Homenagem a Claudio Zumckeller

Page 1

1

CALICA 27 de julho de 2015.

Uma Ăşltima homenagem a Claudio Zumckeller


2

O DIRETOR Claudio, Calica, Tidão, Nenê, Praxideles Um nome, vários apelidos, uma personalidade única Rodrigo De Giuli

C

onheci o Claudio em fevereiro de 2007. Dois temporões começando o curso de Comunicação Social em meio àquela molecada toda de 20 e poucos anos. Eu tinha 34 e ele, 53. Pelos oito anos seguintes fomos muito mais do que colegas de faculdade. Éramos amigos, eu o tinha como um irmão mais velho. Fizemos o nosso Trabalho de Conclusão de Curso juntos, publicamos o livro, foi cada um para o seu lado. Mas nunca deixamos de nos falar, trocar ideias, debater. Debater era a paixão do Claudio, Calica para os íntimos. Trocar conhecimento, filosofar, conversar, a cabeça a fervilhar de ideias e “nãoverdades”, prontas para serem desmontadas, remontadas, recriadas. Depois do fim do curso de Jornalismo, com telefonemas esporádicos e muitas ideias na cabeça, surgiu a oportunidade que tanto queríamos: trabalhar com imprensa escrita, dentro de nossas possibilidades, seguindo nossos ideais e, sobretudo, com muita paixão. Montar um jornal para ser distribuído de graça, no começo, dentro da Feira da Madrugada e, depois, pelo bairro do Brás, região central de São Paulo, com uma linha editorial que desejávamos, sem interferências, sem publishers interesseiros, sem anunciantes pressionando.

Sim, você, leitor. Longe do conforto de casa, distante da família, dias na estrada. Tudo para que este quarto filho, o de papel, vingasse como os outros três biológicos, Alvaro, Stephanie e Vivian. Dificuldades não faltaram. Pagar o diagramador, o anunciante que desistia no último momento ou o sumiço recorrente dos meninos da distribuição. E a cabeça do Claudio, entupida de ideias, a fervilhar. A ansiedade em deixar tudo 110%. Levávamos dias para escrever um editorial, tal o perfeccionismo em colocar tudo ali no papel, certinho, em transmitir a ideia para o público. O texto era “lambido”, como uma leoa a limpar seus filhotes, o “passar d’olhos” para deixá-lo pronto. O desespero quando passava uma “rata”,

como ele se referia ao erro que descobríamos. Não importava o tamanho da “rata”, poderia ser uma vírgula fora de lugar ou um acento que não deveria estar ali. E a próxima pauta. Finalizada uma edição, a próxima pauta já era debatida, a cabeça do diretor de redação novamente a fervilhar. No dia 6 de junho, infelizmente, a cabeça do Claudio parou de fervilhar. Uma hepatite C que evoluiu à insuficiência hepática o levou. Como ele costumava dizer quando alguém morria, “subiu”. Nunca mais debateremos ideias, editoriais não serão mais “lambidos”, as “ratas” não darão mais desespero no meu amigo, irmão mais velho, chefe e mentor. Calica, eu vou sentir muito a sua falta. Descanse em paz.

São Paulo é o mundo Se durante os quatro anos de universidade foram muitos e acalorados debates, pelos mais de três anos seguintes foram 32 edições mensais que nasceram depois de muita luta, viagens, matérias, reportagens, crônicas e, claro, muitos e acalorados debates. Foram, sim, mais de três anos de aventuras pelo Brás e, por que não, pelo mundo. “São Paulo é o mundo”, Claudio acreditava. Nascido e criado na zona norte, morou um tempo em Paris, viajou pelo Brasil atrás de histórias para enriquecer a leitura do público do jornal.

Rodrigo De Giuli e Claudio Zumckeller à época em que cursavam Jornalismo na Uniban Brasil. A foto foi tirada no famo


3

DO JORNAL Feira News, A Voz do Brás, O Brás Uma história de idealismo e perseverança

