REVISTA DA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA Ano 11 - Número 1 - Julho/Dezembro - 2011
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ISSN 1980-2374 Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nยบ 1, p. 1-176, Julho/Dezembro - 2011
Revista da Escola Paulista da Magistratura / Escola Paulista da Magistratura. Ano I, (1993). São Paulo, SP: Escola Paulista da Magistratura. Semestral 2001, v. 2 (1-2) 2002, v. 3 (1-2) 2003, v. 4 (1-2) 2004, v. 5 (1-2) 2005, v. 6 (1) 2006, v. 7 (1-2) 2007, v. 8 (1-2) 2009, v. 9 (1) 2011, v. 10 (1) 1. Direito. I. Escola Paulista da Magistratura. ISSN 1980-2374
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Sumário 1. A técnica da petição inicial e seus requisitos (uma abordagem inspirada na instrumentalidade do processo) João Batista Amorim de Vilhena Nunes......................................... 7 2. Aspectos gerais dos direitos da personalidade Thiago Baldani Gomes De Filippo............................................... 33 3. Emenda Constitucional 62/09 Ivan Ricardo Garisio Sartori....................................................... 53 4. Sigilo médico: por que e quando? Airton Pinheiro de Castro........................................................... 77 5. O direito da tecnologia de informação e o combate ao abuso contra crianças na internet Paulo Ernani Bergamo dos Santos............................................... 91 6. Algumas considerações sobre a obrigação civil ambiental do proprietário de bem imóvel Maria Adelaide de Campos França............................................ 125 7. Os recursos no projeto de reforma do Código de Processo Penal Rômulo de Andrade Moreira..................................................... 143 8. Sistema penal preventivo – Interdisciplinaridade e proteção social Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira................................ 169
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A técnica da petição inicial e seus requisitos (uma abordagem inspirada na instrumentalidade do processo)
João Batista Amorim de Vilhena Nunes1
Juiz de Direito no Estado de São Paulo
SUMÁRIO: 1. Da técnica processual: breves considerações. 2. Da petição inicial e sua missão instrumentalizadora do processo. 3. Dos requisitos da petição inicial. 3.1 Da competência. 3.2. Das partes 3.3. Da causa de pedir. 3.4. Do pedido e seu fundamento. 3.5. Do valor da causa. 3.6. Das provas. 3.7. Da citação. 4. Conclusão. 5. Bibliografia.
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Juiz de Direito, professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus, da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS/CEU), em nível de graduação e pósgraduação, e professor assistente da Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP).
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1. Da técnica processual: breves considerações
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técnica está de tal maneira vinculada ao bom desenvolvimento do processo que, ao ser desconsiderada, ou empregada uma de má qualidade2, fica obstado o sucesso daquele em atingir seus regulares es3 copos e, certamente, nenhum resultado justo e útil dele poder-se-á esperar. Esta técnica consiste nas balizas concebidas pelo legislador ao editar a norma procedimental com o fito de conduzir todos aqueles que tiverem participação no processo, orientar suas condutas enquanto partes da relação jurídica processual4. Estas guias nada mais são que o produto da ponderação feita antecedentemente à criação da norma, que leva em consideração os fins a que esta se destina, e vem composto pelos elementos indicadores dos propósitos do processo regulado5. Entretanto, e colocado que a lei não pode ser simplesmente descartada6, bem como que aqueles que tomam parte no processo (advogados, promotores e juízes) devem dominar e respeitar a técnica pertinente ao mesmo, para nós temos ser necessária a constante busca da real dimensão das regras procedimentais, iniciando-se pelo abandono da ideia de que tais regras não podem ser compreendidas, em nenhuma circunstância, de modo a propiciar um melhor resultado para o processo, interpretadas7 para permitirem, além
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Nas palavras de MOREIRA José Carlos Barbosa Os novos rumos do processo civil brasileiro. Temas de Direito Processual. 6ª série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 76. Sobre a relação de escopos do processo e técnica processual ver: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 164-167, 172-176 e 219-223. O formalismo serve em boa medida para impedir eventual atuação arbitrária do juiz e a procrastinação indevida do processo por atos das partes que possam ser caracterizados como “chicana”. A efetividade do processo está intimamente ligada a estes fins e propósitos, tanto que Cândido Rangel Dinamarco, após frisar que a antes referida efetividade se encontra quanto mais se assegure os direitos do homem na via judicial, noticia estar-se no encalço de medidas que se apresentem capazes, dentro do possível, de levar “à consecução dos escopos a que teleologicamente preordenado o sistema” (Fundamentos do processo civil moderno. t.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 592). Ponha-se em destaque o texto de Roger Perrot onde ele afirma que “todo mundo reconhece ao juiz a faculdade de suprir a lei nos limites da interpretação. Mas não é de se admitir que o juiz lance um desafio à lei esquecendo que ele não extrai a legitimidade do seu poder senão da lei mesma e que, ao desejar ignorá-la, serra o galho sobre o qual ele se assenta” (Apud MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil. v. I. São Paulo: RT, 2005, p. 282). Anota José Frederico Marques que o juiz deve, na qualidade de qualificado intérprete da norma processual civil, atender, em conformidade com o disposto no art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. O mesmo autor, após lembrar Luís Ricaséns Siches, em passagem na qual este afirma dever dominar a interpretação do direito escrito a lógica do humano, do razoável (logos del razonable), assevera que “não há sistemas rígidos de interpretação. O entendimento da lei deve subordinar-se a método dúctil e flexível, capaz de fornecer ao juiz elementos necessários para atuar com justiça, sem fugir da obediência à lei escrita” (Instituições de Direito Processual Civil. v. I. Campinas: Millennium, 2000, p. 86). Essa interpretação, contudo, deve ser real interpretação, não criação de uma nova norma por meio absolutamente irregular, que caracterizaria, aliás, total inobservância do modo preestabelecido para a instituição
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de coerência e segurança, a efetiva solução da questão de direito material em debate entre as partes, solução esta que, definitivamente, é o móvel que leva o autor a ingressar em juízo e o réu a produzir sua defesa. Ambos estão ciosos por uma decisão que venha, dentro da brevidade possível8, resolver a crise de direito material que os envolve. Merece aqui igual destaque o interesse público que se atende quando o processo termina, sendo dele resultante a esperada pacificação social9, daí a preocupação existente em torno da estipulação, do entendimento e da abrangência referente às formalidades atinentes ao desenvolvimento do processo. O processo moderno, o qual sem dúvida é devedor de tributos à escola histórico-dogmática ou sistemática, encabeçada por Giuseppe Chiovenda10, não pode ser algo isolado e encapsulado, o qual sirva apenas para emprego no próprio laboratório em que eventualmente construído. Deve estar afinado com o mundo que o cerca, manter relações íntimas com o direito material, entretanto, sem confundir-se com o mesmo11. Deixar de mais exaltar o
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de uma regra legal. A este respeito, diz Elio Fazzalari que “a tentação de ‘criar’ fingindo ‘interpretar’ se faz mais forte nos períodos de ‘crise do direito’, isto é, da crise dos conteúdos dos valores positivos de uma certa sociedade, mas deve igualmente – ou com maior razão – ser exorcizada, canalizando pelas vias institucionais a necessidade de um novo direito: sob pena de gradual, porém definitiva subversão da convivência” (Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 479). José Ignácio Botelho de Mesquita complementa dizendo ser preciso ter-se em mente que ao se falar em lei já se fala em lei interpretada, pois não existe lei sem interpretação. A lei caminha tendo ao lado a sua interpretação. Tal interpretação é atribuição do juiz, e este deve, ao interpretá-la, revelar a justiça que há no seu comando. A sociedade dispõe de juízes exatamente para que eles executem esta tarefa, e os magistrados, por sua vez, devem dispor de um processo programado de forma a possibilitar haja o emprego da lei ao caso concreto e, assim, seja encontrada a solução mais justa para o conflito que atormenta as partes. “A justiça da sentença é o produto da justa interpretação da lei feita por um justo juiz mediante um justo processo” (Teses, estudos e pareceres de processo civil. v. I. São Paulo: RT, 2005, p. 304). Segundo José Roberto dos Santos Bedaque, esta atividade interpretativa do juiz é vista como um comportamento discricionário, que visa a aplicação da lei ao caso concreto, segundo o seu melhor entendimento, seguidos critérios previamente estabelecidos pela própria lei (Discricionariedade judicial. Revista Forense. v.354, Rio de Janeiro: Forense, mar./abr. 2001, p. 188). Cabe lembrar que em nosso ordenamento a garantia da duração razoável do processo, com a edição da Emenda nº 45/2004, passou a figurar do art. 5º, da Constituição da República, em seu inciso LXXVIII, de seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação”. Diz Cândido Rangel Dinamarco que “o escopo de pacificar pessoas mediante a eliminação de conflitos com justiça é, em última análise, a razão mais profunda pela qual o processo existe e se legitima na sociedade” (Instituições de Direito Processual Civil. v. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 128). MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004, p. 52-53. A este respeito, Luiz Guilherme Marinoni deixa bem claro que “o fato de o processo civil ser autônomo em relação ao direito material não significa que ele possa ser neutro ou indiferente às variadas situações de direito substancial. Autonomia não é sinônimo de neutralidade ou indiferença. Ao contrário, a consciência da autonomia pode eliminar o medo escondido atrás de uma falsa neutralidade ou de uma indiferença que, na verdade, é muito mais meio de defesa do que alheamento em relação ao que acontece a ‘distância das fronteiras’. Na realidade, jamais houve – ou poderia ter ocorrido – isolamento do direito processual, pois há nítida interdependência entre ele e o direito material. Isso é tão evidente que supor o contrário seria o mesmo que esquecer a razão de ser do processo, considerada a necessidade de este ter que ser pensado à luz da realidade social e
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formalismo que atentar aos seus precípuos fins12. Parece que utilizadas estas premissas como base para a partida, se poderá vir a falar em um processo eficiente13, onde a técnica esteja comprometida com a intenção de fazer aflorar no campo processual a tão almejada justiça14. Assim como é impensável voltar-se a um passado em que o processo não tinha contornos científicos e se confundia com o próprio direito material15, na medida em que se acreditava ser ele dependente deste para existir16, igualmente inaceitável que o direito material não seja satisfeito
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do papel que o direito material desempenha na sociedade” (Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004, p. 55-56). “O formalismo, ou forma em sentido amplo, no entanto, mostra-se mais abrangente e mesmo indispensável, a implicar a totalidade formal do processo, compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculdades e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalidades primordiais. A forma em sentido amplo investe-se, assim, da tarefa de indicar as fronteiras para o começo e o fim do processo, circunscrever o material a ser formado, estabelecer dentro de quais limites devem cooperar e agir as pessoas atuantes no processo para o seu desenvolvimento” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 6-7). Comenta Kazuo Watanabe estar entre as principais preocupações dos processualistas de nosso tempo resolver o problema da efetividade do processo como instrumento da tutela de direitos (Da cognição no processo civil. 3.ed. São Paulo: Perfil, 2005, p. 21). Em algumas hipóteses, para atingir-se este ideal de justiça, poder-se-ia pensar no emprego dos juízos de equidade, conferindo ao juiz maior liberdade para deixar de lado o rigor formal, em razão de peculiaridades presentes em determinadas situações ocorrentes no curso do processo, bem como facultando àquele a concepção de norma concreta que viesse, de modo mais justo, auxiliar no regular desenvolvimento do processo, inclusive para dirimir o conflito sub judice. A equidade, certamente, seria um importante instrumento para utilização dentro do âmbito do direito processual, ferramenta que poderia se mostrar muito adequada para resolver problemas do processo, o qual, muitas vezes, se vê preso a formalismos que mereceriam ser suplantados e ter seu rigor vencido para conformarem-se às necessidades de certo caso concreto, permitindo efetivo e proveitoso trâmite processual. Em nosso ordenamento, contudo, o art. 127, do Código de Processo Civil, não impede, mas restringe a adoção desta ideia, na medida em que dispõe, taxativamente, que “o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei”. A jurisdição de equidade, porém, está autorizada nos processos regidos pela Lei de Arbitragem (art. 2º, caput; e inc. II, do art. 11, da Lei nº 9.307/96), assim como na arbitragem ajustada perante os Juizados Especiais (art. 25, da Lei nº 9.099/95). No processo penal, o juízo de equidade é a regra geral, em razão da possibilidade da individualização judiciária da pena (art. 42, do Código Penal), assim como o é para os processos que tramitam sob jurisdição voluntária, onde juiz pode adotar a solução que se demonstrar mais adequada para resolver a questão a ele apresentada (art. 1.109, do Código de Processo Civil). Sobre o tema vale conferir: MARINI, Carlo Maria de. Il giudizio de equità nel processo civile. Padova: Cedam, 1959, p. 136-142, 182-206 e 244-253. FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 490-493. LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. v.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 229-231. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 148. O direito processual era encarado como um acessório do direito material, este último era visto, então, como direito substantivo, enquanto aquele aparecia como direito adjetivo. Tal visão monista foi vencida pela dogmática do processo, sendo que apesar de a sistematização do direito processual ter levado à positiva consolidação de sua autonomia, de outro lado acabou por determinar o seu inconveniente afastamento do direito material. Atualmente, preservada a dita autonomia, e sendo certo que é impossível pensar-se em processo com um fim que não seja a realização do direito material, com o qual está o direito processual, de qualquer modo, absolutamente relacionado, a aproximação de ambos vem sendo promovida por toda a doutrina preocupada com a efetividade do processo. Aliás, o art. 75, de nosso revogado Código Civil (1916) ditava que: “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura”.
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apenas para que se observem regras procedimentais, formais por excelência, mas que, divorciadas de uma visão teleológica17, em termos de justiça, nada produzem18, pois ainda que atendidas, podem não conduzir o processo ao ponto que justifica a sua existência, qual seja, a uma decisão justa19. De há muito percebida a ineficiência do processo atual, enquanto feixe de formalismos, para resolver esta problemática, passou-se a realizar diversas reformas legais, nas quais se procura estabelecer novas soluções para tornar o processo um instrumento que, realmente, possa atender às expectativas das partes, atue de forma a cumprir seus escopos e deixe de estar estigmatizado pela sua morosidade, pela sua complexidade muitas vezes desnecessária, pela falta de meios para que se possam suplantar algumas de suas próprias exigências, enfim, pare de ter como centro as formas e formalidades nele envolvidas e esteja mais preordenado a produzir o necessário substrato para que se possa chegar à prestação jurisdicional20. A propósito do conteúdo de certas reformas legislativas, em especial a realizada para a edição do então novo Codice di procedura civile, comentou
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Enfatiza José Frederico Marques a importância do sentido finalístico do processo, a sua teleologia, o fato de ter por finalidade a solução de conflitos de interesses “dando a cada um o que é seu e garantindo o triunfo da justiça e da liberdade”. Segue o autor dizendo que “a composição processual dos litígios é a solução mais adequada aos conflitos de interesses, porque é a única que pode resguardar os direitos humanos e tentar a paz social sob o signo da justiça” (Instituições de Direito Processual Civil. v.I. Campinas: Millennium, 2000, p. 8-9). E é certo que o processo é justamente o instrumento da jurisdição viabilizador da justa composição de interesses conflitantes, o qual tem sua técnica ajustada a um fim, ou seja, adequada teleológicamente (VILHENA, Paulo Emílio de Andrade. Conexidade pela causa excipiendi e individuação da causa. Revista dos Tribunais, v. 395, ano 57, São Paulo: RT, p. 27). “Do conceptualismo e das abstrações dogmáticas que caracterizam a ciência processual e que lhe deram foros de ciência autônoma, partem hoje os processualistas para a busca de um instrumentalismo mais efetivo do processo, dentro de uma ótica mais abrangente e mais penetrante de toda problemática sócio-jurídica. Não se trata de negar os resultados alcançados pela ciência processual até esta data. O que se pretende é fazer dessas conquistas doutrinárias e de seus melhores resultados um sólido patamar para, com uma visão crítica e mais ampla da utilidade do processo, proceder ao melhor estudo dos institutos processuais – prestigiando ou adaptando ou reformulando os institutos tradicionais, ou concebendo institutos novos –, sempre com a preocupação de fazer com que o processo tenha plena e total aderência à realidade sócio-jurídica a que se destina, cumprindo sua primordial vocação que é a de servir de instrumento à efetiva realização dos direitos. É a tendência ao instrumentalismo que se denominaria substancial em contraposição ao instrumentalismo meramente nominal ou formal” (WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3.ed. São Paulo: Perfil, 2005, p. 22-23). “O direito processual civil do final do século XX deslocou seu enfoque principal dos conceitos e categorias para a funcionalidade do sistema de prestação da tutela jurisdicional. Sem desprezar a autonomia científica conquistada no século XX e consolidada na primeira metade do século XX, esse importante ramo do direito público concentrou-se, finalmente, na meta da instrumentalidade e, sobretudo, da efetividade. Pouco importa seja a ação um direito subjetivo, ou um poder, ou uma faculdade para o respectivo titular, como é desinfluente tratar-se a ação como direito concreto ou abstrato frente ao direito material disputado em juízo, se essas idéias não conduzem à produção de resultados socialmente mais satisfatórios no plano finalístico da função jurisdicional” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. As novas reformas do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 92).
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Piero Calamandrei ser acertada a iniciativa adotada pelo legislador reformador no sentido de abandonar o esquema do processo de concepção individualista, o qual conduzia a uma “escarniçada luta de egoísmos”, para deixar-se inspirar pela ideia do processo social, processo este marcado por sua fundamental orientação humana, que resgata uma desejável simplicidade, facilitadora de seu entendimento e aplicação pelos sujeitos do processo, tendo sido com isso “reduzidos ao mínimo os inconvenientes do formalismo”21. Nessa linha de pensamento, observa José Roberto dos Santos Bedaque22, que o emprego inadequado da forma, ou, ainda, o formalismo exagerado, no mais das vezes é “... um dos grandes responsáveis pela demora do processo, pois o transforma em instrumento a serviço do formalismo estéril, não do direito material e da ordem jurídica justa”23. Em arremate, assevera que o apego despropositado ao formalismo enseja a atribuição de uma importância às exigências pertinentes ao método de solução de controvérsias incompatível com sua natureza instrumental, o que acaba por fazer erigir tais exigências à condição de óbices aos escopos do processo24. Portanto, deve o estrito formalismo, ou melhor, o formalismo pelo formalismo25, ser relegado para segundo plano, em especial quando se tenha identificado que os fins do ato processual praticado, que formalmente seria de outro modo realizado, foram atingidos, sem qualquer prejuízo para os integrantes da relação jurídica processual. Aliás, é justamente isso que está comandado no art. 154, caput; no art. 244; nos §§ 1º e 2º, do art. 249; e no art. 250, todos do Código de Processo Civil, os quais recepcionam
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Direito Processual Civil. v.I. Campinas: Bookseller, 1999, p. 332-333. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 32-33. Luigi Paolo Comoglio, igualmente, ressalta o resultado negativo do excesso de formalismo (Garanzie constituzionali e “giusto processo” (modelli a confronto). In: RePro, ano 23, n.90, abr./jun. 1998, p. 131. Segundo Enrico Tullio Liebman a ordem jurídica “constitui-se de dois sistemas de normas, distintos e coordenados, que se integram e se complementam reciprocamente: o das relações jurídicas substanciais, representadas pelos direitos e correspondentes obrigações, segundo as várias situações em que as pessoas venham a se encontrar, e o do processo, que fornece os meios jurídicos para tutelar os direitos e atuar o seu sistema” (Manual de Direito Processual Civil. v.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 197). Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 80-87. A existência destes óbices, que constituem indevidos entraves à plena efetividade prática do processo “influem no modo-de-ser do processo e o tornam complicado e lento (...) conduzem a decisões injustas” e levam alguns, inclusive, a por em crise a utilidade das decisões judiciárias (DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. t.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 593). “Hoje, é preciso repensar o problema como um todo, verificar as vertentes políticas, culturais e axiológicas dos fatores condicionantes e determinantes da estruturação e organização do processo, numa palavra, do formalismo. E isso porque seu poder ordenador, organizador e coordenador não é oco, vazio ou cego, pois não há formalismo por formalismo” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61).
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em seus textos o espírito do princípio da instrumentalidade das formas, e nos levam a refletir, em alguns particulares casos, com observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da economia e celeridade, sobre a possibilidade da relativização da técnica processual. Recomendável, entretanto, extremo cuidado ao serem realizadas modificações tendentes à eliminação dos sobreditos formalismos, os quais somente devem ser suprimidos quando ficar patente a sua obsolescência, a sua imprestabilidade, o seu exagero, a sua inutilidade. Demonstrando a mesma preocupação, adverte José Ignácio Botelho de Mesquita, ser “justo e necessário que uma reforma processual se preocupe em abolir fomalidades inúteis; não porém porque isso favoreça a celeridade do processo, mas porque melhore a utilidade do processo. Suposto que o processo já não contenha formalidades inúteis, só contenha as necessárias, a abolição de qualquer delas implicará restrição da garantia do devido processual”26. Logo, não é uma questão de rompimento com todas as praxes, uma tentativa de instalar o terror procedimental, ou de implantar um ideal de absoluta aversão ao devido processo legal27, e, sim, antes de tudo, de assumir compromisso segundo o qual o processo não pode ser algo estático e tirano, ao contrário – respeitadas certas margens aceitáveis28 –, deve sempre aparecer como vivo instrumento a serviço daqueles que tiveram seus direitos violados e necessitam da respectiva tutela jurisdicional reparadora.
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Teses, estudos e pareceres de processo civil. v.I. São Paulo: RT, 2005, p. 290. Demonstra José Ignácio Botelho de Mesquita absoluta reprovação às iniciativas levadas a cabo em certas normas reformadoras do processo e que apenas serviram, em sua opinião, para impor restrições ao devido processo legal e aprofundar a crise do Poder Judiciário (Teses, estudos e pareceres de processo civil. v.I. São Paulo: RT, 2005, p. 254-262 e 300). Em contraponto, Cândido Rangel Dinamarco sustenta que “em nome dos elevados valores residentes nos princípios do contraditório e do due process of law, acirraram-se formalismos que entravam a máquina e abriram-se flancos para a malícia e a chicana” (Nova era do processo civil. 2ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 20). Ou seja, sem que se permita perigosa redução do vigor dos princípios da legalidade, da igualdade, da inafastabilidade da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido: MESQUITA, José Ignácio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil. v.I. São Paulo: RT, 2005, p. 291). Outrossim, Cândido Rangel Dinamarco deixa claro que “o destaque dado aos escopos do processo e à sua inserção na ordem política e social não deve conduzir ao menosprezo da técnica processual. O processo jamais deixará de ser uma técnica. Para o aprimoramento do sistema e para que ele possa cumprir adequadamente suas funções no plano social, no político e no jurídico, é preciso ter consciência integral de todos os seus escopos, situados nessas áreas – o que obviamente não deve conduzira afastar as preocupações pela técnica processual, mas a enriquecê-la com os dados assim obtidos” (Instituições de Direito Processual Civil. v.I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 136).
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2. Da petição inicial e sua missão instrumentalizadora do processo A petição inicial é a via de exteriorização da vontade do autor em ver principiado o processo, do desejo daquele em ver instaurada a relação processual (art. 262, do Código de Processo Civil). É a peça que, distribuída ou submetida ao despacho do juiz (art. 263, do Código de Processo Civil), revela o concreto exercício do direito de ação29 e permite o desencadeamento de toda atividade estatal necessária ao desenvolvimento do processo assim nascido, que a partir daí toma rumo em direção ao ápice da relação jurídica processual, ao ponto em que se considerará entregue a prestação jurisdicional então reclamada30. Na lição de Arruda Alvim, estrutura-se a petição inicial de modo que apresenta um aspecto formal e outro substancial31. O aspecto formal está ligado aos inc. I, II, V, VI e VII, do art. 282, do Código de Processo Civil, e estes se vinculam à formação do processo, à função preparatória deste. Daí pode ser afirmado que o aspecto formal da petição inicial tem natureza tipicamente processual. Diversamente, o aspecto substancial está relacionado com os elementos indicativos da lide ou do objeto litigioso, logo, refere-se aos inc. III e IV, do art. 282, do Código de Processo Civil32. 29
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Direito este que se pode qualificar como fundamental, pois é por ele que se dá início e impulso ao processo, coloca-se em movimento o exercício da função pública que virá a tutelar as pretensões do autor, o qual, para tanto, poderá se valer de todos os meios previstos em lei (LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. v.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 201). Vicente Greco Filho afirma que o direito de ação se exerce por meio do processo e esclarece que “... o chamado direito processual de ação não é incondicionado e genérico, mas conexo a uma pretensão, com certos liames com ela. O direito de ação não existe para satisfazer a si mesmo, mas para fazer atuar toda a ordem jurídica, de modo que seu exercício é condicionado a determinados requisitos, ligados à pretensão, chamados condições da ação” (Direito Processual Civil brasileiro. v.I. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 78). Celso Neves tem o exercício do direito de ação como pressuposto de existência da relação jurídica processual (Binômio, trinômio, ou quadrinômio? Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, n.63, São Paulo: LEX, 1979, p. 15). É conveniente deixar assinalado, como o faz Enrico Tullio Liebman, que apenas o autor que tem razão poderá obter a prestação jurisdicional almejada (Manual de Direito Processual Civil. v.I. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 200). O referido autor chama o aspecto substancial da petição inicial de libelo, anotando que isto não o faz expressamente a lei. Para ele, o libelo contém um silogismo. A afirmação de fatos corresponde à premissa menor do silogismo, enquanto os fundamentos jurídicos a premissa maior. “E, tendo-se em vista determinados fatos, afirmados como juridicamente fundados no ordenamento, ter-se-á finalmente a conclusão do silogismo, que é o pedido” (Manual de Direito Processual Civil. 11.ed. São Paulo: RT, 2007, p. 216 e 223). Manual de Direito Processual Civil. 11.ed. São Paulo: RT, 2007, p. 213, 216 e 224. Algo diferente desta a formulação de Cândido Rangel Dinamarco o qual alude estarem agrupados os requisitos da petição inicial em duas categorias: a dos elementos constitutivos da demanda (inc. II, III e IV), e a dos elementos necessários ao processamento da causa (inc. I, V, VI e VII) – (Instituições de Direito Processual Civil. v.II. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 48). José Frederico Marques alude aos elementos identificadores da ação (inc. II, III e IV), bem como aos elementos pertinentes à constituição da relação processual (inc. I, V, VI e VII) – (Instituições de Direito Processual Civil. vol. III. Campinas: Millennium, 2000, p. 25). Porém, nos parece que a maior diferença existente
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Neste esquema visualiza-se que o autor, após criteriosa e precisa exposição de fundamentos, requer uma determinada providência jurisdicional – que pode ter natureza condenatória, ou constitutiva, constitutiva negativa ou declaratória –, como também reclama seja satisfeita a sua pretensão com a entrega a ele do bem da vida objeto do litígio. Àquele primeiro denomina-se de pedido imediato, ao segundo, de pedido mediato. A petição inicial, portanto, como instrumento da demanda33, é a peça em que o autor expõe os fatos geradores do conflito de interesses nela revelado, e cuja solução pede e aguarda, demonstrando sua submissão ao sistema legal para obter do Estado, por intermédio de seus órgãos competentes, prestação jurisdicional onde tenha confirmado e preservado o seu direito, com a restituição de tudo aquilo que este lhe possa garantir, de acordo com o ordenamento jurídico vigente. Fica clara, deste modo, a missão instrumentalizadora da petição inicial com relação ao processo que inaugura, pois é ela que servirá de baliza de todos os subsequentes movimentos processuais. É nela que se deduzem os fatos e argumentos substanciais ao julgamento da causa. Com ela se introduzem, no âmbito do processo, os documentos instrutórios necessários à análise do mérito da demanda. Enfim, é peça que aparelha, que operacionaliza, que prepara o processo para que possa este realizar sua função, para que o processo cumpra a sua tarefa de viabilizar a realização de justiça. Pois bem. Nos dias que correm reclama-se por um processo que seja, ao mesmo tempo, instrumental, substancial, social, ético e justo34. Aliás, como bem observa Humberto Theodoro Júnior35, é muito comum se falar mais de um processo justo do que de um processo legal, o que demonstra que hoje estão em primeiro plano ideias éticas em lugar do estudo sistemático apenas de formas e solenidades do procedimento. Devem imperar a honestidade e a moral na aplicação e compreensão das regras procedimentais, sendo
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entre as classificações mencionadas é tão somente de ordem terminológica. Como a ela se refere Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil. v.II. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 46). Por ser oportuno, trazemos a lição de José Carlos Barbosa Moreira segundo a qual “chama-se demanda o ato pelo qual alguém pede ao Estado a prestação de atividade jurisdicional. Pela demanda começa a exercer-se o direito de ação e dá-se causa à formação do processo” (O novo processo civil brasileiro. 22.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 9). Com estes valores se promove aquilo que Michele Taruffo chama de giustizia procedurale (Sui confini. Scritti sulla giustizia civile. Bologna: Il Mulino, 2002, p. 219-222). Boa-fé e processo. Princípios éticos na repressão à litigância de má-fé – Papel do juiz. In: Revista Autônoma de Processo. n.1. Curitiba: Juruá, out./dez. 2006, p. 323-343.
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imprescindível para a efetividade do processo que, desde o princípio, haja o compromisso do autor com a verdade e demonstre este a preocupação de obter o que, de fato, lhe seja devido, nada além disso36. Alude Luigi Paolo Comoglio ao direito fundamental a um processo équo e justo e, no mesmo pé, destaca a idéia da instrumentalidade do processo, afirmando estar esta ligada não só aos escopos, mas e antes de tudo aos aspectos éticos do processo judiciário. Termina concluindo que “Tale strumentalità esige che le guarentigie formali del processo non siano mai finì a se stesse, ma debbano sempre concorrere, sul piano instituzionale, al conseguimento di risultati decisori coerenti com i valori di equità sostanziale e di giustizia procedurale, consacrati dalle norme costituzionali o da quelle internazionale”37. Cândido Rangel Dinamarco também expressa entendimento segundo o qual é inadequado ter-se o processo como mera técnica instrumentalmente conexa ao direito material. Diz não se poder negar que o processo é técnica, contudo, esta “deve ser informada pelos objetivos e ideologias revelados na ciência processual e levada a efeito com vista à efetivação do valor do justo. Conjuntamente com o próprio direito substancial, o processo é instrumentalmente conexo ao supremo objetivo de pacificar com justiça”. Este seria, portanto, um instrumento ético e não meramente técnico38. Referindo-se ao teor do art. 88, do Codice di procedura civile39, Francesco Carnelutti destaca o dever das partes em prestar informações verdadeiras em juízo, agindo com probidade e lealdade, valores que não combinam com falsidades ou omissões, com o distorcer-se a realidade para obter disso alguma vantagem, aqui, nitidamente, indevida. O homem probo e leal não cala nem altera a verdade sobre os fatos, muito embora possa com isso lesar 36
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Cabe, no ensejo, lembrar Giuseppe Chiovenda para quem “o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” (Instituições de Direito Processual Civil. v.I. 3.ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 67). Garanzie constituzionali e “giusto processo” (modelli a confronto). In RePro, n.90. ano 23, abr./jun. 1998, p. 106. Instituições de Direito Processual Civil. v.I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 60-61. Mesmo pensar externa Ada Pellegrini Grinover, a qual nos ensina que “a transformação do processo, de instrumento meramente técnico, em instrumento ético de atuação da justiça e de garantia de liberdade; a partir desta visão externa, a percepção da necessidade da plena e total aderência ao sistema processual à realidade sócio-jurídica a que se destina, cumprindo sua primordial vocação, que é a de servir de instrumento à efetiva realização dos direitos materiais; e, para isso, a visão técnica processual como instrumento dirigido à predisposição dos meios destinados aos diversos escopos processuais” (Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Revista de Processo. n.46, ano XII, abr./jun. 1997, p. 63). De seguinte teor: “Dovere di lealtà e di probità – Le parti e i loro difensori hanno il dovere di comportarsi in giudizio com lelatà e probità. In mancanza dei difensori a tale dovere, il giudice deve riferirne alle autorità che esercitano il potere disciplinares u di essi”.
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seu próprio interesse40. Agir de boa-fé, portanto, além de ser o que naturalmente se espera de qualquer um, no processo, passa a ser um dever, o qual compreende, nas palavras de Giuseppe Chiovenda “1) a obrigação de não sustentar teses de que por sua manifesta inconsistência é inadmissível que o litigante esteja convencido; 2) a obrigação de não afirmar conscientemente coisas contrárias à verdade; 3) a obrigação de comportar-se em relação ao juiz e ao adversário com lealdade e correção”41. Em nosso Código de Processo Civil estas mesmas orientações estão presentes nos vários incisos, de seu art. 14, e sobre elas comentando Antônio Cláudio da Costa Machado assevera que “o dever de veracidade aqui previsto sempre deve ser considerado em termos, vale dizer, relativamente, uma vez que não se pode perder de vista que a exposição dos fatos é segundo a ‘verdade’ de quem expõe, exposição parcial, unilateral, tendenciosa em certa medida, portanto”42. Todavia, acresceríamos que ter uma visão ou versão própria a respeito de certos fatos não corresponde a alterar a verdade sobre os mesmos e, sim, externar um entendimento a respeito dos desdobramentos fáticos compatível com a dinâmica destes, e que se mostre plausível diante dos acontecimentos relevantes para a solução da causa43. O mesmo dispositivo evoca o dever das partes em proceder com lealdade e boa-fé. A lealdade revela-se em todo ato que esteja de acordo com a lei e respeite a moral, a justiça, o honesto, a franqueza e a transparência, e, no mesmo pé, negue a malícia, a hipocrisia, a falsidade e a artimanha. A boa-fé, diferentemente, liga-se a aspectos puramente subjetivos das atitudes, e é o componente que acaba por legitimar todo e qualquer ato jurídico processual, bem como os efeitos dele decorrentes44. Dentro destes parâmetros, a petição inicial deve apresentar-se como a primeira manifestação do autor – que ingressará no sistema que procura 40
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Instituições do processo civil. v.I. São Paulo: Classic Book, 2000, p. 409. Igualmente, Piero Calamandrei, fazendo sua comparação do processo a um jogo, conclama ao fair play, “cujas regras não escritas estão principalmente encomendadas à consciência e à sensibilidade das ordens forenses” (Direito Processual Civil. v.III. Campinas: Bookseller, 1999, p. 227-231). Instituições de Direito Processual Civil. v.II. 3.ed. Campinas: Bookseller, 2002, p. 437. Código de Processo Civil interpretado. 6.ed. Barueri: Manole, 2007, p. 21. Não se olvide que as hipóteses em que se caracteriza a litigância de má-fé em nosso Código de Processo Civil estão nos art. 16 e 17, as quais, verificadas, ensejam as sanções previstas no art. 18. No Codice di procedura civile, a responsabilidade das partes por danos processuais está regulada nos art. 90 e ss. MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil interpretado. 6.ed. Barueri: Manole, 2007, p. 21.
