ademir Plasa
como a do ex-morador de rua Marcos Freitas, 42 anos, que reside no prédio da rua Conselheiro Crispiniano, número 317. Vendedor de eletrônicos, ele defende que o problema da falta de moradia na cidade é mais simples de se resolver do que aponta o poder público. “Existem dezenas de prédios desocupados no centro e milhares de pessoas morando nas ruas. A Constituição Brasileira diz que todos têm direito à moradia e, se existem edifícios sem função nenhuma, porque não dar uma função social a eles? As pessoas pretendem conquistar de forma digna seus imóveis, só precisam de uma ajuda do governo. Não querem o imóvel de graça, mas sim de forma que consigam cumprir com suas responsabilidades. É como uma parceria em que os dois lados saem beneficiados. As autoridades fazem sua parte, utilizando o Decreto de Interesse Social (DIS), e desapropriam os edifícios. Já nós, compradores, pagamos o valor referente à nossa unidade, criando mais fundos para beneficiar outras famílias”, argumenta. Robinson Nascimento dos Santos, 30 anos, presidente do Movimento dos Sem Teto de São Paulo (MSTS), responsável por várias ocupações no centro, incluindo as da Conselheiro Crispiniano, diz ter sido informado pela Prefeitura de São Paulo que o prédio
Apesar de ter sido ocupado há pouco tempo, a organização do prédio é boa, cada um tem uma função. As mulheres ficam com a parte da faxina e os homens com as reformas estruturais, como conserto de utensílios, parte elétrica, hidráulica e segurança. O movimento tem regras específicas também. Não são aceitos usuários de drogas nem pessoas que causem desordem como confusões. As lideranças tratam cada morador de acordo com sua necessidade, já que as famílias vivem em situações diversas. No edifício do nº 317 da Conselheiro Crispiniano, por exemplo, a família do senhor Luiz e da dona Edilene receberam meio andar, o que equivale a mais ou menos três apartamentos, por terem um número elevado de membros (são 20 pessoas da família, no total).
História A luta por moradia se arrasta há anos, não só na cidade de São Paulo, mas em todo país. A especulação imobiliária e diferentes problemas sociais têm feito com que aqueles que necessitam de um lugar para morar fiquem à margem da sociedade, pedindo aos órgãos públicos que os enxerguem como pessoas honestas, que simplesmente querem fazer
Direito à moradia Constituição Brasileira: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados (...)”. (Art. 6º) Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”. (Art. 25º, parágrafo 1º)
Edilene Francisca da Conceição, 39 anos, e sua família: veio para São Paulo, de Pernambuco, na carona de um caminhão em busca de uma vida melhor. Chegou a morar embaixo do Viaduto do Chá, antes de conseguir um espaço nas ocupações
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À esquerda, o presidente do MSTS, Robinson Nascimento dos Santos, responsável pelas ocupações da rua Conselheiro Crispiniano: para ele, “o mais dolorido é saber que existem milhares de pessoas nas ruas da capital, procurando uma moradia e esbarrando na burocracia”. À direita: imagens do interior das ocupações
valer um dos princípios básicos de cidadania, o direito à moradia. O que existe hoje é uma inversão de valores em todas as áreas, que faz com que a dignidade fique em segundo plano, em detrimento de interesses financeiros. Segundo a socióloga Nathalia Oliveira, que é doutoranda em Ciência Política pela UNICAMP e possui um trabalho científico sobre o assunto (o artigo: A luta por moradia dos trabalhadores sem-teto brasileiros. Uma reflexão sobre trabalho e moradia no contexto do capitalismo neoliberal), dentre as primeiras lutas por moradia na cidade destacam-se as paralisações que trabalhadores realizaram em 1913 e 1914, pleiteando a redução dos aluguéis, na mesma época em que aconteciam movimentos em prol da redução do custo de vida na capital paulista. Estes movimentos, durante o passar dos anos, foram se moldando de acordo com as necessidades, ganhando força no início da década de 1980, quando foi criada a União dos Movimentos de Moradia, que se estendeu para outras regiões da cidade, atuando em favelas, cortiços, mutirões, entre outros espaços. “No centro, quem ganhou força na década de 1990 foi a ULC (Unificação das Lutas de Cortiços) que tinha como principio básico a luta pela redução do Imposto Predial Territorial Urbano, o IPTU, contas de consumo como água e luz, e ações de despejos, muitas vezes violenta. A partir de seu surgimento