F

eira News foi o primeiro nome do jornal fundado por Cláudio Zumckeller, em parceria com a administração da Feira da Madrugada. O público-alvo eram guias e motoristas dos ônibus de excursão que vinham de todo o país. A distribuição era gratuita e dentro da feirinha, como carinhosamente é chamada por seus frequentadores. Com o fim da eleição municipal e a troca dos administradores, o jornal foi abandonado. Sem desistir, Claudio manteve o sonho e, ao lado de um sócio, refundou o jornal com outro nome: A VOZ DO BRÁS. A sede do AVB era numa salinha mofada e sem janelas na sobreloja de um shopping popular do Brás. O público-alvo ainda era o mesmo, mas desta vez pelos estacionamentos espalhados na região Brás-Pari-Bom Retiro-Santa Ifigênia-25 de Março. A estrutura acanhada e a falta de recursos técnicos nunca foram impedimento para que ele fosse produzido. Uma equipe de três pessoas cuidava das finanças, distribuição e anúncios. O profissionalismo estava no suor de cada um. Reportagens e entrevistas eram buscadas na raça, sem credenciais para entrar nos palácios oficiais, sem veículo

próprio e, muitas vezes, com a ajuda dos colaboradores. O AVB durou quase dois anos. Um problema societário atrapalhou a sua continuidade. Novamente a pedra no caminho não foi maior do que a vontade de Claudio em continuar sua luta por um jornalismo sem amarras. Como um José drumondiano, foi questionado. Jamais se questionou, nunca teve dúvidas. No mês seguinte, nascia da parceria com um comerciante de bijuterias e antigo anunciante, o jornal O BRÁS. Agora diretor de redação, chamou os colaboradores do AVB e, como se nada tivesse mudado, duas edições foram publicadas. Quando a terceira estava no forno, a saúde pregou uma peça no jornalista. Uma hepatite C evoluiu para uma grave infecção hepática e em pouco dias aquela figura altiva sucumbiu.

oso “Bar do Hélio”, ponto de encontro dos estudantes da faculdade, na região central da cidade

Claudio Zumckeller, jornalista e filósofo, foi cremado no dia 8 de junho na presença de seus três filhos e, getulinamente, saiu da vida para fincar sua história em nossas vidas. (Rodrigo De Giuli)

Como um José drumondiano, foi questionado. Jamais se questionou, nunca teve dúvidas.”

Arquivo pessoal


4

O AL Parece que foi ontem Beth Matias

Arquivo pessoal

C

omeço aqui contando uma pequena história, pois sou como muitos que estão escrevendo hoje neste jornal, uma contadora de histórias. Parece que foi ontem. A turma não era muito grande, mas o meu papel imenso: orientação do TCC da turma do 4º ano de Jornalismo da Uniban. A coordenadora tinha me alertado que a turma era sensacional. Os grupos estavam formados e com uma boa noção do que queriam. Quem optou por impresso, estava sob o meu guarda-chuva. Dos oito grupos, cinco decidiram impresso. Fiquei desnorteada. Assim que me encontrei, seguimos em frente. No meio daqueles jovens esperançosos e cheios de sonhos, um rapaz muito simpático sorria maliciosamente. Claudio Zumckeller apresentou-se como corretor de imóveis e filósofo. Politicamente descreveu-se como um “cínico”. Era desafiador tê-lo como aluno. Inteligente e perspicaz, tinha a rebeldia dos jovens dos anos 70. Era avesso ao confinamento. A sala de aula parecia uma tortura para ele. Claudio tinha o poder de olhar por cima dos óculos e desconsertar as pessoas com suas observações inteligentes. Éramos divergentes em muita coisa, mas nos respeitávamos imensamente. A orientação do TCC foi difícil. O tema não chegava para a dupla Claudio Zumckeller e Rodrigo de Giulli, e, quando chegou, desafiava as minhas próprias crenças. Decidiram falar da (des) importância do diploma de Jornalismo. Logo eu, que sempre defendi a necessidade de preparo antes de entrar em uma redação. Mas eu estava ali exatamente por este motivo. Levava para a sala de aula um pouco da experiência que tinha obtido nas redações. Montamos a pauta e eles saíram à rua. Os encontros com os dois eram sofridos. Claudio filosofava e Rodrigo vinha com o pé no chão. O livro saiu e ficou muito bacana: “O Papel do Canudo de Papel”. O que antes era um distanciamento necessário, com a formatura do jovem jornalista veio

Beth Matias e Claudio no churrasco de confraternização da turma, em 2010.