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garantir-lhe um resultado justo – onde aquele demonstre a real e concreta intenção de fornecer ao juiz todos os elementos necessários à formação de convicção45, e que sua peça inaugural foi produzida com estrito respeito às guias mestras da lealdade e da boa-fé46. Evidentemente, o ato de preparação da inicial por parte do autor deve ser pautado pela ética e pela verdade dos fatos nela noticiados. Adotada esta posição, estará confirmada a boa-fé do autor, única conduta que pode propiciar a instauração de um processo que venha a ter um resultado justo, que venha atender ao seu escopo de pacificação social. Aliás, é este bom começo que irá permitir adequado contraditório, uma exigência em qualquer processo47 para o seu profícuo desenvolvimento, bem como, que se obtenha, no final, uma resposta jurisdicional que se possa denominar justa48.
3. Dos requisitos da petição inicial Diversos atos processuais possuem requisitos a eles essenciais para que tenham validade e para que cumpram sua função dentro do processo. Isto se aplica integralmente à petição inicial, pois, como advertem Luiz Rodrigues Wambier, Flávio Renato Correia de Almeida e Eduardo Talamini, em que pese esteja a cargo do autor a sua elaboração, sua redação não pode realizar-se com plena liberdade, reclamando a lei possua ela conteúdo mínimo necessário para a delimitação do objeto da demanda, o conhecimento dos detalhes nesta envolvidos, e que servirão de parâmetro para o seu futuro julgamento49. A inicial enquanto peça técnica e formal, deve conter os requisitos legais ditados nos incisos do art. 282, do Código de Processo Civil, evitando-se,
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A efetiva participação dos sujeitos do processo para que este possa atingir a sua finalidade é ressaltada por José dos Santos Bedaque (Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 102). A Ley de Enjuiciamiento Civil espanhola também é expressa em exigir das partes o exercício da boa-fé processual, prevendo, em seu art. 247, sanção pecuniária para aquela que desatender este imperativo, punição que pode chegar, em certas circunstâncias, a seis mil euros. Assim o destaca Vicente Greco Filho ao considerar que “o contraditório é a técnica processual e procedimental que impõe a bilateralidade do processo. O contraditório, que é o instrumento técnico da ampla defesa, deve estar presente em todo processo” (Direito Processual Civil brasileiro. v.I. 19.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 47). O processo justo, segundo Cândido Rangel Dinamarco é aquele dirigido pelo juiz natural e imparcial, que trata as partes isonomicamente. É o processo de atos públicos, marcado pela garantia do exercício da ampla defesa e do contraditório, no qual, após regular instrução, sobrevém uma sentença legitimada por todo este procedimento, que é fruto da observância de regras e preceitos inerentes ao exercício da jurisdição, da ação e da defesa (Nova era do processo civil. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 22). Curso avançado de processo civil. v.1. 7. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 288.
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assim, que venha a apresentar vícios que comprometam sua aptidão para dar início ao processo50. Vicente Greco Filho anota que o conteúdo da petição inicial “precisa estar apto a propiciar uma decisão judicial coerente com a correção da alegada lesão de direito que se pretende corrigir”51. Estes requisitos é que passam a ser estudados a partir deste ponto, em uma perspectiva instrumentalista da petição inicial.
3.1. Da competência O inc. I, do art. 282, do Código de Processo Civil, está relacionado à competência. As competências, em geral, estão regradas na Constituição da República (art. 101 e seguintes) e no próprio Código de Processo Civil (art. 86 e seguintes). Entretanto, e muitas vezes em razão desta diversidade de competências, pode ocorrer equívoco do autor pertinente à indicação que faz na inicial referente ao juízo competente para processamento de sua ação. Na hipótese de concretizar-se tal engano, pensando-se no princípio do aproveitamento dos atos processuais, nos parece de extrema formalidade o simples indeferimento da peça inicial, o que costuma ocorrer quando o juiz ao qual foi distribuída a demanda é absolutamente incompetente para o seu processamento. Ora, se o erro do autor foi de indicação, a medida mais escorreita e útil a ser adotada pelo magistrado é a determinação de remessa dos autos ao juízo competente, e não o sentenciamento do processo, apesar da evidente incompetência52, ato que somente trará maiores prejuízos à parte, a qual, inclusive, pouco ou nada entenderá sobre o acontecido, e, no mais das vezes, sentirá uma enorme frustração, isso pelo fato de, já no intróito de sua longa jornada, ter tomado um revés que, para ela, nada resolve, e dela exige nova demanda, eventualmente, mais gastos, além de maior consumo de tempo53.
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A petição inicial sem os requisitos da lei, pode ser considerada inepta, e acarretar a extinção do processo, na forma dos art. 282, 295, e 267, inc. I, do Código de Processo Civil. Direito Processual Civil brasileiro. v.II. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 99. Carlos Alberto Carmona comenta que poderia vir o autor a endereçar sua inicial a um órgão jurisdicional inexistente, e deixa assentado ter entendimento de que, nesta hipótese, “... seria excesso inaceitável de formalismo permitir ao magistrado extinguir o feito...” (Em torno da petição inicial. Revista de Processo, nº 119, ano 30, São Paulo: RT, jan. 2005, p. 13). Em recente julgado do STJ, datado de 13 de junho de 2007, proferido no Conflito de Competência nº 84.177SP, com voto da lavra da Min. Nancy Andrighi, que também abordou a questão da competência, adotou-se solução estritamente voltada para a efetividade do processo, cuja ementa é a seguinte: “Processo civil. Con-
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A situação se agrava quando o autor tenha deduzido em sua inicial o tradicional pedido de liminar, ou de tutela antecipada. Nesta hipótese, nos parece claro que o juiz, mesmo aquele que se entenda incompetente, diante da demonstrada urgência do provimento reclamado, do perigo na demora da resposta judicial, da natureza do direito em jogo, deve, antes de qualquer outra atitude, conhecer do pedido, e deferir ou não a tutela antecipada, ou mesmo cautelar54. Enfim, necessariamente, para proteção e conservação do direito em risco, bem superior à estrita preocupação com o aspecto formal da competência, conceda ou não a requerida liminar e, ao depois, decline da competência, enviando os autos ao juízo adequado. Esta providência, além de evitar o comprometimento da efetividade do processo que se inaugura, não acarreta prejuízo à parte contrária, pois poderá, de qualquer modo, recorrer da decisão proferida; e não vincula o juiz competente, não bastasse já sabermos que, tratando-se de tutela antecipada
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flito de Competência. Justiça Cível e Justiça do Trabalho. Ação discutindo acidente do trabalho. Existência de sentença terminativa proferida pelo juízo cível, antes da promulgação da EC nº 45/04. Interposição de recurso de apelação, pela parte prejudicada, dirigido ao respectivo Tribunal de Justiça. Julgamento da apelação após a promulgação da Emenda Constitucional. Reconhecimento, pelo Tribunal de Justiça, de sua incompetência para conhecer da causa, com a remessa dos autos ao Tribunal Regional do Trabalho. Suscitação do conflito, por este, ao argumento de que não compete ao Tribunal Trabalhista rever uma sentença proferida pelo Juízo Cível, ainda que este seja incompetente. Conhecimento do conflito, com a anulação da sentença cível e remessa dos autos à Justiça do Trabalho, para que o processo seja regularmente distribuído e julgado. No precedente formado a partir do CC nº 51.712/SP, que determinou ser da competência da Justiça Cível o julgamento de processos que discutem acidente do trabalho nas hipóteses em que já tiver sido proferida sentença, e da competência da Justiça do Trabalho fazê-lo caso a sentença ainda não tenha sido proferida, o Superior Tribunal de Justiça deferiu-se, sempre, a sentença de mérito. Assim, na hipótese dos autos, em que foi proferida uma sentença meramente terminativa, a competência para a causa não se estabelece em favor do Juízo Cível, devendo o processo ser julgado pela Justiça do Trabalho. A jurisprudência desta Corte aponta no sentido da impossibilidade de o Tribunal Regional do Trabalho julgar um recurso interposto contra a sentença proferida pelo Juízo Cível, ainda que seja uma sentença terminativa. Essa orientação, que é irretocável, recomenda a devolução do processo ao Tribunal de Justiça para que ele julgue o recurso de apelação, anule a sentença e, após, remeta o processo à Justiça do Trabalho para instrução e julgamento de mérito. Em que pese a absoluta correção de tais precedentes, na hipótese específica dos autos é possível encontrar outra solução, igualmente adequada, que imporá mais celeridade ao processo. O art. 122 do CPC autoriza que o STJ, no julgamento de em Conflito de Competência, pronuncie-se acerca da ‘validade dos atos praticados pelo juízo incompetente’. Assim, haverá ganho substancial de tempo e valorização da efetividade do processo se esta Corte, em vez de remeter os autos ao Tribunal de Justiça, anular, diretamente no julgamento do Conflito de Competência, a sentença terminativa proferida pelo Juízo Cível e remeter os autos ao Tribunal Regional do Trabalho para que, sem julgamento do recurso de apelação interposto, determine a distribuição do processo. Conflito de competência conhecido e provido, para o fim de anular a sentença proferida pelo Juízo Cível e determinar a remessa do processo ao Tribunal Regional do Trabalho para distribuição a uma das varas trabalhistas, para instrução e julgamento”. Lembre-se que agora expressamente a lei admite a fungibilidade entre tutela cautelar e antecipatória, na forma do art. 273, § 7º, do Código de Processo Civil. Diverge Antônio Cláudio da Costa Machado da maioria da doutrina ao externar que, na verdade, o texto do indicado artigo possibilita não a fungibilidade, mas, sim, seja deduzido pedido de providência cautelar, tal como hoje já se pede tutela antecipada, razão de estar dispensada a parte de promover ação cautelar incidental (Código de Processo Civil interpretado. 6.ed. Barueri: Manole, 2007, p. 265).
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ou medida cautelar, a decisão assim proferida é provisória e pode, a qualquer tempo, ser revogada, como o faculta o § 4º, do art. 273, do Código de Processo Civil. 3.2. Das partes O inc. II, do at. 282, do Código de Processo Civil, diz respeito à qualificação das partes. A perfeita indicação da qualificação de autor e réu destina-se à imprescindível identificação das partes componentes da relação jurídica processual, a fim de que se possa saber quem está a promover a demanda e quem terá de respondê-la. Para facilitar a exposição desta identificação, em especial para o caso de litisconsórcio multitudinário, tem sido admitida a apresentação do rol de autores ou réus em lista anexa da qual constem os nomes de todas as partes55. A falta de elementos identificadores apenas em poucas situações pode ser tolerada, como no caso de invasões de terras. Havendo dificuldade de identificação do réu, por ser desconhecido ou incerto, pode ser feita apenas referência genérica a ele. Estará autorizada, então, a citação por edital, na forma do art. 231, inc. I, do Código de Processo Civil. Antes, porém, e mais uma vez tendo em mente a necessidade de intervenção judicial que tenha como objetivo dar efetividade ao processo, deve existir a colaboração do juízo na obtenção de dados para a adequada identificação do requerido, o que no mais das vezes é realizado tão somente para a obtenção de seu endereço. Muitas empresas, todos os bancos e órgãos do Estado, para o fornecimento de quaisquer informes, reclamam uma ordem judicial, logo, em não havendo o concurso das autoridades judiciárias para tanto, será impossível ao autor apresentar tais dados para a complementar identificação do réu. Ora, se a razão de ser do processo é possibilitar a solução do conflito de interesses existente, a recusa em fornecer meios ao requerente para que possa identificar o requerido e, assim, dar seguimento ao processo, pode equivaler a uma negação da prestação jurisdicional, ou, no mínimo, um considerável obstáculo à sua obtenção, o que, de modo algum, é desejável. 55
STJ, 1ª Turma, RMS 2.741-7-SP, rel. Min. César Asfor Rocha.
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Carlos Alberto Carmona sustenta expressar a atitude de colaboração56 neste trecho abordada aquilo que a doutrina denomina ativismo judicial, e, igualmente, revela a intenção de permitir a efetividade do processo57. No dizer de José Carlos Barbosa Moreira, é exatamente isso que se espera do juiz, que assuma a sua função “assistencial”58, suprindo falhas que as partes não tiveram condições de superar, conservando, sim, sua imparcialidade, contudo, recusando-se a ficar passivo, representando o “arquétipo do observador distante e impassível da luta entre as partes”59, isso diante da premência de fazer justiça60, com o emprego do processo que está sob sua presidência.
3.3. Da causa de pedir O inc. III, do art. 282, do Código de Processo Civil, trata da causa de pedir e, pois, cuida da exposição dos fatos e dos fundamentos jurídicos embasadores do pedido. Noticia José Rogério Cruz e Tucci “que a causa petendi tem dupla finalidade advinda dos fatos que a integram, vale dizer, presta-se, em última análise, a individualizar a demanda e, por via de conseqüência, para identificar o pedido”61. Adota o Código de Processo Civil, segundo a maioria da doutrina62, a teoria da substanciação, a qual exige que na fundamentação do pedido 56
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“O lema do processo ‘social’ não é o da contraposição entre juiz e partes, e menos ainda o da opressão destas por aquele; apenas pode ser o da colaboração entre um e outras” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. Revista de Processo, n.37, ano X, São Paulo: RT, jan./mar. 1985, p. 149). Em torno da petição inicial. Revista de Processo, n.119, ano 30, São Paulo: RT, jan. 2005, p. 17, nota 13. Anote-se que na execução a mesma ativa participação judicial se afigura possível, nessa fase para concretizar a prestação jurisdicional, materializar a sua entrega, tornando efetivo o conteúdo decisório da sentença a ser cumprida. Dentro deste propósito, muito comum atualmente requerer-se ao juiz pesquisa junto ao Banco Central para identificação de ativos do executado e a subsequente constrição daqueles que foram indicados. Tendências contemporâneas do Direito Processual Civil. Revista Brasileira de Direito Processual. v.42. Rio de Janeiro: Forense, 2º trimestre 1984, p. 42. A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. Revista de Processo, n.37, ano X, São Paulo: RT, jan./mar. 1985, p. 145. Carlos Alberto Carmona fala na necessidade de o Judiciário cumprir o seu papel histórico atribuindo a cada qual o que lhe seja devido, fazendo cessar a lesão aos direitos subjetivos de modo rápido e eficaz, não se podendo se conformar com o panorama atual de verdadeira denegação de justiça (A crise do processo e os meios alternativos para a solução de controvérsias. Revista de Processo, n.56, ano 14, São Paulo: RT, out./dez. 1989, p. 91). A causa petendi no processo civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2001. Sobre ser questionável esta posição escreve Júnior Alexandre Moreira Pinto (A causa petendi e o contraditório. São Paulo: RT, 2007, p. 45-46).
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estejam englobadas a causa remota (fato constitutivo do direito) e a causa próxima (fundamentos jurídicos do pedido). Por fundamento jurídico não se entenda dispositivo legal cuja menção não é obrigatória (jura novit cúria; da mihi factum, dabo tibi jus). O fundamento é, na verdade, além de mera referência à violação de um direito ou de texto de lei (fundamento legal), a adequada descrição do fato que levou a esta violação e sua subsunção à norma que permite a reparação judicial pretendida na inicial. A adoção pelo Código de Processo Civil do método da substanciação na elaboração da causa petendi leva, como pressuposto, à adoção da regra da eventualidade no que diz respeito à defesa63. Substanciação, eventualidade, enfim, um sistema rígido de preclusões, leva a uma desejada estabilização da demanda, o que possibilita a delimitação do objeto do litígio e proporciona o desenvolvimento do processo rumo a uma solução, rumo à tutela jurisdicional almejada. Entretanto, esta rigidez do sistema pode, em prestigiando a celeridade, prejudicar a possibilidade de o processo atingir plenamente seus escopos, em especial a obtenção de um resultado justo, na medida em que a crise de direito material poderá não ter sido resolvida na sua plenitude, reclamando a necessidade da existência de um novo processo para tratar das situações cuja análise não se permitiu no anterior. A opção de conferir maior ou menor rigidez ao esquema de preclusões é estritamente de ordem política, não estando apenas vinculada à técnica processual64. Nesse contexto, o papel principal da inicial é descrever pormenorizadamente o fato jurídico que tenha determinado a ocorrência de lesão ao direito do autor, e qual seria a respectiva reparação pretendida por ele. Aqui, novamente, podemos falar na missão instrumentalizadora da petição inicial, pois ao veicular a causa petendi, traz para o processo os elementos que servirão para formação da convicção do juiz, habilitando este para o julgamento. Como acima sustentado, é de suma importância que a descrição do fato jurídico, ou fato essencial65, além de acurada, espelhe a verdade, tenha 63 64
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TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2001, p. 151. LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido. O direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 124. TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2001, 153.
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conteúdo simples e direto, não apresente a utilização de termos rebuscados, ou de latinório excessivo, não trate de temas que, apesar de registrarem alguma relação com a demanda em curso, são dispensáveis para a análise da causa, estando a sua inserção na petição inicial mais para uma tentativa de redigir um romance, do que prestar os devidos informes suficientes e claros para que o juiz, conhecendo dos mesmos, possa proferir sua sentença.
3.4. Do pedido e seu fundamento O inc. IV, do art. 282, do Código de Processo Civil, trata do pedido. Este deve estar em absoluta consonância com o fato e os fundamentos jurídicos relativos à causa de pedir. De conformidade com o art. 286, do Código de Processo Civil, o pedido deve ser certo (expresso) ou determinado (definido em sua qualidade e quantidade) e, ainda, concludente (derivar da causa de pedir). No pedido certo e determinado, se sabe o an debeatur (o que é devido) bem como o quantum debeatur (o quanto é devido). Em resposta ao pedido certo, a sentença não pode ser genérica (459, § único). Porém, como faculta a lei, o pedido pode ser genérico (art. 286, inc. I a III, do CPC), ou seja, apontar somente o an debeatur deixando indeterminado o quantum debeatur o qual será, de regra, determinado durante a instrução, e fixado na sentença. Não sendo ainda possível tal fixação, a determinação se dará na fase de liquidação de sentença (475-A e ss.). Pela soma de causa de pedir e pedido temos, ao menos em princípio, os limites objetivos da lide. Diz-se em princípio, pois estes limites podem ser ampliados pela conduta do réu (reconvenção, pedido declaratório incidental). Tais limites vinculam, em tese, o juiz, o qual não poderá desconsiderálos quando proferir sua sentença. Diz-se em tese, pois existem causas cuja natureza afasta aquela vinculação, como nas de família, nas quais o juiz pode julgar desconsiderando os mencionados limites para estabelecer o que entenda, por exemplo, ser o melhor para os menores envolvidos na demanda. Em fazendo assim, o magistrado estará preservando os interesses dos menores e garantindo a efetividade do processo, porquanto de nada adiantaria decidir entre as opções dadas pelas partes se estas não foram feitas em atenção às reais necessidades dos menores, ou mesmo em frontal desrespeito aos direitos destes. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 7-32, julho/dezembro - 2011
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Um julgamento inadequado aqui apenas levaria à futura existência de outra demanda para correção ou, pior, à sujeição dos menores a uma condição a eles desfavorável que poderia ter sido desde logo melhor analisada e decidida, com isso visando evitar prejuízos que, nesta hipótese, sempre são, ainda que em parte, irreversíveis. Este modo de proceder enseja pensar na deformalização66 do processo, iniciativa esta que poderia contribuir para a pacificação de conflitos e para a promoção da justa aplicação do direito. A deformalização passa pela ampliação dos poderes do juiz, viabilizando, assim, que o mesmo possa implementar a máxima da efetividade do processo, a isto correspondendo uma necessária mitigação do princípio da congruência ou adstrição. Sugere Ricardo de Barros Leonel que um tal entendimento habilitaria o juiz a conhecer de fundamento (causa de pedir), pretensão ou defesa introduzidos intempestivamente, com eficácia superveniente à propositura da demanda (portanto mediante violação de regras formais do processo) no mesmo processo, apesar de já estabilizada a demanda67, isto para o caso de restar patente a economia processual assim proporcionada, bem como, que desta forma estar-se-ia a propiciar uma solução definitiva para a controvérsia68. Em suporte desta posição temos Enrique Vescovi, o qual admite a modificação do pedido, dentro de certos limites, desde que tal modificação não acarrete a transformação absoluta da pretensão nem de seus elementos essenciais (partes, objeto e causa), que se baseie em fatos novos, e não em diversos daqueles originalmente narrados na inicial69. Valendo-se da abertura proporcionada pelo texto do art. 462, do Código de Processo Civil, José Roberto dos Santos Bedaque, sustenta a plausibilidade de aceitar-se certa flexibilização referente aos princípios da eventualidade e da estabilização da demanda, tudo em prol da efetividade do processo70. Concordamos com a solução alvitrada, na medida em que os ganhos com a sobredita flexibilização serão sempre grandes, e não se vê muitas razões para impedir realize-se determinado debate em um mesmo processo em que 66
67
68 69 70
Expressão utilizada por Ada Pellegrini Grinover (Deformalização do processo e deformalização das controvérsias. Revista de Processo. n.46, ano XII, abr./jun. 1997, p. 60-83). Sobre o princípio da estabilidade objetiva da demanda, ver PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 132-136. Causa de pedir e pedido. O direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 244 e 249. La modificación de la demanda. RePro, n.30, ano VIII, abr./jun. 1983, p. 208. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 135-140.
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vinha sendo travada lide a qual poderíamos denominar de incompleta e que, desta maneira, ensejaria o ajuizamento de uma nova ação propiciando maior desgaste para as partes, e sobrepeso ao Estado em razão da não otimização do processo anterior. Pressuposto para que o juiz possa conhecer da sobredita eficácia superveniente é que sejam preservados o contraditório e a ampla defesa pertinente àquela, como forma de legitimação da solução excepcional71. O art. 289, do Código de Processo Civil, autoriza a dedução de pedidos sucessivos, quando se terá aquilo que se denomina cumulação eventual ou subsidiária. Esta ocorre quando o autor formula um pedido principal e outros subsidiários, apresentando estes em uma ordem de preferência. Atendido ao pedido principal, todos os demais estarão prejudicados. Desatendido o principal, o juiz analisará cada um dos subsidiários, seja para rejeitar a todos, seja para acolher qualquer deles, respeitada a ordem de preferência ditada na inicial. Este permissivo legal está afinado com a efetividade do processo, porquanto permite que o autor garanta, com uma única iniciativa, a possibilidade de conhecimento de todos os pedidos que tenha para deduzir em face do réu, submeta as suas pretensões a julgamento de modo concentrado. Ignorando o autor a regra em comento estará contribuindo para a proliferação das demandas, porquanto a ele somente restará, para os pedidos não cumulados, o ajuizamento de quantas ações forem necessárias para reclamar a tutela jurisdicional que almeja. A técnica da cumulação de pedidos, adotando-se a técnica do pedido subsidiário, é muito recomendada para os casos em que haja divergência jurisprudencial a respeito de certo tema72.
3.5. Do valor da causa No art. 282, inc. V, do CPC, aborda-se a questão do valor da causa. Este 71
72
LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido. O direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 249. “O contraditório constitui, sem dúvida, elemento essencial ao fenômeno processual, especialmente pela imprescindível participação dos interessados no iter de formação do provimento destinado a interferir em sua esfera jurídica” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. O juiz e o princípio do contraditório. Revista de Processo, n.71, ano 18, São Paulo: RT, jul./set. 1993, p. 31). Ainda sobre contraditório GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. São Paulo: Forense Universitária, s.d., p. 17-18. CARMONA, Carlos Alberto. Em torno da petição inicial. Revista de Processo, n.119, ano 30, São Paulo: RT, jan. 2005, p. 27.
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é a medida do proveito econômico relativo à ação. Deve constar da inicial, ainda quando não possa ser apurado de plano e com exatidão. Será, então, estimativo, como o faculta o art. 258, do Código de Processo Civil. A falta de indicação do valor da causa é motivo para que se determine a emenda da inicial, na forma do art. 284, do Código de Processo Civil. Não havendo a emenda, a inicial deveria ser indeferida (art. 295, inc. VI, do Código de Processo Civil). Refletindo sobre situação que envolvesse o valor da causa e este nosso trabalho, chegamos ao tema das custas. Como se sabe, as custas processuais são apuradas tendo-se como base o valor da inicial. Ora, acaso este seja estabelecido fora dos parâmetros ditados na lei pode ensejar sérias distorções no valor a ser recolhido aos cofres públicos e, normalmente, o será em prejuízo do Estado. Prontamente, portanto, deve o juiz, de ofício, corrigir o valor dado à causa e determinar o recolhimento das custas; não existe qualquer restrição a isto. Nesta ocasião, surge um problema recorrente, qual seja, a impossibilidade momentânea da parte em recolher o montante apurado. Verificado isto, e desde que seja, por meio idôneo, comprovada a incapacidade econômica do autor para recolher as custas iniciais, a este será concedido o diferimento do recolhimento das custas processuais, oportunidade esta que certamente atende muito mais ao que se espera de um processo justo. Estar-se-á, além disso, a facilitar o acesso à Justiça.
3.6. Das provas O art. 282, inc. VI, do Código de Processo Civil, refere-se às provas para a confirmação das alegações constantes da inicial. Basta indicação da espécie de prova a ser produzida, não se reclamando, de plano, a sua individualização. A individualização da prova se dará após a definição da matéria nos autos controvertida, definição a que se chega confrontando-se o teor da inicial e da contestação. Aqui há controvérsia sobre a possibilidade de haver tratamento mais flexível quanto à permissão de deixar-se produzir certa prova quem não tenha por ela oportunamente pleiteado. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 7-32, julho/dezembro - 2011
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A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido menos rígida quando a questão é a produção de provas, constando de alguns julgamentos que o principal, aqui, é a preservação do contraditório73. José Roberto dos Santos Bedaque, sobre o tema, deixa assentado que: O sistema das preclusões, especialmente no que se refere à produção da prova, também acaba por favorecer a forma em detrimento da substância. Se é certo que o processo deve caminhar, sendo excepcionais as situações em que se admite retorno às fases anteriores, também não se pode esquecer que muitas vezes a realização de uma prova é suficiente para esclarecer fato determinante do resultado, sem grande prejuízo à celeridade do procedimento. Diante desse conflito de valores, deve intervir o julgador, valendo-se, se entender adequado, da iniciativa probatória a ele conferida pelo legislador (CPC, art. 130)74. Fica, porém, o alerta de João Batista Lopes, no sentido de que o juiz não pode substituir as partes nestas suas iniciativas probatórias, devendo agir apenas quando estritamente necessário para impedir que o processo perca sua efetividade, para que possa, dentro de alguns limites, instruir a causa, possibilitando a realização de melhor justiça75.
3.7. Da citação Como dispõe o art. 282, inc. VII, do Código de Processo Civil, o requerimento de citação do réu é obrigatório. Contudo, é entendimento pacífico que tal requerimento está implícito na demanda do autor, e não pode a sua ausência justificar o indeferimento da inicial. Além disso, não se pode entender que haja preclusão para o autor requerer qual modalidade de citação deve ser a empregada para o chamamento do réu, o que, na realidade, poderá muito bem ser feito mesmo após a distribuição da inicial.
73 74 75
REsp. nº 37.311-5, rel. Min. Waldemar Zveiter. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 99-100. A prova no Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2000, p. 65-70 e 162-164.
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4. Conclusão De tudo quanto foi exposto, percebe-se que a petição inicial é peça de suprema importância para o processo e, desde que elaborada sob os padrões da ética e respeitada a sua peculiar técnica, propicia o regular desenvolvimento processual e reúne plenas condições de cumprir seus desígnios, quais sejam, o de esclarecer o conteúdo do conflito, dar os contornos da demanda, delimitar a abrangência dos debates e deixar certas as questões sobre as quais haverá o juiz que decidir. Nas exatas palavras de António Montalvão Machado e Paulo Pimenta “na petição inicial, o autor propõe; na sentença, o juiz dispõe”76. Muito embora seja de responsabilidade do particular a sua confecção, ao dar início ao processo e nele já tendo ingressado, torna-se um documento dos autos, um documento público, o qual, além de servir para atender aos interesses privados do autor, irá fazê-lo, igualmente, com relação ao interesse público que no processo também está envolvido. Ficou reconhecida uma certa insatisfação com o processo atual, insatisfação esta decorrente de diversos motivos, tendo merecido destaque aquele relativo ao excesso de formalismo que acaba por determinar a morosidade do processo. Para combater este mal foi proposta uma mudança de atitude de todos nós, para que passemos a tratar o processo, dentro de certas circunstâncias, com menos rigor, para que ele, solto de suas amarras, sob os influxos da instrumentalidade das formas, possa se transformar em um instrumento de efetivação do direito, saia do isolamento e retorne à realidade para enfrentá-la, voltando a assumir seu papel de orientador das partes enquanto sujeitos da relação jurídica processual, e possa aprimorar-se cada dia mais para demonstrar e consolidar sua capacidade de resolver conflitos, promover a paz social.
76
O novo processo civil. 8.ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 130.
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Aspectos gerais dos direitos da personalidade Thiago Baldani Gomes De Filippo1
Juiz de Direito no Estado de São Paulo
SUMÁRIO: Introdução; 1. Dignidade da pessoa humana como valor maior do ordenamento jurídico pátrio; 2. Direitos da personalidade: conceito e delimitação do tema; 2.1. Breve escorço inicial; 2.2. Direitos da personalidade e liberdades públicas; 2.3. Natureza jurídica; 2.4. Conceitos e teorias monista e pluralista; 2.5. Titularidade; 3. Características gerais dos direitos da personalidade; 4. Tutela dos direitos da personalidade; Considerações finais. RESUMO: Este trabalho refere-se à dignidade da pessoa humana como valor maior de todo o sistema jurídico, analisando brevemente os motivos que conduziram à mencionada afirmação. Posteriormente, alude-se aos direitos fundamentais e suas espécies, como ponto introdutório de ingresso no tema dos direitos da personalidade. Quanto a este, procura-se discorrer acerca de sua natureza jurídica, firmando-o como verdadeiro direito subjetivo. Passa-se, em seguida, a abordagens atinentes a conceitos e teorias relativas ao tema, titularidade e características gerais. Ao final, são realizadas considerações acerca de sua eficaz proteção, nos termos dos princípios constitucionais. PALAVRAS-CHAVE: dignidade humana; direitos fundamentais; direitos da personalidade; tutela.
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Aluno regular do Programa de Mestrado em Ciências Jurídicas da Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro – Jacarezinho/PR.
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Introdução
A
Constituição da República de 1988, orientada por valores ético-jurídicos, previu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito pátrio, a teor de seu art. 1º, inc. III. Como decorrência disso, trouxe considerável rol de direitos fundamentais, em seu Título II (arts. 5º a 17). Dentre os direitos fundamentais, destacam-se os direitos e garantias individuais e coletivos, também chamados de direitos fundamentais de defesa ou, simplesmente, liberdades públicas, previstos no artigo 5º, da Lei Maior. Atendendo, pois, aos reclames de constitucionalização do direito privado e à máxima de maior efetividade possível aos direitos fundamentais, o Código Civil de 2002 houve por bem trazer em seu bojo (arts. 11 a 21) a previsão desses direitos, sob o enfoque, pois, de sua aplicabilidade em relações jurídicas provadas, denominando-os “direitos da personalidade”. Pretende-se, pois, com o presente trabalho, situar-se mencionados direitos em cotejo com a sistemática constitucional, analisando-se suas características básicas para, ao final, tecer considerações acerca da tutela efetiva desses direitos, em observância aos ditames da Lei Maior.
