Conversa: publicação como estratégia para a prática de coletivos de arquitetura

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4 de dezembro de 2017

Conversa entre Isabela Izidoro e Aline Furtado, do coletivo Às Margens, Felipe Carnevalli, do coletivo Micrópolis, Ceci Nery, da Cozinha Comum, Ricelle Alonso, do coletivo Planta e Paula Lobato, da Cozinha Comum e da BANCA.

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Paula: Então, gente, vamos começar. Estou investigando, no TCC, as publicações na área de arquitetura, especialmente no contexto brasileiro. Esse semestre pesquisei mais especificamente como isso funcionou, ao longo do século passado, para no próximo semestre tentar fazer uma proposição em relação ao que está sendo feito hoje, aqui. Para dar uma introdução rápida sobre isso, a história contada nos livros fala que as primeiras publicações especializadas em arquitetura no Brasil começaram a ser feitas mais ou menos na década de 1930, época de construção do modernismo no Rio de Janeiro, durante o Governo Vargas. Bom, antes disso, o que acontecia muito eram polêmicas mais pontuais – por exemplo, arquitetos que defendiam o moderno versus neocoloniais – brigando nos jornais, brigando em algum veículo não especializado, como agendas culturais... e então nos anos 1930 tem início a publicação de revistas e periódicos ligados a arquitetos. Isso vai crescendo muito, especialmente porque mais ou menos nos anos 1940, 1943, acontece uma exposição nos Estados Unidos, a Brazil Builds, e ela trás um fotógrafo e um arquiteto aqui pro Brasil que catalogam a produção arquitetônica dos trezentos anos, até então, de arquitetura brasileira. Então eles registram uma parte de arquitetura tradicional, vernácula, registram exemplos da arquitetura colonial, arquitetura eclética, e tal, e eles também catalogam uma parte muito grande do movimento moderno, que era, nessa época, basicamente feito no Rio de Janeiro. Eles levam essas imagens para os Estados Unidos, em Nova York, no MoMA, e isso vira um livro. Na verdade vira uma exposição que é muito divulgada, e depois um livro. Mais ou menos nesse período já é também o fim da Segunda Guerra, e essa imagem da arquitetura que estava sendo produzida aqui é uma imagem que era muito difícil de encontrar em outros países, especialmente os europeus, porque eles estavam num

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contexto pós-guerra. Então parecia uma coisa muito incrível, uma promessa de futuro muito animadora para quem estava vivendo num contexto de guerra. E aí, o registro que esse fotógrafo faz – ele chamava George Kidder Smith – é divulgado em muitas revistas internacionais, o que acaba gerando um efeito disso no também no Brasil, que é quando a arquitetura ganha também um reconhecimento nacional. A imagem da arquitetura moderna carioca passa a ser entendida como arquitetura brasileira, ela vira essa representação iconográfica da arquitetura brasileira. Depois disso, lá pros anos 1960, já tem início um declínio relacionado a isso, e relacionado consequentemente às publicações que vêm do questionamento, mesmo, do que estava sendo feito, de um posicionamento mais crítico por parte de alguns arquitetos. Além disso tem também a ditadura, que acaba fechando todas as revistas. No ano de 1968 mais ou menos o Brasil passa por um período sem ter revista alguma de arquitetura – e de outras áreas culturais também, não é uma coisa exclusiva. Mais pro final da ditadura essa produção volta aos poucos, final dos anos 1970, 1980, mas já em forma de revistas ligadas a pós-graduação, ligadas a uma pesquisa que vem da academia, assim. Até então as revistas do movimento moderno apresentavam uma discussão que estava completamente fora da faculdade. Primeiro porque quase não tinha faculdade de arquitetura no Brasil, e segundo porque o moderno era um estilo que até então a faculdade negava. Então eles construíram toda essa discussão e essa veiculação das ideias de uma forma muito autônoma em relação à universidade. 4

Nos anos 1980, então, a produção já volta a partir de uma pesquisa de pós-graduação, de uma pesquisa que tem uma vontade de ser mais teórica, assim. Ao mesmo tempo, já apresentando um pouco a virada do século, que é quando o arquiteto vira um produto para ser vendido, as revistas acabam

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começando a refletir um pouco isso. Isso acontece no sentido de querer mais apresentar um panorama dos projetos sendo feitos, e uma ideia mais formal e menos crítica de vários modos de construir diferentes do que realmente criar um posicionamento ou criar uma abordagem mais política que pode vir a trazer menos mercado pra elas. E essa história muito breve, que termina aqui, acaba virando o que hoje a gente vê como revista de arquitetura oficial, que é uma produção muito pouco interessante, principalmente pra quem é mais novo, que não acompanhou o crescimento dessas revistas. Falta uma discussão e falta uma forma de engajamento crítico com o que está sendo feito, mais do que uma reprodução em massa de um volume imenso de coisas para as pessoas ficarem folheando. Bom, nesse contexto, e também a partir do contexto que a gente tem aqui na BANCA de pesquisar publicações independentes, de pesquisar o que está sendo feito no Brasil hoje em relação a isso, é que vem essa ideia de investigar outras formas de publicação que estão sendo feitas atualmente, no recorte dessa pesquisa, relacionadas à arquitetura. Para mim é muito clara a falta de inclusão de outras experiências, bem mais diversas, nessas narrativas oficializadas das publicações – como se só o Niemeyer tivesse feito revistas, né? Aí é quando os meninos, nossos convidados, entram. Uma coisa muito interessante que a gente está vendo, e que a gente ao mesmo tempo vive em meio à nossa prática, é o fato de termos utilizado a publicação como uma ferramenta de ação em vários casos. Isso vem, para mim, em primeiro lugar, como um desafio que a gente apresenta a umas noções ainda modernas de como fazer projeto, de como se portar em relação à arquitetura, de como ser arquiteto, e à faculdade, de um modo geral, que mesmo depois de tanto tempo, faz questão de manter hoje alguns modelos muito antigos.

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Acho que a ideia seria mesmo cada um apresentar um pouco essas formas de ação através da publicação, que não têm uma regra, não têm uma classificação, é uma iniciativa própria de cada grupo. Essa conversa seria pra gente conhecer, e poder entender um pouco esse funcionamento, para depois também discutir. Então hoje estão aqui o Felipe, que é do coletivo Micrópolis e que se formou aqui na faculdade, a Isabela e a Aline, do coletivo Às Margens, formadas aqui na faculdade, Ricelle, que formou no Isabela Hendrix, do coletivo Planta, e eu e a Ceci... Ceci: E a gente que não formou! Paula: É, nós que queremos um dia formar nessa faculdade também. Gente, em primeiro lugar muito obrigada pela presença, fico muito feliz de vocês animarem participar dessa discussão e de juntos começarmos a pensar um pouco o que isso significa hoje para uma prática de arquitetura. Vocês podem ficar à vontade, quem quiser começar apresentando um pouco, a si mesmo e alguma publicação... Ceci: Quer que a gente comece a falar, Paula? Já que você já tá falando... Paula: Amiga, você é a convidada! Mas pode ser, que aí a gente vai conversando também.

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Ceci: A gente tem trabalhado juntas tem tempo, né Paula, e uma coisa que a gente sempre se preocupou foi em como encontrar uma maneira de estabelecer um diálogo com o outro sem ser em uma linguagem técnica. Porque a linguagem técnica é uma linguagem excludente. Você não pode chegar para uma pessoa com um desenho ou com um mapa, que são abstrações, e esperar que ela entenda. A gente estuda esse tipo de linguagem aqui por quase sete anos e ainda sai sem entender, ou sem conseguir produzir e reproduzir. Uma das coisas que move, mesmo, nosso trabalho é essa busca por fazer junto com outras pessoas, de não ser um trabalho autoral. Então nossas publicações e as coisas que a gente faz são