a amizade. Conversamos por telefone e pelo Facebook. Foi assim que nos aproximamos, eu e Claudio. Algum tempo depois, voltamos a nos encontrar. Ele estava assumindo um jornal mensal e pediu para que eu escrevesse uma coluna para os pequenos comerciantes do Brás. A ideia era aproveitar a experiência de 10 anos no Sebrae. Fui em frente e aceitei o desafio. Praticamente escrevi todos os meses para o jornal. Desde a formatura, tivemos poucos encontros. Falamos muito pelo Face. Nossa última

conversa, aconteceu nos últimos dias de maio deste ano. Ele queria um artigo que mostrasse as possibilidades para os pequenos comerciantes diante da crise. Deu-me um prazo. Pedi mais tempo e não obtive resposta. Depois de uns dias soube que estava internado em estado grave. Foi-se embora muito rápido, muito ao estilo do Claudio. Sem muitas delongas ou milongas. No pouco que conheci, percebi que não era dado a “mimimis”. Deixou em mim a marca da saudade.

Claudio tinha o poder de olhar por cima dos olhos e desconcertar as pessoas com suas observações inteligentes.”


5

LUNO Intenso, inesquecível Patrícia Paixão

A

docência é uma atividade ali-

cerçada no relacionamento humano. Um professor que possui dez turmas, como aconteceu comigo diversas vezes, pode conhecer, em único semestre, mais de 500 alunos. Centenas de nomes, centenas de rostos, centenas de vozes. Muitos procuram o docente para contar seus dilemas, seus sonhos. A gente se envolve, ajuda, compartilha momentaneamente das delícias e dores daquelas vidas. Mas, algum tempo depois, num encontro por acaso na rua, impossível reconhecer todos aqueles semblantes e histórias. A não ser os que se tornaram inesquecíveis. É o caso de Claudio Zumckeller. Irreverente, imprevisível, profundo, Claudio se destacou desde o primeiro dia em que pisei naquela sala de Jornalismo. Na aula inaugural, quando pedi para os alunos se apresentarem, foi logo saindo do mesmismo de dizer o nome e o que esperava do curso. Levantou, com seu jeito irônico e desconcertante, questões filosóficas sobre os empecilhos enfrentados por quem exerce a atividade de jornalista nos dias atuais, meio que colocando em xeque toda minha apresentação inicial, quando, estrategicamente, tinha destacado o lado bonito da profissão e o meu idealismo, deixando a aridez e a crítica para encontros posteriores. Ainda posso ouvir sua voz meio rouca e firme, falando com entusiasmo sobre o Jornalismo, sem se intimidar com os colegas de sala, boa parte deles com idade para serem seus filhos. Claudio havia feito uma perfeita simbiose com aquela turma. Ia das reflexões profundas a brincadeiras esdrúxulas, típicas de adolescentes, em questões de segundo. Sua mente era jovem, destoava do rosto coberto de trilhas. Era divertido, topava todas, inclusive os chopes iniciados muitas vezes antes do intervalo das aulas, no famoso bar do Hélio, que ficava próximo da faculdade.

Inteligente e profundo, era visto como um dos conselheiros da turma, embora não buscasse de forma nenhuma esse título, pelo contrário. Claudio não era sempre Claudio. Muitas vezes ele era Tidão. Nesses dias, assistia a minha aula embriagado. Seu lado filosófico e ousado aflorava ainda mais. Chegou a fazer duas das minhas provas estando completamente chapado e, mesmo assim, conseguiu ficar entre as melhores notas da turma. Eu não era amiga íntima dele. Seria hipocrisia dizer que éramos íntimos. Mas gostava muito do Claudio e sentia que era recíproco. Lecionei para a sua turma por três semestres e cheguei a enfrentar alguns problemas sérios com a sala, por conta de ter sido promovida coordenadora acadêmica no meio desse relacionamento. Todos que passaram pela antiga Uniban sabem

Irreverente, imprevisível e profundo, Claudio se destacou desde o primeiro dia em que pisei naquela sala de Jornalismo.”

