ͽ - A MONTANHA DAS NUVENS NEGRAS - ͼ por Paulo Gomes
Abandone toda a sua carnal delícia vã, Vim para te chamar para longe esta manhã. Eu sou aquela que vence todos os filhos dos homens, o meu dardo não tem limite a quem pode dar o fim. O meu nome é morte! Você não ouviu falar de mim? Balada da Morte – Poesia popular de Zingara * I. Com destino a Shem, vindo de Zingara, com indicações para não fazer escala em Argos, o navio mercante Lotus viaja já faz quatro semanas, mais duas que o tempo esperado para fazer a viagem. Impacientes e esfomeados os marinheiros dedicam os seus dias à pesca, uma vez que a meio da terceira semana a maior parte dos viveres se esgotou. Com água para mais uma semana o desespero ainda não faz parte da equipagem, e apesar de impacientes os marinheiros permanecem confiantes que irão ultrapassar este contratempo. Todos esperam ouvir o vigia dar o aviso de avistamento da costa. Se fossem seguir as rotas habituais nunca a teriam perdido, mas não fazendo escala em Argos, o comandante decidiu que faria mais sentido navegar ao largo, para aproveitar melhor os ventos e chegar a Shem. Encostado à amurada de estibordo, olhando ao longe o mar escuro com os seus olhos profundamente azuis, um homem alto, solidamente musculado, de pele morena e cabelo negro está perdido nos seus pensamentos. O cheiro do mar continua a deixá-lo desconfortável. As memórias do seu tempo entre os piratas assaltam-lhe a alma. A sua mente vagueia pelas recordações dolorosas que o afastaram do mar até hoje. Sente no seu rosto o calor do fogo e respira o cheiro da carne humana a queimar. Na sua retina ficou, marcada fundo, a imagem das chamas da pira funerária flutuando, que volta a ver enquanto fecha os olhos.
A ondulação e o balanço do barco onde viaja embalam-lhe a imaginação levando-o cada vez mais fundo no seu inferno pessoal. - Não devia ter aceite esta missão, - resmunga de forma ininteligível – o mar ainda me atormenta. Ganhando a vida ora como ladrão, ora como mercenário, algumas vezes em defesa de uma causa movido pelo seu código de valores, outras por dinheiro puramente, Conan não está satisfeito com a razão que o fez navegar novamente. Entrou no barco com a missão de acompanhar e proteger uma relíquia transportada por monges de uma religião de que nunca ouvira falar. Não sabia até que ponto a relíquia seria valiosa por ser feita de matérias preciosas ou devido ao seu valor mágico e religioso, nem em que medida a religião deles era rica. No entanto aqueles monges de vestes sujas e rasgadas, que em tempos foram vermelhas e que agora parecem cor de terra, pagaram prontamente e na totalidade o preço pedido por Conan. - Algo muito estranho envolve estes monges e não são só as suas vestes, - continua murmurando nunca recebi um pagamento tão prontamente antes de cumprir a missão, muito menos sem negociar. O seu pensamento é quebrado quando ouve os gritos do vigia na gávea que informa ter visto uma tartaruga bem grande a bombordo. Carne de tartaruga é sempre uma boa variação à dieta de peixe e Conan salivou de imediato. O comandante deu ordem para aproximar o barco para a poderem apanhar, e assim que estavam próximos o suficiente Conan foi o primeiro a saltar para a água levando consigo apenas uma faca e uma corda. Sem expressar qualquer emoção, os monges sobem ao convés para observar atentamente a corrida entre os marinheiros que nadando vigorosamente e com evidente destreza e experiência, não conseguem alcançar o cimério. Conan é o primeiro a chegar junto da tartaruga, que mergulha percebendo estar a ser caçada. Enchendo os pulmões de ar, o cimério prepara-se para a perseguir, mas antes de poder submergir é bruscamente empurrado pela onda formada pelo ataque de um tubarão saindo da água. Os marinheiros assustados pelo repentino ataque nadam desesperadamente tentado regressar à segurança do barco, não percebem que derramando sangue nas águas, o tubarão já transporta nas mandíbulas a sua presa, inconsciente pelo brusco embate. *