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processos, e não produtos, cada um aconteceu de maneira distinta porque envolveu diferentes agentes. Os processos não são do coletivo, são processos que aconteceram especificamente em cada trabalho. Eu trouxe aqui algumas coisas que a gente fez. A primeira chama Alimentos que Curam, uma publicação feita com um grupo grande de alunos do curso de Design e da Arquitetura aqui da UFMG. Essa pesquisa foi feita convidando uma cozinheira de alimentação tradicional e uma pesquisadora de plantas medicinais, que nos ensinaram algumas coisas que utilizamos na produção desse material. Nós desenhamos cada uma das plantas e, junto com a ilustração, explicamos pra quê que elas servem e qual a parte que se usa. É uma coisa bem simples, de tentativa de entendimento, mesmo. Fizemos um evento em torno dos alimentos estudados e nesse dia distribuímos a publicação para as pessoas entenderem melhor o que estava acontecendo ali. Esse outro livro que eu trouxe é, na verdade, o meu TCC, e se chama Cozinhas Compartilhadas. Ao todo fizemos três volumes, mas eu mesma só tenho dois deles. O primeiro, que não está aqui, a gente fez sobre uma vivência na terra indígena Xacriabá, no norte de Minas Gerais, a partir de uma pesquisa dos quintais, de algumas práticas de cozinha com as mulheres, da nossa vivência lá, entre outros. O segundo livro fala sobre a cozinha da Escola de Arquitetura, cozinha autogestionada pelos alunos. Contamos um pouco das metodologias que a gente usou e da sucessão de acontecimentos que levou à cozinha compartilhada. Chamamos as pessoas que participavam da cozinha pra escrever ele com a gente. O último livro é sobre a Ocupação da Escola de Arquitetura, e nesse a gente faz uma costura também com a prática que tivemos na Ocupação Eliana Silva. Trazemos a cozinha, que utilizamos como dispositivo de diálogo, mas ela vai sendo

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revelada ao longo da publicação e costurando esses territórios, criando um diálogo entre o que significa cozinhar e resistir em uma ocupação urbana e o que é cozinhar e resistir numa ocupação do movimento estudantil. A gente também convidou as pessoas que participaram das ocupações, transcrevemos rodas de conversa na Eliana Silva e aqui também. Essa última publicação eu considero a mais processual de todas, e eu acho isso super interessante, porque faz dela uma tentativa de diálogo. É um livro de receitas que, na verdade, estava todo em branco, e, enquanto a gente estava ministrando oficinas para um grupo de mulheres na Pampulha, fomos colocando as receitas e as pesquisas que a gente fazia, e pedimos pra elas compartilharem também aqui as receitas delas. Então aqui tem aqui várias letras, várias vozes. Acho que falei rápido mas é basicamente isso, nosso trabalho é esse desafio de tentar encontrar uma maneira de dialogar com as pessoas, se aproximar, sem utilizar uma linguagem técnica e sem criar um afastamento, assim, de cara. Essas são publicações para revelar processos dos quais participamos, e a gente acha que é super importante essas coisas circularem, e a informação chegar a diferentes pessoas.

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Paula: Eu acho que essas publicações, e especialmente os livros sobre as Cozinhas Compartilhadas, têm uma característica muito forte de propor trocas através da publicação. Ali na BANCA mesmo tem um tanto de livrinhos e manuais, como os Kits Ambulantes e o Banquetes, da Louise Ganz e do Breno, que procuram dividir um pouco do processo, no sentido de criar possíveis diálogos futuros com quem também está interessado em práticas similares. Mais do que serem feitas durante os acontecimentos, essas publicações têm uma característica de registrar eles... E esse registro cria diálogos com quem venha a se interessar depois. Para mim já é diferente da ideia do Alimentos que Curam, por exemplo, que envolveu um grupo maior numa pes-

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quisa e depois levou isso para outras pessoas, né? Mais do que ser uma prática que a gente fez em um lugar específico e registra só para guardar, esses saberes interessam muita gente, podendo ser utilizados e reinventados no cotidiano dessas pessoas. Ceci: As metodologias de trabalho são criadas para cada situação, e nessas publicações a gente revela algumas delas. Eu considero super interessante revelar essas metodologias, porque a gente inventa práticas que utilizam a comida e o cozinhar como dispositivos de ação. São muitas as possibilidades que vêm de você fazer uma prática junto. Como fazemos tudo juntos, elas são sempre uma co-criação. E se a prática se transforma depois numa reflexão, essa reflexão pode – e precisa – ser compartilhada também. Ricelle: Eu acho fantástica a comida, porque ela cria o encontro, né! Especialmente no Brasil, com a nossa miscigenação, acho que o espaço da cozinha é um espaço para muitas trocas... Quando vocês levam a cozinha pra rua, aumentam a possibilidade de criar a partir do alimento que alimenta, não só fisicamente, mas também a cabeça, né... Ceci: É, o alimento é como se fosse uma linguagem que todo mundo domina, e, sendo assim, também conseguem interagir com ela. A linguagem escrita, as publicações, a gente tem até um pouco de cuidado, porque têm pessoas que participam dessas atividades que a gente faz que não sabem ler, que não sabem escrever... E assim a comida acaba sendo também um dispositivo de diálogo que, então, nos propomos a traduzir pra outras linguagens. André Victor: É, e esse é um campo que está em constante apagamento, né. E a publicação é, por excelência, o lugar da documentação, mesmo, da preservação. Ceci: É. Precisamos é saber como democratizar o acesso à elas, imprimir essas coisas e distribuir. Ricelle: Também tem essa questão, o custo de produção, né?

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Ceci: É! Nós fazemos as coisas pra divulgar, mas a gente não consegue viabilizar uma impressão em maior quantidade... Paula: O Alimentos que Curam foi o mais legal nesse sentido, né. Porque a gente tinha financiamento do projeto da Cozinha Comum Itinerante, então isso permitiu que a gente imprimisse uma tiragem de cerca de 200 na época e distribuísse gratuitamente pra todo mundo que estava envolvido na discussão e no evento. Ceci: É, a gente conseguiu circular ele bastante. Paula: Já a coleção de livros dos processos nas Cozinhas Compartilhadas seria impossível de imprimir, né! Ceci: É, pra você ver, nem eu tenho todos! Hahaha. Ricelle: Mas os livros são super importantes, né. Eu tava falando com a Ceci que seria muito interessante ter pelo menos um exemplar de cada na biblioteca da Escola de Arquitetura. Até porque eles narram um espaço de tempo que aconteceu aqui também! Têm um pouco da história da Escola, de um momento que a Escola viveu, então os alunos que vierem daqui a uns anos podem encontrar esse material e entender um pouco mais do que estava sendo feito por aqui.

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Paula: Como as publicações são feitas durante um processo, elas têm várias características que acabam impossibilitando elas de estarem presentes em uma biblioteca, por exemplo, não costumam ter ficha catalográfica. Isso de criar publicações “na tora” é algo quase meio marginal em relação às publicações “oficiais”, existem umas burocracias que não chegam nesse tipo de publicação. Quando eu conversei com a Márcia, bibliotecária daqui da Escola de Arquitetura, ela falou que é super difícil inserir isso dentro da biblioteca, porque não tem um lugar designado pra elas entrarem. Ricelle: Tem a BANCA né! A extensão, hahaha. Ceci: É, a BANCA é a nova biblioteca, né.

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Artur Souza: E as publicações existem online? Paula: No nosso caso, a gente tem uma conta no issuu com todos. Ainda assim, não tem uma abrangência muito grande na internet. Ceci: A gente não divulga, né! Ricelle: A questão de divulgar só na internet é que apenas quem tem acesso a ela vai ter acesso à informação. André Victor: É, e mais que isso, o tempo da internet é só a hora da divulgação. Divulgou e pronto, sumiu. Ricelle: É mesmo. Nesse caso, acho que eu já vou introduzir o coletivo Planta, porque a gente também teve essa preocupação de divulgar as receitas pra comunidade com quem a gente atuou. Inclusive nem todo mundo do coletivo tem as receitas impressas! Eu tenho porque peguei pra mim na hora. Bom, a gente conseguiu fazer uma tiragem, porque o trabalho foi feito por meio de um edital. A publicação não estava prevista como produto final, porque a gente não especificou um produto final quando a gente enviou a proposta de trabalho, mas o edital dá uma margem que torna possível conseguir separar uma verba pra isso, pra produzir o material e também fazer ele circular. Isabela: Qual foi o edital? Ricelle: Foi a residência Reboque, do Ja.ca. O Planta foi um coletivo que durou dois anos, a gente deu uma pausa nele esse ano. A conversa sobre publicações dentro do coletivo se deu de uma maneira muito orgânica, porque a gente utilizava o coletivo como um espaço de experimentação e como uma válvula de escape pra conseguir sobreviver no mercado fazendo o que a gente queria fazer. Todo mundo tinha liberdade pra fazer o que quisesse lá dentro, de uma certa maneira anárquica mas não de uma maneira revoltada. Era meio anárquico mesmo, de a gente tentar produzir e mostrar pra sociedade que existe outra forma do arquiteto atuar e, inclusive, pegando a fala da