que a universidade não era um mar de rosas. Algumas coisas muito chatas aconteceram, e, por estar à frente do curso, inevitavelmente tive que arcar com o desgaste decorrente desses acontecimentos. Sempre contei com o apoio Claudio: “Não fica chateada não, cara mestra [era assim que ele chamava]. Sabemos que nem tudo está ao alcance do seu poder de ação”. Mesmo numa relação por vezes conturbada, tive alguns momentos lindos com a sala do Claudio. Momentos que me fizeram conhecer melhor a turma e aquela figura emblemática, com toda sua imprevisibilidade e intensidade. Lançamos um livro juntos: “Jornalismo Policial: Histórias de quem faz”, que traz entrevistas com os principais repórteres policiais brasileiros. Claudio viveu o processo de produção do livro com muito fervor. Vibrava com cada passo que dávamos. Surpreendentemente, no dia do lançamento da obra na Bienal Internacional do Livro, no Anhembi, não apareceu. Fiquei tentando entender por que ele deu voz ao Tidão naquela noite que tinha sido tão sonhada. Mais tarde percebi que Tidão costumava aparecer nessas ocasiões especiais. Como no lançamento do mesmo livro na TVE de Jundiaí, quando tivemos a honra de sermos acompanhados de Percival de Souza, que aproveitou o ensejo para lançar sua obra ao lado da nossa. No almoço ao final do encontro, para comemorarmos o lançamento, Tidão sentou-se próximo a Percival. Fez diversas reflexões filosóficas, convidando Percival ao debate. Cantou, abraçou, beijou, brincou e se esbaldou com todos que estavam na mesa, inclusive com a minha mãe, que também tinha ido ao evento. Demos muitas risadas e tenho certeza de que Percival jamais se esqueceu daquele dia. Sempre gostei de pessoas imprevisíveis e intensas. As grandes páginas da vida e da história não foram escritas por quem


o pessoal

6

Lançamento do livro “Jornalismo Policial: Histórias de quem faz”, na TVE de Jundiaí, em 23 de outubro de 2010, ao lado do repórter policial Percival de Souza

preferiu permanecer na zona de conforto, na mediocridade. Admirava demais toda essa intensidade do Claudio. Mas, ao mesmo tempo, dava um medo absurdo de perdê-lo. Eu ficava imaginando ele vagando por aí, sendo atropelado, coisas do tipo. Várias vezes fui para casa, após lecionar para a turma, com essa preocupação. O Rodrigo sempre me tranquilizava: “Fique sossegada, professora, ele se vira”. Muitas vezes ele acompanhava o amigo para garantir sua segurança. Vi o Claudio encerrar o curso com chave de ouro, com um livro-reportagem muito bom, questionando a necessidade do diploma para a atuação no Jornalismo. Deu um orgulho danado participar como avaliadora do Trabalho de Conclusão de Curso que ele e o Rodrigo fizeram juntos. Os dois formavam uma belíssima dupla. Depois da faculdade, mantivemos contato pela internet. Ele curtia minhas postagens no Facebook, comentava com fervor algumas delas, perguntava da família, do meu trabalho e sempre me agradecia pelo livro que fizemos juntos: “Você fez muito pela nossa turma. Nunca me esquecerei”. Queria lançar outro projeto comigo: “Va-

mos fazer outro livro juntos?”. Claro, Claudio, vamos! Sobre o quê? “A Sra. é quem manda. Diz aí que vamos atrás”, respondia animado, sempre incluindo os colegas. Em 2014, me convidou para escrever um artigo para o seu jornal, “A Voz do Brás”, sobre a Copa do Mundo no Brasil. Aceitei com empolgação o desafio e ele ficou muito feliz. Voltou a entrar em contato comigo no início de 2015, me convidando para escrever mais um texto. Expliquei que com a bebê (tive outra filha em novembro de 2014) e as atividades na faculdade em que sou coordenadora estava meio complicado. Ele compreendeu e disse, brincando: “Eu espero você criar a sua prole”. No dia em que soube de seu desenlace fiquei extremamente triste. Aquele temor que sempre tive aconteceu. Eu queria tê-lo encontrado pessoalmente mais uma vez, ter dado um abraço de verdade, fora da frieza do mundo virtual. Pessoas como ele fazem muita falta nesse mundo em que a maioria vive tentando se encaixar num comercial de margarina. Sua autenticidade jamais será esquecida. Até um dia, caro aluno, quando lançaremos nosso segundo livro. O tema você escolhe. Conto com sua genialidade!

As grandes páginas da vida e da história não foram escritas por quem preferiu ficar na zona de conforto, na mediocridade.”