II. A força do ataque foi tanta que mais de metade do corpo do predador se eleva acima da linha de água. Com a tartaruga na boca, o tubarão não percebe que uma corda é lançada com destreza sobre a sua cabeça enquanto salta. Apesar da surpresa e força com que a onda o empurrou, Conan conseguiu manter a calma e discerniu uma oportunidade. Prontamente lançou a corda antes do tubarão cair sobre as águas, capturando-o. - Tubarão recheado de tartaruga, há, há, há... - riu sardonicamente. Nadando rápido, volta ao barco e passa a corda a um marinheiro. - Prende a corda, - ordena com propriedade enquanto sobe pelo casco usando as pequenas reentrâncias do costado da alheta – vai ser um belo petisco! Com a ajuda pronta dos marinheiros que se achavam no barco, Conan eleva o tubarão para o convés do navio. O grande peixe apesar do firme aperto que a corda lhe aplica nas brânquias, magoando severamente as guelras, não larga a sua presa. Mantém nos seus dentes a tartaruga com a carapaça quebrada pela mordedura, espalhando sangue pelo convés. - Tubarão recheado de tartaruga! - Repete Conan agora com intenção de divertir os seus companheiros de viagem com a ideia. - Parem. - Ordena um dos monges. No mesmo instante um relâmpago atravessa os céus e descarrega nas águas bem perto do barco. A força da faísca é tal que movimenta e ioniza o ar em volta, criando uma onda de choque que faz perder o equilíbrio a todos os que se encontram no convés. Apenas os monges e Conan permanecem imóveis. Incrédulos de espanto os marinheiros de cara nas tábuas sentem um cheiro eléctrico no ar e com temor rodam as cabeças para o céu, observando como se formam nuvens de tempestade de imediato nos céus. - Monges danados, por Crom que me vão explicar o que se passa aqui e a que se deve esta viagem realmente. - Exclama Conan apontando com a faca que tinha consigo na direcção do monge que falou, certo que seriam eles a origem de todos os contratempos. Com um movimento fluído e rápido um dos monges retira um punhal do interior do seu manto enquanto se aproxima da carapaça da tartaruga, sem que Conan ou os marinheiros tenham tempo de reagir. De um golpe remove algo que estava preso numa das peças da carapaça. - Agora vai começar a sua missão Cimério, - diz o terceiro monge – obtivemos os que procurávamos, os portões do tempo podem assim ser abertos para se cumprir o destino.
O primeiro monge, a quem Conan continuava a apontar a faca, revela do interior do seu manto a relíquia que transportavam, parecia ser um bastão de metal dourado encimado com uma mão humana com os dedos abertos em garra como que a segurar algo, mas vazia. A tempestade continuou a ganhar forma, os ventos moviam agora as águas aumentando a ondulação, as nuvens começaram a descrever um movimento circular que parecia rodar em torno do mastro. O balanço do barco ou outra qualquer força sobrenatural mantinha os marinheiros colados ao convés e o comandante agarrado ao leme da embarcação. Apenas Conan se mantinha pelo seu pé, imóvel com o seu braço direito semi-flectido, segurando a faca com que tencionava caçar a tartaruga, apontada na direcção dos monges que agora se reuniam entoando sons que o Cimério logo reconheceu como feitiços. Já por diversas vezes combatera contra a magia e sabia que só a sua força não seria suficiente para os deter. Percebeu que pretendiam reunir o objecto recuperado da carapaça da tartaruga com o bastão macabro. Os monges continuavam a entoar os feitiços e a tempestade ganhava força, desferindo agora mais relâmpagos que eletrificavam o ar em redor do navio. - Conan, não sabemos porque os Deuses querem que assim seja, as mãos de um mortal nunca deveriam se aproximar dos poderosos imortais. - Começa a dizer um dos monges. - Vá e faça o seu trabalho. - E com estas palavras os outros dois monges reúnem o que parece ser uma gema preciosa verde com a garra no bastão, colocando a pedra entre os dedos retorcidos que de pronto se fecham, produzindo do seu interior um clarão na direcção de Conan. Sem tempo para mais o Cimério lança a sua faca na direcção do monge que falava, não conseguindo evitar ser atingido pelo poderoso raio de magia. A tempestade cessa, o corpo do monge atingido pela faca transforma-se em areia, os outros dois monges separam a gema do bastão e lançam as duas peças no mar. No lugar onde estava Conan nada sobra para o recordar, e os marinheiros parecem acordar de um sonho lúcido, sem memória da tempestade, do Cimério ou de como foi parar um tubarão com uma tartaruga na boca ao convés. - Tubarão recheado de tartaruga! - diz um deles com uma familiar estranheza. *