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Ceci, de sair dessa linguagem técnica e fornecer informação para que outras comunidades compreendam e tenham a leitura de projetos para além do pedreiro e do mestre de obras, dessa questão de que a arquitetura vem sendo mantida pelo mercado, enfim, dessa questão da construção civil. A questão das publicações mesmo, ela surge dentro do Planta num nível um pouco acadêmico, quando o Marcus, que é um dos integrantes do coletivo, estava fazendo o TCC dele. A gente tinha conseguido passar no nosso primeiro edital, que inclusive foi junto com os Micrópolis, lá no Jardim dos Pequis, em Sete Lagoas, um local de trabalho super legal. O Isabela Hendrix é uma instituição muito antiquada com essa questão do TCC, então você tem a opção de fazer projeto ou monografia. A monografia é aquela clássica, nas normas da ABNT, etc. E o processo construtivo do nosso trabalho em equipe no espaço da comunidade não tinha sido dentro de normas, né, ele tinha sido uma ação em comunidade e aberta. Então o Marcus, que estava fazendo o TCC dele sobre isso, ia precisar transformar essa experiência em uma monografia. Nesse ponto ele questionou a possibilidade de escrever uma monografia sobre esse trabalho, por mais que a gente tenha referências bibliográficas e tal, é algo muito acadêmico! A gente estava trabalhando com pessoas de um reassentamento de Minha Casa Minha Vida, fazer uma monografia disso e botar na biblioteca da escola não ia garantir acesso nenhum a esse conteúdo! Eu mesma nunca peguei nenhuma monografia pra ler.

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Foi aí que começou a conversa dentro da academia para que ele pudesse criar a forma que isso deveria tomar, o objeto que deveria ser. Foi super complicado, ele correu até o risco de não ser aprovado. Uma semana antes da entrega final as professoras falaram que ele ia ter que fazer a monografia também, e a gente falou: “não faz monografia e leva esse trem!”

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E foi muito legal, porque a banca dele super adorou, a gente fez dois volumes, tipo umas revistinhas. Nesse momento a gente começou a entender que seria possível trabalhar de outras formas, e também criar produtos que registrassem as nossas atuações e que levantassem questões. E aí fomos selecionados pra residência Reboque, com vários coletivos de BH, e fomos pra regional Venda Nova. Eram dois meses de residência, um de atuação em campo e outro de processos e de digerir tudo que tinha acontecido. Chegando lá, a gente atuou dentro do Centro Cultural de Venda Nova junto com a turma da terceira idade, que pelo curto espaço de tempo, foi o grupo que mais abraçou a gente naquele contexto. Começamos a conversar e tentar ver o que que eles tinham em comum entre eles nas discussões de quintais, porque o Planta foi muito permeado por essa pesquisa, e a gente descobriu várias receitas de produtos de limpeza, em grande maioria sabões ecológicos de reaproveitamento de óleo usado, mas também tinha água sanitária e alguns outros. Esse é um saber muito geracional, que não se passa pra frente. Agora a gente até vê algumas pessoas fazendo sabonetes artesanais, mas na época a gente pensou “pô, ninguém tá separando o óleo”! O Planta tinha esse viés um pouco da sustentabilidade, de tentar driblar essa coisa do mercado. Então pensamos em pegar aquelas receitas e transcrever. A gente foi na casa de cada uma dessas pessoas. Andamos boa parte da Regional Venda Nova, até Ribeirão das Neves, e tudo foi permeado por essa questão dos saberes de quintais, de entender quais eram os instrumentos e dispositivos que as senhoras utilizavam. A grande maioria foi de mulheres, só um homem participou. Foi assim que surgiu essa publicação que vou passar aqui. Ela foi um resultado, mesmo, um processo final, o registro das receitas. A gente chegou a elaborar alguns sabões, também, fazer

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alguns testes e alguns experimentos, mas no fim essa catalogação e esse registro são focados mesmo nas receitas de materiais de limpeza agroecológicos da Regional Venda Nova. Sobre o formato, a gente achou interessante fazer algo parecido com receitas de médico. Fizemos blocos bem parecidos com elas e deixamos lá no Centro Cultural. Foram, sei lá, umas 200 cópias distribuídas para quem se interessasse. E o que eu acho bem peculiar nesse trabalho foi que a gente fez os desenhos todos no autocad. A gente não usou illustrator, foi autocad e photoshop, o que pra mim representa que a publicação pode ser feita de várias maneiras, sabe? Que ela não tem que ficar presa num programa específico, ou num tipo de conhecimento, e os zines tão aí pra comprovar isso desde sempre, né? Pode ser colagem, desenho... Então nesse a gente fez todos os desenhos em autocad. A primeira publicação que o Marcus fez também teve todos os desenhos feitos no cad, e pra isso ele quase morreu. Paula: Isso é muito bom. Essa forma de fazer vem de um universo muito arquitetônico, de quem faz projeto e mexe com esse tipo de representação, né? Ricelle: Sim, total. E aí assim, quando o Marcus fez o TCC dele todo no cad, e passou pelo maior trampo, todo mundo percebeu que precisava aprender o illustrator, porque era muito mais simples. Ceci: Vocês acabaram conseguindo fazer uma tradução entre os programas, a partir de um programa que produz uma linguagem completamente técnica vocês produziram uma publicação em uma linguagem bem mais acessível. 14

Ricelle: Sim! E isso é uma coisa que eu achei super legal! Porque às vezes dentro da universidade mesmo a gente fica muito preso a essa representação técnica, essa representação oferecida pelos programas de arquiteto. Achei interessante porque a coisa aconteceu, e, na minha humilde opinião, ficou com uma estética super legal.

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E aí é isso, assim. A gente teve outro trabalho, também pelo Ja.ca, de produzir uma cartilha, mas aí o Planta já foi contratado. De toda forma eu acho legal a gente entender que também têm várias esferas que o arquiteto pode trabalhar dentro da publicação, trabalhando a realidade gráfica e o design gráfico de diversas formas. Então também é possível trabalhar pra outras pessoas, em uma pesquisa que não necessariamente é sua, traduzindo as informações com o seu olhar... enfim, eu acho que o universo é amplo, o campo é bem grande. E aí é isso, o coletivo teve um tempo de duração bem curtinho, mas foi bem legal, valeu muito a pena. Paula: Isso também faz parte, né! Ceci: Né! Ricelle: É tudo muito cíclico, quem sabe daqui a alguns anos... Paula: Meninas, vocês querem continuar? Isabela: Podemos! Mas primeiro acho que a gente queria agradecer muito você ter chamado a gente e a gente ter essa oportunidade aqui de conversar. Quando você mandou mensagem, a gente pensou assim “gente, por quê que a Paula tá chamando a gente?” Porque eu acho que a nossa maior dificuldade é conseguir fazer uma publicação do nosso trabalho, sabe? Ouvir vocês falando é riquíssimo, e ver você utilizar seu TCC pra pensar essa prática, desse jeito, é muito lindo, porque é uma coisa que desde quando a gente começou a trabalhar juntas a gente tem vontade de fazer e a gente não faz, sabe. E a gente não entende o porquê, talvez hoje vocês respondam, não sei, e dêem umas dicas de como fazer. Enfim, a gente começou a trabalhar juntas aqui na Escola de Arquitetura, fazendo nosso TCC sobre as águas. No início, a ideia era pesquisar sobre os rios, sobre as nascentes, sem um direcionamento, a gente só sabia que queria esse tema. Pesquisamos a partir de várias instâncias, mesmo, mas

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principalmente a partir das pessoas que viviam as águas todos os dias: cuidadores de nascente, gente que morava do lado de córrego... isso muito nas periferias da cidade. Aqui no centro também a gente foi mapeando as minas d’água em volta da Escola e entendendo a ausência dos rios na nossa vida cotidiana, tentando pensar como eles poderiam estar presentes, pensar esses imaginários, mesmo.

ramos as dicas, e os trabalhos que tinham a ver com cada dica ficaram expostos juntos. Também imprimimos uns panfletinhos que as pessoas podiam levar pra casa, e foram muitos! Só que foi com nossa grana, e como era colorido ficou super caro. Acabou no primeiro dia, a gente não tem e a gente nunca imprimiu mais.