7

O conselheiro, o amigo

Arquivo pessoal


8

OP O clarinete, o bonde e o dente de leão Álvaro Lúcio Zumckeller

P

ois é, seu Claudio Sérgio Zumckeller, filho do Canhoto e neto do Seu Joca, és agora ideal. Presente aqui e acolá nas conversas acaloradas de que tanto gostava, chegando de sopetão na voz do Ray Charles, nos acordes de Chopin ou numa linha mais inspirada de Saramago. Estás no vento, como as sementes de dente de leão que me fazia soprar na primeira infância. Cairá dentro de muitos e germinará infinitas lembranças. Serás agora como a música que saía daquele teu clarinete que eu tanto desmontava, no afã de encontrar a música, de enxergar o som. Você virou canção meu pai. Estarás presente nas noites e nas mesas nas quais surgir um debate mais polêmico sobre adaptações de Dom Quixote ou outra coisa dita irrelevante dessa mísera existência carnal. Correrás nas peladas de bairro incorporado num ponta de lança arredio e temperamental, um Nenê Bandalho, dançando nos atalhos do campo e presenteado precocemente com a tarjeta vermelha. Aquela bola velha de capotão agora é você. No trajeto das nossas caminhadas rumo ao horto florestal você sempre me contava sobre a linha de bonde que ali passava, como eram majestosos, sempre atulhados de gente, como os achava bonitos e como te traziam boas lembranças. Na minha cabeça de criança eu não conseguia ver nenhum bonde, via somente a rua moderna, tal qual era naquele momento. Obrigado pai, hoje eu consigo enxergá-los, para sempre. Jornalista, por fim, não se incomode muito com minhas tortas e mal traçadas, se não fui direto ao fato ou se houve algum excesso. Prometo te mandar novas crônicas, o diálogo estará sempre aberto. À redação! Te amo.

Arquivo pessoal


9

PAI Os caminhos que ele precisava seguir Stephanie Zumckeller

Q

uando pensei em escrever algo sobre o meu pai, me veio um filme à cabeça. Nas primeiras cenas eu era bem pequenininha, ele chegava em casa para me visitar e colocava um cd do B.B. King para tocar. Enquanto as músicas tocavam, a gente dançava, ele me girava e eu morria de rir. Ele tocava no violão a canção “Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora” e eu encostava a cabeça no ombro dele e aquele era, sem dúvidas, o melhor momento do meu dia. Depois me lembro que, já adolescente e andando algumas vezes pelas ruas da zona norte, me deparava com meu pai, completamente louco. Passei um tempo tentando entender o porquê dessa escolha. Foi quando, em uma de nossas conversas, tomando uma Original em um bar (ele estava com uma camisa floral, parecendo um menino, da mesma idade que eu, não só pela roupa, o seu jeito também o era), ele me disse: “filha, eu não nasci pra ser e jamais tive vontade de ser esse pai convencional, dessas famílias que você vê nesses prédios, por exemplo, onde cada apartamento parece uma gavetinha. Você abre a gaveta, e tá lá aquele pai sentado no sofá, perguntando para as filhas ‘meninas, precisam de algo? Já pegaram o casaco? Tomaram o remédio?”. Foi um tapa na cara pra mim, porque tudo isso a que ele se referiu era justamente o que eu sempre esperei dele. Mas a partir desse dia comecei a entender um pouquinho da cabeça do Nenê. Em outros encontros, bebemos vinho, ele tocou violão, cantávamos e conversávamos sobre a vida. Ganhei um amigo. Ele era, como diz meu irmão Álvaro, uma alma livre. Engraçado, adorava fazer caretas, imitações, respirava música. Inteligente, teimoso e sem muita paciência, mas seu coração era bom. O coração de um menino, que viveu experiências e dores, as quais eu desconheço, mas que, sem dúvida, o levaram por esses caminhos não tão convencionais, não tão esperados por uma filha. Mas os caminhos que ele precisava seguir pra ser o Nenê. Figuraça. Bebia uma cerveja e virava carioca malandro. Frases como “vai na miúda”, “é nóis, Queiroz” ou “você é Zumckeller, porra” faziam parte do seu repertório.