Novos donos terão suas riquezas, ouro, jóias brilhantes, sua casa, e terra, devem, passar para novos habitantes. Quando comigo partires nada contigo levarás, tudo o que juntares a outros deixarás. Balada da Morte – Poesia popular de Zingara * III. Com o corpo sujo de areia, sentindo as entranhas retorcidas como se tivesse sido trespassado por uma espada, os músculos cansados, doridos e com cãibras, Conan ergue o seu corpo das águas a rebentar na praia. Abre os olhos com dificuldade, tanto devido à areia como à sensibilidade à luz que lhe magoa fundo na cabeça. Uma náusea quase o faz vomitar, sentindo o chão rodopiar. Antes fosse o resultado de uma noite de bebida e folia. A sede de vingança mantinha-lhe a memória de ser enfeitiçado pelos monges no barco. Tinha a certeza, matara um deles quando arremessou a faca. - Por Crom, terminarei com aquela religião, esmagarei os seus ídolos, matarei todos os malditos monges e ouvirei os lamentos dos seus adoradores! - Determina Conan encolerizado. Olhando em redor percebe movimento entre as rochas próximas, a sobrevivência está primeiro, de um salto termina de se erguer e veloz percorre a distância até à vegetação no fim da praia. Protegido pelas sombras das árvores pode observar a origem do movimento e avaliar se fora visto e se estaria em perigo. De entre as rochas saem diversos seres com aspecto humano e ao mesmo tempo peculiar. Com costas largas, membros fortes e alongados, morenos e peludos, quase Pictos nas feições, nus excepto pelas peles penduradas pela cintura, tanto machos com fêmeas parecem estar a recolher bivalves das rochas. Conan estava demasiado abalado fisicamente para se arriscar com eles, todo o seu corpo lhe parecia dizer que não pertencia ali. Decidiu afastar-se da costa e entrar mais profundamente em terra, para onde a vegetação fosse mais densa. Começou a caminhar e recolhendo paus e pedras para improvisar armas. A vegetação , revelou-se uma floresta, o sol ainda ia alto e decidiu caçar para experimentar a lança que fabricara.
Observando em redor e procurando com os seus sentidos treinados de caçador, não encontrou qualquer presa para caçar. Começava a acreditar no pressentimento bizarro deste lugar, que o seu corpo lhe dava a sentir, desde que acordou na praia. Sentiu movimento na sua frente, logo se escondeu e preparou para se lançar sobre o que se aproxima. De trás de uma árvore saem quatro daqueles homens estranhos a grunhir. Um deles trazia uma fêmea, puxando pelo braço desta, enquanto parecia tentar afastar os outros. O ser, sentindo que conseguira amedrontar os seus seguidores, empurrou a fêmea para o solo e começou a copular com ela, enquanto os outros observavam impacientes. A fêmea apesar de parecer um pouco incomodada agia com naturalidade, parecia que aquilo seria normal naquela raça. Quando finalmente terminou e o viril ser se afastou da fêmea, o mais afoito dos outros capturou-a e começou a copular com ela. Não durou muito até que insatisfeitos, os outros o puxassem, parando o acto e começassem uma disputa entre eles para decidir quem teria o direito à fêmea. O Cimério ainda se interrogou a que saberia a carne daqueles seres, mas afastou o pensamento por parecerem demasiado humanos. - Serão alguma raça de Pictos que desconheço, apesar de desprovidos de pinturas. - Pensou. O melhor seria afastar-se dali, procurar caça num lugar mais profundo na floresta, procurar uma saída daquele bizarro sítio e procurar algum indicio de civilização na região. Cada vez mais este lugar parecia pertencer a outro mundo e outro tempo, tal era a repulsa que as entranhas lhe tinham, demasiadas incertezas, enigmas e o sabor amargo de magia acompanhavam o Cimério enquanto caminhava. Uma sombra projectada sobre as árvores deslizando rápida e um silvo melancólico e melódico despertam Conan da sua congitação. Um calafrio juntasse ao já grande desconforto que sentia, o silvo parecia um chamado da própria morte. - Por Crom, um corvo. - Exclama, petrificado, nem se lembrando de esboçar o gesto para caçar a grande ave. O temor da surpresa vencera a fome. Que presságio seria este? Ao menos ver a ave consolara a sua dúvida quanto a se existiria algo para se alimentar nesta floresta, algum tipo de presa deveria por ali existir para o corvo chegar a uma tal envergadura.