1. Dignidade da pessoa humana como valor maior do ordenamento jurídico pátrio Apesar de a ideia de dignidade da pessoa humana ter sido firmada, na atualidade, como valor maior do ordenamento jurídico das civilizações ocidentais, conforme pondera Nelson Rosenvald, três momentos tiveram contribuição essencial para a concepção atual da dignidade humana: o Cristianismo, o kantismo e a Segunda Guerra Mundial (2005, p. 1). Pondera-se que, antes do advento de Jesus Cristo, no Livro de Gênesis, o homem já era revelado como imagem e semelhança de Deus. No Capítulo 1 do mencionado livro, Deus, após ter criado, pelo simples poder da palavra, mediante ordens dadas ao vácuo, a luz (versículo 3), o firmamento (versículo 7), os “luzeiros” (versículo 14) e os seres viventes (versículos 20, 24 e 25), o Criador, em um indicativo da existência da Santíssima Trindade, estabeleceu, valendo-se da terceira pessoa do plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
ASPECTOS GERAIS DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
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sobre todos os répteis que rastejam pela terra” (versículo 26). Fala-se, pois, em pecado, justamente quando o homem não corresponde aos anseios do Criador, renegando a dignidade que lhe foi atribuída. Emmanuel Kant, por sua vez, ao ditar as fórmulas de imperativo categórico: “age de tal forma que a máxima de teu agir possa ser elevada a uma lei universal de conduta” e “age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca unicamente como um meio”, também assinala (2000, p. 134): No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas, quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade. Afirma ainda o autor que os valores cristãos e o pensamento kantiano não foram suficientes para obstar “...a instrumentalização do ser humano e o seu total aviltamento no Estado nazista” (2005, p. 4). Celso Lafer, na esteira do pensamento de Hannah Arendt, menciona (2006, p. 133): A tese de que os indivíduos não têm direitos mas apenas deveres em relação à coletividade, na medida em que estes deveres são estipulados ex parte populis, sem um controle e uma participação de cunho democrático, levou, no totalitarismo, à negação do valor da pessoa humana enquanto “valor-fonte” da ordem jurídica. Com precisão, Nelson Rosenvald (2005, p. 6) sustenta não ter sido por acaso, pois, a concepção presente da dignidade humana fundou-se na Alemanha. Pondera o autor que, com inspiração em Kant, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, imposta pelas grandes potências do Estado alemão após a Segunda Guerra Mundial, estabelece, em seu art. 1º, parágrafo 1º, frase 1, que “a dignidade do homem é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os poderes estatais”. Mencionado princípio também se encontra estampado no art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, o qual determina: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. O princípio da dignidade da pessoa humana, veiculado pelo artigo 1º, inciso III, da Constituição da República, como um dos fundamentos do Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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Estado Democrático de Direito é, em verdade, o postulado maior do sistema. Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet reconhecem-na como um “valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional” (2008, p. 150), na esteira de José Afonso da Silva, afirmando que a dignidade da pessoa humana jamais será uma criação constitucional, mas um conceito a priori que preexiste a toda experiência especulativa (1998, p. 91). Alexandre de Moraes adverte com maestria (2007, p. 129): A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. Constata-se, pois, estreita ligação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos da personalidade, também chamados pela doutrina, conforme observa Roberto Senise Lisboa, de “direitos essenciais, direitos fundamentais, direitos personalíssimos, direitos naturais da pessoa, e assim por diante” (2004, p. 246). Nesse sentido, Nelson Rosenvald arremata (2005, p. 32): Nesse momento, constatamos a íntima vinculação entre a dignidade do ser humano e os direitos da personalidade. São valores umbilicalmente atrelados, indissociáveis. Com efeito, a dignidade é o coração dos direitos da personalidade e o elemento capaz de justificar a existência de uma teoria que os unifique. Há que se enfatizar que a dignidade da pessoa humana é fonte simultânea de direitos humanos e de direitos da personalidade. Fechando o ciclo evolutivo, ambos, quando positivados, convertem-se em direitos fundamentais de igual conteúdo. Com modo e intensidade variáveis, serão eles de alguma maneira reconduzidos à idéia primária de dignidade, como última instância de proteção a todo ser humano. Necessário fazem-se os presentes apontamentos iniciais, posto que a dignidade humana é vista como núcleo dos direitos da personalidade, Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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consubstanciando-se, pois, além de alicerce, em vetor interpretativo obrigatório a fim de conferir-lhes legitimidade.
2. Direitos da personalidade: conceito e delimitação do tema 2.1. Breve escorço inicial O Direito Romano não tratou dos direitos da personalidade, consoante a acepção que hoje é conhecida. Ao contrário, deixou de valorizar a pessoa humana enquanto tal, deslocando a tutela jurídica para o campo patrimonial. Bem por isso, admitia que as pessoas chegassem à escravidão por diversas vias. Com propriedade, José Cretella Júnior (1997, p. 91-92), salientou que se chegava à situação de situação de escravo pelo nascimento, donde imperava o princípio: “filho de escrava, escravo é”. Porém, adquiria-se mencionada condição por fatos posteriores ao nascimento. Nos dizeres do autor (1997, p. 92): Chega-se à escravidão pelo cativeiro (inimigos aprisionados ficam escravos do Estado romano, sendo vendidos aos particulares); pela deserção (o soldado desertor fica escravo); pela negligência ao não inscrever-se nos registros do censo (o incensus, isto é, pessoa que esquece de inscrever-se no censo, é vendido pelo Estado romano, como escravo); pela insolvência (quem deixa de pagar as dívidas e é condenado – addictus –, cai nas mãos do credor que pode vendê-lo); pela prisão em flagrante (o fur manifestus é vendido pela vítima do furto). O tema em pauta é relativamente recente. Conforme mencionado acima, pois, o advento do Cristianismo, dos ideais de Kant e do fim da Segunda Guerra Mundial, tiveram contribuição essencial para a compreensão da dignidade da pessoa humana como o é nos dias atuais. Com peculiar clareza, Willis Santiago Guerra Filho tece as seguintes considerações ao princípio em tela (2003, p. 49): Dentre os “princípios fundamentais gerais”, enunciados no art. 1º da Constituição de 88, merece destaque especial aquele que impõe o respeito à dignidade da pessoa humana. O princípio mereceu formulação clássica na ética kantiana, precisamente na máxima que determina aos homens, em suas relações interpessoais, não agirem de molde a que o outro Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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seja tratado como objeto, e não como igualmente um sujeito. Esse princípio demarcaria o que a doutrina constitucional alemã, considerando a disposição do art. 19 II da Lei Fundamental, denomina de “núcleo essencial intangível” dos direitos fundamentais (cf., v.g., STEIN, 1982, p. 258 s.; VIEIRA DE ANDRADE, 1987, p. 233 s.; OTTO Y PARDO, 1988, p. 125 s.). Entre nós, ainda antes de entrar em vigor a atual Constituição, a melhor doutrina já enfatizava que “o núcleo essencial dos direitos humanos reside na vida e na dignidade da pessoa” (COMPARATO, 1989, p. 46). Os direitos fundamentais, portanto, estariam consagrados objetivamente em “princípios constitucionais especiais”, que seriam a “densificação” (CANOTILHO) ou “concretização” (embora ainda em nível extremamente abstrato) daquele “princípio fundamental geral”, de respeito à dignidade humana. Há que se compreender, pois, que o postulado da dignidade da pessoa humana marca a intangibilidade desta e implica, pois, no “núcleo duro” em torno do qual gravitam todos os direitos fundamentais, dos quais são espécies as liberdades públicas. Estas, aplicáveis às relações jurídicas privadas, assumem o enfoque de direitos da personalidade, inseridos, de forma inédita, pela codificação privada, a fim de lhes conferir maior efetividade e concretude, em obediência, pois, aos reclames do art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição, como será visto a seguir.
2.2. Direitos da personalidade e liberdades públicas Apesar de intrinsecamente vinculados, os direitos da personalidade não podem ser confundidos com liberdades públicas. Estas possuem a natureza de elementos limitativos ao Estado, funcionando como uma blindagem às práticas estatais arbitrárias. Bem por isso, consoante a acepção de Jellinek, citado por Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gonet, são “direitos fundamentais de defesa” (2008, p. 255). Exigem, pois, um non facere por parte do Estado. São, basicamente, os direitos e garantias individuais e coletivos trazidos à baila pelo artigo 5º, da Constituição da República. Os direitos da personalidade, por sua vez, têm a gênese dos direitos fundamentais. No entanto, são objeto de estudo do direito privado, implicando em um non facere não ao Estado, mas aos particulares em geral. São fruto, pois, da chamada “eficácia privada dos direitos fundamentais”. Ressaltam Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins (2006, p. 107): Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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Os direitos fundamentais que de forma imediata vinculam o Estado trazem também conseqüências a outros titulares pela via indireta da apreciação dos conflitos que envolvem uma questão relativa a direitos fundamentais por parte do Poder Judiciário. Além do dever de observar a esfera de liberdade individual garantida pelo direito fundamental, o Estado tem o dever de proteger os direitos contra agressões oriundas de particulares. Esse é o espírito que norteia a teoria e dogmática do efeito horizontal e do dever estatal de tutela. Inserido ainda nesta perspectiva, em artigo intitulado “A incorporação dos Direitos Fundamentais pelo Ordenamento Brasileiro: Sua eficácia nas Relações Jurídicas Privadas”, publicado no periódico “Revista Jurídica”, de número 341, de março de 2006, Gustavo Tepedino assim enuncia (2006, p. 15): O reconhecimento da força normativa dos princípios constitucionais e dos preceitos internacionalmente recebidos pelo Estado brasileiro torna-se método indispensável para a abertura do horizonte de proteção dos direitos humanos, especialmente nas relações jurídicas de direito privado, em cujo domínio seria impossível ao legislador disciplinar todas as situações em que a pessoa humana demanda proteção específica na sociedade tecnológica. Determinada perspectiva encontra-se em consonância, inclusive, com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Por meio dele, as normas definidoras de direitos fundamentais devem ser interpretadas e aplicadas em sua máxima efetividade possível, a fim de promover a tutela desses direitos da melhor forma. Em outras, diante de normas polissêmicas, deve o intérprete valer-se daquela que se afigure em maior garantia à pessoa humana. Ensina Luís Roberto Barroso (2008, p. 374): O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da nãoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador. Ademais, não se pode perder de vista que a previsão desses direitos no ordenamento visa a conferir maior eficácia, até mesmo, à norma-princípio Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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do parágrafo 1º, do artigo 5º, da Constituição da República que, apesar de bastar-se por si só, adquire inegável amplitude ao ser aplicada às relações jurídicas privadas, sendo condicionante da exigência legítima de um non facere de particulares. Com propriedade, escreve Vladimir Brega Filho (2002, p. 56): Não podemos admitir que na Constituição existam normas destituídas de eficácia. Retirar-se a eficácia das normas constitucionais é fraudar a Constituição, é violar a vontade do constituinte e conseqüentemente o povo.
2.3. Natureza jurídica Tradicionalmente, personalidade é compreendida como a capacidade de direito ou de gozo de a pessoa ser titular de direitos e obrigações na ordem civil. Trata-se, pois, de atributo inerente a toda a pessoa, desde o seu nascimento com vida. É o que se extrai dos dois primeiros artigos do Código Civil. Personalidade é, pois, a qualidade do ente enquanto pessoa; isto é, enquanto sujeito de direitos e não objeto de direitos, consoante acepção negativa de obediência aos reclames do princípio da dignidade da pessoa humana, defendido por Kant, conforme mencionado acima e, atualmente, vetor de nossa Constituição da República. Conforme alude Gustavo Tepedino (2004, p. 25), por muito tempo houve divergência doutrinária quanto à natureza e conteúdo dos direitos da personalidade. A corrente negativista refutava sua natureza de direito subjetivo, uma vez que o objeto jurídico seria a própria pessoa, o que justificaria, em tese, o próprio suicídio. Tratou-se da corrente sustentada por Roubier, Unger, Dabin, Savigny, Thon, Von Thur, Iellinek, dentre outros. Entretanto, atualmente encontra-se assente que os direitos da personalidade são, de fato, verdadeiros direitos subjetivos de se defender o que lhe é próprio, legitimado por uma valoração socialmente útil, por se tratar de exercício de defesa de bens considerados fundamentais e inatos à própria existência humana.
2.4. Conceitos e teorias monista e pluralista Em linhas gerais, pois, porém, de forma singela, os direitos da personalidade, na visão de Francisco Amaral, podem ser conceituados como Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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“os direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual” (1996, p. 245). Para Roberto Senise Lisboa, trata-se de “direitos intrínsecos ao ser humano, considerado em si mesmo e em suas projeções ou exteriorizações para o mundo exterior” (2004, p. 246). Traçadas tais considerações quanto à natureza jurídica dos direitos da personalidade, importante ressaltar a existência das teorias pluralista e monista, quanto ao presente tema. De acordo com a primeira, os direitos da personalidade são vistos sob uma perspectiva plural, necessitando estar tipificados na legislação. Desse modo, direitos não reconhecidos no sistema, de forma expressa, não podem ser tutelados juridicamente. Para a teoria monista, ao revés, existe, em verdade, um único direito da personalidade, o qual abrangeria uma infinidade de situações multifacetárias. Piero Perlingieri , citado por Nelson Rosenvald, nesse sentir, critica a expressão “direitos da personalidade”, defendendo a existência de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana na ótica de um direito geral de personalidade (2005, p. 28). Ao que parece, a teoria monista é a mais consentânea com a efetiva proteção que se espera. Com efeito, a pessoa humana deve ser a tônica de todo o sistema, tendo, pois, o Estado Democrático de Direito na garantia de sua dignidade um de seus fundamentos. Ademais, a acepção monística atende mais satisfatoriamente aos reclames das ideias pós-positivistas, assim entendidas como aquelas que, conforme alude Luís Roberto Barroso, promovem a “...ascensão de valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais” (2008, p. 342). Esta parece ter sido a tônica do Código Civil vigente que, em meio a previsões de certas espécies de direitos da personalidade, logo em seu artigo 12 teria passado prever a cláusula geral de tutela à personalidade, conforme salienta Nelson Rosenvald (2005, p. 30). Nesse sentido, o Enunciado 5 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil rege que: 1. As disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se inclusive às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade para requerer as medidas nele estabelecidas; 2. As disposições do CC 20 têm a finalidade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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nas situações nele enumeradas. Com exceção dos casos expressos de legitimação que se conformarem com a tipificação preconizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas no art. 12. Em consonância com o enunciado supra, apesar de ter havido um estreitamento do rol dos legitimados ativos para a propositura de ação visando à tutela dos interesses referentes à divulgação de escritos, transmissão da palavra, ou a publicação, exposição ou utilização da imagem de uma pessoa, no mais, aplica-se na inteireza as demais regras contidas no bojo do artigo 12, do Código Civil, no que concerne às técnicas de tutela específica, tratadas, genericamente, no artigo 461, do Código de Processo Civil ou, ainda, no que diz respeito à tutela reparatória, com supedâneo no dever geral de indenizar, nos termos dos artigos 186 e 927, caput, ambos do Código Civil. Entende-se, pois, ser viável a previsão de direitos da personalidade na legislação infraconstitucional, como o faz o Código Civil, em seus artigos 11 a 21. Isto para que haja maior densidade normativa e concretude, visando a implementar da melhor forma o postulado da dignidade da pessoa humana. É que, apesar deste princípio ser vetor impositivo e condicionante de legitimidade de interpretação e aplicação das demais regras jurídicas e possível prevalente quando colidir com outro princípio, em verdade, fazse salutar a existência de suas concretizações no ordenamento jurídico, por possuir cunho abstratíssimo.
2.5. Titularidade Apesar de, por excelência, tratar-se de direitos existentes na esfera jurídica de seres humanos, pessoas físicas, nada impede que a pessoa jurídica seja titular de direitos da personalidade. Nesse sentido, ponderam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 182): A lei garante às pessoas jurídicas, quanto aos direitos da personalidade, o mesmo tratamento que dá às pessoas naturais (CC 52). A jurisprudência predominante no STJ reconhece a indenizabilidade do dano moral sofrido por pessoa jurídica. O Egrégio Superior Tribunal de Justiça, de fato, por meio do Enunciado de Súmula nº 227 pacificou entendimento que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, consequência natural ao reconhecimento de sua titularidade de Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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direitos da personalidade. No entanto, pondera-se, que o próprio artigo 52, do Código Civil, determinou a aplicação dos direitos da personalidade às pessoas jurídicas, no que couber. Ora, é reconhecida a divisão que a doutrina pátria estabelece, quanto ao direito à honra, entre honra-subjetiva e honra-objetiva. Guilherme de Souza Nucci oferece preciosa distinção (2003, p. 461): Honra objetiva é o julgamento que a sociedade faz do indivíduo, vale dizer, é a imagem que a pessoa possui no seio social (...), é a boa imagem que o sujeito possui diante de terceiros. Honra subjetiva é o julgamento que o indivíduo faz de si mesmo, ou seja, é um sentimento de autoestima, de auto-imagem. É inequívoco que cada ser humano tem uma opinião afirmativa e construtiva de si mesmo, considerando-se honesto, trabalhador, responsável, inteligente, bonito, leal, entre outros atributos. Trata-se de um senso ligado à dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio) ou ao decoro (correção moral). Pois bem. Dito isto, cumpre precisar que as pessoas jurídicas, entes cuja realidade trata-se de uma ficção legal, não possuem honra subjetiva. Desse modo, não possuem dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio), tampouco decoro (correção moral ou compostura). Trata-se de atributos inerentes à própria pessoa humana. No entanto, é inegável que possuam honra, em sua acepção objetiva, pois, invariavelmente, goza de uma imagem no meio social, uma reputação. Assim, apenas neste último caso, às pessoas jurídicas é franqueado pelo ordenamento interesse de agir. Desse modo, apesar de a tônica deste trabalho voltar-se para os direitos da personalidade, analisados sob à luz de um enfoque de titularidade de pessoas humanas, deve-se entender que o mencionado também se aplica às pessoas jurídicas, no que couber.
2. Características gerais dos direitos da personalidade
O Código Civil de 2002 trata dos direitos da personalidade nos artigos 11 a 21. Regula, basicamente, os atos de disposição do próprio corpo (arts. 13 e 14), o direito à não submissão a tratamento médico de risco (art. 15), o direito ao nome e ao pseudônimo (arts. 16 a 19), a proteção à palavra e à imagem (art. 20) e a proteção à intimidade (art. 21). Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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Plausível mesmo que se entenda que aludido rol é meramente exemplificativo, afastando-se a teoria pluralista. Na codificação privada não foram tratados certos temas, como o biodireito. Aludido assunto é, atualmente, tratado pela Lei de Biossegurança, ainda que de forma superficial (lei nº 11.105/2005). Preconiza-se, pois, a indispensabilidade de estatuto próprio a fim de tratar do tema, como já restou assentado no Enunciado 2 do Conselho da Justiça Federal: Sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2º do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser objeto de estatuto próprio. De modo geral, pois, os direitos da personalidade possuem algumas características que lhe são próprias, a saber: são direitos inatos, ilimitados, absolutos, intransmissíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, impenhoráveis e extrapatrimoniais. São direitos inatos, pois são atribuídos à pessoa desde o exato instante de seu nascimento, não podendo prever a lei qualquer outro requisito necessário à sua aquisição, sob pena de inconstitucionalidade nomoestática (material). Os direitos da personalidade também são direitos ilimitados, sendo de sua própria natureza a impossibilidade de limitação voluntária. Nesse sentido, declara o art. 11, Código Civil. Observa-se, no entanto, quanto a esse aspecto, que há entendimento preponderante no sentido da possibilidade da limitação, em certos casos, desde que não haja abuso de direito, não lese a boa-fé nem os bons costumes. É o que se extrai do Enunciado 139 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, bem como do Enunciado 4, aprovado na I Jornada: “O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”. Outra característica é o fato de serem absolutos. Isto porque são oponíveis erga omnes, em atenção, inclusive, ao princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Ressalta-se, assim, que aludida característica não deve ser entendida sob o enfoque da impossibilidade de cedência recíproca ou ilimitação concreta, posto que, como restou pacificado, até mesmo o mais elementar dos direitos, como o direito à vida, pode sofrer limitações em situações excepcionalíssimas, como no caso de guerra declarada (art. 84, CF) e nas hipóteses permissivas de aborto (arts. 124 a 126, do Código Penal). A intransmissibilidade e a irrenunciabilidade são outras qualidades. Os Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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direitos da personalidade não podem ser objeto de cessão, onerosa ou gratuita, uma vez que se trata de direitos inerentes à própria qualidade de ser humano. Entretanto, esta afirmação também deve ser vista com parcimônia, pois, em certos casos, admite-se a cessão de certos direitos patrimoniais decorrentes da imagem ou, também, a cessão gratuita de partes do corpo, desde que para fins científicos ou altruísticos, nos termos do art. 14, Código Civil. A qualidade da irrenunciabilidade advém do caráter de ordem pública que permeia essa espécie de direito. Assim, qualquer contrato que objetive a renúncia a qualquer direito da personalidade é nulo de pleno direito. A imprescritibilidade é outra marca dos direitos em pauta. Dessa forma, o não exercício de um direito da personalidade não implica em perdimento do exercício da pretensão judicial de defendê-lo. No entanto, a partir do momento de sua violação, a teor do artigo 398, Código Civil, surge ao interessado o prazo de três anos para o exercício dessa pretensão em Juízo, nos termos do art. 205, parágrafo 3º, inc. V, do Código Civil. Cumpre ressaltar, no entanto, que, apesar de a posição acima ser entendimento preponderante na doutrina e jurisprudência nacionais, há forte tendência atual de compreensão pela imprescritibilidade do exercício da pretensão de reparação do dano moral, pois se trataria de entendimento mais condizente com a valorização da dignidade da pessoa humana. Nesse sentir, vale transcrever o seguinte acórdão do Egrégio Superior Tribunal de Justiça: Conforme restou concluído por esta Turma, por maioria, no julgamento do Recurso Especial 602.237/PB, de minha relatoria, em se tratando de lesão à integridade física, que é um direito fundamental, ou se deve entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes, ou a prescrição deve ser a mais ampla possível, que, na ocasião, nos termos do artigo 177 do Código Civil então vigente, era de vinte anos. Recurso Especial provido, para afastar a ocorrência da prescrição qüinqüenal do direito aos danos morais e determinar o retorno dos autos à Corte de origem para que sejam analisadas as demais questões de mérito (STJ, Resp 462840/ PR; Recurso Especial 2002/0107836-5, Rel. Ministro Franciulli Netto (1117), Segunda Turma, j. 02.09.2004, DJ 13.12.2004, P. 283). Os direitos da personalidade, ainda, são impenhoráveis. Conforme salienta Luiz Edson Fachin (2001, p. 220): Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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A jurisprudência e legislação vão, progressivamente, reconhecendo que a base dos valores nucleares do sistema jurídico suscita soluções diferenciadas no tratamento do acervo patrimonial. A noção de impenhorabilidade é um desses traços contemporâneos. Sem invalidar o legítimo interesse dos credores, a impenhorabilidade desloca-se do campo dos bens a tutela jurídica, direcionando-a para a pessoa do devedor, preenchidas as condições prévias necessárias. Finalmente, a extrapatrimonialidade é outra marca desses direitos. Nesse sentido, os direitos da personalidade não apresentam valoração econômica imediata. Apenas quando violados é que dão azo à reparação do dano moral, fixado segundo o prudente arbítrio do magistrado. No entanto, podem ser tutelados de forma específica, isto é, pode-se exigir do réu um fazer ou não fazer, nos termos do art. 461, do Código de Processo Civil.
3. Tutela dos direitos da personalidade Etimologicamente, tutelar significa proteger, defender, amparar. Por “tutela dos direitos da personalidade” entende-se a maneira pela qual mencionado feixe de direitos deve ser protegido pelo ordenamento. A tutela, pois, deve ser prestada da maneira mais eficaz possível. Assim somente o será quando puder satisfazer à altura os reclames ditados pelo Direito Positivo, notadamente iluminado por ideias pós-positivistas, conforme salientado acima. Isto porque o processo não basta por si só. Ao revés, somente será idôneo e eficaz se observar os princípios deontológicos do processo, de lastro constitucional e cunho abstratíssimo. Assim o fazendo, será ele, o processo, reduzido à compreensão de se tratar de um simples meio, um verdadeiro instrumento à realização dos interesses legítimos dos cidadãos. Sob esse enfoque, Cândido Rangel Dinamarco sustenta que (2005, p. 24): A negação da natureza e objetivo puramente técnicos do sistema processual é ao mesmo tempo afirmação de sua permeabilidade aos valores tutelados na ordem político-constitucional e jurídico-material (os quais buscam efetividade através dele) e reconhecimento de sua inserção no universo axiológico da sociedade a que se destina. E ainda prossegue o mesmo autor (2005, p. 25): Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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A visão instrumental que está no espírito do processualista moderno transparece, também, de modo bastante visível, nas preocupações do legislador brasileiro da atualidade, como se vê na Lei dos Juizados Especiais, na Lei da Ação Civil Pública, no Código de Defesa do Consumidor e no Código de Defesa da Criança e do Adolescente (medidas destinadas à efetividade do processo) (...) Aprimorar o serviço jurisdicional prestado através do processo, dando efetividade aos seus princípios formativos (lógico, jurídico, político, econômico), é uma tendência universal, hoje. Nesse diapasão, conforme já mencionado, tem-se que o art. 12, do Código Civil, encerra verdadeira cláusula geral de tutela aos direitos da personalidade. Bem por isso, deve ser interpretado e aplicado em sua máxima efetividade possível, notadamente em cotejo com o art. 461, do Código de Processo Civil. Nesse sentido, o Enunciado 140 do Conselho da Justiça Federal: “A primeira parte do art. 12 do Código Civil refere-se a técnicas de tutela específica, aplicáveis de ofício, enunciadas no art. 461 do Código de Processo Civil, devendo ser interpretada como resultado extensivo”. De modo a conceituarem tutela inibitória, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery escrevem (2006, p. 586): Tutela inibitória. Destinada a impedir, de forma imediata e definitiva, a violação de um direito, a ação inibitória, positiva (obrigação de fazer) ou negativa (obrigação de não fazer), ou, ainda, para a tutela das obrigações de entrega de coisa (CPC 461-A), é preventiva e tem eficácia mandamental. A sentença inibitória prescinde de posterior e seqüencial processo de execução para ser efetiva no mundo fático, pois seus efeitos são de execução lato sensu (NERY, Prefácio ao livro de SPADONI, Ação inibitória, p. 9). É forma de tutela preventiva (tutela cautelar, tutela antecipada e tutela inibitória), com ela não se confundindo. Seu objetivo é “impedir, de forma direta e principal, a violação do próprio direito material da parte. É providência judicial que veda, de forma definitiva, a prática de ato contrário aos deveres estabelecidos pela ordem jurídica, ou ainda sua continuação ou repetição” (SPADONI, Ação inibitória, n. 1.2.3., PP. 29/30). O objetivo da inibitória é evitar que o ilícito corra, prossiga ou se repita (MARINONI, Tut. Inibitória, n. 3.5, p. 41).
Luis Guilherme Marinoni, tecendo considerações sobre essa espécie de tutela, assevera (2006, p. 439): Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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Trata-se de uma forma de tutela jurisdicional imprescindível dentro da sociedade contemporânea, em que se multiplicam os exemplos de direitos que não podem ser adequadamente tutelados pela velha forma do equivalente pecuniário. A tutela inibitória, em outras palavras, é absolutamente necessária para a proteção dos chamados novos direitos. Tem-se que, inegavelmente, dentre esses chamados “novos direitos” incluem-se dos direitos da personalidade os quais, por guardarem estreita pertinência com a dignidade da pessoa humana, devem ser protegidos da melhor forma possível. Incluem-se, pois, nesta proteção, medidas tendentes a impedir que a lesão “venha a ocorrer, prossiga ou se repita”, mediante a utilização de medidas de coerção, tal como a multa ou uma ordem, sob pena de cometimento de crime de desobediência, ou, até mesmo, medidas de sub-rogação, como o é a busca e apreensão, a remoção de pessoas ou coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividades nocivas, aplicáveis de ofício pelo juiz, inclusive. Pondera-se, ainda, que, a teor do art. 12, do Código Civil, ladeado à possibilidade de busca de tutela inibitória, o sistema jurídico pátrio também franqueia ao interessado a possibilidade de pleitear a reparação do dano moral que acredite ter sofrido. Dano moral é, pois, o resultado da lesão a um direito da personalidade. Em virtude de sua característica própria da extrapatrimonialidade, conforme aludido acima, os direitos da personalidade não possuem conteúdo econômico direto, imediato. Entretanto, a partir do momento que forem violados dão azo à reparação do dano sofrido. No tocante ao quantum a ser arbitrado, não se tem admitido a chamada “tarifação do dano moral”, devendo o magistrado decidir, caso a caso, o valor que julgar adequado, mediante razoabilidade, sempre de modo a não causar um enriquecimento sem causa a quem o recebe, tampouco indevido empobrecimento a quem o paga, considerando-se, em todo o caso, que “a indenização mede-se pela extensão do dano”, nos termos do art. 944, caput, do Código Civil, bem como ao fato de o valor a ser pago se afigure, de igual modo, como uma reprimenda, uma verdadeira punição, a fim de que aquele não volte a praticar o ato ilícito, mormente em se tratando de grandes fornecedores de produtos ou serviços; isto nos termos da teoria dos punitive damages in torts, advinda do direito norte-americano. Nesse sentido, Marcius Porto assinala que (2007, p. 277): “não há critérios determinados e fixos para a quantificação do dano moral. Recomendável que o arbitramento seja feito Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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com moderação e atendendo às peculiaridades do caso concreto”. Nesse particular, já decidiu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça: Tratando-se de indenização por danos morais, o valor a ser fixado, segundo o arbítrio do juiz, deve ser tal que, além de indenizar a vítima, sem provocar seu enriquecimento sem causa, sirva para apenar o infrator de forma a inibir a reincidência na conduta averbada de indevida (Ap. 1.143.975-9 – 7ª Cam. de Férias – j. 29.07.2003 – rel. Juiz Waldir de Souza José – RT 822/263. Posto isto, quer seja por meio da tutela específica, quer seja por meio da chamada “tutela pelo equivalente monetário” (MARINONI; ARENHART, 2006, p. 454-455), extrai-se, em todo o caso, a importância do Poder Judiciário, consoante a concepção de garantidor maior da concretização da dignidade humana, mediante a adoção de uma postura inflexível de respeito aos direitos fundamentais e, sob a ótica de relações privadas, dos direitos da personalidade, observando-se invariavelmente, é claro, as hipóteses possíveis de colisão de princípios (antinomia imprópria), imbuído do intuito inarredável de sempre decidir com equidade. Com propriedade, sobre a mencionada importância do Poder Judiciário, escreve Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p. 369): No que concerne à vinculação aos direitos fundamentais, há que se ressaltar a particular relevância da função exercida pelos órgãos do Poder Judiciário, na medida em que não apenas se encontram, eles próprios, também vinculados à Constituição e aos direitos fundamentais, mas que exercem, para além disso (e em função disso) o controle da constitucionalidade dos atos dos demais órgãos estatais, de tal sorte que os tribunais dispõem – consoante já assinalou em outro contexto – simultaneamente do poder e do dever de não aplicar os atos contrários à Constituição, de modo especial os ofensivos aos direitos fundamentais, inclusive declarando-lhes a inconstitucionalidade. É neste contexto que se têm sustentado que são os próprios tribunais, de modo especial a Jurisdição Constitucional por intermédio de seu órgão máximo, que definem, para si mesmos e para os demais órgãos estatais, o conteúdo e sentido “correto” dos direitos fundamentais.
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Assim, de nada adianta a previsão constitucional acerca dos direitos fundamentais, bem como todo o arcabouço legislativo elaborado na seara infraconstitucional de modo a ensejar sua positivação, na perspectiva dos direitos da personalidade, se, diante das múltiplas situações diárias, não houver uma resposta efetiva por parte do Poder Judiciário.
Considerações finais Diante do presente trabalho, procurou-se traçar os principais aspectos atinentes aos direitos da personalidade, partindo-se, como não podia deixar de ser, do enfoque constitucional sobre o tema. A partir da pretensão de se estabelecer certa compreensão sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, procurou-se assentar que dele descendem diretamente os direitos fundamentais, gênero de liberdades públicas e que os direitos da personalidade nada mais são que aludidas liberdades públicas vistas sob a égide de relações jurídicas privadas. Após ligeira passagem sobre seus principais atributos, focou-se na tutela desses direitos, sendo ressaltada a importância do Poder Judiciário. Transcreve-se trecho abaixo de Ingo Wolfgang Sarlet, posto que de grande pertinência ao tema abordado (2005, p. 281): Podemos concluir que em se tratando de direitos fundamentais de defesa, a presunção em favor da aplicabilidade imediata e a máxima da maior eficácia possível devem prevalecer, não apenas autorizando, mas impondo aos juízes e tribunais que apliquem as respectivas normas aos casos concretos, viabilizando, de tal sorte, o pleno exercício destes direitos (inclusive como direitos subjetivos), outorgando-lhes, portanto, sua plenitude eficacial e, consequentemente, sua efetividade. Acredita-se, pois, tratar-se de tema atual e pertinente, posto que, muito embora já existissem os direitos da personalidade, principalmente após o advento da Constituição da República de 1988, eles não se encontravam previstos, nem mesmo implicitamente, no Código Civil de 1916. No presente Código Civil, ao revés, houve previsão expressa, ainda que tímida, talvez em virtude da influência do paradigma da eticidade que, ao lado dos paradigmas da sociabilidade e operatibilidade, devem nortear toda a interpretação e aplicação de mencionada lei. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 33-52, julho/dezembro - 2011
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Emenda Constitucional 62/09
Ivan Ricardo Garisio Sartori1
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Sistema permanente/ alterações e novidades: 2.1. Preferências e RPV; 2.2. Sequestro; 2.3. Fracionamento; 2.4. Compensações; 2.5. Juros e atualização; 2.6. Cessão; 2.7. Assunção de débito. 3. Sistema especial: 3.1. Andamento da matéria em São Paulo 3.2. Constitucionalidade; 3.3. Sujeição, dinâmica e reversibilidade; 3.4. Leilão: 3.4.1. Mecanismo; 3.4.2. Habilitação; 3.4.3. Deságio; 3.5. Sequestro. Improbidade administrativa. Sanções financeiras.