O tempo passou e foi através do Nenê que eu pude descobrir um dos sentimentos mais lindos: o amor incondicional. Ainda que ele não fosse o que a minha cabeça de menina sonhava, ele me encantava. Eu me via no seu olhar, no seu sorriso, nas suas palhaçadas. Eu tenho muito dele. E eu o amava sem motivo, de graça. O amei exatamente como ele era. Nos seus últimos dias, o Nenê disse que não estava conseguindo ouvir música, além de duas: “Noturno”, de Chopin, e “May way”, de Frank Sinatra. Por essa razão, escolhemos as mesmas para tocarem em sua cerimônia de cremação. Ao chegar em casa, por curiosidade, fui procurar a tradução da música do Sinatra. E é com ela que eu encerro minha homenagem ao meu pai querido, que me deixou muitas saudades, muitas boas lembranças. Eu o admiro, acima de tudo, pela coragem que teve de viver suas vontades acima de qualquer convenção. Vou me lembrar de você, minha figura, como o homem inteligentíssimo que tocava violão como ninguém, que estudou Filosofia na USP, música na França, concluiu sua faculdade de Jornalismo depois dos 50 e abriu o seu próprio jornal. Meu sorriso é pra você e por você. Um dia a gente se reencontra, meu amor.

Arquivo pessoal

Tradução da música “My way”, de Frank Sinatra: Meu jeito E agora o fim está próximo. Então eu encaro a cortina final. Meu amigo, eu vou falar claro. Eu irei expor meu caso do qual tenho certeza. Eu vivi uma vida por inteiro. Eu viajei por cada e em todas as estradas. Oh, mais, muito mais que isso. Eu fiz do meu jeito Arrependimentos, eu tive alguns. Mas então, tão poucos para mencionar. Eu fiz, o que eu tinha que fazer. E eu vi tudo, sem exceção. Eu planejei cada caminho do mapa. Cada passo, ao longo da estrada. Oh, mais, muito mais que isso.Eu fiz do meu jeito Sim, teve horas. Eu tenho certeza de que você sabe quando eu mordi mais que eu podia mastigar. Mas, entretanto, quando havia dúvidas, eu engoli e cuspi fora. Eu encarei tudo isso e continuei altivo. E fiz do meu jeito Eu amei, eu sorri e chorei.Tive minhas falhas, minha parte de derrotas. E agora como as lágrimas descem. Eu acho tudo tão divertido. De pensar que eu fiz tudo. E talvez eu diga, não de uma maneira tímida. Oh não, não eu. Eu fiz do meu jeito E o que é um homem, senão o que ele tem. Se não ele mesmo, então ele não tem nada. Para dizer as coisas que ele sente de verdade E não as palavras de alguém que se ajoelha. Os registros mostram que eu recebi as desgraças. E fiz do meu jeito. Sim, esse era meu jeito.


10

OP Você fez tudo do seu jeito Vivian Zumckeller

Q

uando pediram que selecionássemos duas músicas, num catálogo com menos de 30, para definirmos os derradeiros hinos da sua existência, encontramos entre os títulos os dois únicos que você andava escutando pelo player do smartphone. Sua irmã foi quem resgatou o duo de uma memória fresca. Dias antes, você não havia sido capaz de esconder dela a emoção ao tocá-lo no quarto do hospital. Mas acabou escolhendo, entre confissões e lamúrias, o que seria a trilha sonora do seu adeus. Até acredito em coincidências. E, sinceramente, não me espanta que os célebres Noturno, de Chopin, e My Way, de Frank Sinatra, estivessem numa lista para uma ocasião como aquela. Ambas são canções pungentes e, com elementos poderosos para remexer sentimentos e reminiscências, tornam-se perfeitas alegorias para celebrações tétricas. Surpreendo-me, porém, com a opção subjetiva de embalar seus pensamentos recentes com tais melodias. Seja pela correlação entre a letra do clássico norte-americano e sua trajetória, ou pelo tom confessional de resignação que ele carrega, foi inevitável não me perguntar como o acaso poderia ter sido tão capcioso. De fato, você fez tudo do seu jeito. Ouvindo a música na cerimônia que precedeu sua cremação, vi diante de mim um compilado de passagens sui generis que atestavam isso dentro dos nossos melhores momentos juntos. Deu vontade de ser de novo a menininha que cantava o “Corcovado”, de Tom Jobim, acompanhada pelo seu violão, de sentar no seu colo com as respostas na ponta da língua quando você me perguntava os presidentes de cada país, de simplesmente voltar no tempo pronta para reconsiderar o que, durante anos, não pude entender… Concluí bem tarde que você não levava mesmo jeito para ser o pai convencional que eu um dia quis. Sua inadaptação a padrões menos intensos que os seus, no entanto, nunca impediu que fôssemos pai e filha em qualquer circunstância. A regra era uma só: se estávamos perto um do outro, você sempre sucumbia aos estere-

ótipos. Talvez se eu tivesse lembrado das suas crises mais agudas de corujice, do dia em que você me ensinou serigrafia na estamparia até as vezes em que amou ser meu par número um nas festas juninas da escola, eu jamais teria achado que os tais “arroubos” de pai à moda antiga haviam sido meramente arroubos.