Mais uma vez Conan sente movimento, desta vez era um pequeno mamífero, parecido com um coelho, mas em vez de saltar corria, como um cão, ou um gato. Talvez o silvo da ave o tenha posto em fuga e levado a se revelar. Ágil e seguro, Conan, lança a sua rudimentar arma e obtém o seu prémio. Com destreza apesar de só ter umas lâminas de pedra improvisadas para o fazer, o Cimério esfola a presa para a cozinhar, junta alguns ramos e começa os preparativos para uma fogueira. Um náusea mais forte recorda-lhe como se sente deslocado, dando-lhe tempo para pensar por uns instantes e decide não fazer fogueira. Retomando a sua marcha, vai cortando pequenos pedaços de carne que mastiga para saciar a fome e alguma da sede. Conan chegou assim a uma orla da floresta, aqui terminava toda a flora que lhe poderia dar cobertura e começava um campo aberto até ao sopé de uma curta, mas alta, montanha, como uma torre de rocha. Não lhe trazem muito boas recordações as torres, por isso Conan decide reentrar na floresta onde poderá se abrigar melhor durante a noite. Procura uma árvore alta e de ramos grossos onde possa subir e dormir, embora não seja isso algo habitual nele, pois prefere dormir junto ao chão, mas nesta terra que ele sente estranha até nas entranhas, não quer arriscar encontrar feras desconhecidas. A poucos passos da orla, entrando na floresta encontrou a árvore ideal, de um salto e com bastante facilidade subiu quase até ao topo. Tomando todas as precauções, enquanto subia, foi partindo os ramos que poderiam facilitar a subida a qualquer outro, mas não os lançou ao chão, para assim ocultar a sua presença. Conan usou esses ramos para, num ramo bem grosso, montar um entrelaçado que lhe serviria de apoio para dormir, assim como, com os ramos finos tece um rude cinto para se prender. A última coisa que deseja é cair daquela altura enquanto dorme. Não lhe é fácil adormecer, pois não consegue esquecer a montanha em forma de torre e o invulgar que o descampado entre a orla da floresta e a montanha lhe pareceram. Abana a cabeça para afastar essas ideias, agora dormiria para recuperar as forças e fazer as pazes com os elementos, talvez de manhã cedo se sentisse menos nauseado e pensaria no que fazer. Acaba por dormir apesar de tudo, mas não por muito tempo, por baixo da árvore passam alguns seres cautos e silenciosos, mas não o eram o bastante para o ouvido apurado e atento de Conan.