Nós fomos fazendo vários pequenos trabalhos, e cada um teve suas peças gráficas, que às vezes eram uns lambes, às vezes eram uns panfletinhos que a gente fazia, mas a gente nunca conseguiu sistematizar isso numa publicação que a gente pudesse compartilhar com muitas pessoas.

Isabela: A gente tem esses aqui, que são os que sobraram. Eram 10 dicas, e você podia pegar as dicas que quisesse, montar, amarrar e levar para casa. Cada uma tem uma ilustração na frente, e atrás tinha um ou dois parágrafos que falavam um pouco sobre esse contexto na cidade. E aí pra fazer a cartilha a gente seguiu essa linha também, né?

Bom, pra formar a gente precisa apresentar alguma coisa, né, ou um banner ou uma monografia. Só que a gente não tinha nada disso, e a gente não fazia ideia de como ter isso. Nosso trabalho era formado por várias pequenas coisas e então o que a gente fez no final foi montar uma exposição com todas essas coisas que a gente produziu. A exposição ficou lá no D.A. e era bem grande, tivemos muita dúvida sobre como organizar, porque para nós era muito difícil sistematizar nossos trabalhos, encontrar esse fio condutor que contasse cada história. Era tudo tão diferente, sabe? Tinha filme, tinha conversa transcrita, tinha um jogo, tinha uma receita, era muita coisa diferente, que a gente não conseguia encontrar a singularidade.

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Além disso, na mesma época aconteceu o Urbe Urge, uma série de conferências no BDMG Cultural organizadas em parceria com a Piseagrama e que gerou a produção de um conjunto de cartilhas cobrindo temas urbanos, feitas por coletivos. Nosso coletivo foi chamado pra fazer a cartilha sobre águas. Nesse momento a gente tava no meio da tentativa de sistematizar nossa pesquisa, acabamos produzindo um pequeno catálogo pra exposição do TCC, que a gente chamou de 10 dicas para nadar nos rios de Belo Horizonte. Nós sepa-

Todos: Hahahahaha

Aline: É. Eu acho que esses panfletinhos foram a primeira vez que a gente conseguiu de alguma forma, mesmo que talvez meio superficial, sintetizar um pouco as coisas. E a gente ficou muito surpresa com o fato ter acabado super rápido, porque achamos que tinha muita quantidade impressa e que ninguém ia pegar, que ia virar maior lixo! Já no primeiro dia acabou tudo, a gente imprimiu mais alguns mas depois acabou também, e no meio disso a gente ainda tava fazendo a cartilha. Acho que essa cartilha foi uma das coisas mais trabalhosas que a gente fez, de tudo que a gente fez juntas. No começo, o coletivo Às Margens era eu, Bela e mais algumas pessoas. Só que isso tem dois, três anos, e ao longo desses anos, outras pessoas entraram no coletivo, foram saindo, e agora somos nós duas de novo. Na época da cartilha éramos nós duas e mais duas amigas nossas, que ajudaram na escrita. A gente sempre teve muito essa preocupação, como a Ceci tava falando, de conseguir realmente compartilhar as coisas. Pensamos muito em qual tipo de linguagem seria essa, pra ela ser tangível. A ideia da cartilha era muito isso, não ser só um texto mas graficamente ser algo de leitura fácil e tal.

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Bom, a gente queria uma coisa bonita, então nós quatro chamamos dois artistas amigos nossos pra nos ajudar com as ilustrações. A gente tinha uma super preocupação sobre como seriam os desenhos. Convidar os meninos foi o pior erro da vida, porque dentro do coletivo a gente sempre teve essa ideia de fazer tudo de uma maneira colaborativa, todo mundo junto, não só nós quatro, mas todas essas outras pessoas que a Bela comentou que ajudaram a gente na nossa pesquisa. A gente convidou esses dois artistas, mas o processo de produção deles era completamente diferente, não combinava com esse jeito de produção colaborativa. Essa é a versão final da cartilha, mas no nosso computador deve ser a versão cartilha7dessavezvaidarcertopeloamordedeus.pdf. As sete são completamente diferentes, porque no início a gente teve esses amigos artistas, e eles também não conseguiam trabalhar juntos e a gente tinha escrito os textos, e fomos tentando criar uma coerência entre as ilustrações e os textos, e aí não dava certo de jeito nenhum, aí a gente tentou usar as ilustrações só de um, mas também não funcionava... Nossa, foi um parto! Foi muito muito muito difícil.

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A gente tava até lembrando aqui agora, a gente chegou a desistir várias vezes, a achar que a gente não ia mais conseguir e que não ia ter essa cartilha, mas aí os meninos da Piseagrama tiveram essa ideia, eles falaram “nossa, mas vocês fizeram uns folhetinhos pro TCC com aquelas ilustrações que ficaram ótimas, todo mundo quis pegar, por que que vocês não usam esse tipo de desenho, e alguns dos desenhos que vocês já têm, e tal”. E aí deu super certo, a gente refez tudo, agradeceu muito os nossos amigos mas falou que não dava certo, e fizemos essa última versão. As cartilhas foram feitas pelo Urbe Urge, então elas tiveram um orçamento tanto pra impressão quanto pro nosso trabalho mesmo, pra elaboração delas.

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Isabela: É, mas que gastamos só pra impressão das sete versões. Ricelle: É, tamanho A0 colorido, né... Aline: Hahahaha. É! Mas foi muito legal! A gente começou a pensar mais sobre esse tema das águas quando começamos a pesquisar, e sempre ficávamos pensando em como conseguir tocar mais pessoas em relação a isso. Não só tocar, mas também contar um pouco de como é essa questão na cidade, fazer refletir sobre isso. E a cartilha entrou muito nesse lugar, como uma ferramenta que apresenta um panorama sobre a temática das águas na cidade e que propõe, de alguma forma, a reflexão, ou um certo engajamento mesmo. Isabela: É. E foi um trampo o processo todo mas no final deu super certo, porque a gente conseguiu colocar um resumo do que a gente tinha pesquisado durante o ano inteiro, os pontos chave que a gente achava que tinham a ver com essa questão das águas na cidade... e a gente super usa essa cartilha, a gente distribui muito. Nós trabalhamos com pedagogia, dando oficinas nas escolas, e a gente sempre leva, elas são super úteis. Além disso eu trabalho no projeto Manuelzão agora, e eu consegui meu emprego porque eu levei uma cartilha, sabe? O povo amou, e queriam fazer uma lá, e me contrataram... ela funciona super! E foi ótimo a gente ter tido essa grana pra impressão, porque foram 1.000 unidades impressas então a gente consegue distribuir. Tem essa cartilha em Pernambuco, no Norte de Minas, Aline: No Rio de Janeiro, em São Paulo... Isabela: Vários lugares! Foi muito massa poder imprimir com a grana do projeto. Paula: Eu acho que imprimir uma quantidade grande assim faz muita diferença. A produção de um livrinho de receitas ou de uma cartilha com nosso próprio dinheiro é feita juntando informações que a gente encontra e considera importantes durante o processo do trabalho, mas ao mesmo tempo, com

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uma tiragem pequena, na escala da autopublicação, a gente não consegue levar elas para mais pessoas, ou para outros lugares para abrir discussões. Nesse sentido uma tiragem de mil já é muito diferente, mesmo, do que a gente costuma trabalhar. Isabela: É, total! Aline: Eu lembro que no início a gente ficou um pouco receosa, tipo, “nossa, a gente vai imprimir mil cartilhas, mas o que que a gente vai fazer com esse tanto?” Paula: É muita responsabilidade, né! Aline: É, muita responsabilidade, e a gente pensava que ninguém ia querer nossa cartilha. E hoje é isso que a Bela falou, nós sempre usamos ela. Virou não só essa síntese, mas eu acho que por ela tratar dessa questão das águas, virou também uma abertura de diálogo. Paula: É, aqui na BANCA sempre chegam vários professores pedindo um kit de cartilhas, e na PISEAGRAMA também sempre tem gente querendo. Eu acho que acaba que essa sistematização de um tema que tem a ver com a cidade mas que também tem a ver com contextos muito locais é uma coisa que não circula, assim, então ter conseguido fazer uma série de sete cartilhas com temas urgentes pra cidade é muito importante pra começar essas discussões. Ceci: O formato de cartilha também é ótimo pra fazer esse tipo de distribuição. Conseguir sintetizar as informações em uma cartilha é muito difícil, mas ao mesmo tempo depois que você consegue fazer isso você tem um material muito bom pra circular. Imagina a gente andando por aí com mil livros! 20

Ricelle: E tem uma base de dados estatísticos, também. Deve ter sido super difícil trabalhar esse lado estatístico das cartilhas, mas eu acho muito interessante disponibilizar esse resumão. Foram vocês que desenharam? Nossa, ficou muito lindo, gente! André Victor: Fofo!