e consolidação, começaram a aparecer novas frentes que buscavam espaços para
As pessoas nas periferias ganham um baixo salário, ficando entre pagar o aluguel ou comer, justamente por conta de o Estado não oferecer oportunidade de ensino. É justo que esse povo esquecido seja despejado de um prédio que vai ser destinado à Educação?” Robinson Nascimento dos Santos, presidente do MSTS moradia em prédios desocupados em São Paulo”, explana Nathalia. Mesmo após cem anos de existência dos movimentos pró-moradia, milhares de
pessoas ainda vivem nas ruas, embaixo de viadutos, em favelas e em locais afastados dos grandes centros por conta da falta de interesse público. O Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal, na sua segunda fase (MCMV2), prevê que 89% das moradias sejam destinadas a famílias com renda familiar de até cinco salários mínimos, porém, além de não suprir a demanda, o programa tem investido nos extremos das cidades que ainda enfrentam problemas estruturais como saneamento básico, transporte e lazer. O programa ainda possui uma outra modalidade que é o Minha
Casa Minha Vida – Entidades, uma conquista dos movimentos pró-moradia, que tem como objetivo atender famílias cadastradas que possuam renda familiar mensal de até R$ 1.600,00. O presidente do MSTS, Robinson Nascimento dos Santos, diz que são mais de seis mil pessoas cadastradas somente na entidade que ele preside, e aponta que existem prédios desocupados em São Paulo suficientes para reduzir drasticamente o número de sem teto na cidade de São Paulo, a ponto de quase zerar o déficit habitacional da capital.
Prefeitura Lideranças e moradores de algumas das ocupações visitadas pela reportagem afirmam que a Prefeitura de São Paulo não vem tomando ações necessárias para resolver o problema e não recebe os movimentos para dialogar. O Secretário de Habitação do Município, José Floriano, refuta as críticas. “Eu estranho esta observação. Temos recebido todos os movimentos sociais e, desde janeiro de 2013, quando assumimos, já foram realizadas cerca de 350 audiências, nas quais eu fiz questão de estar presente. Temos um canal aberto com as entidades que estão cientes da lentidão do programa por conta das desapropriações. Mas o programa está consolidado e sedimentado dentro das nossas metas, inclusive ele se
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chama ‘Renova Centro’ justamente por causa da renovação do centro de São Paulo, garantindo a habitabilidade para todo mundo, sendo boa parte para aqueles que estão em ocupações.” Segundo Floriano, a Prefeitura está atuando de maneira incisiva nas desapropriações e tem procurado terrenos vazios para que estes também sejam destinados a programas habitacionais. O secretário afirma que serão construídas, em toda a cidade, 53 mil unidades habitacionais em áreas desapropriadas, porém, no caso dos prédios desocupados, seria um trabalho um pouco mais demorado, pois, em sua grande maioria, são indústrias e comércios e as adaptações para moradia são mais complicadas. Referente ao prédio ocupado na Avenida Prestes Maia (citado no início desta reportagem), Floriano disse que a Prefeitura deu entrada no processo de desapropriação e que ele já está em curso. “Existe uma avaliação imobiliária, mas é preciso esperar os trâmites judiciais para a realização do depósito para pagamento pela desapropriação. A engenharia já está desenvolvendo os projetos de revitalização e até o início de 2014, provavelmente, estará disponível o valor para a realização das obras de adequação do edifício, para que ele seja transformado em moradia. Outra boa notícia é que as famílias não serão retiradas do local enquanto as obras não forem iniciadas”, explica. José Floriano informou que hoje são mais de 130 mil famílias cadastradas em programas habitacionais em São Paulo. Para se cadastrar, é preciso ser morador da cidade por pelo menos cinco anos.