1. Introdução
O
s precatórios têm sido um problema sem solução. Diante das inúmeras condenações e expropriações, não vem a Fazenda Pública logrando pagar o que deve, máxime por falta de planejamento do gasto público e de reserva necessária à satisfação desse passivo. E, no particular, ensina Carlos Valder do Nascimento, em obra organizada pelo próprio e por Ives Gandra da Silva Martins: 1
Professor de Direito Civil na Universidade Santa Cecília de Santos/SP (Unisanta). Coordenador da área de Direito Público da Escola Paulista da Magistratura. Presidente eleito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (biênio 2012/2013).
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A atividade estatal tem como ponto alto o processo de planejamento contínuo e permanente com a adoção dos instrumentos preconizados pela Constituição Federal. De sorte que a gestão fiscal há de se pautar em comportamento equilibrado, com a utilização racional do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e dos orçamentos (...). Reveste-se da maior importância (...) um quadro dessa natureza no contexto da administração do País. Entretanto, isso somente será possível se os agentes públicos cumprirem as determinações constantes dos dispositivos consagrados pela lei de responsabilidade fiscal e forem capazes de conduzir a coisa pública com seriedade, competência e, sobretudo, espírito público2. Caminhos alternativos para solução do problema, por vezes, vão sendo trilhados, como o acordo mediante pagamento com recursos de empréstimo externo, mas nem o Supremo Tribunal Federal nem o Órgão Especial do TJSP têm aceito essa alternativa, quer porque a Carta da República, em seu art. 100, não abre exceção à ordem cronológica, quer por proibir a “designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim”. No respeitante: STF, Rcl-AgR 2143/ SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello e Rcl 1979/RN, Tribunal Pleno, rel. Maurício Corrêa e Mandado de Segurança nº 994.08.012938-0 (171.082-0/7-00), Órgão Especial do TJSP. Por isso que, desde a CF/88, nada menos do que três as moratórias impostas aos credores: a do art. 33 do ADCT, a do art. 78, introduzida pela EC 30/00 e, agora, a do art. 97, advindo com a EC 62/09.
2. Sistema permanente/alterações e novidades: 2.1. Preferências e RPV; 2.2. Sequestro; 2.3. Fracionamento; 2.4. Compensações; 2.5. Juros e atualização; 2.6. Cessão; 2.7. Assunção de débito. Em relação às modificações perenes, constantes do art. 100, com a redação da EC 62/09, verifica-se que os seis parágrafos então existentes se transformaram em 16, renumerados e alterados os originais remanescentes. O próprio caput do art. 100 foi reformulado, embora, basicamente permaneça o mesmo. Dali foi excluída a expressão “à exceção dos créditos de natureza alimentícia”, classe que passou a ser tratada, exclusivamente, no § 1º. Antes 2
Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 20/1.
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esses débitos eram cuidados também no § 1º A. Acrescentaram-se, ainda, no parágrafo, os seguintes dizeres: “... e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo”. Veja-se que o crédito de natureza alimentar simples não mais é o primeiro na lista de preferência, pois há o do § 2º, dos quais trataremos a seguir. Não é demais lembrar que por créditos de natureza alimentícia já se compreendiam e se compreendem “salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas em responsabilidade civil”, como expresso no § 1ºA anterior e no atual 1º. Já o § 2º traz uma novidade, novidade essa originária, em parte, da jurisprudência, que vinha concedendo o chamado sequestro humanitário, tendo em vista os princípios da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, bem como o dever do estado de zelar pela saúde e de prestar assistência ao cidadão, conforme os arts. 1º, III; 5º caput; e 23, II, da Constituição Federal3 . Além dos portadores de doença grave, essa novel disposição agracia os sexagenários e aqueles com idade superior, para, em se tratando de crédito alimentar, reservar-lhes, com preferência absoluta, o triplo do valor referente aos requisitórios de pequeno valor, que continuam no § 3º e escapam do art. 100, no tocante à expedição do precatório, dado o tratamento especial. O valor remanescente, todavia, será objeto do regime especial ou da moratória de que trataremos oportunamente (§ 17 do art. 97, acrescentado ao ADCT pelo art. 2º da Emenda). A preferência do triplo é absoluta, seguido do crédito alimentar simples. Assim, três são as classes: os idosos e portadores de doença grave com crédito alimentar, os titulares de crédito alimentar simples e os demais precatórios, sem contar os créditos de pequeno valor. Cumpre registrar, ainda, que, no regime da nova moratória, não sendo possível estabelecer a precedência cronológica do precatório, terá primazia o de menor valor (§ 7º do art. 97, introduzido no ADCT pela Emenda ora sob exame). Resta saber se esse critério será utilizado de forma permanente, em decorrência de assimilação ou analogia, uma vez que essa previsão não se STF – Rcl-AgR 3034/PB, Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 27.10.06, p. 00031, Ement. Vol. 02253-01, pp. 00191, destacando-se o voto do ministro Eros Grau; Mandado de Segurança nº 179.939.0/7-00, Órgão Especial do TJSP.
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repete para o sistema permanente. O § 5º da EC 30/00 passou a ser o 4º, que trata do valor do RPV, com o acrescento de linde mínimo, o que não havia, eleito, para tanto, o “valor do maior benefício do regime geral de previdência social”. Poderá ser fixado valor superior por lei e, não advindo esta em 180 dias, serão observados os do § 12 do art. 97 do ADCT (art. 2º da EC), ou seja, 40 salários mínimos para os Estados e Distrito Federal e 30 salários mínimos para os Municípios. Então, além da necessidade de lei específica, como vinha ocorrendo, há um patamar base, o que, inconcusso, evita abusos por parte do administrador. O § 1º anterior (EC 30/00) passa a ser o § 5º, a tratar da inclusão de verba necessária ao pagamento dos débitos constantes de precatórios apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, com atualização. O § 6º é o antigo § 2º, sempre considerada a emenda anterior. Trata da obrigatoriedade de consignação ao Poder Judiciário dos créditos abertos, cabendo ao Presidente do Tribunal determinar o pagamento e autorizar ou decretar o sequestro no caso de preterimento do direito de preferência ou de não alocação orçamentária dos recursos necessários à satisfação do débito. Originalmente, pela CF/88, o sequestro somente era possível no caso de preterimento. Ao depois, com a EC 30/00, a teor do art. 78 acrescentado ao ADCT, passou a ser possível o sequestro, quanto aos créditos a esse regime submetido, nas hipóteses da não satisfação do débito no prazo e de omissão no orçamento, além do preterimento. Mas, a disposição permanente, insculpida no então § 2º, persistia possibilitando o sequestro apenas na hipótese de preterimento, mesmo com as alterações da EC 30/00. Agora, como visto, a omissão orçamentária também pode dar causa ao sequestro, no sistema permanente. O § 7º é o antigo § 6º, da EC 37/02, que trata da responsabilidade por ato omissivo ou comissivo do Presidente, com o acrescento de que referido agente político responderá pela falha também perante o Conselho Nacional de Justiça. O § 8º é o antigo § 4º da EC 37/02, que trata da proibição de expedição de precatórios complementares ou suplementares de valor pago e do fracionamento, repartição e quebra do valor da execução para o fim do § 3º, que trata da RPV. A questão do fracionamento do precatório é conhecida e já ensejou inúmeras decisões, inclusive em sede da ADI 2924, relator ministro Carlos Velloso, a envolver dispositivo do anterior RITJSP, com a seguinte ementa: Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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EMENTA: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. CRÉDITO COMPLEMENTAR: NOVO PRECATÓRIO. Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, inciso V do art. 336. CF, art. 100. Interpretação conforme sem redução do texto. I. - Dispõe o inciso V do art. 336 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que ‘para pagamentos complementares serão utilizados os mesmos precatórios satisfeitos parcialmente até o seu integral cumprimento’. Interpretação conforme, sem redução do texto, para o fim de ficar assentado que ‘pagamentos complementares’, referidos no citado preceito regimental, são somente aqueles decorrentes de erro material e inexatidão aritmética, contidos no precatório original, bem assim da substituição, por força de lei, do índice aplicado. II. - ADI julgada procedente, em parte. Colacione-se, ainda, o RE 523.199/RO, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJe 22.06.07, com a seguinte ementa: Execução contra a Fazenda Pública: obrigação divisível: litisconsórcio facultativo: desmembramento do processo para que os litisconsortes com crédito classificado como de pequeno valor possam receber sem a necessidade de precatório. Recurso extraordinário: descabimento: ausência, no caso, de violação do art. 100, § 4º, da Constituição. 1. O acórdão recorrido, à luz da legislação infraconstitucional, reconheceu que o direito pleiteado pelos litisconsortes é divisível, razão pela qual o litisconsórcio é facultativo. 2. De outro lado, a execução continuará sob o rito do precatório em relação aos litisconsortes com créditos não classificados como de pequeno valor. 3. ‘A vedação de fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução - § 4º - se justifica a fim de que seu pagamento não se faça, em parte, na forma estabelecida para obrigações de pequeno valor e, em parte, mediante expedição de precatório, o que não ocorre no caso.’ (RE 484.770, 1ª T., 06.06.2006, Pertence, DJ 01.09.2006). Nesse sentido, aliás, o Enunciado 05 da Seção de Direito Público do TJSP: “No litisconsórcio facultativo, é possível individualizar o precatório” (DJe 06.11.09). No tocante aos honorários advocatícios, já decidiu o STF, no AI 537733/ RS, relator ministro Eros Grau, DJe 11.11.05: Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRECATÓRIO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PAGAMENTO DIRETO INDEPENDENTE DE PRECATÓRIO. FRACIONAMENTO DO VALOR DA EXECUÇÃO. O fracionamento, a repartição e a quebra do valor da execução são vedados pela Constituição do Brasil, de acordo com o artigo 100, § 4º. Agravo regimental a que se nega provimento. Em São Paulo, o art. 3º e seu parágrafo único, da Resolução 199/05, com a alteração introduzida pela Resolução 446/08, ambas do O.E., dispõem: Art. 3º - Em caso de litisconsórcio, será considerado o valor devido a cada litisconsorte, expedindo-se, simultaneamente, se for o caso, requisições de pequeno valor e requisição de precatório. É vedado o fracionamento, repartição ou quebra do valor devido a um mesmo beneficiário. Parágrafo único. Ao advogado é atribuída a qualidade de beneficiário, quando se tratar de honorários sucumbenciais, e seus honorários devem ser considerados como parcela integrante do valor devido a cada credor para fins de classificação do requisitório como de pequeno valor.” Oportuno ressaltar que o § 11 do art. 97 do ADCT prevê, no regime especial, a possibilidade de desmembramento do precatório expedido em favor de diversos credores, em litisconsórcio, proibido o enquadramento para o fim de RPV, o que vai em sentido contrário da jurisprudência que vinha se firmando. Essa disposição é de duvidosa constitucionalidade, tendo em vista o princípio da isonomia, considerado que o credor autor isolado de ação pode se valer do RPV, sendo o caso, enquanto o credor que litigou em litisconsórcio facultativo fica privado desse direito. Pode-se, entanto, lançar mão de interpretação conforme, para entenderse que o litisconsórcio referido no dispositivo é o necessário e não o facultativo. Outra hipótese de desmembramento, por óbvio, é a do § 2º do art. 100 (idosos e portadores de doença grave). Já o § 9º constitui novidade, porque prevê a compensação dos débitos do credor originário com a Fazenda, ao ensejo da expedição do precatório. Pela disposição, a compensação abrangerá os débitos inscritos ou não em dívida ativa, incluídas as parcelas vincendas de parcelamentos, salvo aqueles em discussão judicial ou administrativa.
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No alusivo às dívidas líquidas vencidas, não se vê problema, embora haja quem defenda a inconstitucionalidade na circunstância de impor-se ao cessionário essa compensação, considerado o princípio constitucional da segurança jurídica4. Entanto, possível argumentar em sentido contrário, lembrando que a Fazenda é terceira em relação à cessão e só é comunicada de sua realização para o fim de efetuar o pagamento a quem de direito. Mas, quanto às vincendas objeto de parcelamento, a inconstitucionalidade é patente, sem falar que, dessa forma, o direito do credor ao crédito por precatório também passa a constituir um ônus, na medida em que faz cessar parcelamento a ele já concedido. Por isso que essa disposição, no particular, fere, sem dúvida, o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, ambos objeto de cláusula pétrea constitucional (art. 5º, XXVI), que não pode ser arredada, obviamente, pelo poder derivado constitucional (art. 60, § 4º, inciso IV). Então, somente as dívidas vencidas e não contestadas poderão ser compensadas com o crédito a ser requisitado, jamais as vincendas objeto de parcelamento, porque tal antecipa e faz compensar, já no momento da expedição do precatório, dívida não exigível e objeto de ajuste válido e inarredável, enquanto cumprido. Aliás, o inciso II do § 9º do art. 97 do ADCT, introduzido pela Emenda, está nos termos do possível, permitindo a compensação de débitos líquidos e certos vencidos e constituídos até a expedição do precatório. Para o exercício desse direito, a Fazenda será intimada a, no prazo de 30 dias, informar os débitos compensáveis. Decorrido esse prazo, operar-se-á a decadência do direito (§ 10). Mais à frente, veremos que, pela nova moratória, também será possível a compensação em detrimento das Fazendas, mas somente no caso de não liberação tempestiva de recursos (§ 10, inciso II, do art. 97). Portanto, a compensação a favor da fazenda é perene e incondicional, enquanto aquela em favor do credor, tal como na moratória da EC 30/00 (art. 78, § 2º), será transitória e condicionada. Compensações de precatórios com tributos ocorridas até 31 de outubro de 2009 ficam convalidadas (art. 6º), sucedendo que as pendências judiciais
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Fábio Ozi, Valor Online, 24/03/2010.
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a respeito perdem o objeto, inclusive, ao que tudo indica, a seguinte repercussão geral: EMENTA: PRECATÓRIO. ART. 78, § 2º, DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. COMPENSAÇÃO DE PRECATÓRIOS COM DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. Reconhecida a repercussão geral dos temas relativos à aplicabilidade imediata do art. 78, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT e à possibilidade de se compensar precatórios de natureza alimentar com débitos tributários. (RE 566349 RG / MG - MINAS GERAIS REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 02/10/2008). Sobre o tema, de serem lembrados julgados do STF: EMENTA: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. COMPENSAÇÃO DE CRÉDITO TRIBUTÁRIO COM DÉBITO DO ESTADO DECORRENTE DE PRECATÓRIO. C.F., art. 100, art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30, de 2002. I. - Constitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, do Estado de Rondônia, que autoriza a compensação de crédito tributário com débito da Fazenda do Estado, decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, no limite das parcelas vencidas a que se refere o art. 78, ADCT/CF, introduzido pela EC 30, de 2000. II. - ADI julgada improcedente. (ADI 2851 / RO - AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator: Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 28/10/2004, Órgão Julgador: Tribunal Pleno); PRECATÓRIO - CESSÃO - TRIBUTO - LIQUIDAÇÃO DE DÉBITO. A previsão normativa de cessão de precatório e utilização subseqüente na liquidação de débito fiscal conflitam, de início, com o preceito maior do artigo 100 da Constituição Federal. (ADI 2099 MC / ESESPÍRITO SANTO MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 17/12/1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno). O último acórdão, todavia, é anterior à EC 30/00, que permite, no caso de mora, a compensação ou concede poder liberatório ao crédito por Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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precatório, para compensação com tributos. O § 11 traz novidade importante, consistente na possibilidade de o credor se utilizar de crédito de precatório na aquisição de imóvel público do respectivo ente federado. Essa disposição, porém, não é autoaplicável, porque o dispositivo faz referência a lei (“conforme estabelecido em lei da entidade federativa devedora”). A questão da atualização dos precatórios e dos juros vem prevista no parágrafo seguinte (12), que determina observância ao índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança, com incidência, uma vez expedidos, apenas de juros simples, também segundo a poupança. A atualização em São Paulo vem se verificando nos termos de tabela prática a retratar os índices oficiais comumente utilizados pelo Judiciário. Tendo em vista jurisprudência superior que determinou a correção do índice dos meses de janeiro e fevereiro de 1989, reduzindo-os para 42,72% e 10,14%5, o Órgão Especial vem deferindo a retificação dos cálculos, em função disso, mencionando erro material6 . Agora, conforme deliberação do Órgão Especial, há tabela própria condizente com a Lei 11.960/09, cuja incidência, segundo a jurisprudência, se verifica somente em relação às ações ajuizadas já na sua vigência (STJ – EREsp 369.832/RS, Corte Especial e AgRg no REsp 818.122/RS, Segunda Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17.08.06, DJ 14.09.06, p. 305; TJSP ED 994.04.52153-2/50000, 10ª Câmara de Direito Público, rel. desª Teresa Ramos Marques, j. 15.03.10 e ED 994.09.015715/50000, 12ª Câmara de Direito Público, rel. des. Osvaldo de Oliveira, j. 10.03.10). Em relação aos juros, formaram-se duas correntes no referido Colegiado: aquela que os exclui a partir da consolidação do débito para os fins das moratórias dos arts. 33 e 78 do ADCT, salvo inadimplemento subsequente, quando juros moratórios fluem a partir dessa nova mora; e aquela, à qual me filio, que entende devidos os juros (inclusive compensatórios, se caso), se não houver pagamento no prazo e a partir do dia em que os valores deveriam ter sido pagos originalmente, dês que, do contrário, se estaria concedendo remissão da dívida e não apenas dilação no pagamento, como previsto Recursos Especiais nº 254.479, Quinta Turma, rel. Arnaldo Esteves Lima, j. 24.05.05; 325.982, Segunda Turma, rel. Franciulli Netto, j. 01.03.05; 448.043, Primeira Turma, rel. José Delgado, j. 15.05.03; 285.720, Quinta Turma, rel. Felix Fischer, j. 04.04.00. 6 AgRg no RESP 653.333/GO, Primeira Turma, rel. Luiz Fux e AR nº 150.533-0/4-01, Órgão Especial do TJ. 5
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nas disposições transitórias aludidas, sem falar que haveria afronta à coisa julgada e ao princípio da jurisdição, mesmo porque se estaria preterindo, administrativamente (Súmula 311 do STJ), o juízo da execução. Segundo José Afonso da Silva: A proteção constitucional da coisa julgada não impede, contudo, que a lei preordene regras para sua rescisão mediante atividade jurisdicional. Dizendo que a lei não prejudicará a coisa julgada, quer-se tutelar esta contra a atuação direta do legislador, contra ataque direto da lei. A lei não pode desfazer (rescindir ou anular ou tornar ineficaz) a coisa julgada. Mas pode prever licitamente, como o fez o art. 485 do CPC, sua rescindibilidade por meio de ação rescisória7 . Emblemáticos, os seguintes julgados: Ementa: (...) Mandado de segurança – Ato da Presidência do Tribunal de Justiça – Sequestro de rendas públicas à satisfação de precatório – (...) Juros – Impossibilidade de revisão administrativa daqueles consectários – Ofensa aos princípios da coisa julgada, do devido processo legal e do juiz natural – Verbas que não podem ser extirpadas do sequestro. Segurança denegada. (Mandado de Segurança nº 994.08.012938-0 (171.082-0/7- Órgão Especial do TJSP). Processual Civil. Recurso em mandado de segurança. Precatório. Parcelamento. Art. 78 do ADCT. Pedido de seqüestro. Presidência do Tribunal de Justiça. Exclusão de juros moratórios e compensatórios. Competência do juízo da execução. Recurso ordinário a que se dá provimento. (MS 26.212, 1ª. Turma, Min. Teori Albino Zavascki, j. 26.08.08). EMENTA: PRECATÓRIO. ARTIGO 33 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. DESCABIMENTO DA INCIDÊNCIA DE JUROS. (...). A regra do art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias encerra uma exceção à garantia individual da justa indenização. Trata-se de moratória que a Constituição deu ao Poder Público, permitindo que a dívida consolidada na data da promulgação da Carta, após computados juros e correção monetária remanescentes, fosse dividida em oito parcelas iguais, sofrendo 7
Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 135.
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apenas atualização por ocasião do pagamento de cada prestação. Não há espaço para a incidência de juros sobre prestações cumpridas no prazo da Constituição. Precedentes da Corte: RE 149.466, Primeira Turma e RE 155.981, Plenário. (...). (RE 148512/SP - SÃO PAULO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Julgamento: 07/05/1996, Órgão Julgador: Primeira Turma). EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. PRECATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que não incidem juros de mora e compensatórios no período compreendido pelo art. 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Somente serão cabíveis os juros moratórios se houver atraso no pagamento. Precedentes. 2. Desapropriação indireta. Justa indenização. Impossibilidade do reexame de provas. Incidência da Súmula 279 do Supremo Tribunal” (AI 643732 AgR / SP - SÃO PAULO AG. REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 26/05/2009, Órgão Julgador: Primeira Turma). EMENTA: JUROS - MORATÓRIOS E COMPENSATÓRIOS DÉBITO DA FAZENDA - ARTIGO 78 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. O preceito do artigo 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias encerra uma nova realidade. Faculta-se ao recorrente a satisfação dos valores pendentes de precatórios, neles incluídos os juros remanescentes. Não observada a época própria das prestações, cabível a incidência dos juros no que pressupõem inadimplement” (RE 485650 AgR/SP - SÃO PAULO AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 07/04/2009, Órgão Julgador: Primeira Turma). Não é demais lembrar a Súmula 17 do Pretório Excelso: “Durante o período previsto no § 1º do artigo 100 da Constituição, não incidem juros de mora sobre os precatórios que nele sejam pagos”. Esse verbete, com a devida vênia, não pacifica a discussão acerca dos juros, uma vez que parece não haver dúvida da não incidência dos juros, se paga a dívida no prazo. Entretanto, havia quem pensasse diversamente. Daí a súmula. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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O § 13, por sua vez, propicia a cessão dos precatórios, o que, até então, era objeto de discussão, se utilizado o crédito pelo cessionário como forma de propiciar a compensação com crédito tributário, haja vista a repercussão geral aqui já mencionada. De todo modo, possível sim, agora, a cessão parcial ou total do crédito por precatório, mas a sub-rogação do credor encontra barreira quanto aos direitos dos §§ 2º e 3º (humanitário e pessoas com 60 anos de idade ou mais; requisitório de pequeno valor). O cessionário, destarte, sujeita-se ao precatório regular (alimentar ou ordinário), sem ditas preferências, qualquer que seja o valor do crédito. Agiu bem o legislador, porque o direito do § 2º é personalíssimo e, portanto, intransferível. Já no tocante ao RPV, evidente a possibilidade de a sub-rogação gerar a concentração de várias requisições de pequeno valor em favor de um único cessionário, que teria primazia no recebimento, resultando frustrado o objetivo do instituto. A cessão, pela disposição, independe do beneplácito do devedor, mas produzirá efeitos somente após comunicação, por petição, ao Tribunal de origem e à entidade devedora (§ 14). Veja-se, ainda, que o art. 5º da Emenda consolida todas as cessões realizadas até seu advento, independentemente de outras formalidades. O § 15 permite, para Estados, o DF e os Municípios, regime especial de liquidação dos precatórios, conforme lei complementar à Constituição Federal, dispondo sobre vinculação de receita corrente líquida, forma e prazo de liquidação. Está aberta a porta aí para mais novidades, com possibilidade de abusos, considerado ser bastante, agora, lei complementar, cujos projetos, como sabido, seguem trâmite mais simples do que os das emendas constitucionais. Evidente que essa lei somente poderá ter vigência para o futuro (art. 5º, XXXVI, da CF/88), embora o art. 97 do ADCT, introduzido pelo art. 2º da Emenda, pretenda emprestar a ela efeito retroativo. Em relação à constitucionalidade dessa retroatividade, trataremos mais adiante. Por fim, o § 16 permite que a União, a seu critério exclusivo e na forma da lei, assuma débitos oriundos de precatório de Estados, Distrito Federal e Municípios, refinanciando-os diretamente. Esse mecanismo é de suma importância e, se usado com seriedade, pode propiciar a liquidação mais célere dos precatórios, prevenindo intervenção Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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federal ou estadual. Com propriedade, lembra o professor Marçal Justen Filho, todavia, que essa assunção pode vir a ser praticada negativamente, por meio do tráfico de influência e negociatas8. O dispositivo, de todo modo, não é autoaplicável, porque dependente de lei.
3. Sistema especial 3.1. Andamento da matéria no Tribunal de Justiça de São Paulo Passou a ser um desafio para os tribunais a implantação do sistema transitório previsto na EC 62/09, principalmente para o Tribunal de Justiça de São Paulo, dado o incomensurável passivo sob sua administração. A Corte procura criar um meio de implementar a triagem relativa aos credores portadores de doença grave e com 60 anos ou mais. Já foram pedidas informações relativas aos cadastros do INSS, das Fazendas e autarquias, havendo a possibilidade de harmonização entre os dados do Tribunal e da Procuradoria Geral do Estado. As contas especiais a que a alude a emenda já foram indicadas e as listas de preferências e de ordem cronológica devem ser organizadas segundo a Lei 7.713/88, art. 6º, inciso XIV, que enumera as doenças graves para o fim de isenção tributária. Por primeiro, expediu-se a Ordem de Serviço 02/2010, a substituir a de nº 01, diante de falhas contidas nesta, que trata de todo o procedimento inerente à moratória: opção, depósito, preferência, modo de liquidação (leilão ou valor total), juros, etc., tudo conforme a emenda. Foi expedido, ainda, comunicado aos Tribunais de São Paulo (Comunicado nº 18/2010), em face do que dispõe o § 4º do artigo 97 do ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional nº 62/09, para que encaminhem à Diretoria Execução de Precatórios – DEPRE cópias dos demonstrativos ou planilhas dos saldos devedores individualizados dos precatórios em aberto, tendo como devedores a Fazenda e Autarquias do Estado de São Paulo, Municípios e respectivas Autarquias, bem como para que indiquem o último precatório pago (natureza alimentícia e outras 8
Emenda dos precatórios: calote, corrupção e outros defeitos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, n.34, dez/09. Disponível em: <http:// www.justen.com.br/informativo>.
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espécies), com vistas aos procedimentos necessários ao controle e pagamento dos precatórios pelo DEPRE. Das planilhas devem constar: I – tribunal, unidade judiciária e número do processo judicial que ensejou a expedição do precatório; II – data do trânsito em julgado da decisão que condenou a entidade a realizar o pagamento e da expedição do precatório; III – valor individualizado da requisição por credor, data considerada para atualização monetária dos valores e termo final dos juros, e entidade de Direito Público devedora; IV – natureza do crédito, se comum ou alimentar; V – nomes e números do CPF/CNPJ dos credores, inclusive quando este for advogado ou perito; VI – valor do precatório individualizado e atualizado a 1º de julho do exercício orçamentário. Já no Comunicado nº 19/2010, o Tribunal esclarece que determinou a instauração de procedimento interno em nome das unidades devedoras que não acusem a utilização do percentual previsto nos itens I e II, do § 2º, do art. 97, da ADCT. Esse parágrafo e os incisos se referem a uma das alternativas da moratória, a que alude ao depósito mensal de 1/12 do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Esse percentual deve ser apurado no momento da opção pelo regime e será fixo até o final. A porcentagem mínima será diferenciada, conforme se tratar de Estado ou do Distrito Federal e de Municípios das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, anotado que, no caso das duas últimas, a referência será maior, se o estoque de precatórios pendentes (Administração direta e indireta) for superior a 35% da receita corrente líquida. Para os Estados e Distrito Federal, essas referências são de 1,5% a 2% e, para os Municípios, de 1% a 1,5%. E o § 3º do art. 97 define o que vem a ser receita líquida como “o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e serviços, transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do § 1º do art. 20 da Constituição Federal (os royalties do petróleo ou gás natural), verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 (onze) meses anteriores, excluídas as duplicidades e deduzidas (...)”, de acordo com os incisos I e II, parcelas entregues aos municípios por força da Carta da República e a contribuição dos servidores para o sistema da previdência e assistência, bem como os valores oriundos da compensação do mesmo sistema (§ 9º do art. 201). Então, pelo referido comunicado, as unidades devedoras envolvidas serão intimadas para, em cinco dias, apresentarem planilhas de cálculos Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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informando as bases orçamentárias utilizadas para a fixação do percentual, esclarecendo as receitas consideradas e as excluídas da base de cálculo, bem como, o total da mora em precatório, sopesando os débitos considerados e os excluídos. Constatada a utilização de percentual inferior àquele que deveria ser indicado em atenção às regras da Emenda, o procedimento se converte automaticamente em procedimento tendente ao sequestro de verba. Por sua vez, no Comunicado nº 23/2010, o Presidente do TJSP comunica à Fazenda Pública e aos Municípios do Estado de São Paulo, que optaram pelo Regime Especial de pagamento, em face do que dispõe o §1º do art. 97 do ADCT, introduzido pela Emenda Constitucional nº 62/09, que deverão encaminhar à Diretoria de Execução de Precatórios – DEPRE cópia da lei ou decreto de opção estabelecendo o Regime Especial para pagamento de crédito de precatórios, dispondo sobre vinculação à receita corrente líquida, forma e prazo de liquidação. O prazo de noventa dias já se acha vencido e, diante dos decretos informados, o Tribunal organizou uma lista, em ordem alfabética, mencionando os municípios optantes e os decretos respectivos. O Comunicado nº 33/2010 dispõe sobre os requisitos de preferência de pagamento de precatórios. Por esse aviso, o Presidente do TJSP faz saber “aos interessados, mormente aos credores de precatórios pendentes de pagamento, seus advogados, Procuradores das Fazendas Públicas Estadual, Municipais, Autárquicas e Fundacionais, que os requerimentos de preferência de pagamentos de precatórios relativos a créditos abrangidos pelo artigo 100 parágrafo 2º da Constituição Federal, instituídos pela Emenda Constitucional nº. 62/2009 deverão ser protocolados diretamente no Tribunal de origem, onde tenha tramitado o processo judicial, atendendo à respectiva orientação. As preferências relativas a precatórios do TJSP poderão ser formuladas ao juízo da respectiva execução ou diretamente no protocolo do DEPRE, instruídas, no caso dos idosos, com comprovação do nascimento, pelo documento de identidade e CPF, e para os portadores de doenças graves, laudo ou prescrição médica, por sua via original e cópia do CPF.” Foi editada, também, a Portaria nº 7841/2010, a qual, considerando que a nova sistemática impõe controle constante e rígido, tendo em conta a alteração da gestão e fiscalização de anual para mensal e que as informações de cálculos produzidos pelo DEPRE, em futuro próximo, deverão estar disponibilizadas em meio eletrônico, a Diretoria de Execução de Precatórios – DEPRE expedirá certidões específicas do cálculo, com o prazo mínimo de 60 dias. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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E o Órgão Especial, em sessão realizada aos 04 de novembro p.p., editou a Resolução 510/2010, determinando a elaboração de tabela própria, com base na Lei 11.960/09, que alterou a redação do art. 1°-F da Lei n° 9.494, de 10 de setembro de 1997, determinando a incidência, uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e dos juros aplicados à caderneta de poupança, justamente para que sirva como referência à Diretoria de Execução de Precatórios acerca da adoção de novos procedimentos sobre o tema (Processo EP n° 2.771/93). Nessa tabela, determinou-se, por esse diploma, a utilização do INPC até o dia 29.6.09, com aplicação da TR pro rata do dia 30.6.09, para composição do índice do mês (cheio) de junho de 2009 e, depois, fazendo-se o cálculo, ao depois, conforme essa sistemática. Essa lei está conforme os dispositivos da emenda que determinam a utilização da poupança como referência para a atualização do débito e incidência dos juros (§§ 12 do art. 100, nova redação, e 16 do art. 97), o que reproduzido na Ordem de Serviço 02 do DEPRE do TJSP. Só que o STJ e o próprio TJSP, seja quanto aos juros, seja no tocante à corrigenda, não vêm admitindo a incidência de alteração para as causas ajuizadas antes da lei, como visto. Então, salvo posicionamento futuro ao revés, do STF, parece que não será possível a incidência retroativa prevista na disposição. É bom ressaltar que a Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo vem extinguindo os pedidos de sequestro não efetivados, liberando, porém, aqueles cujos valores já foram sequestrados. E estuda-se ali o sequestro, com base nos arts. 33 e 78 do ADCT, em relação aos municípios que não fizeram opção e têm débitos pendentes. Os Executivos do Estado e da Municipalidade de São Paulo, por meio dos Decretos 55.300/09 e 51.105/09, respectivamente, já optaram por uma das alternativas do sistema especial, aquela que diz com a receita corrente líquida. É verdade que a Ordem de Serviço 02, do DEPRE do TJSP, inclui as autonomias não optantes na moratória do depósito anual de 1/15. Mas, isso, com a devida venia, não é possível, porque haveria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes. A opção é do administrador e somente ele pode exercê-la. No Órgão Especial, foi sustado, com pedidos de vista, o julgamento de três pedidos de intervenção do Estado em municípios, tendo em conta possível inconstitucionalidade da emenda. Os relatores estavam indeferindo a intervenção ou extinguindo o processo, com ementas como a seguinte: Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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INTERVENÇÃO ESTADUAL NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO – (...) Crédito decorrente de desapropriação – Não realização do pagamento requisitado – Precatório atingido pela disciplina do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal introduzido pela EC nº 62/2009, aderido pela Municipalidade nos termos de seu Decreto nº 51.105, de 11 de dezembro de 2009 – Fato superveniente que retira a exigibilidade do crédito nos termos do precatório descumprido – Pedido de intervenção prejudicado – Extinção do processo interventivo sem exame de mérito.” (Intervenção Estadual nº 994.09.002451-6 (antigo nº 175.426-0/7-00, Órgão Especial, rel. José Reynaldo, j. 07.04.10).