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Aline: Depois de todo trampo, no final, sim. Lucas Magalhães: O que vocês acham que não deu certo no processo com os dois artistas? O resultado ficou muito diferente do que vocês queriam? Ou o processo deslegitimou, de alguma forma, o produto que vocês esperavam alcançar? Aline: Eu acho que foi um pouco das duas coisas, porque os desenhos têm um papel muito importante, de conseguir de fato ilustrar o tema de cada página e aquilo que está sendo discutido. Então a ilustração tem um papel meio pedagógico, didático. Paula: As ilustrações trazem uma segunda camada de informação pro texto, né. Aline: Isso. E as ilustrações dos meninos eram uma coisa que não conversava, acho que foi nesse sentido, porque eram desenhos abstratos e por mais que a gente tenha tentado esse diálogo, o processo de produção do conteúdo da cartilha era feito em mutirão, todo mundo junto aqui no Cosmópolis, lendo as coisas, um lendo e mexendo no texto do outro o tempo todo, enquanto o processo dos desenhos era algo feito solitariamente, então o que chegava pra nós era muito destoante dos textos que a gente produzia. Lucas Magalhães: Destoou muito? Aline: Demais! E tinha que ter a ver, sabe? As ilustrações eram de cachoeira, barco, e não conversavam nem um pouco com o texto. Isabela: Aí a gente ficou tentando encaixar o texto na ilustração, sabe? Porque os desenhos eram muito lindos, também! Todos: Hahaaha Isabela: Eram uns quadros muito lindos pra gente por na parede, mas não era sobre isso. Aline: Foi super difícil falar pros amigos que não ia rolar, e gente tentou várias vezes, várias vezes, cada vez mudava um pouco e a gente conversava de novo. Mas chegou uma hora que a gente teve que fazer esse papel, não estava dando certo e a

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gente precisou mudar as coisas. Lucas Magalhães: Interessante isso, né! Os resultados dos processos serem tão diferentes assim. Aline: É! Foi engraçado, uma das meninas até trabalhou aqui com a gente, ficou nos mutirões e mesmo assim não funcionou. Outro dia a gente tava vendo a versão antiga da cartilha e nossa, não tinha nada a ver! Não dava pra entender nada! Isabela: Essa cartilha funciona muito como uma síntese da nossa pesquisa, né, mas a gente tem tentado, nos nossos últimos trabalhos, que são com oficinas sobre as águas, e de criação de jogos, e mapeamento dos territórios, usar as publicações como parte do processo, também, de documentação... A gente trabalha muito com jogos analógicos, e acaba que o jogo também tem um pouco esse papel de registro do processo, e de compartilhamento das informações que a gente vai catalogando... a gente fica um pouco perdida, assim, nessas duas mídias! Felipe: Mas o que eu acho massa do trabalho de vocês é que o jogo, de certa forma, cumpre um papel gráfico, de publicação, sabe? Isabela e Aline: Aham!

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Felipe: É um outro formato, mas eu considero parecido com uma publicação, e às vezes até se difunde de forma mais natural do que um livrinho, porque é uma síntese da pesquisa que vocês estão fazendo – sei lá, às vezes se vocês quiserem dar um exemplo de algum jogo, de como funciona – mas eu percebo que é sempre uma síntese de uma pesquisa, de uma forma que todo mundo vai poder ter aquilo compartilhado, mas de uma forma mais dinâmica, né, assim, jogando... e como que aquilo também levanta questões sobre as águas, sobre o espaço, sobre a cozinha, não sei... Paula: Parece uma forma mais natural de fazer outras pessoas também virarem agentes, de poderem falar e participar...

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Ricelle: Vira um dispositivo! Tipo a comida também, é algo que une, que cria o encontro... Paula: Que quebra um pouco essa barreira do diálogo, né? Isabela: É, total, o jogo cria um outro momento, uma outra situação, sabe? Porque com essas leituras, e com esse tipo de conversa, a gente acaba utilizando uma linguagem que não é acessível pra todo mundo. E no jogo todo mundo é jogador, não importa se você tá na faculdade, se você é a moça que cozinha, ou se você só passou por ali e nem conhecia ninguém, todo mundo está sob as mesmas regras. É bom dar um exemplo, né? Bom, o jogo é ainda mais caro que uma publicação... Todos: Hahahaha Isabela: Por isso a gente realmente não tem quase nenhum, só os que a gente faz como parte de algum processo, de uma oficina. Agora a gente tá dando oficina na Vila Maria, que é passando pelo Anel Rodoviário, chegando lá em Sabará. A gente tá fazendo um jogo sobre o território, um jogo de tabuleiro que você vai andando pelas ruas e pode pegar qualquer caminho que quiser, ganha o jogo quem construir suas três cartas primeiro. Então tem, sei lá, estação de tratamento de água, cisne do amor e baile funk. Se você saiu com essas três, você tem que colocá -las no tabuleiro. Só que tem alguns lugares do território que você pode colocar baile funk, tem outros que não, tem alguns que você pode colocar estação de tratamento de água e tem outros que não... Ricelle: Ai, que ótimo! Isabela: Durante o processo a gente fez várias expedições pelo bairro e os meninos mostraram pra gente como eram os lugares que eles frequentavam, a gente bateu na casa das pessoas pra fazer entrevistas, a gente chamou pessoas mais velhas pra roda de conversa... No jogo as cartinhas que você vai tirando, que são as cartas da casa, contam essas histórias. Esse jogo é muito sobre imaginário, porque os meninos eram super criativos, eles

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publicação como estratégia

adoravam imaginar, sei lá, você indo pro trabalho de tirolesa, sabe? O bairro do jogo é imaginado como se os rios fossem presentes lá, parte mesmo do cotidiano, com a possibilidade até de ter lazer na beira do rio... e o livrinho de regras conta um pouco da história do processo, da história do bairro, das vivências dos meninos, o porquê do jogo ser daquela forma. Quando a gente consegue imprimir mais de uma cópia a gente deixa um no CRAS, um no Centro Cultural, mas é difícil. Rafael Amato: Eu tenho percebido que as publicações, no geral, dos meus amigos que tão fazendo TCC têm uma coisa muito legal que quebra com essa noção muito rígida do projetista, seja do arquiteto, seja no meu caso o designer. Essas publicações, como a das dicas, que vocês fizeram, ela não é impositiva, sabe? Ela não é um projeto, que colocaram e acharam que é ideal, que os arquitetos lá juntaram e falaram “não, é isso aí!”, mas são inúmeras propostas, que podem acontecer ou não, é muito difuso, na verdade, e às vezes você nem sabe o que que vai acontecer daquilo, mas é uma potencialidade, sabe? Eu acho isso muito legal! Esse deslocamento mesmo do projetista, do modernista. A Carol Rossi, que é uma amiga nossa, vai apresentar semana que vem, ela fez um projeto nessa vibe também, de dicas, de ocupação, e tudo o mais. Então é muito bom perceber que a gente tá tentando criar uma outra lógica que não a do projetista modernista.

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Aline: A gente tava conversando dessa coisa de pensar arquiteto e designer muito mais como mediador de processo, e não como projetista no caminho pra cá. A publicação tem esse espaço muito importante, mesmo, de compartilhamento de processos e de coisas, muito mais do que a imposição, né... André Victor: E o jogo é mais mediador ainda, né! Aline: É! Eu acho que uma das grandes razões pra gente gostar tanto de usar o jogo é isso, essa

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super ferramenta de diálogo. Tem esses jogos que a gente produz como síntese, mas no caminho de produção têm vários pequenos jogos que a gente faz durantes as oficinas. E toda vez que a gente faz um diferente a gente fica impressionada! Da última vez a gente fez um super simples, que eram só umas cartinhas com umas imagens, e a gente ficou impressionada com a discussão que elas geraram! Às vezes só sentar e tentar conversar é super difícil, mas no momento que você tem aquela ferramenta ali a conversa flui de uma maneira incrível... Isabela: É, ela se aprofunda e traz umas reflexões que a gente não conseguiria simplesmente chegar numa conversa com os meninos... Rafael Amato: A publicação também vem de um lugar muito tradicional, o livro e tudo mais, então ainda existe uma barreira. É difícil com o livro, ou com cartilhas, você ter esse alcance tão forte. Não que não aconteça. Acontece, sabe – não vamos deixar de fazer, hahaha! Paula: Acho que essa diferença também se relaciona muito ao fato do engajamento com os livros e cartilhas ser feito de modo individual, né! Rafael Amato: É! E aí se fosse mais coletiva, traria mais discussões... Paula: “A sociabilidade do livro” Rafael Amato: Hahaha é! Minha pesquisa do TCC. Todos: Hahahaha Felipe: Então, vou falar sobre o Micrópolis agora. A gente começou a pensar em publicações e em questões gráficas no início do nosso TCC, que foi feito em grupo, partindo de uma insatisfação nossa com relação à pesquisa, sabe? A gente via muitos sites de um tanto de coletivo massa nos quais a gente se espelhava e que tinham trabalhos incríveis, tipo o povo da Espanha. Nesses sites você achava só o resultado de cada trabalho, nunca dava para saber como aquilo foi feito, o quê que deu errado, o quê que deu certo...