Ficou imóvel, rodando a cabeça o suficiente para olhar o chão, naquela escuridão apenas o som o ajudava a identificar a presença de algo ou alguém junto ao solo. A noite não estava completamente escura mas a luz era insuficiente para atravessar as copas das árvores, por isso apenas poderia aguardar e ouvir. O som que faziam eram quase inaudível, no entanto Conan conseguiu perceber que eram vários seres que se deslocavam de forma bastaste dispersa e desorganizada. Talvez não passassem de algum grupo de animais que vinha até aqui para se alimentar. Permaneceram assim, vagueando por ali até o céu começar a clarear com a manhã, e antes que Conan conseguisse ver o solo com a ajuda da luminosidade crescente, deixou de os ouvir. Com o céu cada vez mais luminoso e já conseguindo ver o chão, o Cimério desceu da árvore com cautela, desnecessária, pois dos seres nem sinal, nenhum indício mesmo, nem no solo, nem nos cheiros e sons no ar. Parecia que nada ali tinha estado, teria ele sonhado tudo aquilo? Mais um mistério, cada vez mais perguntas e nenhuma resposta. A curiosidade de Conan acossava o seu espírito, não era homem de ser assim levado pela incerteza sem sua intenção. Tinha que descobrir onde estava e teria que começar por algum lado. Com um forte e direccionado chute acertou no tronco mais próximo, deixando sair a pressão acumulada sem encontrar saídas, fazendo cair alguns frutos amarelos e verdes. Não se atreveu a prová-los, tudo era tão estranho por aqui. Em vez disso decidiu investigar a orla da floresta e observar a montanha. Abrigado nas sombras, Conan percorre a orla, que descobre formar um grande círculo em redor da montanha. Era notório que alguém ou algo tinha derrubado as árvores e quebrado as rochas para deixar aquele campo aberto. Isso seria o tipo de coisa que Conan faria para ser fácil observar qualquer intruso tentando aproximar-se da montanha. Para ele isto indicava que o descampado tinha sido criado para algum fim, por seres inteligentes e organizados. Isto era intrigante, pois não vira qualquer indício de organização estruturada nos selvagens que encontrara até agora. Se poderia encontrar respostas para o que lhe aconteceu, de certo seria na montanha que estaria mais perto delas. *
IV. Desde a orla da floresta até ao sopé da montanha é preciso percorrer dois quilómetros de desolação, onde toda a vegetação foi cortada ou queimada, as rochas mais altas quebradas, como se esmagadas por mãos de titãs, e a cada passo a montanha parece agigantar-se. Os pedaços de rocha dificultam qualquer deslocação nesta área. Os ramos e troncos ressequidos restantes, vestígios da vegetação, são como estacas apontadas ao alto, esperando a queda de algum incauto. As paredes de rocha parecem lisas e aguçadas, subindo a uma altura que não permite perceber se no alto delas existe algo ou alguém, num escondido planalto. Olhando em redor não se consegue perceber o real diâmetro da montanha, apenas se percebe que a orla da floresta a parece contornar ao longo desta trincheira desoladora. Apesar de tudo isto, no seu improvisado trono de pedra, o poderoso e imponente senhor da montanha não parece satisfeito, segurando uma coroa na sua mão direita de forma displicente e com algum desprezo, parece tentar esmagar a rodela de ouro e jóias. De um gesto lança a coroa para trás de si e ergue o corpo, ficando de pé junto ao trono. Os seus cabelos brancos pelos ombros parecem um só com a barba. Usa uma armadura de couro com placas de pedra incrustadas, como uma couraça, dos ombros cai-lhe uma capa vermelha e gasta por duras batalhas. Do alto da montanha, com a sua mente, observa o seu mundo, sentindo as mudanças que se operam. Como uma tapeçaria, todo este mundo que contempla da montanha, foi por ele conquistado sem piedade, de entre todos os seres que o percorrem ele deixou somente viver os mais fortes e aptos. Considerado rei pelos selvagens habitantes que povoam o mundo a seus pés, estes não se lhe comparam, nem em fisionomia, nem em engenho, nem em poder. Sabe que não é um deles apesar de ter crescido e viver com eles, e bem cedo tomou por seu tudo o que quis. Exercer o seu poder sobre estes seres quase humanos e por toda a terra que se consegue ver da montanha já não o satisfaz, algo mais elevado chama por ele e sabe que em breve o alcançará. Rodeado de tesouros, armas e recordações de batalha, dentro de uma ampla gruta, do alto de alguns degraus, abandona definitivamente o trono. Percorre a ampla sala pela última vez, olhando com desdém as riquezas, recolhendo de entre os espólios de guerra uma lança com haste de madeira encimada por uma lâmina de metal dos céus. - Serve-me uma última vez e reinarás comigo para sempre. - Diz falando para a arma.