3.2. Constitucionalidade A Emenda 62/09 introduziu nova moratória, até que seja editada a lei complementar prevista no § 15 do art. 100, segundo a redação que lhe deu, moratória essa a abarcar todos os precatórios pendentes (Administração direta ou indireta) e os emitidos durante o período de vigência da dilação, sem exceção, isso em favor dos Estados, Distrito Federal e Municípios. A moratória foi denominada “regime especial”, arredando a incidência do art. 100, ressalvados os §§ 2º (humanitário e credores com 60 anos ou mais), 3º (RPV), 9º (compensação de débitos a favor da Fazenda), 10 (procedimento para a compensação), 11 (precatório em troca de imóvel da entidade devedora), 12 (incidência dos índices e apenas de juros simples, ambos da caderneta de poupança), 13 (cessão) e 14 (procedimento relativo à cessão). Questão que começa a despontar como controvertida, tal como por ocasião da EC 30/00, diz com a constitucionalidade do regime, que abarca precatórios pendentes e até em que presente mora importante do devedor. É bom ressaltar que a o Conselho Federal da OAB, Associações de Magistrados, do Ministério Público e de Servidores já ajuizaram, no STF, ação direta de inconstitucionalidade afeta ao art. 97 do ADCT (ADI 4387), ao argumento de que haveria inconstitucionalidade formal, porque não teria sido observado o interstício de cinco dias úteis (art. 362 do Regimento Interno do Senado) nas votações em 1º e 2º turnos, além de apontar inconstitucionalidades materiais, tendo em vista os princípios que regem o Estado Democrático, a dignidade da pessoa humana, a separação dos Poderes, Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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a segurança jurídica, o direito de propriedade, o ato jurídico perfeito, a coisa julgada, a moralidade, a razoável duração o processo e a igualdade. Nessa ADI, o relator, ministro Carlos Britto, determinou que todos os Tribunais de Justiça do país informem os valores pagos em precatórios (alimentares e não alimentares) e requisições de pequeno valor (RPVs) pelos Estados e capitais nos últimos 10 anos. A determinação é do dia 5 de janeiro. O ministro pediu, ainda, informações sobre o montante da dívida pendente de pagamento inscrita em precatórios. Também a Anamatra ingressou com ação direta (ADI 4.400), argumentando que desrespeitados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, havendo verdadeiro abuso no poder de legislar. Dita associação não se conforma, principalmente – e esse o principal objetivo da ação –, com a competência atribuída aos Tribunais de Justiça, pelo § 4º do art. 97, acerca da administração das contas especiais a que alude o § 2º da mesma disposição, das quais trataremos adiante. Não é demais dizer que pendem no Supremo Tribunal Federal as ADI’s 2.356 e 2.362, questionando a EC 30/00, a qual, como sabido, introduziu a moratória anterior. E, após longa tramitação, houve definição do Pleno daquele Colegiado em relação à medida cautelar, a qual restou deferida, suspendendo-se a eficácia do art. 2º, que trata da própria moratória. Entendeu aquele Colegiado que: 4. O art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pelo art. 2º da Emenda Constitucional nº 30/2000, ao admitir a liquidação ‘em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos’ dos ‘precatórios pendentes na data de promulgação’ da emenda, violou o direito adquirido do beneficiário do precatório, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Atentou ainda contra a independência do Poder Judiciário, cuja autoridade é insuscetível de ser negada, máxime no concernente ao exercício do poder de julgar os litígios que lhe são submetidos e fazer cumpridas as suas decisões, inclusive contra a Fazenda Pública, na forma prevista na Constituição e na lei. Pelo que a alteração constitucional pretendida encontra óbice nos incisos III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição, pois afronta ‘a separação dos Poderes’ e ‘os direitos e garantias individuais’. 5. Quanto aos precatórios ‘que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999’, sua liquidação parcelada não se compatibiliza com Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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o caput do art. 5º da Constituição Federal. Não respeita o princípio da igualdade a admissão de que um certo número de precatórios, oriundos de ações ajuizadas até 31.12.1999, fique sujeito ao regime especial do art. 78 do ADCT, com o pagamento a ser efetuado em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, enquanto os demais créditos sejam beneficiados com o tratamento mais favorável do § 1º do art. 100 da Constituição9. Assim, a EC 62/00, na parte que alcança precatórios a ela anteriores, conforme o art. 97 do ADCT, introduzido pelo art. 2º, está fadada ao mesmo raciocínio meritório, justamente porque essa retroação fere garantias constitucionais básicas, mormente aquelas previstas no art. 5º, inciso XXVI, da Lei Maior (direito adquirido e coisa julgada), cláusula pétrea e imutável pelo poder constituinte derivado, a teor do art. 60, § 4º, inciso IV.
3.3. Sujeição, dinâmica do Sistema Especial e reversibilidade O art. 2º da Emenda introduz no ADCT o art. 97, que institui moratória através de sistema especial, que, num primeiro momento, vigorará até o advento da lei complementar especial a que se refere o § 15 do art. 100. Estão sujeitos ao sistema todos os precatórios vencidos (Administração direta ou indireta) e mesmo os emitidos durante a vigência do sistema, figurando como favorecidos Estados, o Distrito Federal e os Municípios, excluída a União. Registre-se que o § 15 é expresso ao incluir no regime especial os precatórios parcelados na forma dos arts. 33 e 78 do ADCT e ainda pendentes de pagamento, mesmo que objeto de acordo extrajudicial, observado o saldo. Mas, a implantação do regime especial, qualquer que seja a opção, deve se verificar em 90 dias, contados da publicação da emenda (10.12.2009) (art. 3º da Emenda), prazo esse já vencido. Não há solução, na emenda, para os devedores que não optarem por qualquer alternativa, parecendo adequado que persistam os sistemas dos arts. 33 e 78 do ADCT, nessas hipóteses. E a dicção constitucional, ao contemplar somente os precatórios, parece 9
Redator do acórdão o Min. Ayres Britto, j. 25.11.10, DJe 18.05.11.
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não incluir, no sistema, o crédito de pequeno valor, que, portanto, continua a ser regulamentado, no âmbito do Estado de São Paulo, pela Lei Estadual 11.377/03. O regime especial será dinamizado por meio do depósito em contas especiais de valores afetos a precatórios vencidos ou a vencerem. Essas contas serão administradas pelo Tribunal de Justiça local, independentemente da origem da sentença (§ 4º do art. 97), e os valores ali depositados não podem retornar para os entes depositantes (§ 5º). O ente favorecido pode, por ato do Executivo local, optar por duas alternativas. A primeira delas, a teor do § 1º, inciso I, e § 2º, será o depósito mensal de 1/12 do valor calculado percentualmente sobre as receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de cada pagamento ou depósito. O percentual referido há de ser calculado no momento de opção pelo regime e será mantido fixo até o final da moratória, ou seja, enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos vinculados (§ 14 do art. 97). De acordo com os incisos I e II do § 2º, será observado percentual mínimo no cálculo do percentual, conforme se tratar de Estado ou do Distrito Federal e de Municípios das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste, anotado que, no caso das duas últimas, a referência será maior, se o estoque de precatórios pendentes (Administração direta e indireta) for superior a 35% da receita corrente líquida. A segunda opção será o depósito, em conta especial, do saldo devido, durante 15 anos e anualmente, na proporção de 1/15, observadas as amortizações e computados o índice e os juros da poupança, com exclusão dos juros compensatórios. Até aqui, as entidades devedoras vêm optando, em regra, pela primeira alternativa, segundo informes da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, sucedendo que deve ser a melhor opção, matematicamente. Nos termos do § 6º, cinquenta por cento dos recursos depositados nas contas especiais serão destinados à satisfação de precatórios, de acordo com a ordem cronológica e as preferências. A primazia dos alimentares será aferida entre os precatórios do mesmo ano e daqueles dos quais sejam titulares idosos e portadores de doença grave, entre todos os precatórios. O restante será utilizado, de acordo com opção isolada ou simultânea, ao pagamento dos precatórios por meio de (a) leilão ou ao (b) pagamento à vista dos remanescentes não quitados com os cinquenta por cento iniciais Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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ou dos remanescentes do leilão, em ordem única e crescente de valor por precatório ou, ainda, ao pagamento mediante (c) acordo direto com os credores, conforme lei da entidade devedora (§ 8º, incisos I, II e III). Note-se, desde logo, que o fundo pode ser utilizado somente para pagamento dos precatórios, segundo a ordem cronológica e preferências, e/ ou metade para leilão ou acordo. Mas, o acordo fica na dependência de lei, como visto, a qual poderá, inclusive, criar câmara de conciliação (inciso III do § 8º). Então, veja-se que, pelo novo sistema, se bem entendi, não haverá parcelamento de precatório. O pagamento se dará de forma integral ou mediante quitação com deságio, ficando os credores remanescentes no aguardo de sua vez, respeitadas as respectivas classes e preferências. Parcelamento haverá somente para os credores alimentares com 60 anos ou mais e portadores de doença grave, que recebem o triplo do valor afeto ao RPV, antecipadamente, ficando o restante do crédito sujeito à moratória. O índice de atualização e os juros serão aqueles válidos para a poupança, qualquer que seja o precatório, excluídos os juros compensatórios (§ 16). A retroação desse critério pode encontrar óbice de ordem constitucional, segundo argumentos já expostos. Quando se implantam juros ou forma de corrigenda diversos daqueles até então praticados, como no caso da MP 2.180 e da Lei 11.960/09, os tribunais têm admitido, como já visto acima, a incidência da norma modificadora somente para as ações ajuizadas quando já vigente a nova ordem. O regime especial vigorará enquanto o valor dos precatórios em aberto for superior aos recursos vinculados ou pelo prazo de 15 anos, dependendo da opção (§ 14 do art. 97 e art. 4º da EC).
3.4. Leilão: 3.4.1. Mecanismo; 3.4.2. Habilitação; 3.4.3. Deságio O § 9º do art. 97 do ADCT disciplina o leilão, para o qual serão destinados cinquenta por cento dos recursos depositados nas contas especiais. Conforme os incisos I a IX, o leilão se dará por meio de sistema eletrônico e será administrado por entidade autorizada pela CVM ou pelo Banco do Brasil. Estarão habilitados a participar da almoeda, os credores, pelo valor inteiro do precatório ou parcela por eles indicada, desde que não haja pendência de recurso ou impugnação de qualquer natureza. Os credores nessa condição Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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consideraram-se habilitados automaticamente (incisos II e IV). Então, não há necessidade de habilitação específica, se apto a ser leiloado o crédito, a menos que o credor pretenda fazer indicação específica de parcela. Haverá oferta pública e o leilão se repetirá até que se esgote o valor disponível; a competição se verifica por meio do deságio associado ao maior volume ofertado (com maior deságio ou não), observado, a final, o maior percentual de deságio, sendo lícito impor limite por credor, tudo conforme o edital de cada leilão (inciso VII e VIII). A quitação, todavia, sempre dependerá de homologação pelo Tribunal que expediu o precatório (inciso IX). De todo modo, será permitida a compensação com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa, constituídos contra o devedor originário até a data da expedição do precatório, salvo os de exigibilidade suspensa ou que já tenham sido objeto de abatimento (inciso II).
3.5. Sequestro. Improbidade administrativa. Sanções financeiras Enquanto perdurarem o sistema especial, desde que havendo opção no prazo de 90 dias da data da publicação da Emenda, e o depósito regular, o devedor não poderá sofrer sequestro (art. 3º da EC e § 13 do art. 97). Todavia, a teor dos §§ 10 e 13 do art. 97, dita constrição terá lugar se não liberados tempestivamente os recursos afetos à moratória (1/15 anual ou 1/12 mensal – inciso II do § 1º e § 2º do art. 97) ou os cinquenta por cento para pagamento dos precatórios por ordem cronológica (§ 6º). O sequestro se referirá, por certo, ao valor não liberado e será decretado pelo Tribunal de Justiça, ainda que o precatório provenha de outro tribunal, porque ele o administrador das contas especiais (§10, inciso I). Hipótese não prevista na emenda, mas que, na certa, deve autorizar a medida extrema, é a de não liberação dos recursos ao vencedor do leilão. A omissão do devedor, no termos do § 10, também poderá ocasionar: a) por ordem do Presidente do Tribunal e em favor dos credores, a compensação automática com débitos lançados pela entidade devedora, verificando-se o poder liberatório para débitos tributários futuros; b) responsabilidade fiscal e por improbidade administrativa do chefe do Executivo; c) enquanto perdurar a omissão: a.1) ocorrerá a impossibilidade pela entidade devedora de contrair empréstimo interno ou externo; a.2) ficará impedida de receber transferências voluntárias; d) a União reterá os repasses relativos ao Fundo Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 53-75, julho/dezembro - 2011
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de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios e os depositará nas contas especiais. Como se vê, o inadimplemento ocasiona inúmeras consequências negativas importantes, tanto para a entidade faltosa como para o chefe do Executivo, o que, sem dúvida, previne a ausência de seriedade que, até aqui, vem imperando entre os devedores.
Bibliografia JUSTEN FILHO, Marçal. Emenda dos precatórios: calote, corrupção e outros defeitos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, n.34, dez/09. Disponivel em: <http://www. justen.com.br/informativo>. NASCIMENTO, Carlos Valder do. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2001. OZI, Fábio. A nova fórmula para os precatórios no País. Valor Online. Disponivel em: <http:// www.valoronline.com.br>. Acesso em: 24/03/2010. SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005.
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Sigilo médico: por que e quando?
Airton Pinheiro de Castro1
Juiz de Direito no Estado de São Paulo
RESUMO: Ao ensejo das inovações introduzidas com o novo Código de Ética Médica, em vigor desde 13 de abril de 2010, pretende-se fomentar a discussão a propósito do escopo da proteção do sigilo médico sob os enfoques de sua objetividade jurídica, consequências de sua violação, natureza jurídica e extensão da tutela legal, não sem deixar de enfrentar particularidades da temática, como a questão dos prontuários médicos e situações relacionadas aos pacientes menores de idade.
C
omo cediço, o Conselho Federal de Medicina aprovou, por Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009, publicada no DOU de 24 de setembro de 2009, em vigor desde 13 de abril de 2010, o novo
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Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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Código de Ética Médica. Fê-lo no pleno uso de suas atribuições legais2, por conta do que já o reconheceu o E. Supremo Tribunal Federal a força normativa e consequente eficácia vinculante do Código revogado, igualmente presente no novel diploma legal, à vista de sua qualificação de norma jurídica de caráter especial, submetida a regime jurídico semelhante ao das normas e atos normativos federais (HC 39.308-SP, rel. Min. Djaci Falcão – no mesmo sentido RTJ 93/506). O novo Código de Ética Médica contempla propostas formuladas ao longo dos anos de 2008 e 2009 pelos Conselhos Regionais de Medicina, pelas entidades médicas, pelos médicos e por instituições científicas e universitárias para a revisão do Código revogado, tanto quanto decisões da IV Conferência Nacional de Ética Médica, buscando, sobretudo, guardar plena sintonia com os preceitos constitucionais vigentes. E é da própria Constituição Federal de 1988 que se extrai, entre outras, a garantia individual à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da imagem e da honra (art. 5º, inciso X)3, fundamento maior e ratio essendi do sigilo médico, tema cuja origem remota repousa no julgamento de Hipócrates: “O que, no exercício ou fora do exercício e no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar, conservarei como segredo”. Trata-se, o sigilo médico, da “mais extraordinária reserva moral da medicina”4, cuja violação encerra inexorável ofensa a um dos direitos da personalidade, erigido, como visto, à condição de garantia individual de prosápia constitucional. Daí o amplo aparato normativo a traçar-lhe os contornos e fixar-lhe as consequências de sua violação. Bem a propósito, o novo Código de Ética Médica preceitua como 2
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Em conformidade com a Lei n.º 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto n.º 44.045, de 19 de julho de 1958, modificado pelo Decreto n.º 6.821, de 14 de abril de 2009 e pela Lei n.º 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e, consubstanciado nas Leis n.º 6.828, de 29 de outubro de 1980 e Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999 Victor Gabriel de Oliveira Rodrigues realça a atual dimensão da tutela constitucional da privacidade e intimidade, haja vista sua umbilical conexão com a tutela da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a teor do art. 1º, inciso III da Constituição Federal, expressão do interesse público na preservação do sigilo profissional, assim qualificado como “interesse difuso, de toda a sociedade, em que a profissão preserve seu segredo e sua confiabilidade” (Sigilo médico e direito à privacidade: do delito de desobediência face ao desatendimento de ordem judicial de revelação de dados de pacientes. In: Direito à Privacidade, In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge. (coord). Direito à Privacidade. Idéias e Letras Editora, p.391-413. PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1979, p.180.
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princípio fundamental: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei” (inciso XI)5. Conforme já assentado em precedente paradigmático: A inviolabilidade do segredo profissional há que ser aferida sob o critério da intangibilidade dos direitos daquele que se expõe ao profissional, nele vislumbrando verdadeiro depositário de sua confiança, revelando-lhe fatos e circunstâncias que, provavelmente, jamais seriam externados, não fosse a certeza da preservação daqueles informes (RT 567/305). É dizer, o segredo profissional não pertence ao médico. Visa precipuamente proteger o paciente, cuja tutela, sob esse particular enfoque, assume tamanha dimensão a ponto de não se restringir à esfera cível e administrativa, invadindo mesmo o campo da intervenção mínima do Estado, no âmbito penal (CP, art. 154)6. Ao mesmo tempo, nada obstante, configura um direito do profissional médico, porquanto no dizer de Hermes Rodrigues de Alcântara7, “é um daqueles imperativos hipotéticos da teoria de Kant, porque dele depende a confiança que a medicina precisa do paciente, para que seu fim seja alcançado”. Realmente, já se disse, acertadamente: Há uma necessidade social de se tutelar a confiança depositada em determinadas profissões, sem a qual seria inviável o desempenho de suas funções, pois, na sociedade moderna, em que se impõe a divisão de trabalho, uns sendo dependentes dos outros, seria impossível a vida social se não fosse protegida a intimidade das pessoas e das empresas 5
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Registre-se estender-se o dever de sigilo, em se tratando de equipes multidisciplinares, a todos os profissionais envolvidos no atendimento. Não por outra razão, reza o art. 78 do Código de Ética Médica ser vedado ao médico “Deixar de orientar seus auxiliares e alunos a respeitar o sigilo profissional e zelar para que ele seja mantido”. “Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa”. Conforme assentado no julgamento do mandado de segurança nº 405.245.4/5-5, TJSP, rel. Des. Beretta da Silveira, j. 13.05.2008, “o segredo profissional poderá ser violado, por determinação legal, se existir uma ‘justa causa’ respaldando tal atitude, pois a lei dispõe que configura crime revelar segredo profissional ‘sem justa causa’. Assim, a ‘justa causa’ é elemento normativo do tipo e exclui a tipicidade, ou seja, o crime”. Registre-se, no entanto, não se limitar à esfera criminal a consequência jurídica da constatação da “justa causa” como móvel da conduta do facultativo, porquanto também nas esferas cível e administrativa, em tal circunstância, resta autorizada e, portanto, plenamente legitimada, a quebra do dever de confidencialidade (CC, art. 188, inciso I – exercício regular de direito). ALCÂNTARA, Hermes Rodrigues de. Deontologia e diceologia. São Paulo: Andrei Editora,1979, p. 31.
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mediante o dever de sigilo profissional”(RMS 9.612-SP, rel. Min. Cesar Asfor Rocha – RSTJ 114/253-257). Reconhece-se, pois, para além de qualquer dúvida, o interesse público do sigilo profissional, decorrência do fato de se constituir em elemento essencial à existência e à dignidade de algumas categorias profissionais8, bem como por revelar-se em uma exigência da vida e da paz social, conforme assentado no precedente jurisprudencial supramencionado. Sem embargo da acentuada relevância do dever de confidencialidade, não se há lhe atribuir caráter absoluto, comportando, bem por isso, relativo elastério. Com efeito, “seria absurdo que uma lei protegesse o interesse particular, embora de valor social, com prejuízo e dano para a coletividade. A vida em comum nas sociedades deve restringir direitos para evitar inconvenientes para outros direitos, mormente gerais” (RT 562/409)9. Bem por isso, “o que a lei proíbe é a revelação ilegal, a que tenha por móvel a simples leviandade, a jactância e a maldade”(RT 515/317). Daí poder o profissional, depositário do sigilo, dele se liberar, sem o risco de sua violação, quando a tanto autorizado por lei. É o que se dá, por imperativo normativo, exemplificativamente, em relação (i) às moléstias de comunicação compulsória ou infectocontagiosas, como cólera, coqueluche, dengue, difteria, meningite, febre amarela, etc... (Código Penal, art. 269)10; (ii) aos crimes de ação penal pública dos quais se tenha tido conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária - desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal (Lei das Contravenções Penais, art. 66, inciso II); (iii) às doenças profissionais e produzidas em virtude de condições especiais de 8
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Segundo autorizado magistério de Maria Helena Diniz, “o segredo médico não é um privilégio do profissional da saúde, mas uma conquista social e constitucional de proteção ao direito à privacidade e à confidencialidade, imprescindível na relação médico-paciente” (O estado atual do biodireito, 6.ed. cidade: Editora Saraiva, 2009, p. 656). “A obrigatoriedade do sigilo profissional do médico não tem caráter absoluto. A matéria, pela sua delicadeza, reclama diversidade de tratamento diante das particularidades de cada caso” (STF, RE nº 91.218, rel. Min. Djaci Falcão, j. 10.11.1981). Conforme magistério de Ênio Santarelli Zuliani, “controle de doenças contagiosas efetiva-se por razões de segurança sanitária e é estruturado para serviço da saúde pública, de modo que, quando há propósito de ‘debelação de doenças infecciosas’, como anota o jurista Capelo de Souza, as pessoas são obrigadas a se submeterem à disciplina regulamentar, até porque, segundo o doutrinador, quando aquele que pode transmitir a doença pratica conscientemente o ato sexual perigoso (é citada a SIDA e o sífilis), há abuso no exercício do direito da personalidade (autodeterminação), notadamente quando ‘o trasmissório ignore tal circunstancialismo’” (Omissão de socorro médico e sigilo médico. In: TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz (coord). Responsabilidade civil na área da saúde. São Paulo: Saraiva, p.188.
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trabalho (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 169)11; (iv) à esterilização cirúrgica (Lei nº 9.263/96, art. 16); (v) à ocorrência de sevícias e maus-tratos em crianças e adolescentes (Lei nº 8.069/90, arts. 2º e 13). Nessas situações, repita-se, referidas apenas em caráter exemplificativo, age o médico sob o império do dever legal, por isso expressamente exonerado do dever de confidencialidade, à vista da opção do legislador por prestigiar o interesse público em detrimento do segredo profissional, malgrado igualmente digno de reconhecimento de qualificação deste jaez. Em contrapartida, em não havendo dever legal, ou qualquer outra causa legal de exclusão do dever de confidencialidade, como se verá a seguir, em ordem a desvincular o profissional do sigilo profissional, sua resistência às pressões tendentes à violação ética encontra amplo amparo normativo12. Não se olvide, no entanto, somente ao Poder Judiciário caber, em ultima ratio, valorar a adequação da conduta do profissional aos comandos legais pertinentes, conforme bem fazem ver Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart13. E não seria demasiado ponderar, cumprir ao magistrado, no exercício de tal mister, ter sempre presente o norte exegético fixado pelo art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, mercê do qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. O Capítulo IX do novo Código de Ética Médica, em sete artigos, cuida detidamente da vedação à violação do dever de confidencialidade, salvo as hipóteses nele expressamente contempladas. Precedido pelo enunciado “é vedado ao médico”, reza o art. 73: “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”. Acrescenta o parágrafo único do preceito legal: Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento 11
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Nesse sentido, preceitua o art. 76 do Código de Ética Médica ser vedado ao médico “revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade” (grifei). Segundo o art. 229, inciso I do Código Civil, “ninguém será obrigado a depor sobre fato: I – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo”. Do mesmo teor os art. 347, inciso I (depoimento da parte) e 406, inciso II (depoimento testemunhal) do Código de Processo Civil, tanto quanto o art. 207 do Código de Processo Penal: “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; Prova. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 419 e 742.
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público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Pois bem. Sendo o paciente o destinatário da proteção do sigilo, conforme alhures ponderado, em caso algum é o médico obrigado a revelar segredo que o comprometa ou o incrimine14. A expressa autorização do paciente, por outro lado, consubstancia causa legal de exclusão do dever de confidencialidade. E em sendo necessária a revelação do sigilo em benefício do próprio paciente, evidentemente, não se há cogitar da ilegalidade da conduta do profissional15 ao qual, em contrapartida, não se admite recusar a revelação. Admite-se a violação do dever de confidencialidade, outrossim, nos estritos limites do necessário ao exercício do direito de defesa do próprio profissional, eventualmente demandado nas esferas penal16, civil e administrativa, por prevalecer, em tal circunstância, o direito à ampla defesa tutelado constitucionalmente. Assim como já o havia feito anteriormente, o novo Código de Ética Médica valeu-se de conceito jurídico indeterminado (antes “justa causa”, 14
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Neste sentido o seguinte aresto da Suprema Corte: “O sigilo médico, embora não tenha caráter absoluto, deve ser tratado com a maior delicadeza, só podendo ser quebrado em hipóteses muito especiais; tratando-se de investigação de crime, sua revelação deve ser feita em termos, ressalvando-se os interesses do cliente, pois o médico não pode se transformar em delator de seu paciente” (RTJ 101/676). É o caso, por exemplo, da hipótese de requisição judicial de informações detidas por médico ou nosocômio visando apurar eventual crime doloso contra a vida do paciente (RT 773/587 – este julgado foi prestigiado pelo RMS 11.453-SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 17.06.2003). A exibição de documentos postulada em juízo pelo próprio paciente, sob outro vértice, não pode ser refutada (cf. a propósito, RMS nº 5.821-2, rel. Min. Adhemar Maciel, j. 15.08.1995). Já se decidiu, outrossim, não se poder negar ao advogado constituído pelo paciente em representação administrativa contra o médico perante o CRM, o direito à vista dos autos para apresentação de alegações finais (STJ – REsp. 1.112.443-SP, rel. Min. Luiz Fux, j. 20.10.2009). A teor do art. 86 do atual Código de Ética Médica, é vedado ao médico “deixar de fornecer laudo médico ao paciente ou a seu representante legal quando aquele for encaminhado ou transferido para continuação do tratamento ou em caso de solicitação de alta”. A propósito, registre-se a apelação cível nº 300.579.4/3-00, TJSP, rel. Des. Salles Rossi, j. 29.06.2006, na qual se entendeu por não caracterizada a quebra de confidencialidade em ordem a configurar infração ética, pelo encaminhamento de prontuário de um médico para outro, o primeiro sucedido pelo segundo no tratamento do paciente, ambos obrigados a guardar sigilo sobre o caso. De se registrar, no âmbito do processo penal, o direito ao silêncio do acusado (CF, art. 5º, inciso LXIII), cuja exata extensão abrange, conforme magistério de Antônio Carlos Mathias Coltro, o princípio de não obrigatoriedade à autoincriminação, mercê do qual não se vê o acusado obrigado a fornecer provas a ele contrárias, seja qual for a natureza delas, tratando-se mesmo de barreira instransponível ao direito à prova da acusação (O sigilo profissional e a requisição judicial do prontuário médico. In: Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica, 2.ed.Campinas-SP: Millennium Editora, 2008. p.385/391).
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agora “motivo justo”), ao prever abstratamente senão o mais relevante, por certo o mais complexo e polêmico dos fatos incidentais liberatórios do dever de confidencialidade. A opção normativa, ao se valer de conceito jurídico indeterminado na definição de uma das causas excludentes do dever de confidencialidade – “motivo justo” –, tem por consequência aumentar a responsabilidade do intérprete, do juiz, haja vista a ampla abstração e generalidade que encerra, a conferir-lhe maior autonomia em sua função criadora, no equacionamento dos conflitos práticos decorrentes da tensão entre os valores jurídicos relevantes a gravitar em torno do tema em debate. Vem bem a calhar, no particular, o magistério de Teori Albino Zavascki17: Os direitos fundamentais não são absolutos, dado que sofrem, além de restrições escritas na própria Constituição, também restrições não escritas, mas imanentes ao sistema, já que inevitavelmente impostas pela necessidade prática de harmonizar a convivência entre direitos fundamentais eventualmente em conflito. A chamada concordância prática entre os direitos fundamentais eventualmente tencionados entre si é obtida mediante regras de solução estabelecidas ou por via da legislação ordinária (solução legislativa de conflitos) ou pela via judicial direta. A primeira (solução pela via legislativa) é possível se dar sempre que forem previsíveis os fenômenos de tensão e de conflito, sempre que for possível intuí-los, à vista do que comumente ocorre no mundo dos fatos. Já a construção de regra pela via judicial direta se tornará necessária ou quando inexistir regra legislada de solução, ou quando essa (construída que foi à base de mera intuição de possíveis conflitos) se mostrar insuficiente ou inadequada à solução do conflito concretizado, que não raro se apresenta com características diferentes das que foram imaginadas pelo legislador. Em qualquer caso considerada a inexistência de hierarquia, no plano normativo, entre os direitos fundamentais previstos na Constituição, a solução do conflito há de ser estabelecida mediante a devida ponderação dos bens e valores concretamente colidentes, de modo a que se identifique uma relação específica de prevalência de um deles. Ora, a interpretação sistemática a partir da consideração das situações em 17
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela e colisão de direitos fundamentais, In: FIGUEIREDO TEIXEIRA, Min. Sálvio de. (coord). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996, p. 144/145.
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que, por dever legal, se vê o médico exonerado do dever de confidencialidade, à vista da opção do legislador por prestigiar o interesse público em detrimento do sigilo profissional, como se dá, por exemplo, em relação à saúde pública e à tutela de valores jurídicos passíveis de persecução penal em ação pública incondicionada, aponta norte seguro para o exato sentido do “justo motivo” ou “justa causa”, na missão do intérprete, ao definir o alcance do conceito jurídico indeterminado, malgrado o casuísmo a lhe encerrar a atuação. Segundo magistério de Edgard Magalhães Noronha18, a justa causa funda-se, em última análise na existência de estado de necessidade. Expressa a colisão de dois interesses relevantes, um dos quais a ser sacrificado em benefício do outro: “no caso, a inviolabilidade dos segredos deve ceder a outro bem-interesse. Há, pois, objetividades jurídicas que a ela preferem, donde não ser absoluto o dever do silêncio ou sigilo profissional”. Considerada a indeterminação inerente ao conceito de justa causa, assume particular relevo na aplicação da norma, com vistas à ponderação dos valores em conflito, o princípio da proporcionalidade19. Segundo profícuo magistério de Paulo Bonavides20, o princípio da proporcionalidade pretende “instituir a relação entre fim e meio, confrontando o fim e o fundamento de uma intervenção com os efeitos desta para que se torne possível o controle do excesso”. Trata-se, ainda segundo o renomado constitucionalista, de: Princípio cuja vocação se move sobretudo no sentido de compatibilizar a consideração das realidades não captadas pelo formalismo jurídico, ou por este marginalizadas, com as necessidades atualizadoras de um direito constitucional projetado sobre a vida concreta e dotado da mais larga esfera possível de incidência – fora, portanto, das regiões teóricas, puramente formais e abstratas. Busca-se, mediante a sua aplicação, no dizer de Helenilson Cunha Pontes21, não só que a atuação estatal e a decisão jurídica sejam razoáveis, mas NORONHA, Edgard Magalhães.Direito Penal, v.II. 17.ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1980. p. 209. Transcrevo, a seguir, a propósito do princípio da proporcionalidade, ponderações lançadas em minha dissertação de mestrado, “Tutelas de urgência nas ações coletivas”, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 30.09.2003, sob orientação do insigne mestre Arruda Alvim. 20 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 4.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 315. 21 PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 190-191. 18 19
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que sejam os melhores meios de maximização das aspirações constitucionais. Karl Larenz22 obtempera que “o princípio da proporcionalidade exige uma ‘ponderação’ dos direitos ou bens jurídicos que estão em jogo conforme o ‘peso’ que é conferido ao bem respectivo na respectiva situação”. E, como anota o renomado jurista alemão: “Ponderar” e “sopesar” são apenas imagens; não se trata de grandezas quantitativamente mensuráveis, mas do resultado de valorações que – nisso reside a maior dificuldade – não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mas também à situação concreta em cada caso. Vale dizer, a ponderação deve ser feita no caso concreto, uma vez que não existe uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos em que possa ler-se o resultado como numa tabela. De se destacar o acerto do magistério de Gilmar Ferreira Mendes23, que vê como consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal “o desenvolvimento do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade como postulado constitucional autônomo que tem sua sedes materiae na disposição constitucional de disciplina do devido processo legal (art. 5°, LIV)”.24 Sinteticamente considerado com singular maestria por Arruda Alvim25, o princípio da proporcionalidade, como se vê, reconhecidamente ínsito ao sistema jurídico pátrio, revela-se para o julgador, na avaliação da lei, relevante instrumento de sintonia fina com os mandamentos do direito constitucional, permitindo ao julgador ingressar na intimidade da lei para verificar se o legislador ordinário realizou, no plano do direito infraconstitucional, os valores da Constituição que, portanto, impõem-se soberanamente, inclusive, senão acentuadamente para o legislador ordinário – o Judiciário passa a ser a longa manus do legislador constitucional. Na efetivação do princípio da proporcionalidade devem ser observados, Metodologia da ciência do direito, 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 491, apud MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. São Paulo: RT, ano, p. 180. MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Repertório de Jurisprudência IOB, n.23/94, p. 469-475, 1ª quinzena dez. 1994. 24 Cai a talhe recordar, no particular, consagrado magistério de José Joaquim Gomes Canotilho, segundo o qual os princípios beneficiam-se de uma objetividade e presencialidade normativa que os dispensam de estarem consagrados expressamente em qualquer preceito. (Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1989, p. 119). 25 ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Palestra proferida sobre o tema em 11.10.2001, no Hotel Crown Plaza, São Paulo/SP. 22
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basicamente, três vetores, a saber: (i) adequação (o meio é adequado quando com o seu auxílio se pode alcançar o resultado almejado); (ii) exigibilidade (expressão da necessidade, revela-se quando outro meio não poderia ter sido escolhido, igualmente eficaz, mas que não limitasse ou limitasse de maneira menos sensível o direito fundamental, na consecução do objetivo perseguido); (iii) proporcionalidade em sentido estrito (consistente no postulado da ponderação propriamente dito, cuja fórmula mais simples se relaciona aos direitos fundamentais, de forma que “quanto mais intensiva é uma intervenção em um direito fundamental, tanto mais graves devem ser as razões que a justificam”26). Esses os elementos a serem sopesados pelo profissional médico, destinatário primário da norma e, em ultima ratio, pelo juiz, na aferição da subsunção fática do caso concreto, com suas peculiaridades, à hipótese abstratamente prevista como liberatória do dever de confidencialidade ante à indeterminação do conceito “justa causa”27. Relevante destacar, neste momento, ser vedado ao médico – vedação extensível aos diretores clínicos, por corolário lógico – a teor do art. 89 do Código de Ética Médica, “Liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a sua própria defesa”. O § 1º do dispositivo expressa: “Quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz”. E o § 2º finaliza: “Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional”. A este propósito impõe-se registrar, por força de interpretação lógica e sistemática, não se justificar leitura do dispositivo desconectada das hipóteses legais liberatórias do dever de confidencialidade já alhures analisadas. Daí não se conceber, por exemplo, a recusa de exibição judicial do prontuário médico, em ação cautelar preparatória promovida pelo próprio paciente, hipótese na qual sequer comporta cabida a incidência do § 1º do art. 89 do Código de Ética Médica. 26
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ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo, v.61, n.217, p. 78, jul./set. 1999. Conforme preciso magistério de Gilberto Haddad Jabur, “o interesse público, expressão vaga e imprecisa, deve ter sua mensuração auxiliada pela proporcionalidade entre o que se quer conhecer e a legítima e indispensável necessidade de dar a conhecer” (O segredo médico em face das determinações da saúde pública. In: Bioética e Direito, 2.Ed. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2003, p. 143).