O que dizem os especialistas A socióloga Nathalia Oliveira diz que as políticas habitacionais impostas pelo poder público têm andado na contramão das necessidades e reivindicações das famílias sem-teto do centro, uma vez que as moradias são criadas nas periferias da cidade. Os movimentos vêm ocupando prédios nos grandes centros por conta da facilidade de morarem próximo ao trabalho e ao lazer, como teatros e parques. “A reivindicação é por moradia digna na região central, pois além do direito à moradia, as pessoas reivindicam o direito à cidade, ou seja, de usufruir toda infraestrutura e oferta de serviços existentes”, observa Nathalia. José Arbex Júnior, jornalista que se destaca por sua defesa dos movimentos
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Ocupações da Rua Conselheiro Crispiniano. Fachada do edifício que já abrigou o Cine Marrocos, no nº 344
Temos recebido todos os movimentos sociais e, desde janeiro de 2013, quando assumimos, já foram realizadas cerca de 350 audiências. Temos um canal aberto com as entidades que estão cientes da lentidão do programa por conta das desapropriações.” José Floriano, secretário de Habitação de São Paulo
social, explica que a urbanização da cidade de São Paulo aconteceu de maneira que favoreceu os interesses do poder financeiro, afastando os menos favorecidos para as regiões mais distantes do centro. Em relação a ações do poder público, o jornalista acredita que deveriam ser realizadas mais audiências para discutir os problemas e atitudes a serem tomadas referentes à questão “Deveria acontecer um amplo processo de audiências públicas com a maior liberdade possível, para que todos possam expor seus pontos de vista. E aí todos são todos mesmo.” Edson Miagusko, doutor em Sociologia pela USP e autor do livro Movimentos de Moradia e sem Teto em São Paulo Experiências no Contexto de Desmanche, afirma que São Paulo possui aproximadamente 400 mil imóveis desocupados e um déficit
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Ademir Plasa
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Visão do Teatro Municipal de São Paulo a partir da janela do prédio ocupado da Conselheiro Crispiniano, nº 344
habitacional de 550 mil moradias, o que significa que, se fosse utilizada uma política de taxação e apropriação destes espaços, grande parte das famílias seria atendida. Miagusko não acredita que haja uma política de distribuição de imóveis para os sem-teto. “Ao contrário, nos últimos anos se abriu mão de uma política habitacional mais vigorosa pela constituição de programas pontuais. É o que denomino de ‘gestão da pobreza’”, lamenta o sociólogo. Quando questionado se considera legítimas as ocupações de imóveis de propriedade privada, ele questiona: “É legítimo que um edifício cujo proprietário não paga impostos, e esteja abandonado aos ratos à espera de valorização especulativa, continue onerando a cidade, quando milhões não têm casa para morar?