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A princípio nossa vontade de compilar os processos dos nossos trabalhos em publicações partiu muito disso. Tipo, “pô, se a gente tem essa dificuldade, com certeza todo mundo tem”, e por que que a gente vai ficar repetindo essa ciranda, de ficar divulgando o produto final como se ele fosse lindo e maravilhoso, tudo deu certo, sendo que ninguém pode replicar ele, ninguém pode reproduzir, né. Então a gente começou um pouco por aí, levando no sentido, igual as meninas falaram, de compilar o que que foi feito, servir como um manual para que outras pessoas se apropriem daquilo e melhorem aquele processo. Ao longo desses primeiros trabalhos a gente foi descobrindo outro viés da importância de publicar as coisas. Percebemos que geralmente “as pessoas comuns”, não-arquitetos, elas têm muito pouco interesse pelas questões da cidade, muitas vezes por conta daquilo que a Ceci falou. O planejamento urbano está bastante nas mãos dos profissionais, ele é muito codificado, as pessoas não conseguem se apropriar daquilo. E quando você não consegue se apropriar daquilo você não tem interesse por aquilo, né, você simplesmente deixa de lado. Então a gente começou a ver que essas publicações serviam também como uma ponte pra levantar discussões sobre a cidade que a gente não conseguia ter apenas chegando e conversando com as pessoas, tipo “ai, eu sou arquiteto, vamo lá, senta aqui, o que você acha dessa praça, deixa eu te entrevistar, não sei o quê”. Essas coisas gráficas davam certo input pras pessoas discutirem sobre espaços naturalmente e quando a gente percebia já tava rolando uma mesa redonda a partir de alguma produção gráfica. 26

Eu trouxe o lookbook, um exemplo de trabalho que a gente fez que entra muito nisso. A gente considera que o próprio trabalho já é a publicação, e ela foi feita nesse sentido. Vou explicar melhor. Esse trabalho foi feito no Museu de Arte Moderna

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(MAM) de São Paulo, que fica lá no Ibirapuera. Na época o João, que era do Micrópolis, trabalhava lá, e a gente pensava “ah, vamos propor um trabalho pro MAM, sei lá, a gente tá super precisando de dinheiro, precisando fazer alguma coisa, vamos propor pra eles”. E eles meio que aceitaram, assim, “ah, legal, vamos fazer um piloto de algum trabalho de vocês e vamos ver se vai ser legal”. A gente foi lá pesquisar, primeiro, pra entender o contexto, e o que que a gente ia propor. Lá rola uma questão muito louca, domingo rola uma ocupação muito grande por jovens entre 13 e 18 anos. É muito interessante porque todos eles moram na periferia de São Paulo, todos eles são LGBTQi, e todos eles sofrem muito preconceito na família, em casa, na escola, e tal... E eles vão todo domingo lá pro MAM – pro jardim do MAM, na verdade, porque eles nem sabem que lá tem um museu. Não é um grupo de 15 pessoas, são umas 500 pessoas, é muita gente. Eles vão pra lá e ficam bebendo, se pegando, é tipo um rolêzinho, sabe, no jardim. Foi assim que começou, o primeiro chamava Rolê dos Lindos. O pessoal do MAM falou pra gente: “ah, vocês são arquitetos, né? Vocês podiam fazer alguma coisa espacial que de certa forma abrisse o MAM pra esses meninos, pra que eles se interessassem em entrar aqui, ver as exposições e tudo”. A gente começou, então, a perceber que tinha uma questão muito mais séria, de auto-reconhecimento, enfim, de eles estarem ali porque eles estavam entre iguais, e a marquise era uma espécie de refúgio onde eles podiam ser quem eles quisessem. A gente propôs fazer um lookbook, uma espécie de mapeamento visual no qual eles próprios iriam se ver. Já que eles não tinham nenhum outro lugar para se expressarem além do jardim onde eles ficam bebendo, e tal – e ficam lokas – a gente resolveu criar essa plataforma pra eles se expressarem de alguma forma. A primeira experimentação, que foi a primeira

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edição, é essa azul aqui, foi um processo bem louco. A gente espalhou umas câmeras pelo jardim do MAM, umas câmeras analógicas, porque eles não tão acostumados com isso, eles nunca tinham visto câmera analógica, nem sabiam como funcionava. A gente largou as câmeras durante o domingo e no final do dia a gente buscou. Era muito louco ver como eles reproduziam a câmera digital na câmera analógica, tinha um tanto de selfie, e a gente via que tinham uns que tiravam e falavam assim “velho, mas cadê a foto? Não tô conseguindo ver, vou tirar de novo!”, essas coisas. Esse primeiro lookbook foi uma ação ainda meio de fora, uma compilação do que a gente reparou nessas fotos, feito num modelo de lookbook mesmo, dos estilos, os cortes de cabelo, as tatuagens, as roupas, as músicas... O MAM gostou desse primeiro e falou pra gente fazer mais seis meses de processo, a gente faz mais três edições. Para as próximas edições nós combinamos: “a gente só vai fazer essa publicação com os meninos e durante o rolê”. Esse próprio processo já ditou um pouco como deveria ser a publicação: ela não poderia ser muito grande, porque eles tavam lá bebendo, se pegando, não tinham paciência pra pegar uma revista e lendo. Tinha que ser uma coisa meio pocket, que eles abrissem, e tal, com muita imagem... então o formato foi escolhido numa troca com eles, sabe?

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Cada edição dessa durava um mês, nas três primeiras semanas a gente fazia alguns jogos com eles pra levantar informações e nas semanas seguintes a gente trazia isso graficamente de alguma forma. A gente ocupava o jardim com um carrinho, e quando a gente chegava com mil fotos da semana anterior, os meninos já vinham correndo, e quando eles viam as fotos ficavam loucos, falando: “ai, fulano de tal, já peguei esse aqui, não sei o quê, ai, esse aqui é o meu crush!” E a gente ia montando esse material a cada dia com os meninos. Esse mapa que tem na publicação amarela, por

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exemplo, a gente fez lá na hora. Ele cobria todo o carrinho e os meninos iam colando tipo uns emojis que a gente levou em adesivo, e no final a gente só escaneou e virou isso, sabe? Era meio que isso. Foi um processo colaborativo de produção dessas revistas, e no final foi muito engraçado, porque os meninos já conheciam a gente, então quando a gente aparecia era uma loucura, eles ficavam: “ai, quando que vai sair a próxima edição?”, “vem cá que nós vamos tirar uma foto com o meu look de hoje, que ele tem que aparecer na revista”, e o lookbook era tratado meio como uma revista Caras dos meninos, sabe? Era realmente um rolê onde eles podiam se ver e ter uma voz. A proposta inicial do MAM era que os meninos se aproximassem do museu, mas no meio do processo foi legal porque eles viram que não eram os meninos que tinham que se aproximar deles, eram eles que tinham que se abrir pros meninos. Então ao longo do processo, por exemplo, esse cartaz aqui foi produzido a partir de uma ideia que o Educativo do MAM teve, uma oficina de desenhar selfie. Eles tinham um espelhinho com um acetato e se olhavam e se desenhavam por cima. Isso foi legal, porque o MAM começou a gerar umas oficinas mais condizentes com a realidade dos meninos, sabe? Antes eles ofereciam umas oficinas de cerâmica, de música clássica, e os meninos não queriam isso. Então a aproximação entre eles foi crescendo a partir dessa publicação. A última publicação, essa cinza, foi completamente feita pelos meninos. Os desenhos, as informações, o tema e, no fim, eles também propuseram que a gente fizesse um festival pra lançar ela. Eles organizaram um desfile de moda, organizaram ideias de coisas que eles queriam ver e de oficinas que eles queriam que tivessem dentro do MAM, e o MAM organizou uma conversa sobre violência homossexual, etc... Tudo isso foi de alguma forma possibilitado por