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Basta considerar-se, para tanto, ser o paciente o destinatário do sigilo, sendo plenamente factível a necessidade de acesso aos documentos de seu prontuário para preparar eventual propositura de ação de responsabilidade civil por erro médico. Sobretudo, haverá de se conduzir com bom senso, o depositário dos prontuários médicos, diante de requisições judiciais28 determinadas em sede de persecução penal, considerando o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, cujo valor subjacente haverá de ser sopesado, não sem se perder de vista integrar, o direito à prova, a garantia constitucional do direito de ação29, cuja tutela constitucional expressa tensão entre direitos fundamentais. Percuciente a advertência de Décio Policastro30: Os médicos, os profissionais de saúde em geral e as entidades hospitalares, públicas ou privadas, precisam estar atentos quando forem solicitados a fornecer cópia do prontuário a terceiros. Ainda que parta de convênio ou seguradora e conste de cláusula contratual, o pedido somente pode ser atendido com a autorização do paciente. Neste sentido o art. 77 do Código de Ética Médica, ao expressar ser vedado ao médico: Prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias da morte do paciente sob seus cuidados, além das contidas na declaração de óbito, salvo por expresso consentimento do seu representante legal. Conforme aresto do Superior Tribunal de Justiça, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar31, “Viola a ética médica a entrega de prontuário de paciente internado à companhia seguradora responsável pelo reembolso das despesas”. A questão, contudo, deve ser apreciada com reservas, conforme obtemperou o Des. Luiz Ambra, no julgamento do AI nº 646.744-4/0-00, TJSP, j. 30.09.2009, porquanto quem paga as despesas, ao menos em princípio, teria direito ao 28
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Recorde-se que, em tese, todo ato judicial se presume legal (cf. nesse sentido, mandado de segurança nº 405.245.4/5-5, TJSP, rel. Des. Beretta da Silveira, j. 13.05.2008). Cf. a propósito, José Roberto dos Santos Bedaque, Garantia da amplitude de produção probatória, In: TUCCI, José Rogério Cruz e.(cood). Garantias Constitucionais do Processo Civil. São Paulo: RT, 1999, p. 151-189. POLICASTRO, Décio.Erro médico e suas consequências jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2010, p. 84. REsp. nº 159.527-RJ, j. 14.04.1998, v.u.
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exame dos gastos respectivos, em cotejo com os serviços prestados, fazendo-se imprescindível para tanto, nada obstante, expressa autorização do segurado. E não têm necessariamente o condão de suprimir autorização deste jaez, cláusulas inseridas em contratos de adesão, não raro sem o necessário destaque e clareza, em afronta, bem por isso, ao disposto nos arts. 46 e 51 do Código de Defesa do Consumidor, aplicáveis, conforme o caso, isolada ou conjuntamente. Outra hipótese sugestiva de potencial conflito é aquela tratada pelo art. 74 do Código de Ética Médica, ao vedar ao médico “Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente”. O dispositivo exige interpretação conforme à Constituição Federal, mercê da qual atribuído ao pais, no exercício do poder parental, o dever fundamental de preservar a família. Preciso, a propósito, o magistério de Ênio Santarelli Zuliani32: Essa ressalva aplica-se, na forma dos arts. 4º, I e 5º do Código Civil, ou seja, para aqueles com idade superior a 16 anos, pois, para os demais, não há proibição: a comunicação deverá ser realizada para que os interesses do menor sejam corretamente tutelados pelos seus responsáveis. Convém sublinhar que o médico deve agir com prudência nesse caso, evitando revelar aos pais coisas que são naturais da vida, apesar de precoces (como a questão da perda da virgindade da moça, excetuando, é claro, em que isso se deu em virtude de crimes sexuais) e, ao mesmo tempo, agir com rigor diante da iniciação de jovens no consumo de drogas e vícios de alcoolismo, em razão de ser necessário atuar rápido contra essas mazelas da vida contemporânea, o que aumenta a chance de recuperação. Fácil entrever, à vista de tudo o quanto exposto, o quanto se revela complexo, tanto quanto pulsante o tema, sobretudo em momento no qual crescem vertiginosamente as demandas envolvendo erro médico, a ponto de registrar, entre 2002 e 2008, só no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o 32
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expressivo aumento de 200%33. Daí não se pretender, nem de longe, o esgotamento do tema, mas sim e tão somente deixar singela contribuição ao fomento do debate interdisciplinar, tão relevante à compreensão sistemática da questão.
Referências bibliográficas ALCÂNTARA, Hermes Rodrigues de. Deontologia e diceologia. São Paulo: Andrei Editora, 1979, p. 31. ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático. Revista de Direito Administrativo, v.61, n.217, p. 78, jul./set. 1999. ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Palestra proferida em 11.10.2001, no Hotel Crown Plaza, São Paulo/SP. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Garantia da amplitude de produção probatória, In: TUCCI, José Rogério Cruz e (cood).Garantias Constitucionais do Processo Civil. São Paulo: RT, 1999, p. 151-189. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4.ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 315. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1989, p. 119. COLTRO, Antonio Carlos Mathias. O sigilo profissional e a requisição judicial do prontuário médico. In: Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. 2.ed. Campinas: Millennium Editora, 2008, p.385/391. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, 6.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 656. JABUR, Gilberto Haddad. O segredo médico em face das determinações da saúde pública. In: Bioética e Direito. p. 143. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 2.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 491, apud MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. São Paulo: Ed. RT, p. 180.
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Cf. notícia lançada no portal do Superior Tribunal de Justiça, em 15.08.2010, sob o título “O novo Código de Ética Médica e os limites impostos pelo Judiciário”.
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MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: Ed. RT, 2009, p. 419 e 742. MENDES, Gilmar Ferreira. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Repertório de Jurisprudência IOB, n.23/94, p. 469-475, 1ª quinzena dez. 1994. NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. 17.ed. v.II. São Paulo: Ed. Saraiva, 1980, vol. II, p. 209. PANASCO, Wanderby Lacerda. A Responsabilidade Civil, Penal e Ética dos Médicos. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1979, p. 180. POLICASTRO, Décio. Erro médico e suas consequências jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey Editora. 2010, p. 84. PONTES, Helenilson Cunha. O princípio da proporcionalidade e o direito tributário. São Paulo: Dialética, 2000, p. 190-191. RODRIGUES, Victor Gabriel de Oliveira. Sigilo médico e direito à privacidade: do delito de desobediência face ao desatendimento de ordem judicial de revelação de dados de pacientes. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEREIRA JÚNIOR, Antonio Jorge (coord). Direito à Privacidade. Idéias e Letras Editora, p. 391-413. ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de tutela e colisão de direitos fundamentais. In: FIGUEIREDO TEIXEIRA, Min. Sálvio de. (coord). Reforma do Código de Processo Civil, São Paulo: Ed. Saraiva, São Paulo, 1996, p. 144-145. ZULIANI, Ênio Santarelli. Omissão de socorro médico e sigilo médico. In: TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Responsabilidade Civil na Área da Saúde. Série GV Law. São Paulo: Ed. Saraiva, p. 188.
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O direito da tecnologia de informação e o combate ao abuso contra crianças na internet
Paulo Ernani Bergamo dos Santos 1 2 Auditor Fiscal de Tributos
SUMÁRIO: Introdução. 1. O abuso contra a criança. 1.1. Abuso contra a criança: tipologia. 1.2. Abuso contra a criança via internet. 2. Direitos humanos e direitos da criança. 2.1. Os direitos da criança e a ordem jurídica internacional. 2.1.1 Ordem jurídica internacional e a Tecnologia de Informação. 2.2. Os direitos da criança e a ordem jurídica nacional. 3. Direito e Tecnologia de Informação. 3.1. Tecnologia de Informação: conceituação. 3.2. O Direito da Tecnologia de Informação. 3.3. Infração e sanção por abuso contra crianças – internet. 3.3.1 Infrações. 4. Sistema de proteção contra o abuso às crianças via internet. 4.1. O controle pela família. 4.2. O controle pela sociedade. 4.3. O controle pelo Estado. Considerações finais. Referências bibliográficas.
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Bacharel em Direito e Engenharia (Poli-USP), especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistra¬tura e especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FGV-SP. Mestrando em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (IAEU) - Espanha. Agradecimentos ao profesor Anderson Soares Furtado Oliveira pelas orientações na parte relativa ao Direito de Tecnologia de Informação.
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Introdução
C
om a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” (1948), uma nova fase se instaurou na proteção aos direitos humanos. Os horrores da 2ª Guerra Mundial deixaram patente a fragilidade do positivismo jurídico e sua ética “formal”, considerando que o Estado nazista perpetuou um dos maiores massacres da história da humanidade sem que, contudo, tivesse agido em desconformidade com as normas jurídicas válidas do ordenamento jurídico alemão à época. O tratamento desumano e degradante dado pela Alemanha nazista a aproximadamente onze milhões de pessoas resultou numa reação internacional pós-guerra que colocou o fortalecimento dos direitos humanos como foco principal de diversos instrumentos jurídicos internacionais, com a intenção de resgatar o respeito ao valor absoluto intrínseco da pessoa humana e a sua posição como “sujeito de direitos”3. Nesse contexto, despontam o “Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos” (1966), o “Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (1966), e a “Convenção sobre os Direitos das Crianças” (1989). Paralelamente, o mundo vem conhecendo nas últimas décadas uma verdadeira revolução tecnológica – capitaneada pela informática –, que interconectou, via web, a população do globo, a qual passou a ter acesso, em “tempo real”, a uma gama astronômica de informações, para o bem ou para o mal. Assim, a rede mundial de computadores, os celulares e smartphones, a internet e a internet móvel se transformaram no ambiente propício para a veiculação de material publicitário, mensagens de correio eletrônico, sms, jogos e leilões on-line, transações comerciais, contratação “virtual”, a exigirem a aplicação do direito nesse novo cenário. “Ao Direito cabe o desafio de manter-se atualizado quanto às inovações tecnológicas, buscando compreendê-las, bem como aos seus efeitos no seio social, garantindo a paz social e a manutenção do Estado de Direito democrático” 4. Pesquisas sobre a faixa etária dos usuários das tecnologias de informação e comunicação no Brasil apontam as crianças como parte significativa do 3 4
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11.ed. São Paulo: Saraiva, p. 122. SILVA, Rita de Cássia Lopes da. Direito Penal e Sistema Informático. São Paulo: RT, 2003, p. 42.
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total. Com base nas informações do Censo Demográfico Brasileiro (Censo, 2000) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2008), ambas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o “TIC Crianças 2009” levantou que 57% das crianças brasileiras entre cinco e nove anos já utilizaram um computador, 29% já se conectou a internet – 97% destas, para jogar, além de outras atividades (56% brinacaram em sites que têm desenhos animados, 19% enviaram e-mails, 5% conversaram com amigos por microfone). Ou seja, a circulação de conteúdo impróprio para crianças na internet é uma realidade, quadro que se reflete na pesquisa da Symantec 5: 80% das crianças brasileiras que acessaram a internet sofreram experiências negativas no decorrer da conexão. Num outro giro, a afirmação dos direitos da criança em âmbito internacional e nacional, e o princípio da “prioridade absoluta” na proteção as crianças (art. 227 da Constituição Federal), levam ao escopo principal deste trabalho, qual seja, a forma como o direito da tecnologia da informação se insere em face da concepção de que a criança também é “sujeito de direitos”, dentre estes, o de estar protegida contra abusos (físicos, psicológicos, sexuais) – em específico, que ocorrem pela web – e de crescer em um ambiente saudável. Far-se-á, portanto, abordagem ao direito internacional e nacional no que tange aos direitos das crianças, ao direito da tecnologia da informação e à forma como este pode contribuir para o combate ao abuso à criança perpetrado na internet.
1. O abuso contra a criança A Organização Mundial de Saúde (OMS), em seu estudo sobre prevenção de child maltreatment, considera as crianças de 0 a 14 anos como seu objeto de atenção, tendo em vista que é nessa faixa etária que os riscos de vitimização por violência praticada por membros da própria família ultrapassam, em muito, os de abuso cometidos por terceiros que não fazem parte do círculo familiar; e a violência direcionada contra a criança dentro da privacidade da vida doméstica é a que prevalece, dada 5
JORNAL DO BRASIL Online. Disponível em: <http://www.jornalbrasil.com.br/interna.php?autonum=13045>. Acesso em: 04/10/ 2010.
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a dificuldade de sua monitoração (nos Estados Unidos, segundo dados do National Child Abuse and Neglet Data System, de 2008, 80,1% dos abusadores são os próprios pais das crianças, agredindo-as separada ou conjuntamente, e 6,5% são parentes). As estimativas globais de homicídios contra crianças sugerem que é na faixa de 0–4 anos que os riscos se elevam drasticamente, considerando a vulnerabilidade, a dependência e a “invisibilidade” social da criança nessa faixa de idade; ressalte-se que esses riscos aumentam de duas a três vezes em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2008, crianças na faixa etária 0-4 anos representaram quase 80% das 1.740 crianças mortas em razão de abuso; dados desse mesmo ano revelam um número de 772.000 crianças vítimas de pelo menos um dos tipos de abuso (vide subitem 1.1). As consequências dessa situação para a humanidade são extremamente danosas. O ciclo de violência é realimentado por aqueles adultos que, vítimas de abuso na infância, podem se tornar, eles mesmos, abusadores; ou ainda, carregando consigo os traumas do abuso de que foram vítimas, podem vir a apresentar quadro de depressão, de obesidade, além de comportamento sexual de risco, gravidez indesejada e abuso de álcool e drogas, o que pode levar a doenças do coração, câncer e suicídio. Com o uso de computadores e do acesso a internet pelas crianças, esses abusos encontram “eco” também nesse âmbito.
1.1. Abuso: tipologia Toda forma de abuso à criança é, na verdade, uma forma de violência a ela dirigida. Nesse contexto é que a Assembleia Mundial de Saúde, por meio de sua Resolução WHA 49.25, declarou ser a violência um problema prioritário de saúde pública, solicitando à Organização Mundial de Saúde o desenvolvimento de uma tipologia para esse problema. Daí se chegou ao modelo “ecológico” da violência - entendida como causa da interação de fatores individuais, fatores de relacionamento, fatores comunitários e fatores sociais -, classificando-a em três categorias, segundo o parâmetro de quem comete o ato violento: (i) violência contra si mesmo; (ii) violência coletiva (violência infligida pelo Estado, por grupos políticos ou por terroristas); ou Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 91-124, julho/dezembro - 2011
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(iii) violência interpessoal (violência infligida por outro indivíduo ou por pequeno grupo de indivíduos), que se subdivide em “violência doméstica ou entre os parceiros” – que ocorre usualmente dentro de casa – e em “violência comunitária” – que ocorre entre indivíduos sem qualquer vínculo entre si, usualmente, fora de casa. O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (World Report on Violence and Health) define “violência” como sendo a ameaça de uso – ou o efetivo uso – intencional de força física ou de poder, contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra grupo ou comunidade, que resulte, ou possa vir a resultar, em lesão, morte, dano psicológico, desenvolvimento deficiente ou privação. Esclarece-se que os tipos de abuso mais comuns direcionados contra as crianças são: a) abuso físico – é o uso intencional da força física contra uma criança que resulte em – ou que pode vir a resultar em – dano à sua saúde, à sua sobrevivência, ao seu desenvolvimento ou à sua dignidade. Bater, chutar, morder, chacoalhar, estrangular, escaldar, queimar, envenenar e sufocar são as formas usuais de abuso físico, muitas vezes infligido em casa, como meio de punição; b) abuso sexual – é o envolvimento de uma criança em atividade sexual que ela não compreende totalmente, para a qual é incapaz de consentir, para a qual não está suficiente desenvolvida, ou ainda, que viole as leis ou os padrões morais da sociedade. As crianças podem ser sexualmente abusadas por adultos ou por outras crianças que – em função da idade ou de seu estágio de desenvolvimento – estão em posição de responsabilidade, confiança ou poder sobre a criança abusada. c) abuso emocional e psicológico – envolvem incidentes isolados ou um padrão de conduta por parte dos pais ou responsáveis insuficientes para oferecer à criança um ambiente emocionalmente desenvolvido e seguro. São atos que carregam elevada probabilidade de danificar a saúde mental ou física da criança ou seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social. Abusos deste tipo incluem restrição de movimento, agressividade, ameaças, medo, discriminação ou ridicularização, e outras formas de rejeição ou de tratamento hostil (não acompanhados de abuso físico). Na atualidade, o bullying – atos agressivos verbais ou físicos de maneira repetitiva por parte de um ou mais alunos contra um ou mais colegas – tem tido um crescimento considerável; quando essas ameaças são propagadas por meio da internet, dáse a denominação de cyberbullying. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 91-124, julho/dezembro - 2011
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d) negligência – inclui incidente isolado ou padrão insuficiente de conduta dos pais ou responsáveis em prover o desenvolvimento e bemestar de uma criança, em uma ou mais das seguintes áreas: saúde, educação, desenvolvimento emocional, alimentação e condições seguras de vida. No que concerne à identificação e quantificação da mortalidade decorrente de abuso sofrido pela criança, a Classificação Internacional de Doenças (CID) não têm um item próprio específico para os variados tipos de abuso contra crianças, sendo efetuado o registro de mortalidade no item: “causas externas”.
1.2. Abuso contra a criança via internet O gráfico abaixo mostra o tempo que determinada mídia necessitou para alcançar 50 milhões de pessoas. A internet foi a mídia que mais rápido atingiu esse público, deixando margem a que se conclua ser ela o mais eficiente meio de comunicação e distribuição de informações da História.
Com o aumento de usuários da internet (segundo a Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de usuários da internet no Brasil em 2009 foi Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 91-124, julho/dezembro - 2011
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de aproximadamente 67,9 milhões de pessoas, alcançando, segundo a NASDAQ: SCOR, 73 milhões – se forem considerados os computadores públicos em cibercafés e escolas), e o rápido interesse por essa mídia também pelas crianças e adolescentes (a faixa etária entre 6 – 14 anos representa 12% desse total), torna-se relevante a verificação de possíveis abusos cometidos no mundo “virtual” contra as crianças. A internet proporciona a interação com uma série de ambientes “virtuais”, tais como: salas de bate-papo, sites de relacionamento, redes para compartilhamento de arquivos (P2P: peer-to-peer), ambientes que permitem a publicação de conteúdo pessoal diário (blog; twitter), sites de busca e muitas outras formas de intercomunicação. Esses ambientes são propícios, porém, para condutas perniciosas, podendo desembocar em crimes como calúnia, difamação, injúria, ameaça, pedofilia, induzimento ao suicídio, falsa identidade, fraudes, etc 6. O jornal Folha de S. Paulo 7 noticia a disponibilização, em redes sociais, de “músicas alucinógenas”, que poderiam estimular o uso de drogas. Cabe, nesse ponto, registrar que a cibercriminalidade foi se incorporando no âmbito do processo de globalização, pois é nesse cenário “global” e “informacional” que as organizações criminosas têm encontrado um terreno fértil para a expansão de suas ações. Além de terem acesso fácil a mercados ilícitos extremamente lucrativos, inclusive por meio da web, não são reprimidas adequadamente pela comunidade internacional, à falta de instrumental jurídico e operacional para tal8. Outro fator que lhes facilita a ação é a falta de controle dos fluxos financeiros internacionais, o que lhes permite movimentar sem maiores dificuldades elevadas somas advindas de suas ações criminosas. Todo um contexto que pode impactar negativamente também em crianças e adolescentes usuários da internet. No campo da tecnologia de informação, tornaram-se, de certa forma, comuns as lesões por esforços repetitivos (LER) e as lesões por 6
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LIMA, Gisele Truzzi de. Pais analógicos e filhos digitais. Disponível em: <http://www.truzzi.com.br/pdf/artigopais-analogicos-filhos-digitais-gisele-truzzi.pdf>. Acesso em: 04/10/10. Jovens procuram som alucinógeno em redes sociais. Edição de 26/09/2010. Cotidiano 2, p. 6. BLANCO CORDERO, I. Principales instrumentos internacionales (de Naciones Unidas y la Unión Europea) relativos al crimen organizado: la definición de la participación en una organización criminal y los problemas de aplicación de la Ley penal en el espacio. Criminalidad organizada. Espanha: Castilla-La Mancha, 1999, p. 22-23.
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traumas cumulativos (LTC), envolvendo o uso contínuo das articulações, principalmente das mãos, dos punhos, dos cotovelos e dos ombros, podendo levar ao envelhecimento precoce dos ossos e músculos. Outros problemas de saúde decorrentes da utilização de computadores podem ser citados, como: problemas na coluna por posicionamento incorreto, podendo vir a resultar em lombalgia (fortíssimas dores na coluna) e hérnias de disco; problemas oculares, provenientes do mau posicionamento do monitor e da duração elevada da atividade em frente a ele, causando dores de cabeça, ressecamento dos olhos, visão embaçada e desconforto. No aspecto psicológico, detectou-se a inclinação de muitas crianças e jovens para o uso compulsivo da internet, levando ao isolamento, à irritação, à ansiedade, à depressão e à dificuldade de aprendizagem. Num simples “click”, uma criança pode ser encaminhada a uma página pornográfica da internet, ou, ainda, ao acessar sites de relacionamento, liberar inadvertidamente informações pessoais a pedófilos ou criminosos; pode ainda ser alvo de agressões inesperadas de colegas via web, correndo riscos ao seu desenvolvimento saudável. A violação da intimidade, da honra e da vida privada pela internet é um fato incontestável. “A proteção da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem ganha contornos diferentes em virtude do desenvolvimento tecnológico, assim como a liberdade de imprensa” 9. Mesmo a privacidade dos e-mails pode ser quebrada, pois a mensagem enviada fica armazenada em um arquivo do servidor, podendo ser lida por outrem enquanto aí armazenada; mesmo em “trânsito”, a mensagem pode ser lida por terceiros. Segundo estudo feito pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats), a pedido da ONG Plan, 28% dos alunos de escolas (públicas e particulares) afirmam já ter sido alvo de bullying praticado por colegas na escola; cerca de 70% dos alunos do país já viram algum colega ter sido maltratado pelo menos uma vez na escola, principalmente na sala de aula ou no pátio de recreio10. Pesquisa realizada em 9
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RAHAL, Flávia; GARCIA, Roberto Soares. Vírus, direito à intimidade e a tutela penal da Internet. Revista do Advogado, ano XXIII, n.69, maio/2003, p. 25-36. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/empreendedorsocial/ult10130u779122.shtml>. Acesso em: 04/10/2010.
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fevereiro de 2010 pela Safernet11, envolvendo 2.160 internautas do Brasil, com idades entre 10 e 17 anos, indica que 38% dos jovens reconheceram ter um amigo que já tenha sido vítima de cyberbullying. Diversos relatos de estudos divulgados pela Academia Norte-Americana de Pediatria, pelos anuários editados pela International Clearing House on Children, Youth and Media ou pela publicação Children, Adolescents & Media, demonstram que a violência veiculada pelas mídias tem impacto sobre crianças e adolescentes, de maneira a torná-los mais agressivos; e ainda, que a exposição a conteúdos sexuais tem implicações na atividade sexual precoce e no desenvolvimento de comportamentos de risco. Os efeitos da propaganda na tomada de decisão pelos jovens, no desenvolvimento de hábitos alimentares não saudáveis, nos valores adotados pelas crianças em relação ao consumo, ao próprio corpo e até no conflito entre pais e filhos (77% dos pais que participaram de pesquisa realizada por Victor Strasburger e Barbara Wilson, responderam que os filhos, após assistirem a peça publicitária de um produto interessante, pediriam que comprassem esse produto12) são evidenciados por inúmeras pesquisas sérias. A Symantec13, especializada em segurança de internet, monitorando os sites mais acessados pelos filhos dos usuários de seu programa Onlinefamily. Norton, quando os pais não estão por perto (relacionados em ordem decrescente de números de acessos), numa base de dados de 3,5 milhões de buscas realizadas entre fevereiro e julho de 2009, apresentou os seguintes resultados: em primeiro, o YouTube, seguido, em ordem decrescente: Google (2º), Facebook (3º), sexo (4º), MySpace (5º), porn (6º), Yahoo (7º), Michael Jackson (8º), Fred (Fred Figglehorn, personagem fictício com canal no YouTube) e eBay (10º). Ou seja, sites procurados também por adultos, incluindo sites de sexo e de pornografia (4º e 6º lugares). De acordo com pesquisa realizada pela Safernet Brasil, 11% dos estudantes entre cinco e 18 anos já fez sexting – transmissão de fotos ou conteúdos sexuais na internet 14. Segundo artigo publicado no site da IDG Now, um estudo da empresa 11
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Disponível em: <http://tecnologia.uol.com.br/seguranca/ultimas-noticias/2010/02/10/cyberbullying-preocupa16-dos-jovens-brasileiros-diz-pesquisa.jhtm>. Acesso em: 04/10/2010. Ibidem. ABC News. Disponível em: <http://blogs.abcnews.com/scienceandsociety/2009/08/what-kids-search-forwhen-they-search-the-web.html>. Acesso em: 27/09/2010. Jornal da Tarde. “Alheios a riscos, jovens postam fotos sensuais”. 04/04/2010, JT Cidades, p. A-3.
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de segurança digital alemã G-Data registra que 99,4% dos 1.017.208 códigos maliciosos detectados no primeiro semestre de 2010 foram direcionados ao Windows. O restante (0,6%) foi criado para outros sistemas operacionais que usam Unix ou tecnologias Java. A análise indica também que houve um aumento de 50% na produção de malwares em relação ao mesmo período de 200915. Os alvos principais destes programas são as redes sociais, muito acessadas por crianças; e o tipo de ataque mais usado é o cavalo-de-troia (42,6%) que abre as portas para a entrada de outros vírus. A técnica que apresenta maior crescimento é o spyware16, que aparece principalmente em redes sociais, para o furto de dados.
2. Direitos humanos e direitos da criança Para Norberto Bobbio17, foi da filosofia jusnaturalista que nasceu a doutrina dos direitos do homem: o direito à vida, à sobrevivência, o direito à propriedade e o direito à liberdade – entendida como a independência em face de todo constrangimento imposto pela vontade de outro. A inclusão do direito de liberdade como um dos direitos “naturais” é expressão da exigência da liberdade de consciência, como resultado das guerras de religiões e da exigência das liberdades civis, como resultado da luta contra o despotismo; ou seja, exigências de liberdade em face das Igrejas e dos Estados, no sentido de reduzir o espaço destes poderes e ampliar o das liberdades dos indivíduos. Os direitos civis e políticos referem-se à primeira geração (ou dimensão) de diretos: o direito à liberdade e aos direitos políticos, direitos que estão vinculados a atuação “negativa” do Estado, isto é, a atuação do Estado no sentido de não impedir o indivíduo de adquiri-los, diferentemente dos direitos de segunda geração (sociais), que se vinculam a atuação “positiva” do Estado, i. é, direitos que necessitam da ação do 15
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MACIEL, Rui. Mais de 99% dos malwares são desenvolvidos para Windows. Publicado em 14/09/2010. Disponível em: <http://idgnow.uol.com.br/seguranca/2010/09/14/mais-de-99-dos-malwares-sao-desenvolvidospara-windows-diz-pesquisa/>. Acesso em: 30/09/2010. “Termo utilizado para se referir a uma grande categoria de software que tem o objetivo de monitorar atividades de um sistema e enviar as informações coletadas para terceiros”. Comitê Gestor da Internet no Brasil. Cartilha de Segurança para Internet. 2006. Disponível: <http://cartilha.cert.br/download/cartilha-segurancainternet.pdf>. Acesso em: 01/06/2011. In: A Era dos Direitos. 2ª reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
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Estado para serem afirmados. Foi com o deslocamento do eixo do entendimento que vigorava na Idade Média de que o poder do soberano provinha de Deus, para a concepção racionalista de Hobbes – para quem os homens, por um pacto de vontade (de “submissão”), fundado na expectativa de que a vida pudesse ser vivida em um “estado civil”, conferiram ao soberano o poder político –, e de John Locke, para quem a manutenção do direito à vida, à liberdade e à propriedade, existente no Estado de Natureza, dependia do “pacto de consentimento” da maioria na escolha de um soberano que tivesse seu poder partilhado com um poder legislativo (embrião da ideia de separação de poderes), que se deu a inversão do eixo de poder: antes, o Estado em posição superior aos indivíduos; depois, os indivíduos em posição superior ao Estado18. Na declaração de independência de 1776, as liberdades individuais são garantidas, numa concepção de sociedade formada de cidadãos livres e iguais perante a lei (igualdade jurídica). Na Declaração dos Direitos do Homem de 1791(EUA), consagra-se a proteção jurídica do due process of law. Com a revolução francesa e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, os ideais de liberdade e igualdade correram o mundo, consubstanciando uma revolução em sua acepção agora nova – no sentido de transformação de um estado de coisas à época e implantação de uma nova ordem, que se aplicasse não somente à França, mas a todos os povos da terra19, baseada na ideia de que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais, com direitos naturais e imprescritíveis à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão” (art. 2º). Liberdade definida como o direito de “fazer tudo que não prejudique a outrem” (art. 4º); e a propriedade concebida como um direito inviolável e sagrado (art. 17). Como resultado, sob o espírito do iluminismo e da prevalência da razão, lançou-se as bases do Estado Moderno e do Constitucionalismo, com fundamento no princípio da legalidade e da separação de poderes. Contudo, somente mais de um século depois, como consequência das duas grandes guerras (em especial, da 2ª Guerra Mundial), criou-se a Organização 18
COMPARATO, Fabio Konder. Ética: Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno. São Paulo: Cia das Letras, 2006, p. 199-203.
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COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 134.
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das Nações Unidas (ONU) (1945), e os direitos humanos passaram a figurar como eixo principal da proteção internacional. Conforme o preâmbulo da Carta da ONU, que deu nascimento à fase de “internacionalismo”20, se reafirma “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas”. Durante a elaboração da Carta, ficou estabelecido que a Comissão de Direitos Humanos desenvolvesse seus trabalhos segundo três etapas: primeiro, seria elaborada uma Declaração Universal de Direitos Humanos (art. 45 da Carta da ONU), concluída em 1948 sob a égide da igualdade de todo ser humano em sua dignidade; depois, seriam elaborados dois documentos juridicamente vinculantes: um relativo aos “direitos civis e políticos” (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e outro, aos “direitos econômicos, sociais e culturais” (Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), o que ocorreu em 1966; e, finalmente, seriam criados mecanismos para tornarem esses direitos efetivos internacionalmente21. A Declaração Universal dos Direitos do Homem já declarava, portanto, que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, por seu turno, em seu artigo 24, afirmava expressamente que “qualquer criança, sem nenhuma discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento, tem direito, da parte da sua família, da sociedade e do Estado, às medidas de proteção que exija a sua condição de menor”. O primeiro documento internacional relativo aos direitos das crianças e dos adolescentes foi a “Declaração dos Direitos da Criança” (Genebra, 1924), no âmbito da Liga das Nações, mas é com a “Declaração Universal dos Direitos da Criança” (1949) que se reconhece a necessidade de proteção e cuidados especiais às crianças22. Em 1989, a ONU adota a “Convenção sobre os Direitos das Crianças”, tratado internacional que teve o mais elevado número de ratificações GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério. Direito Supraconstitucional. São Paulo: RT, 2010, p. 77. COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 225-226. 22 AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da Proteção Integral. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 3.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 11. 20
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(193 Estados-Partes, em 2008). “A Convenção acolhe a concepção do desenvolvimento integral da criança, reconhecendo-a como verdadeiro sujeito de direito, a exigir proteção especial e absoluta prioridade”23. Criança considerada como sendo “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes” (art. 1). Para efeitos de Brasil, como se sabe, a criança é a pessoa que conte com até 12 anos incompletos, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); o adolescente, a pessoa de 12 a 18 anos.