A meio caminho entre o limite da floresta e as altas paredes da montanha, com dificuldade mas tremenda destreza, o Cimério aproxima-se do refúgio do rei dos selvagens. Lá no alto, saindo das grutas para um pequeno planalto na lateral da montanha, o imponente senhor daquelas terra sente a presença da ameaça que o acossa desde que assumiu o trono de pedra. À sua direita começa uma escadaria dissimulada de quem olha desde um plano inferior passando despercebida, mas permite uma excelente visibilidade do desolado descampado. Segurando na sua lança, sentindo que esta será a última vez que o faz, pousa um pé no primeiro lanço de escada. Lá embaixo Conan pára, sentido ser observado. Desde que começou a percorrer o descampado sabe ser observado da montanha. No entanto agora sente algo vindo da floresta. Na escadaria de pedra também o soberano sente o bizarro poder vindo da floresta. Nas últimas semanas toda a vida animal tinha desaparecido em redor, como se algo deveras voraz tivesse caçado tudo o que servisse de alimento. Pensara ser algum novo predador, mas vendo agora os movimentos da vegetação percebe porque metade do seu exército tinha também desertado ou desaparecido. Dando um grito ordena prontidão dos seus guerreiros e de imediato surgem lanças, mocas e machados de pedra por trás das rochas, saindo de buracos no chão ou de passagens escondidas, por toda a montanha. Dá mais um passo nas escadas e os seus olhos deixam de ver. Por ele passam alguns dos seus selváticos guerreiros, descendo apressadamente para tomar posição de combate ao longo dos acessos. Continuando de pé imóvel, perdido na sua mente. Já não está na montanha, estando, o corpo erguido na escadaria, a mente avança num espaço sem limites de um branco luminescente. Avança outro pé na escadaria, também o espírito avança, e percebe uma longa passadeira também ela luminosamente branca, quase impercetível neste espaço, sentindo-a por baixo de si mais do que a vendo, pisando tanto na escada como na passagem, avança nos dois espaços, no físico e no divino. Conan ouve o grito de guerra, e percebe os movimentos dos guerreiros na montanha, preocupante, mas não tanto como o que sente chegar pela floresta. Segurando com as duas mãos a sua tosca lança, percebe que a improvisada arma de nada lhe servirá. - Por Crom, venderei cara a minha pele! - Afirma como que num rugido. Da floresta ouve de novo o silvo melancólico e melódico do enorme corvo subindo nos céus. *
Quando ordeno a um Rei sua coroa deixar, ele a meus pés o seu cetro irá deitar. Tudo definha e tudo acaba, suba para a sua pira, o festim termina, e a luz expira. Prepare-se para ir; eu estou vindo por você. Balada da Morte – Poesia popular de Zingara * V. O silvo entra fundo no coração e mente de Conan, um frémito percorre-lhe o corpo. A sua vista com dificuldade percebe que a grande ave transporta algo consigo. O soberano no seu êxtase ouve também o chamado do corvo. Abre os olhos e vê entre dois mundos. - Badb Catha! - Reconhece. - Vens em meu auxílio ou ajudas os que me acossam? Mais um passo na escadaria e mais uma vez é embalado pelo espaço branco. Agora vislumbra ao longe um fim para a passadeira. Sentados ao longo das duas laterais da passagem conta seis seres parecidos com jovens fêmeas, três de cada lado ladeando a orla final do caminho. Mais um passo na escadaria e um novo silvo do corvo desperta-o para o campo de batalha. Retesando os arcos e preparando as flechas os seus guerreiros aprontam as armas para o combate. Conan volta a sua atenção para a floresta, um clamor de batalha vindo do seu interior revela a dimensão da ameaça. Permanecendo sobre a cobertura e protecção das árvores um grupo numeroso de guerreiros fortemente armados começa a preencher o espaço, parecendo rodear toda a montanha, ocupando todo o limite vegetal que circunda o desolado espaço onde se encontra o Cimério. Agora percebe, está entre dois exércitos, um que defende a montanha e outro que a ataca. O que ele pensava ser uma reação à sua aproximação é em realidade a preparação de um exército defensor. Agora percebe a escala do que se passa, a falta de animais para caçar, o silêncio da floresta. Alimentar um exército não é fácil e devem ter pilhado até os ninhos de cobras para lhes comerem os ovos. E o corvo silvará de fome por não ter o que caçar, pensa Conan olhando-o de novo. Recorda que transportava algo, aguça a vista e repara que tem apenas uma garra, como uma mão negra. Um arrepio de reconhecimento percorre a suas costas.