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essa publicação, então pra gente esse processo de discussão foi bastante rico. Nós consideramos essa uma discussão espacial, de certa forma, porque se trata do acesso dos meninos à cidade. Nesse mapa eles falam disso, alguns pegam 5 ônibus diferentes para estarem lá, uns dormem lá porque não têm como voltar pra casa... então a gente vai percebendo, ao longo do tempo, que a publicação também é uma ferramenta pra se discutir o espaço, mas de uma forma não muito.... ah, menos escrota, né? Paula: Pra mim isso que você descreve tem a ver com um momento que a arquitetura tá reconhecendo, um pouco, a presença de um outro, sabe, que não é a pessoa idealizada mas as pessoas que utilizam os espaços no dia-a-dia. Então essas práticas de voltar pros saberes tradicionais, de ir procurar os movimentos da juventude, de ir em escolas, centros culturais, tudo isso tem muito a ver, assim, com a gente tentando se aproximar talvez de uma forma mais real, das pessoas. Ceci: Não só reconhecer isso mas também fazer e escutar o outro. Porque às vezes a gente chega com os nossos ideais, com as nossas vontades, com as nossas proposições, mas o outro pode não estar interessado nisso. Igual você falou, eles partiram de uma atividade relacionada à moda pra se envolver com um museu de arte. Então eles saíram de um ponto de interesse comum pra poder chegar em um outro ponto, como se fosse uma conexão das coisas, ao invés de uma imposição.

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Felipe: E para mim isso é reconhecer também que a gente não sabe mais que essas pessoas só porque ficamos aqui nessa escola estudando por, sei lá, sete anos. Muitas vezes a gente fica nessa de “ah, eu sei sobre espaço”, mas assim, o pessoal do Jardim Felicidade sabe muito mais sobre o rio que a gente, que nunca pisou lá, nunca tentou pescar, nunca pegou numa massa e tentou fazer um pão... e isso tudo permeia a questão espacial, de cer-

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ta forma, tudo é político, tudo é espaço, e nesse ponto a gente não sabe mais do que ninguém. Acho que é um jeito legal também de fazer emergir, de a gente aprender também com outras pessoas. Pedro Teixeira: Uma coisa que eu vejo nessas publicações e que também está presente em um outro trabalho que vocês começaram, o Skalgubbar, é que vocês têm a preocupação de inserir as pessoas que tão ao nosso redor nas representações de projetos e das publicações. Já na maior parte das universidades, a gente usa uma representação de pessoas de um outro estilo, de um outro tipo, Lucas Anghinoni: Loiras, né, suecas Pedro: É, andando na rua com o cachorro Ceci: Bem garotas Felipe: De cachecol na Praça Sete, né. Aline: É, e as mesmas pessoas de todo mundo Paula: E ainda na mesma posição, né! Aline: É, você faz intercâmbio e tem lá uma pessoa, e você olha aqui no hall da Escola de Arquitetura e vai ter a mesma pessoa. Pedro: Essa proposta de uma outra representação fica muito mais próxima do que você quer mostrar, e das pessoas que estão envolvidas nos processos, o que eu acho muito rico. Felipe: É legal o tanto que esses trabalhos que a gente tem que se aproximar das pessoas tiram a gente da nossa zona de conforto, e o tanto que eles levam a gente a se abrir pra outros mundos, também. Pra conseguir fazer o lookbook a gente tinha que ficar com os meninos bebendo, lá, aquelas garrafas pet com umas coisas azuis que a gente não sabia o que era, sabe, tinha que fazer as tatuagens de rena, entrar no rolê. E tipo, não é uma máscara que você veste, é realmente você entrar naquele mundo e fazer parte daquilo, sabe? E aí a gente adicionou 200 pessoas no facebook nessa época, o povo ficava comentando os posts todos, sabe? A gente fez esse trabalho com a Ariana, que

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mora lá em São Paulo, então a Ari participou de todos, assim, e a Ari virou a rainha do lookbook, todo mundo amava, ela era a diva do rolê, todo mundo queria ficar com ela quando ela chegava, era ótimo. Paula: Mas aqui, vocês lançavam a publicação lá? Felipe: A gente lançava uma vez por mês. Cada edição tem duas folhas, a primeira, essa impressa, era produzida antes, e a segunda é sempre uma serigrafia feita no carrinho que a gente andava. Ricelle: Ah, que ótimo! Felipe: Então a gente andava no carrinho, e no dia do lançamento ele virava um carrinho de serigrafia, que os próprios meninos iam lá e faziam o pôster pra eles. Geralmente esses pôsteres eram coisas que eles que escolhiam. Por exemplo, esse aqui são fotos que eles tiraram num jogo que a gente fez. Você meio que girava uma rodinha e tinha vários itens, tipo “pessoa que eu mais amo no rolê”, “o crush que eu mais gostei de pegar”, “a pessoa que eu odeio”, “o lugar que eu mais gosto”, aí a pessoa rodava e tinha que tirar uma foto desse negócio. A gente fez um pôster com essas fotos, por exemplo. E enfim, tem essa história de reconhecimento, de ver a publicação com registros deles e que instigava eles a participarem dos próximos. Ricelle: A linguagem textual também parece que vem dos meninos, né. Felipe: Vem deles! Ceci: É super importante esse trabalho ter durado um tempo, vocês não terem ido lá um dia só e feito um registro. Felipe: Não teria sentido... 32

Ceci: Vocês ficaram ali com eles, fazendo, e eu acho que é importante você entender que vai ter que se jogar e mergulhar mesmo nas coisas pra que uma troca realmente interessante aconteça, porque senão a gente não sai nunca da superfície. Se você não se envolver, se você não tiver disposto, igual você falou, a tomar a bebida azul, não sai.

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Porque eles nos dão um voto de confiança quando se aproximam da gente, então a gente também tem que ceder e dar um voto de confiança pra eles. Eu falo isso porque a comida, por exemplo, é uma coisa que várias pessoas tipo, “pô, tia, não vou comer essa coisa, não sou vegetariano”, eu falo “não, mas você já provou? Vem aqui, vamos fazer junto, e tal”. E a pessoa fica se quebrando por um lado e eu não vou, sei lá, provar uma coisa que ele trás de casa? Um doce super doce – e eu não como doce – mas enfim, a gente tem que estar disposto a se envolver, porque senão a troca não acontece, né. Felipe: Eu acho legal o tanto que esse envolvimento se reflete na questão gráfica. O exemplo da cartilha das meninas é ótimo pra isso. Os artistas que estavam ilustrando a princípio tinham um certo distanciamento. Eles não conversavam entre si, vocês chegavam com um texto e acho que eles não liam muito, vocês tinham sempre que falar “seria legal um desenho assim, que falasse isso”. Foi só quando juntou quem estava realmente participando do processo como um todo que o negócio saiu. E aí sai com uma cara, que tudo se amarra graficamente, sabe? É muito louco como isso se reflete mesmo no papel. Isabela: É. Antes de vir pra cá hoje a gente tava dando uma oficina pra fazer as ilustrações do jogo que a gente tá terminando lá no Vila Maria. Todo mundo desenha muito diferente, né, então a gente levou várias formas de carimbos diferentes pro jogo ter a mesma cara. Aí todo mundo foi produzindo os lugares, as pessoas, a partir dos carimbos. Foi muito legal ver como cada um ia se apropriando daquilo, e virou uma coisa que é muito a cara deles, sabe? Não tem nada a ver com o carimbo do que eu e a Aline íamos fazer, por mais que fossem as mesmas formas, as mesmas tintas, é outra coisa. Felipe: Massa! Lucas Anghinoni: E quantos domingos de atuação teve o lookbook?

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Felipe: Contando com a primeira, foi um trabalho de sete meses. Lucas Anghinoni: Todo domingo?

serigrafia, o MAM também comprou 4 potinhos de tinta, que foram 4 cores diferentes, e aí esse potinho já dava pras 300, assim.

Felipe: Todo domingo.

Ricelle: Massa.

Paula: Mas o coletivo é grande!