Flauta peruana de madeira Você também fazia tudo do seu jeito quando me trollava, sem querer, com reações mais inusitadas. Campeão internacional de inventar caretas e expressões coloquiais, foi o melhor imitador que já conheci do repórter Gil Gomes, do tio Osmar e do sotaque de nordestina da minha mãe. Ninguém teve igual desenvoltura para quebrar minhas pernas em dia normal ou em data comemorativa. Que outro pai nesse mundo seria igualmente original a ponto de me dar de presente, aos oito anos de idade, uma flauta peruana de madeira e um dicionário de francês? Arquivo pessoal

Nos encontros e desencontros da nossa história, faltou atitude para agradecer e dizer que eu adorei ter ganho de você meu primeiro livro de filosofia, que conheci em experiências como essa a felicidade das coisas simples, que devo a suas imperfeições escancaradas minhas maiores lições de vida, e que só troquei o seu São Paulo pelo Corinthians do tio Oscar para chamar sua atenção. Guardo, por agora, tudo o que não lhe falei do meu amor, a culpa por não ter aparado algumas arestas misturadas a planos que tinha para nós desde o dia em que choramos no telefone na nossa reconciliação, e a vontade de reencontrar você num lugar em que possamos começar do zero. Espero que lá os ponteiros do relógio não sejam inimigos dos nossos sonhos e que possamos estar seguros o suficiente para viver e contar, dessa vez, do nosso jeito, tudo o que está dentro dos nossos corações. Te amo, pai. Para sempre vou amar.

Guardo a vontade de reencontrar você num lugar em que possamos recomeçar do zero. Te amo, pai. Para sempre vou te amar.” Vivian Zumckeller


11

PAI Arquivo pessoal

Meu sorriso é pra você e por você. Um dia a gente se reencontra, meu amor.”

Stephanie Zumckeller

Arquivo pessoal

Serás agora como a música que saía daquele teu clarinete. Você virou canção meu pai.” Álvaro Lúcio Zumckeller


12

O ÚLTIMO TEXTO Todo dia é dia para compreender o índio O modo como alguns povos primitivos se relacionam com a natureza e a sociedade Claudio Zumckeller

A

antropologia moderna ensina, usando o estudo das chamadas culturas primitivas, que o comportamento social dos seres humanos pode apresentar grandes diferenças. A conduta social de um povo está intimamente ligada aos padrões culturais adotados e aos dos tipos de organização que predominam em cada sociedade. A reflexão e a compreensão desta afirmação fundamentam as esperanças daqueles que se esforçam em melhorar as condições dos homens: os seres humanos não estão absolutamente condenados, por sua constituição biológica, a exterminarem-se mutuamente, ou a viverem como reféns de um destino de crueldade e de castigo. A presença humana em territórios que hoje chamamos Brasil está documentada entre dez a doze mil anos atrás. Arqueólogos presumem que ela provenha das correntes migratórias de povos caçadores da Ásia. Estima-se que os Bororo estariam presentes há 7 mil anos, nas terras do atual Mato Grosso até os limites com a Bolívia. Eles são uma das etnias, entre as mais de 1,2 mil, que compunham uma população de cerca de dez milhões de indivíduos que já se encontravam por ali há 500 anos, quando da chegada dos primeiros colonizadores. A denominação “índios” é genérica, graças ao equívoco de navegadores que pensavam estar nas Índias. Navegadores e exploradores que deram início ao processo de devastação territorial e cultural desses povos. O sopro de vida que jamais cessa – vejo e revejo as fotos da doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Sylvia Caiuby Novaes. Releio seus textos. A imaginação voa em um grave uníssono de flautas de bambu. Vozes em coro entoam cantos singulares que soam como lamento. O compasso frenético marcado por centenas de pés descalços toca a terra e ecoa pela aldeia. Bakororo e Iturobe, principais heróis míticos, dançam majestosos: dois Boe, o indivíduo comum, caracterizados com plumas e pinturas e que representam as entidades criadoras dos fundamentos básicos da sociedade Bororo. O ritual, embalado por cantos narrativos, recria o ato criador daquela organização social. Em uma cova rasa, envolto por uma esteira, um corpo está sepultado. Diariamente ele será molhado e, de tempos em tempos, desenterrado para que se examine o estado de sua carne e os cheiros que exala. O