2.1. Os direitos da criança e a ordem jurídica internacional Na Declaração Francesa de 1789, dentre os direitos dos homens, que “nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, ali elencados – liberdade, propriedade, segurança e a resistência à opressão –, o direito à liberdade é definido como o direito de poder fazer tudo que não prejudique a outros. Com a proteção dos direitos individuais e a ascendência do liberalismo econômico no início do século XIX, grandes massas de trabalhadores, relegados à sua própria sorte, em desvantagem contratual em relação aos empregadores, vivem e trabalham em condições insalubres, numa carga horária de trabalho extenuante e sem qualquer direito. Mulheres e crianças são utilizadas nas fábricas como mão de obra barata, trabalhando em regime de semi escravidão, com salários aviltantes, em péssimas condições de trabalho. Conhecem a fome, a pobreza e a miséria. Tal situação é encarada primeiramente pela Constituição Francesa de 1848, de forma sutil, ao atribuir ao Estado deveres sociais para com a classe trabalhadora. Mas somente com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 é que se afirmam os direitos sociais. A criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, trouxe a proteção internacional ao trabalhador assalariado. São os direitos de segunda dimensão: os direitos sociais. Com a Declaração Universal de 1948, introduz-se a concepção contemporânea de direitos humanos no sentido de que todo ser humano, somente por ser pessoa, é sujeito de direitos (Declaração de Viena de 1993, 23
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 282.
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artigo 1º, combinado com o artigo 5º), e, ainda, de que todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados (Declaração de Viena de 1993, art. 5º). Os valores e princípios formadores do Direito Internacional dos Direitos Humanos, integrado por diversos instrumentos de proteção aos direitos do homem, em complementaridade a um sistema regional de proteção e aos diretos internos de cada nação, são propagados a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (fase do “universalismo”24); e, no âmbito internacional, os valores fundamentais são veiculados por normas de caráter imperativo (jus cogens), que não podem ser derrogadas pela vontade dos Estados, pois atende a toda a comunidade das nações, ao interesse comum de toda a humanidade (Parecer Consultivo, de 28 de maio de 1951, art. 23, da Corte Internacional de Justiça). A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu artigo 53, dispõe expressamente que um tratado é nulo se confronta com uma norma imperativa de Direito Internacional Geral. Como não há qualquer lista de normas que integrariam o jus cogens, se apela para os costumes internacionais a fim de determinar se esta ou aquela norma é reconhecida como imperativa. Por exemplo, os tratados de extradição podem ser considerados violadores de jus cogens, caso violem direitos básicos do indivíduo. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, em seu artigo 60, deixa claro que o descumprimento de uma Convenção não suspende um tratado de caráter humanitário25. Nesse contexto, ressalte-se o teor dos artigos 13, 17, 29, 33 e 34 da Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989), fundamentos da doutrina da proteção integral, assentada sobre o reconhecimento das crianças como pessoas em desenvolvimento, para as quais a garantia de convivência em família é extremamente relevante e a cujos direitos os Estados Partes devem atender prioritariamente.
2.1.1 Ordem jurídica internacional e a Tecnologia de Informação Com a interconexão global via internet, diversos crimes cometidos nesse 24 25
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério. Op. cit, p. 125. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 165-177.
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ambiente, por envolverem diversos países e ordenamentos jurídicos distintos, acabam ficando sem solução. A dificuldade de investigação se reflete na demora da ação judicial pertinente, inibindo a procura da tutela judicial pela vítima. Mesmo com a existência de acordos internacionais de cooperação na investigação desses crimes, “se faz mister a criação de uma corte internacional para o julgamento de ilícitos digitais, que seja regida pelos princípios do acesso e da celeridade (...)”26. Em 2001, os Estados membros do Conselho da Europa, mais Estados Unidos da América, Canadá e Japão, foram signatários da “Convenção de Budapeste”, na qual se estabelece a colaboração mútua no combate à cibercriminalidade, com o objetivo de complementar a “Convenção Européia de Extradição” (1957), a “Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal” (1959) e o “Protocolo Adicional à Convenção Europeia de Auxílio Mútuo em Matéria Penal” (1978). Nesse documento internacional, as partes se comprometem a providenciar as alterações em suas ordens jurídicas internas no sentido de estabelecerem como infrações penais, dentre outras: a) Infrações contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos27 e dados informáticos: (i) acesso ilegal; (ii) interceptação ilegal; (iii) interferência em dados; (iv) interferência em sistemas; (v) uso abusivo de dispositivos; b) Infrações relacionadas com computadores: (i) a falsidade informática (contra o que as partes se comprometem a providenciar as alterações em suas ordens jurídicas internas no sentido de estabelecerem como infrações penais: a introdução, a alteração, a eliminação e a supressão de dados informáticos, produzindo dados não autênticos para utilização como se autênticos fossem); (ii) a burla informática (contra o que as partes se comprometem a providenciar as alterações em suas ordens jurídicas internas no sentido de estabelecerem como infrações penais o ato intencional e ilegítimo que cause perda de bens a terceiros); c) Infrações relacionadas com o conteúdo: pornografia infantil (que PECK, Patrícia. Direito Digital Global. Revista Jurídica Consulex, ano XIV, n.326, 15.08.2010. Nessa Convenção, “sistema informático” significa: “qualquer dispositivo informático ou grupo de dispositivos relacionados ou interligados, em que um ou mais de entre eles, desenvolve, em execução de um programa, o tratamento automatizado de dados”. “Dado informático” significa: “qualquer representação de fatos, de informações, ou de conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema de computadores, incluindo um programa, apto a fazer um sistema informático executar uma função”.
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as partes se comprometem a providenciar as alterações em suas ordens jurídicas internas no sentido de estabelecerem como infrações penais as seguintes condutas: produzir pornografia infantil com o objetivo de sua difusão por meio de um sistema informático; oferecer ou disponibilizar pornografia infantil por meio de um sistema informático; difundir ou transmitir pornografia infantil por meio de um sistema informático; obter pornografia infantil por meio de um sistema informático para si próprio ou para terceiros; possuir pornografia infantil num sistema informático ou num meio der armazenamento de dados), que inclui qualquer material que represente visualmente um menor – ou uma pessoa que aparente ser menor –, envolvido num comportamento sexualmente explícito, ou imagens realísticas que representem um menor envolvido num comportamento sexualmente explícito. Ainda, cada Estado parte é estimulado a dotar os poderes internos dos mecanismos processuais adequados à investigação (dentre os quais, a possibilidade de recolher os dados informáticos em tempo real e a interceptação de dados relativos ao conteúdo) ou para fins de procedimento penal. O ponto fulcral no combate a cibercriminalidade está no equilíbrio entre a repressão efetiva da criminalidade via internet e a garantia de direitos das pessoas, donde desponta a relevância do “entrecruzamento harmônico” das normas jurídicas internacionais, regionais e nacionais, nem pendendo para um “direito penal do inimigo”, nem para um garantismo penal ilimitado. Um dos aspectos que demandam um maior esforço da comunidade internacional para sua solução é o da determinação da lei penal aplicável no cibercrime. Há imensa dificuldade na determinação do local em que o delito tenha sido praticado e, portanto, em qual país deve ser ele punido, pois “na maior parte das vezes as transações através da internet não acontecem num território soberano determinado e identificável” 28. Há que falar então da extraterritorialidade das leis penais locais, por força do “princípio da justiça universal” – aplicação das leis internas de um país em relação a crime ocorrido em outro. O fundamento ético dessa jurisdição reside na imperiosa necessidade de apuração e condenação, em qualquer lugar do Planeta, dos bárbaros delitos cometidos com violação dos direitos humanos. Inicialmente nascido 28
COSTA, Ligia Maura. Direito Internacional Eletrônico. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 30.
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para os casos de pirataria e, posteriormente, para os casos de crimes de guerra, o princípio da jurisdição universal vem se consolidando paulatinamente, estando ainda (pode-se dizer) em processo de formação.29 No caso brasileiro, há somente uma hipótese de extraterritorialidade incondicionada, “o de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil” (art. 7º, I, d, Código Penal brasileiro), e uma hipótese de extraterritorialidade condicionada: no caso de crimes aos quais o Brasil tenha se obrigado a reprimir em tratado ou convenção (art. 7º, II, a, Código Penal brasileiro). Um importante instrumento para a consolidação de uma justiça “universal” é o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma de 1998 e que tem jusrisdição universal nos crimes contra a humanidade, de guerra, de genocídio e de agressão. Tem, portanto, natureza supraconstitucional.
2.2. Os direitos da criança e a ordem jurídica nacional A dignidade humana figura como o “valor-fonte” dos direitos humanos, do qual todos os outros se irradiam, e a doutrina alemã distingue os direitos humanos dos direitos fundamentais. Enquanto os direitos humanos existem independentemente de estarem escritos, dada sua correspondência ao valor intrínseco de cada ser humano – sua natureza racional –, os direitos humanos “positivados” nas leis, nas Constituições e nos tratados internacionais são denominados “direitos fundamentais”30. Como esclarece Patrícia Peck 31: As mesmas leis do mundo real se aplicam ao mundo virtual. No caso de crianças e adolescentes, as leis de proteção são estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pelo Código Civil, pelo Código Penal, pela Constituição Federal de 1988. (...) Crimes como pedofilia, difamação, ameaças já são previstos na lei comum. O diferencial é que agora tais 29 30 31
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Luiz Flávio. Op. cit, p. 135. COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 58-59. In: A Nova Geração Digital Precisa de Valores Éticos. 03/11/2009. Disponível em: <http://www.neteducacao. com.br/portal_novo/?pg=artigo/artigo&cod=1106>. Acesso em: 04/10/2010.
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práticas usam o computador como meio de execução, por isso a importância da colaboração internacional para combater os crimes eletrônicos. Em âmbito nacional, a Constituição Federal de 1988 garante uma série de direitos fundamentais; direitos de primeira dimensão (direitos individuais), de segunda dimensão (sociais) e de terceira dimensão (direitos difusos), transformando a constituição brasileira numa das mais avançadas, no que tange aos direitos humanos. Ressalta-se, em especial, seu artigo 5º, § 3º, que dispõe: “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Dessa forma, pode-se concluir com segurança que a Carta de 1988 reconhece, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa: a) aquela advinda do direito interno (direitos expressos e ímplicitos na Constituição e b) aquela outra advinda do direito internacional (decorrente de tratados internacionais de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil seja parte)32. Já em seu artigo 1º, destaca seus princípios fundamentais (dignidade da pessoa humana, dentre outros) e, em seu artigo 3º, seus objetivos fundamentais (construção de uma sociedade livre, justa e solidária, dentre outros), determinando, em seu artigo 227, respeito ao princípio da proteção integral e prioritária às crianças e adolescentes, atribuindo essa tarefa à família, à sociedade e ao Estado. Ainda, em seu artigo 5º, § 1º c/c § 3º, dá aos direitos das crianças força vinculante. Nesse contexto axiológico, edita-se, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que dispõe, no campo infraconstitucional, sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, garantindo-lhes expressamente todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana (art. 3º) e a garantia, dentre outras, da “preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas”, da “destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude” (art. 4º) e a reafirmação de que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e 32
GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Luiz Flávio. Op. cit.
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opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (art. 5º).
3. Direito e Tecnologia de Informação O Direito não é estático; pelo contrário, está sempre se transformando, de forma a acompanhar a dinâmica das mudanças sociais. Num mundo em que muitas atividades presenciais foram sendo substituídas pelos contatos por rede de computadores, principalmente pela internet, também o Direito passou a ser “chamado” para resolver novas situações advindas desse novo modelo de relacionamento entre as pessoas. Para se ter uma ideia da dimensão da necessidade do Direito na sociedade informacional de hoje, cita-se os dados do Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança no Brasil (Cert), mantido pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil: o número de incidentes que lhe foram reportados em 1999 correspondia a 3.107 ocorrências, enquanto, em 2009, esse número saltou para 358.343 ocorrências, na maioria (250 mil) casos de fraude 33. Também ofensas morais são passíveis de constranger o internauta, como no caso relatado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, ocorrido em 2007, quando 90 mil máquinas de computador foram infectadas por um vírus, enviado por intermédio de um link pornográfico no portal da UOL, que copiava as informações pessoais contidas nos computadores34. De janeiro a agosto de 2010, foram reportadas 34.524.569 notificações de spam ao Cert.br35. Sobre o total de usuários “domésticos” da internet que adquiriram produtos ou serviços pela internet, 10% a utilizaram para viagens (reservas de avião, hotel), 9% ingressos para eventos, 8% para material de educação a distância e 7% para jogos de computador ou vídeo-game. A forma de pagamento mais utilizada foi o cartão de crédito (61% dos usuários), seguida do boleto bancário (36%)36. 33
34 35 36
JÚNIOR, Helder. Direito Eletrônico.com.br: um novo paradigma. Revista Diálogos e Debates. Escola Paulista da Magistratura, Revista Trimestral Ano 9, n. 14, ed.36, junho de 2009. Ibidem. Disponível em: <http://www.cert.br/stats/spam/>. Acesso em: 30/09/2010. BARBOSA, Alexandre F. Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil: TIC Domicílios e TIC Empresas 2008. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2009.
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Do total de empresas da amostra da pesquisa TIC Empresas 200837, 99% usaram a internet para enviar e receber e-mail, 94% para obter informações sobre produtos ou serviços, 82% para serviços bancários e financeiros, 69% para monitoramento de mercado, 51% para oferecer serviços ao consumidor, 11% para realizar entrega de produtos on-line. Sobre o total de empresas com acesso à internet, 58% já havia feito pedido via e-mail ou formulário web e 49%, por e-mail digitado; por volta de 46% das empresas que usavam a internet já havia recebido pedido de compra via e-mail ou formulário web, 44% via e-mail digitado, e 21% por formulário web. Aproximadamente 19% delas tiveram o faturamento correspondente a pedidos via internet respondendo por 51 – 100 % do total de vendas; 21% delas, respondendo por 26 – 50% do total de vendas e 11%, por 11-25% do total de vendas.
3.1. Tecnologia de Informação: conceituação Primeiramente, há distinção entre “dados” e “informações”. Os dados representam fatos do mundo real, enquanto as informações, um “conjunto de fatos organizados de tal maneira que possuem valor adicional, além do valor dos fatos individuais”38. E é por meio de um “processo” que os dados se transformam em informações. E para esse processo resultar em informações “úteis”, há necessidade de “conhecimento”, entendido como “a consciência e a compreensão de um conjunto de informações e os modos como essas informações podem ser úteis para apoiar uma tarefa específica ou para chegar a uma decisão”39. Nesse ponto, cabe esclarecer que um sistema de informação é um conjunto de elementos ou componentes inter-relacionados “que coleta (entrada), manipula (processo), armazena e dissemina dados (saída) e informações, e fornece uma reação corretiva (mecanismo de realimentação) para alcançar um objetivo”40. E quando esse sistema é baseado em computadores (CBIS – computer-based information system), o conjunto 37 38
39 40
BARBOSA, Alexandre F. Op cit. STAIR, Ralph M; REYNOLDS, George W. Princípios de Sistemas de Informação. 9.ed. São Paulo: Cengage, 2001, p. 4. Ibidem. STAIR, Ralph M; REYNOLDS, George W. Op. cit. p. 8.
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é formado por hardwares, softwares, banco de dados, telecomunicações, pessoas e procedimentos configurados “para coletar, manipular, armazenar e processar dados em informações”41. O termo “Tecnologia de Informação” designa justamente “o conjunto de recursos tecnológicos e computacionais para geração e uso da informação”42. Por seu turno, tecnologia pode ser definida como “o conjunto ordenado e sistemático de conhecimentos básicos, patenteados ou não, capazes de levar a prática de uma idéia no plano industrial”43.
3.2. O Direito da Tecnologia de Informação Com a utilização indiscriminada dos computadores domésticos e empresariais, as relações jurídicas passam a ser estabelecidas integralmente, ou em parte, por meio das interconexões desses computadores. O denominado “mundo virtual” abarca uma série de relações entre usuários, multiplicadas pela migração de diversas relações antes realizadas presencialmente. Como consequência, diversos ramos do Direito têm que adaptar sua aplicação a essa nova realidade. Muitos proclamam a necessidade de regulamentação legal do uso da internet e suas implicações no Direito. Há, inclusive, projetos de lei sobre o assunto tramitando na Câmara Federal brasileira, mas “muitos crimes tradicionais agora são cometidos por meio de computadores e transferiramse para a internet (...)”44. O Direito da Tecnologia da Informação (TI) pode ser então definido como: (...) o ramo multidisciplinar do Direito que estuda o conjunto de normas e princípios regulamentadores de quaisquer relações jurídicas dos recursos tecnológicos, e aqueles que os utilizam essencialmente para a geração, tratamento e circulação da informação, bem como os negócios jurídicos desses recursos.45 41 42
43 44 45
STAIR, Ralph M; REYNOLDS, George W. Op. cit. p. 11. OLIVEIRA, Anderson Soares Furtado. Introdução ao Direito da Tecnologia da Informação. Brasília: Universidade Gama Filho, 2009, p. 24. Ibidem. TURBAN, Efraim; KING, David. Op. cit, p. 315. OLIVEIRA, Anderson Soares Furtado. Introdução ao Direito da Tecnologia da Informação. Brasília: POSEAD, Universidade Gama Filho, 2009, p. 24.
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Alguns o denominam direito “digital”, direito “eletrônico”, ou direito “telemático”, que são, em verdade, espécies do gênero “direito da tecnologia de informação”. Independentemente da denominação que se dê a esse ramo, sua relevância nos tempos atuais é inegável, como o demonstra os inúmeros tópicos jurídicos em que se faz presente, tais como: direitos autorais sobre software; composição judicial por meios eletrônicos; crimes informáticos; competência territorial no ambiente virtual; tributação de atividades econômicas no ambiente virtual; propriedade intelectual do banco de dados; regulamentação do uso de e-mail no ambiente corporativo, dentre outras. Para os fins deste trabalho, importa os crimes informáticos que atentem contra os direitos das crianças ou, ainda, situações outras que se relacionam, de alguma forma, com os efeitos negativos do uso da rede de computadores (internet) sobre as crianças.
3.3. Infração por abuso contra crianças – internet As sanções que partem do Estado, por via de seus agentes com competência para tal, têm como escopo a proteção de bens jurídicos que a sociedade elege como carecedores de tutela jurisdicional. Esses bens jurídicos, como mencionado anteriormente, têm como valor-fonte a dignidade da pessoa humana, que se reflete na proteção jurídica que se confere ao direito à vida, à liberdade, à igualdade, à saúde, à integridade física e psicológica, aos valores éticos essenciais à vida social: “bens jurídicos são valores ético-sociais que o direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões específicas”46. A infração a esses valores resulta no uso da força-autoridade delegada ao Estado pela sociedade, por meio de sanções de ordem administrativa, penal e civil. “Fraude, pornografia infantil, pirataria de software e violação de direitos autorais são todos atos que podem ser facilitados pela internet”47. Um dos aspectos jurídicos que se levanta no uso da internet pelas crian46
47
TOLEDO, Francisco de Assis apud RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers. Infrações Administrativas. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord). Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 3.ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 396. TURBAN, Efraim; KING, David. Op. cit, p. 315.
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ças repousa, por exemplo, no conflito entre o direito à informação e o direito à intimidade, ambos integrantes do rol de direitos garantidos às crianças no âmbito da proteção integral, tornando-se necessária a utilização da “ponderação” entre estes direitos. Ao mesmo tempo em que o direito à informação é um direito fundamental da criança, a limitação a esse direito – no concernente às informações que invadam a intimidade das crianças e que possam ser prejudiciais ao seu desenvolvimento saudável –, é preconizada pela “Convenção sobre Direitos das Crianças” (art. 17). “De fato, a liberdade de expressão que atinge seu ápice através da internet, permite que pessoas com desvio de caráter manifestem seus mais odiosos preconceitos”48. Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 15), “a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. E, de acordo com o artigo 17 do Estatuto, o direito ao respeito consiste “na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. A venda de cadastros contendo informações sobre clientes pelos sites a seus anunciantes, por exemplo, é uma forma de intrusão à privacidade das pessoas, o que pode vir a atingir também as crianças que, como mencionado anteriormente, “navegam” por sites que são visitados por adultos, deixando inadvertidamente seus dados pessoais ali registrados. Assim como o direito a um meio ambiente equilibrado é reconhecido como um direito “intergeracional”, visando às gerações futuras, também a proteção prioritária às crianças tem reflexos inquestionáveis nas próximas gerações.
3.3.1 Infrações As infrações administrativas dispostas no “Estatuto da Criança e do Adolescente” (ECA) são expressão do poder de polícia do Estado e têm como escopo: (i) A proteção dos valores éticos das crianças e da família, com sanções 48
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004, p. 206.
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de multa e/ou suspensão de funcionamento ou fechamento do estabelecimento – do artigo 252 ao artigo 258, ECA. (ii) A segurança das crianças, com sanções de multa e/ou fechamento do estabelecimento – do artigo 245 ao artigo 250, ECA. As infrações penais dispostas no Estatuto derivam da condição especial de criança, como ser humano em desenvolvimento, e são todas de ação penal pública incondicionada, sem prejuízo da legislação penal (art. 225, ECA). A pena aplicada aos infratores é a privativa de liberdade - reclusão ou detenção. Na esteria da classificação elaborada por Rossini49, os delitos informáticos se subdividem em: (i) delitos informáticos puros (nos quais “a conduta visa ao sistema informático do sujeito passivo”50); e (ii) delitos informáticos mistos (nos quais “o computador é mera ferramenta para a ofensa a outros bens jurídicos”51). E os bens jurídicos a serem protegidos, na acepção de Gianpolo Poggio Smanio52: bens jurídico-penais de natureza individual (a vida, a integridade física, a propriedade, a honra etc.), bens jurídico-penais de natureza coletiva (incolumidade pública, paz pública etc.) e os bens jurídico-penais de natureza difusa (proteção da infância e da juventude, proteção da saúde pública, proteção da relação de consumo etc.). Para efeitos de enquadramento penal do abuso contra criança via internet, os artigos 232, 240 a 244 do Estatuto. Saliente-se ainda que a lei nº 9.455/97, que define os crimes de tortura, revogou expressamente, em seu artigo 4º, o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesses casos, a criança é sujeito passivo desses crimes ao acessar a rede de computadores e se deparar com cenas impróprias à sua idade; também ao ter o sigilo de seus dados violado ou, ainda, ao ser vítima participante em cenas de sexo explícito veiculadas pela web. Assim, o “furto” de informações pessoais de crianças em sites de relacionamento, por exemplo, da imagem da criança para exposição em outros sites – principalmente em montagens para fins pornográficos –, é expressamente punível com pena de reclusão (art. 241-C). Também a facilitação do acesso à criança a material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso (art. 241-D, I). O Código Penal brasileiro já trazia tipos penais nos quais a criança 49 50 51 52
ROSSINI, Augusto. Informática, Telemática e Direito Penal. São Paulo: Memória Jurídica, 2004. Ibid, p. 122-123. Ibidem. Apud ROSSINI, Augusto. Op cit, p. 129, nota de rodapé 93.
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aparecia como sujeito passivo; ou, nos casos de delito comum, em que não figurem como tal, aplica-se a agravante do art. 61, II, “h”. A título de exemplo, a criança pode vir a ser sujeito passivo de crime contra a pessoa (instigação ou induzimento ao suicídio pela internet), de crime contra a honra (difamação de criança por meio de rede social), de crime contra a liberdade individual (ameaça contra a criança transmitida para o seu próprio e-mail) e de crime contra os costumes (induzir criança a satisfazer a lascívia de outrem).
4. Sistema de proteção contra o abuso às crianças via internet Nos Estados Unidos, Canadá e na Europa, alguns princípios éticos são considerados, quando se trata da coleta ou utilização de informações pessoais: a) notificação/conscientização: antes da coleta dos dados, o usuário deve ser informado da intenção e do alcance da divulgação e da intenção da entidade com esta divulgação; b) escolha/consentimento: o usuário deve estar ciente do modo como as informações a seu respeito serão utilizadas, para então decidir sobre seu consentimento; c) acesso/participação: a possibilidade de o usuário ter acesso às informações sobre si mesmo, com a possibilidade de retificá-las; d) integridade/segurança: garantia de proteção contra usos indevidos dos dados pessoais do usuário, pela entidade; e) cumprimento/ recurso: deve sempre haver um método de cumprimento ou recurso (a nível estatal, privado ou autorregulamentação). Já na então Diretiva do Conselho Europeu – 89/552/CEE –, de 03/10/1989, ponderava-se que: “é necessário (...) prever normas para proteção do desenvolvimento físico, mental e moral dos menores nos programas e na publicidade televisiva (...)”53. A mídia em geral tem defendido sua autorregulação como instrumental para proteger a sociedade de efeitos danosos que pode trazer às pessoas, o que tem se demonstrado infrutífero, pelo próprio paradoxo de a mídia ser semicontrolada pelo Estado – que é o próprio estimulador da autorregulação (International Clearing House on Children, Youth and Media54). O facto é que quer os instrumentos de co-regulação (a que se associam os poderes públicos) quer os de auto-regulação, mostram a sua inapetência 53 54
FROTA, Mário. A Publicidade Infanto-Juvenil: perversões e perspectivas. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 24. Apud ANDI - Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Op cit. p. 38.
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para travar os ímpetos dissolutores dos anunciantes, aliados às agências de publicidade e às nulas preocupações dos suportes (em particular, as televisões): e, nessa medida, o Estado abstém-se, fundado nas pias intenções das entidades privadas que de modo ajuramentado se propõem a observância de regras de boa conduta (ou bom comportamento), em vão, porém.55 Em 1998, a Comissão Federal Norte-Americana de Comércio elaborou uma auditoria em 1.400 sites comerciais do país, para medir a efetividade da autorregulação, concluindo que não havia adequada proteção à privacidade dos dados dos clientes56. No Brasil, cabe destacar o Movimento Criança Mais Segura na Internet, que tem à frente a advogada Patrícia Peck Pinheiro57, para quem “o movimento tem a proposta de conscientizar e capacitar a nova geração por meio da família e da escola, com o objetivo de formar e informar usuário digitalmente corretos”.
4.1. O controle pela família À família cabe orientar a criança sobre os perigos que rondam o acesso à internet e as consequências do uso indiscriminado do computador. As consequências físicas e psíquicas do mau uso da web podem ser minoradas, ou até eliminadas, pela orientação dada pelos pais ou responsáveis; imposição de limites de horário, orientação sobre a postura física correta, sobre como “filtrar” os sites e o acesso às redes sociais, sobre a necessidade de se restringir ao máximo o registro de dados pessoais, a importância da amizade com pessoas já conhecidas e a manutenção constante do diálogo com os pais, são algumas medidas importantes que a família deve seguir, cumprindo seu papel constitucional. “Mais do que aprendizado técnico, é preciso estimular o uso ético, seguro e legal da tecnologia, o que envolve comportamento, postura”58.
FROTA, Mário. Op. cit, p. 17. TURBAN, Efraim; KING, David. Op. cit, p. 312. A Nova Geração Digital Precisa de Valores Éticos. 03/11/2009. Disponível em: <http://www.neteducacao.com.br/portal_novo/?pg=artigo/artigo&cod=1106>. Acesso em: 04/10/2010. 58 Ibidem. 55 56 57
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4.2. O controle pela sociedade A sociedade também tem um papel crucial na proteção das crianças contra abusos. Além da coletividade e sua força de pressão, as próprias empresas, tais como provedores de acesso, provedores de conteúdo, empresas de comércio eletrônico, sites de busca e de relacionamento, e outros, devem ser impelidas a bloquearem todo o conteúdo ou tentativa de acesso a dados privados, principalmente os de criança. Também instados a retirar de circulação todo material de pornografia infantil, conservando os dados relativos à circulação do material entre usuários, para posterior persecução penal. É muito comum que a página inicial de diversos provedores contenha imagens provocativas, com apelo sexual que servem de chamariz para uma navegação imprópria para crianças. Ademais, não é aceitável que, em busca de, por exemplo, sites de legislação internacional, ao se clicar em determinado link aparecer, ao lado das normas, diversas imagens e links relacionados à pornografia; ou na busca de jogos eletrônicos, imagens pornográficas com crianças surgirem do “nada”, afrontando a dignidade humana da criança explorada e da criança sujeita a este tipo de constrangimento. Também seriam de todo bem-vindas campanhas educativas patrocinadas pelos provedores, ensinando às crianças qual a melhor forma de utilizarem o computador, o número de horas aceitável, a postura em frente ao monitor, dos perigos das redes sociais etc. Ressalte-se que tanto o cliente como o tomador dos serviços sexuais prestados por crianças e adolescentes, bem como o respectivo intermediador e quaisquer pessoas que venham a favorecer tais práticas, são responsáveis solidariamente por todos os danos, materiais e morais, individuais e coletivos, decorrentes de sua conduta lesiva, nos termos do art. 942, parágrafo único, do Código Civil, art. 4º, II do Decreto 6.481/2008, sobre piores formas de trabalho infantil, c/c art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho. Para conter os crimes do cyberbullying, a Safernet Brasil, em parceria com o Ministério Público e a Polícia Federal, criou um canal de denúncias contra crimes na internet59. 59
<http://www.denuncie.org.br/>.
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A escola desempenha um papel importante no que concerne à questão, em especial, ao bullying e ao cyberbullyng. Algumas ações que podem evitar o cyberbullying: (i) conversa dos professores com os alunos sobre cyberbullying para que eles não vejam essa atitude como brincadeira; (ii) palestras sobre o tema para os pais; (iii) envolver as crianças em atividades que os sensibilizem; (iv) sanções previstas no regimento interno da escola para quem pratica atos agressivos.
4.3. O controle pelo Estado Com base no cenário internacional de regulação da mídia para a promoção e proteção dos direitos de crianças e adolescentes, a pesquisa conduzida pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), Rede ANDI para América Latina e Save The Children Suécia, definiu um conjunto de categorias que poderiam fazer parte dos ordenamentos jurídicos de 14 nações latino-americanas pesquisados, e, segundo nosso entendimento, serem adaptados para a regulação da web. - Regulação da exibição de imagens e identificação de crianças e adolescentes: os países regulam os meios (incluindo a imprensa), especificando como podem ou não exibir imagens (vídeos, fotografias), assim como os formatos de fornecimento da identidade de crianças e adolescentes – especialmente aqueles que podem ser considerados vítimas da violação de direitos. - Regulação de tempo mínimo de transmissão de conteúdos específicos: os canais de televisão devem transmitir uma cota de programação considerada especialmente relevante para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes (programação educativa, por exemplo). - Regulação da exibição de desenhos animados nacionais: uma porcentagem específica dos desenhos animados transmitidos pelos canais de televisão seja de origem nacional, em respeito à identidade cultural. - Regulação da programação regional: os canais devem transmitir uma percentagem específica de sua programação diária com conteúdos especialmente dirigidos ao público pertencente a culturas/etnias/subregiões distintas.
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- Regulação da publicidade e do merchandising: há três modelos principais de regulação desses temas: proibição da publicidade e/ou merchandising dirigido a crianças e adolescentes – modelo a que nos perfilamos; proibição da publicidade e/ou merchandising somente nas faixas horárias destinadas à programação infantil; regulação dos conteúdos publicitários: ou seja, não se proíbe a exibição total ou parcial, mas se estabelece um conjunto de parâmetros para a publicidade dirigida para a criança e para aquela veiculada no horário da programação infantil. - Regulação que estimula a produção de conteúdos de qualidade: há modelos de regulação que estabelecem a criação de prêmios para a produção de conteúdos de qualidade voltados ao público infanto-juvenil e, em situações mais complexas, até mesmo de fundos públicos específicos para a valorização de conteúdos especialmente recomendáveis para crianças e adolescentes. - Regulação de políticas de educação para os meios: leis que determinem a existência de políticas públicas de oferta – nas escolas – de programas de educação para os meios (media literacy). - Regulação do trabalho infantil nos meios: também existem normas que apresentam parâmetros específicos para o trabalho de crianças e adolescentes como atores e atrizes em novelas, séries, filmes e peças publicitárias. - Regulação do modus operandi: não raro para garantir a operacionalização e efetividade dessas regras é necessário criar órgãos específicos, penalidades e multas. Torna-se imperioso que o Estado brasileiro se integre com mais rapidez aos tratados e convenções relacionados com a regulação da internet, como, por exemplo, a “Convenção de Budapeste”, já que qualquer combate aos abusos perpetrados pela internet só poderá ser eficaz com a cooperação entre Estados. Também, poder-se-ia fazer injunções junto à Organização das Nações Unidas para a criação de item específico na Classificação Internacional de Doenças para os abusos cometidos contra crianças, incluindo os abusos cometidos via web; para tanto, há necessidade de se utilizar das ferramentas tecnológicas mais avançadas na detecção e prevenção desses “cyberabusos”, Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 91-124, julho/dezembro - 2011
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implantando junto com a sociedade um sistema mais ético e seguro que proteja as crianças no ambiente da internet.