Na garra transporta uma espada, também ela negra, tão comprida como a ave. - Mas... - indaga Conan. - Terá roubado a espada a um soldado? - Questiona-se, sem conseguir deixar de olhar com familiaridade para a garra escura da ave. Mais um passo no alvo caminho etéreo, mais um passo na escadaria que agora também termina. Mais uns passos e o soberano pisará o descampado onde se encontra o Cimério. Com os seus olhos fechados vê cada vez mais perto o final da passadeira branca e consegue agora perceber que os jovens seres sentados sobre os joelhos são de uma compleição albina, desprovidos de cabelos, envoltos em mantos luminescentes. No final do caminho uma luz parece chamar por ele. E dá mais um passo. Os atacantes vendo o senhor da montanha tão perto decidem avançar, enquanto que os defensores percebendo que o seu rei entrou demasiado no terreno de batalha, ficam desorientados e disparam as suas flechas cedo demais. No meio de tudo isto Conan quase desarmado vê erguer-se no céu uma nuvem de flechas que serão o seu fim se não conseguir encontrar abrigo rapidamente. O corvo desce a pique sobre Conan. - Crom! - Grita enraivecido pelo seu azar, só lhe faltava esta. O Cimério decide morrer ali, mas não sem antes levar com ele aquela ave de mau agoiro. Retesa os seus músculos, aperta a rude lança entre os dedos e ergue a sua lâmina em direcção ao corvo, apoiando a base da haste no solo, espera pela investida final da ave. Poucos metros antes de cair sobre Conan o corvo pára o seu vôo e abre as asas pairando. As flechas chegam nesse momento ao seu destino, caindo ao redor do Cimério numa chuva mortal. Mas sobre este, de asas abertas, flutuando magicamente, a negra ave protege o herói, recebendo no seu dorso as flechas destinadas ao Cimério, que se esfumam quando lhe tocam. - Badb! - Reconhece com assombro, a deusa da guerra tomou o seu partido. Todas as flechas terminaram de cair e a ave bate de novo as suas asas, erguendo-se nos céus. Abrindo a mão que tem por garra, a forma alada da deusa da guerra Badb liberta a negra espada que cai em direcção a Conan. Este com destreza recebe a espada e ergue-a em direcção ao grande corvo. - Por Badb, quando me receber na morte, Crom, ficará orgulhoso de mim, com esta espada matarei metade de cada exército antes de permitir a minha própria queda. - Jura o Cimério sabendo estar em desvantagem. Os exércitos correm como podem pelo descampado, muitos dos selvagens guerreiros de ambos os lados caem ao pisar mal nas pedras, ficando com as suas entranhas espetadas pelo desoladores e afiados paus aguçados, que cumprem assim a sua função.