Moradia digna “A moradia digna não é apenas um abrigo formado por paredes e telhados. Significa também que a família deve morar perto do trabalho e de equipamentos públicos como escola, creche, posto de saúde, além de ter acesso a opções de lazer.” Fonte: Trecho retirado da publicação Moradia é Central - lutas, desafios e estratégias, produzida pelo Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em parceria com movimentos e entidades sociais
Saiba mais sobre ocupações e programas habitacionais: Central de Habitação Avenida São João, 299 – Centro Horário de atendimento: De segunda a sexta feira, das 8h30 às 16h Telefones: (11) 3242.0522 / 3242.0514 / 3242.0507 / 3101.6240 / 3105-3319
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bem-estar
Maus hábitos aumentam risco de diabetes tipo 2 onsidera-se jovem demais para se preocupar com o diabetes? Acha que seu filho de 4, 5 ou 6 anos não tem risco de desenvolver a doença? Cuidado! Embora seja prevalente em pessoas acima de 40 anos, é cada dia maior o número de casos de diabetes tipo 2 em jovens e em crianças, com predisposição genética. “O diabetes tipo 2 não é uma doença do envelhecimento, é uma doença com componente genético, de caráter familiar, e pode ocorrer em qualquer idade. Hoje, com a obesidade atingindo os adolescentes, estão aparecendo casos deste tipo de diabetes em faixas etárias mais jovens”, destaca Ricardo Botticini Peres, endocrinologista do Hospital Israelita Albert Einstein. Uma pesquisa citada pelo site “Mutirão do Diabético”, publicada na revista científica “Diabetes Obesidade e Metabolismo (Diabetes Obesity and Metabolism)”, coordenada por Craig Currie, professor da Escola de Medicina da Universidade de Cardiff, na Inglaterra (juntamente com outros colegas), analisou o serviço público de saúde daquele país no que diz respeito a diagnósticos de diabetes tipo 2 entre 1991 e 2010. O estudo constatou que, em 20 anos, o crescimento de casos da doença em britânicos com menos de 40 anos de idade foi de 820%! E esse quadro se repete em diversos outros países. Os vilões da história? De acordo com o Dr. Ricardo Botticini, seriam a obesidade e o sedentarismo, combinados com hábitos alimentares inadequados.
Alimentação Dietas ricas em açúcares, carboidratos e comidas gordurosas, que levam ao sobrepeso, devem ser evitadas, aconselha o endocrinologista. Ele alerta que, depois de
desencadeado, o diabetes tipo 2 não tem cura, somente podendo ser controlado. “É importante o diagnóstico precoce em pessoas que pertencem a grupos de risco, como filhos e irmãos de diabéticos. Também é fundamental a perda de peso e mudanças nos hábitos alimentares. Glicemia de jejum e hemoglobina glicada são exames recomendados para o diagnóstico”, complementa. O diabetes tipo 2 é uma doença que leva a perda de diversas funções vitais. Muitos a têm como um mal comum, sem grandes riscos, mas a verdade é que ela pode matar. “É uma doença arterial, causa estreitamento das pequenas e grandes artérias, levando à cegueira, perda da função renal, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral, impotência sexual e amputação de membros. Atinge também o sistema nervoso periférico, ocasionando dores e perda de sensibilidade dos pés. Pode ser fatal”. Dentre os sintomas estão emagrecimento, muita vontade de beber água, vontade constante de urinar e cansaço. Caso você ou um familiar apresente um ou mais desses sinais, procure imediatamente um médico!
É uma doença arterial, causa estreitamento das pequenas e grandes artérias, levando à cegueira, perda da função renal, infarto do miocárdio, entre outros problemas graves. Pode ser fatal” Ricardo Botticini Peres, endocrinologista do Hospital Israelita Albert Einstein Jef Poskanzer
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Marli Mendes
Divulgação: Albert Einstein
Obesidade, sedentarismo e alimentação inadequada são os grandes vilões, ressalta endocrinologista do Hospital Albert Einstein
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coisa nossa
Largo da Memória?