Paula: Sobre essa coisa da circulação, eu fico pensando que tem uma escala de ação, assim, que leva as publicações apenas para dentro dos grupos que tão participando do projeto ou evento onde ela tem finalidade de existir. Mas ao mesmo tempo, um alcance maior, que começa a criar diálogos entre outros grupos, entre pessoas de cidades diferentes, uma coisa assim, é muito difícil de acontecer. Tanto que tem mais de um ano que a BANCA existe, e a gente fica na internet procurando coisa, procurando, mas esse tipo de publicação, no caso, parece ter uma escala hiperlocal, sabe? É muito difícil de acessar se você não vai no lugar, não conhece o povo, não troca ideia... é um processo que eu acho que talvez seja mais recente em termos de prática profissional. A gente graduou na arquitetura, ou a gente tá estudando aqui, tá agindo na cidade, e utiliza a publicação como uma ferramenta de ação, não sei, acho que é um buraco, mesmo.

Felipe: Pois é, na época o coletivo eram 7, com a Ariana 8. Como a Ari mora em São Paulo, todo domingo ela ia, e nós íamos nos revezando, cada semana ia um, então eram sempre duas pessoas lá. Mas durou 7 meses, foi bem longo mesmo. Mudando de assunto, tem uma última coisa que eu queria comentar, que é a dificuldade existente para fazer uma quantidade maior de publicações, de como fazer circular as coisas. Ricelle: Ah, eu fiquei curiosa com um negócio, Fiu. Vocês iam, levavam o carrinho, coletavam algumas informações e faziam uma unidade gráfica dessa. Aí vocês distribuíam? Tinha alguma tiragem? Essa distribuição acontecia em um domingo por mês? Felipe: É, o lançamento mesmo era em um domingo por mês. Eram três domingos de processo e de pesquisa com os meninos e um domingo de lançamento, assim, que era um momento mais festa, com essa coisa da serigrafia, e tal. Todos os papéis a gente que comprou, na L2, Colorplus, e a impressão foi toda feita numa impressora A3 do MAM, uma impressora caseira mesmo. A gente imprimia lá e ficava um mutirão de dobrar, refilar, passar pro outro. E pra cada revista a gente imprimia 300 unidades.

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Mas é isso, era uma coisa que, de certa forma, era bem barata, uma A3 frente e verso impressa numa impressora caseira que pertencia ao MAM. Uma das coisas que eles falaram com a gente no início foi “ou, massa, mas a gente não tem muito dinheiro, vocês vão ter que se virar nos 30”, e a gente já gastava quase que o dinheiro inteiro só com esse tanto de passagem. A gente sempre ia de ônibus, na época tinha uma treta de um bus mais barato, e a gente ficava na casa da Ariana pra não pagar nada, ficava lá comendo só inhame com ela. E a

André Victor: Eu também fico pensando muito nisso, Paula, mas não sei, tem publicações e publicações, têm leitores e leitores, alguns trabalhos não precisam de um número muito grande de leitores, né, mas com alguns outros seria incrível, também, que acontecesse. Mas isso, a gente está no início, também, de uma coisa. Talvez há 10 anos atrás não teria uma impressora A3 caseira no MAM pra ser usada pra fazer uma publicação, por exemplo, né? Paula: É, é verdade. André Victor: Isso tem muito a ver com um recente acesso nosso a esses meios, né? Mas é isso, né, fica esse buraco aí pra gente não esquecer dele, né? Felipe: Sei lá, um dia tava eu, Paula, Low pensando, a princípio parece que a forma mais viável pra

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publicação como estratégia

produzir essas coisas é lei, né, de incentivo. O de vocês foi o Rumos, né? Ceci: Sim, foi o Rumos. Felipe: Teve o negócio do Ja.ca, André Victor: O BDMG, né. Paula: O Urbe Urge... Felipe: Tá bom de fazer um big projeto, assim de lei de incentivo, que é fazer um experimento de editora durante dois anos, sabe? E aí ter um orçamento grande pra publicar sei lá, 6 livros. E tentar ir fazendo por levas, não sei se existe isso, também, e claro, é um projeto muito a longo prazo, porque você aprova em um ano, dois anos depois você consegue o dinheiro, aí um ano depois você consegue imprimir... Ceci: É, depende do edital. O Rumos é um edital muito tranquilo de trabalhar, as coisas são até muito rápidas, e eles são muito flexíveis e muito abertos ao diálogo também, então o nosso trabalho foi mudando ao longo do tempo, a gente mandou uma proposta de trabalho mas quando a gente entendia que ele precisava ser adaptado, a gente conversava no Itaú e eles praticamente liberaram tudo que a gente pediu pra mudar. Eles foram super compreensivos e eles falaram “olha, eu entendo que o trabalho de vocês vai passar por isso”, porque não tinha como a gente chegar com um trabalho formatado, já, pro edital.

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É super difícil você escrever um edital quando você pensa em processo, por exemplo, e a gente não sabia que ia ser tão aberto assim, e foi uma surpresa muito boa, que possibilitou a gente fazer o trabalho da maneira que a gente acredita, também, senão a gente ia ficar presas num formato de projeto que a gente escreveu há mais de um ano atrás sem conhecimento nenhum do processo e do que que ia acontecer. Porque as coisas acontecem no encontro, no contato, então não tem como prever o que que vai acontecer daqui a um ano com aqueles carrinhos. Mas é isso, assim, acho

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que também procurar os editais certos, e procurar as brechas nos editais, e pensar numa escrita que também te possibilite incluir uma coisa em processo, assim. Paula: Sobre trabalhar com edital, também, acho que é um lugar que a arquitetura tá entrando aos poucos, e ainda recente, né? Assim, com a experiência que eu tive, pelo menos, a gente se coloca num lugar quase de artista que está trabalhando com espaço público, com a interface entre diferentes territórios e personagens da cidade, mas isso, por não prever a nossa atuação exatamente como arquiteto, abre espaço pra gente ter metodologias de trabalho diferentes, dentro da arquitetura. E aí a gente usa a publicação, usa a cozinha... Ceci: É! E de criar nossas próprias pedagogias, que eu acho que é o que junta o trabalho de todo mundo que eu vi aqui. Nossas dinâmicas são basicamente a criação de pedagogias o tempo inteiro, novas estratégias de ação, que são coisas que a gente não aprendeu na faculdade, que a gente aprende no contato, mesmo. Ricelle: É, completamente experimental, né! E que bom que a gente pode fazer isso. Paula: Ô gente, muito obrigada pela presença, fico muito feliz da gente começar a pensar nisso juntos, porque é um assunto que a gente acaba desenvolvendo muito dentro dos próprios grupos de trabalho, mas que não se abre em um diálogo maior, porque também todo mundo tá focado em fazer o seu acontecer, né... semestre que vem a gente continua!

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publicação como estratégia Às Margens

Micrópolis

Através de ações em escala local o coletivo propõe investigações e discussões sobre o lugar das águas e das pessoas nas cidades desde 2015. Atualmente realizam oficinas com jogos pedagógicos para descobrir e conversar sobre os rios urbanos. Às Margens é formado por Aline Franceschini e Isabela Izidoro.

Coletivo que desde 2010 realiza ações, projetos e discussões que transpõem as fronteiras disciplinares da arquitetura e que se relacionam ao nível da microescala e do cotidiano. Micrópolis é atualmente formado por Belisa Murta, Felipe Carnevalli, Marcela Rosenburg e Vítor Lagoeiro. micropolis.com.br

asmargens.com Planta BANCA Espaço para encontro e comercialização de conteúdos independentes em Belo Horizonte. Nela trabalham Robson Silva, Emídio Souza, Lucas Kröeff e Paula Lobato. banca.site Cozinha Comum Desenvolve práticas espaciais transdisciplinares de autoria compartilhada que visam empoderamento e emancipação cidadã em contextos diversos. A Cozinha Comum é formada por Ceci Nery e 38 Paula Lobato. fb.com/c0zinhac0mum

Coletivo dedicado à prática experimental em arquitetura, urbanismo e paisagismo. Atuou entre os anos de 2015 e 2017, e teve como membros Ricelle Alonso, Marcus Maia, Marina Vanucci, Débora Rezende, Rafaela Peret e Gabriel Braga. cargocollective.com/ plantacoletivo

publicação como modo de fazer arquitetura

Versão editada e impressa no contexto da pesquisa realizada por Paula Lobato. UFMG, junho de 2018



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