Com menos baixas do lado dos defensores por já saberem dos perigos e armadilhas preparadas, estes parecem percorrer o espaço até Conan mais rápido que os atacantes, talvez também por quererem ganhar terreno onde proteger o seu soberano. Parou de andar no último degrau da escadaria. O corpo físico já quase desligado da mente, e no profundo do seu espírito o rei ouve o chamado da luz intensa, enquanto caminha na passadeira sente os cânticos dos seres que o ladeiam, cada vez mais intensos. Uma melodia surreal banha-o com luz. Uma última vez abre os olhos no mundo real, todo o seu poder está agora no plano espiritual, mas ainda assim sente o clamor do combate. As vidas dos seus guerreiros nada significam para ele, não lhe interessa se vivem ou morrem. No entanto sente no campo de batalha um avassalador poder de luta e chacina como não vira senão em si próprio. Será um ser como ele, alguém que se eleva acima dos selváticos súbditos? De espada erguida Conan rechaça o primeiro embate com os defensores do senhor da montanha. Com conhecedoras estocadas, decepa os seus atacantes, que caem por terra sobre as rochas e sobre os perigosos paus, sangue e carne ao seu redor provam o seu poder em combate. A espada feita de um metal negro e leve tem o peso bem balanceado. O punho é mesmo à medida das duas grossas mãos de Conan, que a usa como se fosse parte de si. A lâmina parece vibrar de contentamento a cada vida que ceifa. Um vento repentino trás, para junto da montanha, negras nuvens de tempestade. E o grupo atacante está quase encima de Conan e dos defensores do rei. As nuvens cobrem a montanha de tal forma que se perde a noção da altura desta. Alguns relâmpagos embatem nas paredes de rocha lançando clarões místicos sobre os dois grupos de guerreiros que finalmente colidem, com Conan bem no meio da refrega. O espanto e temor causado pela tempestade junto dos combatentes dá ao Cimério uma única chance clara de saída, mas tem que agir rápido. No meio de lanças, arcos, mocas e lâminas de pedras não consegue vislumbrar um alvo entre os atacantes, decide virar a sua espada contra o poderoso rei da montanha. Talvez se acabar com ele os atacantes o tomem por aliado. Só assim poderá sobreviver entre dois exércitos. O soberano olha fixamente para Conan, pressentindo a ameaça. Apesar de quase abandonado pelo espírito, quase a tocar na luz misteriosa, ainda esboça um gesto de ataque com a sua lança. Levanta a lança enquanto dá três passos apontando e ganhando impulso para lançar. O Cimério corre como pode pisando onde consegue, com a espada ao alto preparando um salto. Por todo o campo de batalha se ouvem lamentos dos feridos e ameaças dos que combatem.
O som das armas a chocar, da carne a ser esmagada, rasgada, mutilada, fica para sempre na mente. Tanto o senhor da montanha como Conan conhecem bem esses sons, também nisso são parecidos, os dois gigantes entre os selvagens, esticando os seus corpos, esforçando os seus músculos, cada um com a sua poderosa arma. O rei arremessa a lança em direcção a Conan, que saltando para o soberano com a espada pronta para o trespassar, recebe o embate numa das suas pernas, bloqueando-lhe o salto em pleno voo, fazendo-o rodar e cair. A força da lança de metal das estrelas deita o Cimério por terra a poucos passos do senhor da montanha, que se aproxima para recuperar a arma e desferir o derradeiro golpe. Segura a lança e puxa para a retirar da perna de Conan. - Por Crom! - Grita o poderoso Cimério, a dor chama dentro dele todas as forças através da lâmina negra. Roda a espada decapitando de um só golpe o enorme rei guerreiro, libertando-o finalmente do mundo mortal, soltando as últimas amarras que o impediam de alcançar o seu verdadeiro potencial. Mais um passo e agora rodeado dos seres de vestes brancas observa como a luz se metamorfoseia numa imagem que reconhece. Uma mão erguesse na sua direcção. Sente todo o universo em si, poder como nunca sentira, a imortalidade penetra o seu corpo astral, o poder divino é finalmente liberto. A forma feminina à sua frente, apenas com uma mão, recebe-o entre os seus. - Badb! - afirma o deus. - Crom! - responde a deusa. * Para sempre a montanha com o trono terá a presença terrena do deus Crom, ao seu redor os dois exércitos terminam de se chacinar, os que não morrem jazem por terra em sangue, logo serão devorados pelos predadores, necrófagos e rapinas. Os que puderam, fugiram dispersos pela floresta. Durante muitas eras não voltarão a ter soberanos, evoluindo como agricultores, procurando terras além da floresta. As nuvens negras nunca mais abandonam aquele lugar, escondendo o cume da vista dos mortais. Deitado por terra com a perna ligada, Conan espera calmamente por um incauto necrófago que o queira atacar, será um belo jantar.
Não perca o regresso de Conan à Era Hiboreana em “A Mão Negra de Badb”.