odor de podre – jerimaga – é indício de que Bope – espírito a quem são atribuídas transformações, como nascimento, puberdade e morte – ainda está presente saciando-se com a matéria carnal. É fundamental que ele se retire para que os ossos sejam lavados, pintados e ornamentados. Esse processo pode durar até três meses. Inúmeros rituais precedem o enterro definitivo. Eles ocorrem na casa do morto, na casa dos homens e no pátio central. A morte reúne a sociedade dos vivos com a sociedade dos mortos. A escolha dos ritos a serem celebrados ao longo do ciclo funerário depende do clã do finado e da disposição de recursos materiais para realizá-los. Boe, nesse momento cerimonial é Aroe, que significa o sopro de vida que jamais cessa, e que nunca começou. O eterno, o que simplesmente é. Manifesto nos corpos humanos, na ação dos heróis e na cabacinha, onde permanece durante o rito funeral de passagem. Os rituais de caça e pesca e a iniciação dos jovens remetem à origem das leis que regem essa sociedade. Enquanto Bope não abandona o corpo do finado, eles cantam, riem e se alimentam. A vida é recriada coletivamente com “ânimo inspirado”. O interesse público revela-se à percepção. Não se explica, mas é preciso saber e fazer saber. São verdades compartilhadas que não desmascaram o segredo, antes reforçam seu sentido coletivo. Um homem é escolhido para representar o morto. Seu corpo é inteiramente recoberto de penugens e pinturas. Ele tem na cabeça um enorme cocar de penas e a face coberta por uma viseira de penas amarelas. No pátio da aldeia já não é um homem que dança e sim o aroemaiwu, literalmente, a alma nova que, com suas evoluções, se apresenta ao mundo dos vivos. Dentre as várias tarefas que lhe cabem, a mais importante é a caçada de um grande felino, cujo couro será entregue aos parentes do morto, em um ritual que envolverá todos os membros da aldeia. O abate desse animal assegura a vingança do morto, por meio daquele que o representa, sobre o Bope, entidade causadora da morte. Esse momento marca o fim do luto e indica a vitória da vida. Os rituais funerários criam e recriam a organização Bororo. Eles revelam os mistérios de uma sociedade que faz da morte um momento de reafirmação da vida. A pantomima Baraedu Ku Kuri faz parte dos ritos. Nela os Bororo reconhecem plenamente o poder do “mundo civilizado”, mas é baseado no excesso que esse mundo é ritualmente caracterizado. O humor grotesco predomina. Boe torna-se o outro, alteridade que marca seu modo de ser. A paródia do

mundo civilizado, povoado por seres barrigudos, que falam alto e gesticulam demais, estabelece o contraste com o ritual em que aparece a alma nova, o aroe maiwu, um ser leve e esplendoroso. Quando cessa o sopro de vida, o moribundo, que enquanto agonizava teve as características individuais assinaladas por seus objetos de uso, terá o rosto coberto e os pertences pessoais queimados. Seu nome não será proferido durante os rituais e nenhum de seus apetrechos poderá ser tomado como herança. A cerimônia funeral Bororo propicia a experiência da alteridade. Uma elaboração para representar o outro e sua cultura diversa, compreender seu contexto e, despojado de preconceitos, vivenciá-lo, enquanto representado em gestos e sentimentos, para conhecê-lo e, através dele, reconhecer-se a si mesmo como outra possibilidade social de ser. Como uma via diversa, não a única.

População indígena Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Há também 63 referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai). As informações históricas disponíveis indicam que nas últimas décadas do século 19 havia um contingente de aproximadamente dez mil indivíduos Bororo. Contudo, ao cabo de poucos anos, grande parte sucumbiu aos efeitos nocivos do contato, que incluíram guerras, epidemias e fome. O quadro era tão desalentador que o antropólogo Darcy Ribeiro (“Os Índios e a Civilização”, Ed. Vozes, 1970), ao analisar o censo de 1932, afirmou que o alto grau de vulnerabilidade dos Bororo indicava as últimas etapas do processo de extinção. Entretanto, a partir da década de 1970, tem-se observado um crescimento populacional, de modo que, de 626 indivíduos registrados pelo Padre Uchôa, em 1979, existem, no início do século atual, aproximadamente 1.024.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.