Paulistanos que passam pelo mais antigo monumento da cidade se decepcionam com marcas de vandalismo, sujeira e ameaça de drogados Eduardo Furtado, Izael Coelho e Paulo Cesar Souza
Quezia Barbosa Flávio Nascimento Milene Morgado
L
argo da Memória? Ou seria largo do descaso, do medo... Quem passa diariamente por este monumento histórico do centro de São Paulo, localizado nas ruas Xavier de Toledo e Quirino de Andrade, tende a ficar com a segunda opção. Salta aos olhos o estado de má conservação e depredação do conjunto arquitetônico, marcante por seu obelisco e seus azulejos azuis. A frase gravada no obelisco - “À memória do zelo do bem público” – entra em contradição com o atual estado do largo. Além das pichações, sujeira e outras marcas de vandalismo, é frequente a presença de drogados, intimidando quem se atreve a parar por ali. Nossa equipe de reportagem só conseguiu fazer imagens para esta matéria na terceira vez em que visitou o largo. Nas duas primeiras, teve que sair às pressas, em função da ameaça de drogados. Por conta dessa realidade, muita gente passa pelo largo correndo, sem poder contemplá-lo e sem saber que aquele é o monumento mais antigo da cidade. O conjunto foi tombado pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) em 1991. “Considero esta praça como uma das mais difíceis já construídas em São Paulo e uma das mais bonitas também, embora esteja bastante abandonada. Ela é bonita por cima, por baixo. É um lugar muito interessante”, destaca o arquiteto, Carlos Faggin, que é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo) e conselheiro do Condephaat-SP (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo).
Porta de entrada A construção do largo começou em 1814, de acordo com o Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da cidade de São Paulo. O engenheiro Daniel Pedro Müller, formado na Real Escola dos Nobres de Lisboa, foi escalado pelo governo da época para construir a estrada do Piques, para facilitar a comunicação entre São Paulo e o interior. Além da estrada, foi exigida dele a construção de um largo, a partir do alargamento das ladeiras do Piques e da Palha
Pichações, sujeira e mau cheiro são apenas alguns dos problemas do Largo da Memória. Drogados e bêbados assustam os que passam diariamente pelo local
(região onde hoje fica a rua Sete de Abril), e de um chafariz, acompanhado de um obelisco. O largo, que ficou conhecido como “largo da Memória”, ficava nos limites da chamada cidade nova, do outro lado do ribeirão Anhangabaú. O local era uma confluência de caminhos, porta de entrada do núcleo urbano de São Paulo, segundo o DPH. “Era um lugar de encontro. Os tropeiros quando chegavam na cidade paravam ali seus cavalos para que eles pudessem tomar água e descansar. Depois subiam para a cidade velha, pela ladeira de São Francisco. O “piques” foi um ponto muito importante da cidade”, explica Faggin. Em 1919, o largo foi reformado pelo arquiteto Victor Dubugras e o artista plástico Wasth Rodrigues. Um novo chafariz foi construído na praça, que também ganhou uma espécie de portal azulejado. Os azulejos, hoje muito encardidos e pichados, registram as memórias do antigo largo. Em 2005, o monumento, em especial o
obelisco, foi restaurado com o patrocínio da Companhia Brasileira de Alumínio (Grupo Votorantim). Passados oito anos, é como se nada tivesse sido feito. Questionada pela reportagem sobre o estado de abandono do largo, a assessoria da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em uma resposta evasiva, informou que, embora seja tombado, a manutenção do local é incumbência do Departamento do Patrimônio Histórico (que pertence à Secretaria). A assessoria disse ainda que a Subprefeitura da Sé realiza limpeza e retirada de lixo do largo de segunda a sábado. “Dentre os serviços executados estão duas varrições por dia e uma lavagem diária nas escadarias e no entorno”, destaca a nota enviada à reportagem. A Secretaria não informou nada a respeito de ações preventivas para combater o vandalismo e a retirada dos drogados do local.
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crônica
Menina do centro Lilian Rebeca
Seedfeeder
A
v. Ipiranga, São João, Rua Aurora, 15 de Novembro... A cidade grande, o centro de São Paulo. Quantas esperanças as pessoas depositam neste lugar... Sei que para alguns o centro deu certo, mas, para outros, há apenas uma face: a da dificuldade, do sofrimento. Conheci Rosineide quando eu trabalhava na Rua 25 de março. Ela veio comprar uma bolsa Prada, daquelas que são réplicas. Rose, como gosta de ser chamada, dizia que tinha de estar bem bonita para o namorado dela. Enquanto escolhia o acessório que encheria os olhos do parceiro, começou a me contar como tinha chegado em São Paulo. “Juntei tudo do pouco que tinha de valor pra mim: fotos dos pais e dos sobrinhos. Peguei as poucas das melhores roupas que tinha e coloquei tudo em uma mochila. Abracei meus familiares, sem chorar, e disse: “Mainha, vou, mas volto, viu? Não se preocupe!”. Estas eram as lembranças que ela tinha de sua família, que ficou no interior do Ceará. Rose não se esquece do primeiro dia em que pegou o metrô às sete horas, na Praça da Sé. Queria fazer baldeação para a linha azul, estava ansiosa. Era o seu primeiro emprego como doméstica em uma casa de família, ficava no Jabaquara. Mas a multidão que a empurrava para chegar à plataforma de embarque a fez entrar em desespero. Um senhor de cabelos grisalhos, que estava ao seu lado, ralhou: “Não me empurra garota, olha a minha maleta, né!!”. Assustada, pediu desculpas, com toda humildade, mas a resposta foi: “Ah, tinha que ser nordestina!” Nesse instante, uma jovem bem vestida, com roupas de marca e iPhone na mão a olhou de lado, com ar de desprezo e um sorrisinho irônico. Rose fingiu que não viu, abaixou a cabeça e seguiu em frente, levada pela multidão que a apertava. Uma pontinha de desânimo brotou no seu coração, mas a gana de vencer na vida era grande. Ser doméstica acabou não dando muito certo. Sua patroa, enciumada, despediu-a, acusando de ter dado em cima de seu marido. Só Rose sabia as cantadas que teve de suportar.
Depois disso, não conseguiu mais nada. Um dia estava sentada na Praça da República a folhear “O amarelinho”, com o pensamento distante, sem conseguir prestar atenção no conteúdo do jornal, conhecido por trazer vagas de emprego. De tempos em tempos, tirava os olhos do informativo e olhava para as carpas que nadavam na lagoa, mendigos, pessoas que passavam chutando as folhas e bitucas de cigarro. De repente, risadas de crianças, que pertenciam à creche situada na praça, a fizeram despertar do estado de letargia. Sentiu vontade de voltar a ser pequenina, pois, mesmo em meio às dificuldades do sertão, lembrou que brincava sem se preocupar sobre a vida. Nisso, aproximou-se um rapaz bem vestido e convidou-a para trabalhar como garçonete em seu bar. O salário era tentador e aceitou. Só não sabia que tinha que ser de noite e sempre bem maquiada e arrumada... Minha conversa com Rose, sobre suas desventuras na vida, acabou rendendo mais do que eu esperava. Ela me convidou para ir até a sua casa e eu aceitei. Era um cortiço na Av. Rio Branco. Rose sentou-se pensativa
de frente para uma pequena penteadeira velha, que refletia sua imagem desgastada, misturada à fumaça de cigarro. De repente, o celular tocou e ela atendeu. Marcou com um homem em um hotel próximo ao Largo do Arouche. Pôs um vestido preto decotado e bem justo, um colar e brincos grandes de argola dourados. Também um salto pink e a bolsa comprada na Rua 25 de março. Não se esqueceu de borrifar um pouco do perfume francês que ganhou de um admirador. Deu um beijo em seu filho de seis anos, que adormecia na cama em que dividiam, e viu, de relance, o quadro com as fotos de sua família. Antes de fechar a porta, deixou cair um suspiro. Despedi-me pensativa daquela mulher. O centro da cidade parece que foi o único lugar que a “acolheu”, mas por um preço muito alto. Teve que deixar de lado a família, os sonhos de quando era menina e a dignidade. Hoje veste uma máscara para sobreviver neste lugar que é para todos, mas, ao mesmo tempo, para ninguém.
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