Considerações finais Apesar de o abuso à criança por meio da web estar registrado por inúmeras pesquisas, não há ainda um controle efetivo sobre esses abusos, o que leva à conclusão de que a Tecnologia de Informação e o Direito a ela pertinente estão ainda longe de terem efetividade na contenção desses abusos. Como se discorreu ao longo do trabalho, há diversos tipos de abuso que demandam a atuação enérgica do Poder Público, da sociedade e da família, de forma a proteger crianças e adolescentes usuários da internet, vítimas em potencial, portanto, dos conteúdos impróprios à idade e de outras formas de violência psicológica e física. O Ministério Público do Trabalho, na “Carta de Brasília”, de 2008, deixa claro, em seu artigo primeiro, que “as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro, quando existentes, não se têm revelado eficazes na prevenção e erradicação da exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais”. Tal assertiva se aplica ao uso degradante de crianças e adolescentes em cenas de sexo explícito na internet, onde não se vislumbra um controle efetivo pelo Estado, nem uma postura autorregulatória mais efetiva por parte dos provedores de acesso, de busca e de conteúdo, das empresas de propaganda e demais entidades que utilizam a web para prestação de serviços ou comercialização de seus produtos. Há necessidade de um esforço de todos no sentido de utilizar os instrumentos da alta tecnologia de informação a serviço do combate a esses abusos, de forma a facilitar a aplicação de todo o instrumental jurídico existente (identificação dos criminosos da internet para a devida responsabilização civil, administrativa e criminal; proteção ao direito à privacidade, com atuação efetiva do Ministério Público, Polícia Federal, Procuradorias Estaduais e demais entidades envolvidas na proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes; criação de sistemas efetivos de proteção ao spyware e a vírus que causam prejuízos aos usuários). Quanto ao aperfeiçoamento da legislação atinente a questão, tem-se que a prioridade deve ser a proteção às crianças e aos adolescentes, de forma a que não se confunda “censura” com “controle protetivo”; liberdade de expressão não se confunde com liberalidade de atividade comercial. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 91-124, julho/dezembro - 2011
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Censura às manifestações artísticas a própria Constituição Federal não admite; mas o controle do que está sendo disponibilizado à pessoa humana em fase de formação é um dever constitucional, a despeito dos inúmeros interesses econômicos subjacentes no discurso que mistura censura artística com controle da programação e do conteúdo colocado sem qualquer “filtro” a crianças e adolescentes. O direito da criança ao acesso seguro na internet está fundado em seus direitos fundamentais à informação segura e livre de danos causados principalmente pela inépcia dos atores que têm o dever constitucional de protegê-las e garantir-lhes um desenvolvimento saudável. Por óbvio que estamos num mundo interconectado por computadores, com inegáveis aspectos positivos; porém, estes aspectos podem ser reduzidos se não se fizer um esforço global de colocar a segurança das crianças em primeiro lugar.
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Algumas considerações sobre a obrigação civil ambiental do proprietário de bem imóvel
Maria Adelaide de Campos França1 Advogada
SUMÁRIO: 1 - Introdução. 2 - A obrigação propter rem e o possuidor indireto. 3 - Princípio poluidor-pagador. 4 - Da imprescindibilidade do exame do nexo causal. 5 - Poder de polícia ambiental. 6 - Formas de reparação do dano ambiental e legitimidade passiva das ações coletivas ambientais. 7 - Considerações finais. 8 - Literatura consultada.
1. Introdução
O
escopo deste trabalho é perquirir, no âmbito ambiental, sobre a aplicação, sem reservas, da regra da obrigação propter rem ao proprietário de bem imóvel e sua consequente responsabilização pela recomposição do meio ambiente degradado em sua propriedade. Hipóteses em que o proprietário, não detentor da posse direta do imóvel em que ocorreu a lesão ao meio ambiente, fica impossibilitado de cumprir a obrigação 1
Magistrada aposentada.
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de reparar o respectivo dano ambiental a que não deu causa, fazem surgir dúvidas sobre a sua responsabilização ambiental decorrente tão só do fato de ser o titular do bem. A obrigação propter rem, sob o aspecto ambiental, será, assim, examinada à luz do princípio poluidor-pagador e da responsabilidade reparatória objetiva. A Constituição Federal, em seu art.225, consagra como dever de todos, Poder Público e coletividade em geral, a defesa e preservação do meio ambiente para as gerações presentes e futuras e impõe àqueles que adotam condutas ou práticas lesivas ao meio ambiente a obrigação de reparar o dano ambiental decorrente, além da sujeição à punição de âmbito penal e administrativo (CF, art.225, § 3º). A Constituição do Estado de São Paulo reitera o disposto na Carta Federal (CESP, art.195) e atribui ao responsável pelo dano ambiental a obrigatória recuperação da vegetação adequada, sem prejuízo das demais sanções cabíveis (CESP, art.194, parágrafo único). Nos termos da Lei nº 6.938, de 31.08.1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, poluidor é a pessoa física ou jurídica responsável direta ou indiretamente por atividade causadora de poluição ambiental (art.3º, inc.IV), que fica obrigada a indenizar e a reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade, independentemente de culpa (art.14, § 1º). A responsabilidade do poluidor é, portanto, de natureza objetiva, o que significa que presentes o dano ambiental e o nexo causal entre ele e a conduta do agente, deverá ele [o poluidor] responder pela recomposição do meio ambiente ao status quo ante. A jurisprudência mais recente, com base na aplicação da regra da obrigação propter rem que dispõe que a responsabilidade acompanha o bem e, por isso, é transmitida ao novo proprietário ou possuidor da área, objeto da degradação, vem consolidando o entendimento de que é o atual proprietário da área o responsável pelas obrigações ambientais, ainda que não as tenha gerado.
2. A obrigação propter rem e o possuidor direto A obrigação propter rem, também conhecida como ob rem ou ambulatória, é a que deriva da natureza do bem, em razão dele. É considerada uma categoria autônoma de direito, diversa do direito pessoal e do direito real, conquanto apresente características de ambos, razão, aliás, que a torna alvo Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 125-141, julho/dezembro - 2011
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de inúmeras divergências doutrinárias conceituais. Em regra, as discussões jurídicas originadas nas obrigações propter rem resultam do fato de que tais obrigações são imputadas ao proprietário do bem imóvel, independentemente de sua manifestação de vontade. O titular do direito real torna-se devedor das obrigações que do bem decorrem, muitas vezes sem ter delas conhecimento. Ou seja, as obrigações permanecem ligadas ao bem e, ainda que o proprietário não tenha delas ciência, é ele o respectivo responsável que assume a posição de devedor de uma obrigação pessoal. Caso essa obrigação tenha sido gerada por ato de terceiro, terá o proprietário apenas o direito de regresso contra aquele. Nessa linha de considerações, se uma pessoa sucede a outra na titularidade de um bem imóvel, assume as obrigações incidentes sobre esse bem, ainda que delas não tenha tido oportuna e prévia ciência. Assim, será obrigada a participar, por exemplo, do custeio das despesas necessárias à demarcação de seus limites, a concorrer para a reparação dos tapumes divisórios, a ratear as despesas de condomínio, a responder por dívida garantida pelo imóvel hipotecado, bem como a dar caução a seu confrontante por dano eminente e pela ameaça que o seu imóvel possa representar ao dele. Tudo isso porque tais obrigações, propter rem, acompanham o bem e vinculam aquele que sobre esse bem detém os direitos de uso e de gozo. Não há de se discutir o entendimento de que a obrigação de reparar o dano ambiental é propter rem quando o fato se relaciona a proprietários ou possuidores que ingressam na posse direta, física de um imóvel, pois não lhes é permitido eximirem-se de reparar os danos ambientais causados por atividade exercida pelos anteriores proprietários ou possuidores. Em outras palavras, não se pode escusar o novo titular ou possuidor do bem de recompor o meio ambiente degradado pelo antigo titular ou possuidor. A obrigação permanece ligada à coisa, ao bem, o que implica em responsabilizar pela indenização e recuperação do meio ambiente e de terceiros, afetados pelas atividades desenvolvidas pelo anterior proprietário ou possuidor, aquele que detiver os poderes de uso e gozo sobre o imóvel. Todavia, há hipóteses em que a posse direta do imóvel não está sendo exercida pelo proprietário do bem imóvel e este se vê obstado a adotar providências relacionadas ao imóvel. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 125-141, julho/dezembro - 2011
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Oportunas as palavras de Tito Fulgêncio2 acerca do conceito de posse formulado por Ihering e adotado em nosso ordenamento jurídico, citado por Yussef Said Cahali, em sua obra Posse e Propriedade: “a posse nada mais é que o modo por que a propriedade é utilizada; a relação estabelecida entre a pessoa e a coisa pelo fim de sua utilização econômica; possuidor é qui omnia uti dominus facit”. Ou seja, a utilização da propriedade por terceiro (uso e gozo) muitas vezes impede que o proprietário adote qualquer medida no imóvel, sob pena de invasão de propriedade ou de outro comportamento abusivo (v.g. fiscalizatório). Possível que o terceiro assuma a posição de adquirente do direito real, a exemplo do compromissário comprador com promessa registrada na matrícula do imóvel. E, como tal, assume também todas as obrigações ligadas à coisa. Na realidade, a natureza jurídica da obrigação propter rem decorre de sua utilidade ou de sua aplicação prática, sempre na solução de conflitos entre direitos reais. Com efeito, nas obrigações propter rem, ambos, credor e devedor, são titulares de direitos reais rivais ou concorrentes que podem recair sobre o mesmo bem ou sobre bens vizinhos. Nesse aspecto, diz-se que a obrigação propter rem é meio viabilizador do próprio exercício do direito de propriedade. A transferência, por contrato, da posse direta de um bem imóvel — direito de uso e gozo — por seu titular a terceiro, faz com que este passe a ocupar uma posição especial com relação ao título de direito real do proprietário, na medida em se torna, ainda que de forma temporária ou transitória, titular de um direito real concorrente. Neste aspecto, relevante destacar as obrigações com eficácia real que, uma vez registradas na matrícula do imóvel, passam a ser oponíveis a terceiros. São exemplos os casos de locação e de compromisso de venda e compra. O devedor não precisa ser proprietário do bem, pois está atado a um vínculo cogente advindo da posse direta desse bem, independentemente de sua vontade. Possível, portanto, inferir-se que, não obstante a obrigação seja propter rem e se transfira ao novo proprietário ou possuidor, este há de ser 2
FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias. São Paulo: Ed. Saraiva, 1922, apud CAHALI, Yussef Said. Posse e propriedade: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Ed. Saraiva, 1987, p. 675.
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responsabilizado pela obrigação de natureza ambiental somente na hipótese de se encontrar no exercício da posse direta do bem imóvel. Diversos são os precedentes do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar o atual proprietário o responsável pela obrigação reparatória do dano ambiental, independentemente dele ter sido ou não o causador da degradação: AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE. ÁREA DE RESERVA LEGAL EM PROPRIEDADE RURAL. DEMARCAÇÃO, AVERBAÇÃO E RESTAURAÇÃO. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. OBRIGAÇÃO EX LEGE E PROPTER REM, IMEDIATAMENTE EXIGÍVEL DO PROPRIETÁRIO ATUAL. VIOLAÇÃO DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. INOCORRÊNCIA. 1. A obrigação do atual proprietário pela reparação dos danos ambientais, ainda que não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento, é propter rem, ou seja, decorrente da relação existente entre o devedor e a coisa, independente das alterações subjetivas. Dessa forma, é transferida do alienante ao novo proprietário a obrigação de demarcar e averbar no registro de imóvel a reserva legal instituída no artigo 16 do Código Florestal, não resultando disso violação qualquer do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. 2. Agravo regimental improvido (AgRg nos EDcl no REsp 1203101/SP; 1ª Turma; Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j.8.02.2011; DJe 18.02.2011) (grifo nosso). PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. MATA ATLÂNTICA. DECRETO 750/1993. LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. ART. 1.228, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. É inadmissível Recurso Especial quanto a questão que, a despeito da oposição de Embargos Declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal de origem. Incidência da Súmula 211/STJ. 2. Ressalte-se, inicialmente, que a hipótese dos autos não se refere a pleito de indenização pela criação de Unidades de Conservação (Parque Nacional ou Estadual, p.ex.), mas em decorrência da edição de ato normativo stricto sensu (Decreto Federal), de observância universal para todos os proprietários rurais inseridos no BioRevista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 125-141, julho/dezembro - 2011
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ma da Mata Atlântica. 3. As restrições ao aproveitamento da vegetação da Mata Atlântica, trazidas pelo Decreto 750/93, caracterizam, por conta de sua generalidade e aplicabilidade a todos os imóveis incluídos no bioma, limitação administrativa, o que justifica o prazo prescricional de cinco anos, nos moldes do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ. 4. Hipótese em que a Ação foi ajuizada somente em 21.3.2007, decorridos mais de dez anos do ato do qual originou o suposto dano (Decreto 750/1993), o que configura a prescrição do pleito do recorrente. 5. Assegurada no Código Civil de 2002 (art. 1.228, caput), a faculdade de “usar, gozar e dispor da coisa”, núcleo econômico do direito de propriedade, está condicionada à estrita observância, pelo proprietário atual, da obrigação propter rem de proteger a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitar a poluição do ar e das águas (parágrafo único do referido artigo). 6. Os recursos naturais do Bioma Mata Atlântica podem ser explorados, desde que respeitadas as prescrições da legislação, necessárias à salvaguarda da vegetação nativa, na qual se encontram várias espécies da flora e fauna ameaçadas de extinção. 7. Nos regimes jurídicos contemporâneos, os imóveis - rurais ou urbanos - transportam finalidades múltiplas (privadas e públicas, inclusive ecológicas), o que faz com que sua utilidade econômica não se esgote em um único uso, no melhor uso e, muito menos, no mais lucrativo uso. A ordem constitucional-legal brasileira não garante ao proprietário e ao empresário o máximo retorno financeiro possível dos bens privados e das atividades exercidas. 8. Exigências de sustentabilidade ecológica na ocupação e utilização de bens econômicos privados não evidenciam apossamento, esvaziamento ou injustificada intervenção pública. Prescrever que indivíduos cumpram certas cautelas ambientais na exploração de seus pertences não é atitude discriminatória, tampouco rompe com o princípio da isonomia, mormente porque ninguém é confiscado do que não lhe cabe no título ou senhorio. 9. Se o proprietário ou possuidor sujeita-se à função social e à função ecológica da propriedade, despropositado alegar perda indevida daquilo que, no regime constitucional e legal vigente, nunca deteve, isto é, a possibilidade de utilização completa, absoluta, ao estilo da terra arrasada, da coisa e de suas virtudes naturais. Ao revés, quem assim proceder estará se apoderando ilicitamente (uso nocivo ou anormal da propriedade) de atributos públicos do patrimônio privado (serviços e processos ecológicos essenciais), que são “bem de uso coRevista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 125-141, julho/dezembro - 2011
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mum do povo”, nos termos do art. 225, caput, da Constituição de 1988. 10. Finalmente, observe-se que há notícia de decisão judicial transitada em julgado, em Ação Civil Pública, que também impõe limites e condições à exploração de certas espécies da Mata Atlântica, consideradas ameaçadas de extinção. 11. Recurso Especial parcialmente conhecido e não provido (REsp 1109778 / SC, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin; j.10.11.2009; DJe 4.05.2011) (grifo nosso). Em igual sentido vem decidindo o Tribunal de Justiça paulista, merecendo destaque a ementa a seguir transcrita: AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. Determinação de IMEDIATA averbação e recomposição da cobertura florestal da área de reserva legal, com a proibição de qualquer atividade danosa no local. Cabimento - obrigação propter rem, a teor do que dispõem o artigo 186 da constituição federal e o artigo 16 da lei nº 4.771/65 verossimilhança das alegações do ministério público, eis que juntadas as matrículas do imóvel sem que nelas constasse a averbação da área de reserva legal. RECEIO DE DANO IRREPARÁVEL OU DE DIFÍCIL REPARAÇÃO CARACTERIZADO princípios da prevenção e precaução que exigem do estado-juiz especial cautela em temas ambientais apelo desprovido. VISÃO ARCAICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE O CONSIDERA ABSOLUTO E GARANTIDOR DE USO, GOZO E ABUSO DOMINIAL. NOVO TRATAMENTO CONSTITUCIONAL A CONSAGRAR A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE QUE, NA CATEGORIA RURAL, IMPÕE PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE E USO ADEQUADO DOS RECURSOS NATURAIS. OBRIGAÇÕES DAÍ DECORRENTES PARA O PROPRIETÁRIO, INDEPENDENTEMENTE DE APURAÇÃO DE SUA CULPA. A REGENERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA É RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PROPRIETÁRIO RURAL, QUE INDEPENDE DE TER SIDO ELE O EFETIVO CAUSADOR DA DEGRADAÇÃO. OBRIGAÇÃO LEGAL DE REFLORESTAR E DE GARANTIR O RETORNO DA COBERTURA VEGETAL ORIGINAL, EM BENEFÍCIO DA BIODIVERSIDADE, DA SAUDÁVEL QUALIDADE DE VIDA E DA PRÓPRIA SUBSISTÊNCIA DA HUMANIDADE. O TITULAR DO MEIO AMBIENTE SADIO NÃO É APENAS O SER VIVENTE, MAS TAMBÉM AS FUTURAS GERAÇÕES (TJSP – Seção de Direito Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 125-141, julho/dezembro - 2011
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Público – Câmara Reservada ao Meio Ambiente – Apelação Cível n. 0003892-74.2010 – Presidente Prudente Venceslau, Relator Des. José Renato Nalini; J. 25.08.2011). Ou seja, viável que se conclua que a regra da obrigação propter rem, em questões ambientais, vem sendo aplicada por nossos Tribunais quando o atual proprietário é detentor dos direitos de uso e gozo sobre o bem imóvel e, por isso, ele deve assumir a obrigação, por exemplo, de instituir, medir, demarcar e averbar no registro do imóvel a reserva de floresta legal, ou a de recompor o meio ambiente danificado, independentemente de ter sido o causador do dano. Faz-se, assim, necessário que os Magistrados que irão examinar, em primeiro grau, as ações civis públicas ambientais, realizem uma análise pontual, em cada caso concreto, especialmente no que tange à verificação da presença do nexo causal entre a conduta do agente poluidor e o dano ambiental constatado.
3. Princípio poluidor-pagador Um dos princípios que regula a responsabilidade ambiental é o denominado princípio poluidor-pagador, por meio do qual é imputado ao poluidor o custo social da poluição por ele causada. Na lição de Édis Milaré: Assenta-se este princípio na vocação redistributiva do Direito Ambiental e se inspira na teoria econômica de que os custos sociais externos que acompanham o processo produtivo (v.g. o custo resultante dos danos ambientais) precisam ser internalizados, vale dizer, que os agentes econômicos devem levá-los em conta ao elaborar os custos de produção e, consequentemente, assumi-los. Busca-se, no caso, imputar ao poluidor o custo social da poluição por ele gerada, engendrando um mecanismo de responsabilidade por dano ecológico, abrangente dos efeitos da poluição não somente sobre bens e pessoas, mas sobre toda a natureza.3
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MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 1074.
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Funda-se tal princípio na necessidade de obrigar àquele que deu causa ou contribuiu para a degradação ambiental — nesta considerada a poluição ou outra forma de lesão ao meio ambiente — a arcar com todos os custos decorrentes envolvidos, a fim de prevenir e reprimir a prática de outras condutas danosas, bem como de reparar o dano já causado. Inegavelmente, o princípio poluidor-pagador está intimamente ligado à regra da responsabilidade civil objetiva porque não há que se perquirir da culpa daquele que causou a degradação ao meio ambiente: deverá ele recompor a área degradada tenha ou não agido com culpa. No entanto, ainda que a responsabilidade civil prescinda do elemento subjetivo do agente, infere-se, para que haja responsabilização, que o dano verificado tenha sido causado pela conduta do agente poluidor. Ausente o nexo de causalidade, não há como obrigar a reparar.
4. Imprescindibilidade do exame do nexo causal Édis Milaré ensina que: Em matéria de dano ambiental, ao adotar o regime da responsabilidade civil objetiva, a lei nº 6.938/81 afasta a investigação e a discussão da culpa, mas não prescinde do nexo causal, isto é, da relação de causa e efeito entre a atividade (=fonte poluidora) e o dano dela advindo4. Não obstante a relevância desse escólio no sentido de que, em qualquer hipótese de responsabilização civil ambiental, a análise do nexo de causalidade mostra-se imprescindível, não raras as vezes que as ações civis públicas ambientais têm sido julgadas procedentes em primeiro grau, sem a verificação da presença desse nexo causal, apenas com fundamento na regra da obrigação propter rem. Resultado dessa postura omissiva é a condenação de proprietários de imóvel que se veem de mãos atadas a dar cumprimento às obrigações ambientais que lhe são impostas, por não terem livre acesso ao bem, objeto da reparação. O fato de ter transferido a terceiro o uso e o gozo do bem, por meio da celebração de um contrato, está a impedir o proprietário, fisicamente, de 4
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 1254.
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cumprir a obrigação reparatória a que foi condenado, impossibilitado que está de adentrar na área para realizar a recomposição do meio ambiente lesado. Na realidade, o fato que está a merecer maior atenção dos julgadores consiste na transferência dos direitos de uso e gozo ao possuidor direto do imóvel pelo proprietário, que, porque não mais detém a posse física, se vê, na prática, impedido de cumprir a obrigação de reparar in loco o dano causado pelo possuidor direto, e injustiçado pela imposição de multa pecuniária diário pelo descumprimento da obrigação. As condenações que vêm sendo imputadas aos proprietários com fundamento na obrigação propter rem, que, na maioria das vezes, vêm acompanhadas de pena cominatória de imposição de multa diária pelo descumprimento, são, na ordem prática, inexequíveis pelo proprietário que não pode realizar medições, demarcações ou plantio de espécies nativas dentro da área para recuperar a vegetação degradada, nem demolir obras eventualmente realizadas pelo terceiro poluidor, detentor da posse direta. A responsabilidade civil indireta, de caráter excepcional, decorrente de fato de terceiro5 e baseada na obrigação propter rem, utilizada em inúmeras sentenças em ações civis públicas ambientais, não pode servir, ao julgador, de passe livre à aplicação de condenações sem o exame minudente de elementos fáticos e, em especial da presença do nexo de causalidade, sob pena de cometimento de injustiças e de contribuição ao enriquecimento indevido dos verdadeiros responsáveis pela degradação ao meio ambiente. Ainda que o proprietário tenha direito à ação de regresso contra o poluidor, real causador do dano ambiental, isso não é suficiente para suprir os imediatos prejuízos materiais e morais suportados pelo proprietário, até que possa realmente ver-se compensado em face daquele, verdadeiro responsável, que efetivamente deu causa à degradação. Recente julgado oriundo da Câmara Reservada do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, da lavra do eminente Desembargador Ricardo Cintra Torres de Carvalho, bem destaca esse importante fundamento de ordem prática da obrigação propter rem consistente na detenção da posse, sem a qual não há como obrigar à recomposição do imóvel. Dispõe a ementa do mencionado acórdão:
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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1998, p. 85.
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AÇÃO AMBIENTAL. Capivari. Plantação de cana de açúcar. Área de preservação permanente. Dano ambiental Recuperação. - 1. Recuperação ambiental. Obrigação propter rem. A obrigação de recompor o meio ambiente tem sólido fundamento constitucional e legal (LF n° 6.938/81, art. 3º, inc. IV, 14 § 1º; Constituição Federal, art. 225 e § 3º; Constituição Estadual, art. 194 § único; LE n° 9.989/98); a obrigação é considerada ‘propter rem’, acompanha a coisa e é transmitida ao proprietário atual. A obrigação tem um fundamento de ordem legal, foi visto acima; e outro de ordem prática, uma vez que apenas o proprietário atual pode recompor o meio ambiente, já que dele é o domínio e a posse do bem. Dever das gerações presentes de preservar o meio ambiente para as gerações futuras. Precedentes do STJ. - 2. Obrigação propter rem. Solidariedade. Legitimidade passiva. Definida a natureza propter rem das obrigações ambientais, não se fala em solidariedade entre o antigo e o atual proprietário da área. Responsabilidade exclusiva do atual proprietário, no caso, o Município, assegurado o direito de regresso contra os antigos proprietários. Improcedência da ação contra os antigos proprietários reconhecida. - 3. Infração ambiental. Responsabilidade. Não se confunde responsabilidade administrativa com a responsabilidade pela recomposição da área. Aqui não se trata de responsabilidade administrativa, visto que não se questiona ou executa multa, mas de responsabilidade pela recomposição do dano ambiental É hipótese de responsabilidade objetiva que recai sobre o proprietário independente de culpa por força dos art. 225, caput e § 3º, art. 195 da CE, art. 14 § 1º da LF n° 6.938/81 e art. 1º da LE nº 9.989/98. - Procedência parcial Recurso dos co-réus provido para julgar a ação improcedente em relação a eles. Recurso do Município desprovido. Recurso oficial provido em parte (TJSP – Ap. 0000083-06.1998.8.26.0125; Cam. Reservada do Meio Ambiente, Rel. Des. Torres de Carvalho; j.2.06.2011) (grifos nossos). Depreende-se que, embora seja do atual proprietário do imóvel as obrigações ambientais, com direito de regresso contra a anterior proprietáriopoluidor, é o domínio e a posse do bem que ensejam a responsabilização. Vamos mais além: é o pleno exercício do domínio que autoriza a responsabilização ambiental do proprietário de um bem imóvel.
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5. Poder de polícia ambiental De acordo com a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público.”6 Justamente por se tratar de atividade estatal, com características de autoexecutoriedade e de coercibilidade, há de ser exercida apenas pelo próprio Estado ou por seus delegados, nos estritos limites impostos pela lei. Ou seja, afeto à soberania do Estado, sua delegação somente é possível se entregue a pessoas vinculadas ao Estado, consideradas sua longa manus, e se a atividade estiver ligada ao poder de gestão estatal. Édis Milaré salienta que “o poder de polícia ambiental, em favor do Estado, definido como incumbência pelo art.225 da Carta Magna, e a ser exercido em função dos requisitos da ação tutelar, é decorrência lógica e direta da competência para o exercício da tutela administrativa do ambiente”7. A fiscalização para a verificação de não cometimento de abusos nas utilizações de bens e nas atividades privadas “é uma atividade de polícia exclusiva do Poder Público”8. Todo aquele que indiretamente causa uma degradação ambiental é reconhecido, de acordo com a Lei nº 6.938/1981, como poluidor indireto e, como tal, corresponsável pela recomposição do meio ambiente degradado, ao lado do poluidor direto. O artigo 12, da lei nº 6.938 de 31.08.1981, prevê expressamente a obrigação dos bancos estatais de avaliar os critérios socioambientais em seus contratos de mútuo, a fim de evitar que o dinheiro público seja meio para a degradação ambiental. Com base nesse dispositivo, decisões judiciais vêm reconhecendo a responsabilidade civil solidária das instituições oficiais por danos ambientais decorrentes do financiamento de obras e atividades sem a 6 7
8
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Atlas, 2010, p.117. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 1132. O autor faz, ainda, menção ao fato de que as instituições bancárias oficiais editaram, em 1.995, uma carta de princípios denominada Protocolo Verde, comprometendo-se a incorporar uma variável ambiental no crédito e também a evitar o uso de recursos públicos em atividades lesivas ao meio ambiente. Em 2009 os termos desse Protocolo Verde foram ratificados e ampliados no denominado Protocolo Verde II firmado pelo Ministério Público do Meio Ambiente (MPMA) e pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban), e vários bancos privados aderiram a essa carta de intenções (Idem ibidem, p.1264). MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, p. 447.
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observância das normas, critérios e padrões expedidos pelo Conama. Todavia, a ausência do nexo de causalidade entre o evento danoso e a conduta das instituições bancárias, bem como, a impossibilidade prática destas exercerem uma fiscalização no local sobre as atividades desenvolvidas por aquele que tomou emprestado um crédito, são aspectos impeditivos de sua responsabilização por obrigações ambientais decorrentes de eventual conduta ilícita ambiental adotada por seus devedores. Inviável que uma instituição financeira ou bancária crie um setor de fiscalização com a finalidade de avaliar, não somente o trâmite do processo de licenciamento ambiental, como a verificação da adequação das atividades executadas com os seus recursos. Em outros termos, ao mesmo tempo em que isso seria uma total transferência do encargo do Poder de Polícia estatal às instituições financeiras, entendemos de duvidosa juridicidade uma exigência dessa natureza9. O comprometimento das instituições financeiras está limitado à exigência da apresentação da licença ambiental concedida pelo órgão competente, bem como da correspondente documentação10. A realização de um exame paralelo ao da responsabilidade civil ambiental das instituições financeiras e/ou bancárias sugere que também o proprietário particular não pode adotar providências condicionadas ao Poder de Polícia estatal, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da legalidade.
6. Formas de reparação do dano ambiental e legitimidade passiva das ações coletivas ambientais A já citada Lei nº 6.938, de 31.08.1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, instituiu, no § 1º de seu artigo 14, a teoria da responsabilidade civil ambiental de natureza objetiva. (...) A responsabilidade objetiva ambiental significa que quem danificar o ambiente tem o dever jurídico de repará-lo. Presente, pois, o binômio 9
10
MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p.1271. Idem ibidem, p. 1271.
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dano/reparação. Não se pergunta a razão da degradação para que haja o dever de indenizar e/ou reparar. A responsabilidade sem culpa tem incidência na indenização ou na reparação dos “danos causados ao meio ambiente e aos terceiros afetados por sua atividade” (art. 14, § III, da Lei nº 6.938/81). Não interessa que tipo de obra ou atividade seja exercida pelo que degrada, pois não há necessidade de que ela apresente risco ou seja perigosa. Procura-se quem foi atingido e, se for o meio ambiente e o homem, inicia-se o processo lógico-jurídico da imputação civil objetiva ambiental. Só depois é que se entrará na fase do estabelecimento do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano.11 . Ao impor, ao poluidor e ao predador, a obrigação de recuperar e/ou de indenizar os danos ambientais causados, a Lei Federal nº 6.938/81 previu duas modalidades de reparação: (i) a recomposição do status quo ante natural; e (ii) o ressarcimento pecuniário a título de compensação pela degradação. A melhor doutrina aponta como principais formas de restauração do dano ambiental (i) a natural ou in specie e (ii) a indenização pecuniária, salientando que ambas têm eficácias distintas, pois a primeira — a restauração natural ou in specie — restaura o equilíbrio dinâmico do sistema ecológico afetado, e por isso é considerada a modalidade ideal; a segunda — a indenização pecuniária — é admitida quando aquela [restauração natural ou in specie] revela-se insuficiente ou inviável, razão pela qual é tida como modalidade subsidiária. Vale mencionar que a imposição de uma obrigação pecuniária ao poluidor tem finalidade de caráter pedagógico, consistente em evitar a prática de comportamento semelhante pelo próprio causador do dano ambiental ou por terceiros. Em regras, as ações civis públicas de natureza ambiental objetivam a condenação do poluidor à obrigação de fazer que pode apresentar diferentes facetas, a saber: (i) obrigação de recompor, em determinado prazo, a área degradada, restabelecendo, por exemplo, a cobertura florestal destinada à Reserva Legal com plantio racional e tecnicamente orientado de espécies nativas e endêmicas da região; (ii) obrigação de instituir, medir, demarcar e averbar no Registro de Imóveis competente a Reserva de Floresta Legal; (iii) obrigação de garantir a execução das medidas reparatórias mediante depósito 11
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991, p.369.
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de valor suficiente para tanto, a ser estabelecido em liquidação; (iv) obrigação de pagar uma indenização quantificada em perícia pelos danos ecológicos decorrentes da utilização ilegal dos recursos naturais a ser recolhida ao Fundo Estadual de Reparação de Interesses Difusos Lesados; e (v) obrigação de pagar multa diária pelo descumprimento (pedido cominatório). Há, ainda casos em que a ação civil pública ambiental visa a condenação à adoção de determinada providência, tal como a elaboração e implementação de um plano de emergência dentro de determinado prazo, a ser submetido à aprovação do órgão ambiental competente, sob pena de aplicação de uma multa diária. Os parâmetros que possibilitam a definição das pessoas legitimadas passivas das ações coletivas ambientais podem ser extraídos do teor do artigo 225, caput, da Constituição Federal. Qualquer pessoa física ou jurídica, de direito público e/ou de direito privado, pode figurar no polo passivo das ações civis públicas ambientais, de âmbito coletivo, desde que “esteja encartada no conceito de poluidor, previsto no art.3º da Lei nº 6.938/81”12. O réu de uma ação civil pública ambiental há de ter, de alguma forma, direta ou indireta, contribuído ou participado da ação lesiva ao meio ambiente, objeto da demanda coletiva. Diretamente por ter adotado conduta causadora da lesão ambiental, e/ou indiretamente por omissão, isto é, por ter deixado de adotar conduta que deveria ter adotado, como por exemplo, a não fiscalização por determinado órgão público, federal, estadual ou municipal, de determinada atividade potencialmente poluidora. Tais ponderações permitem sugerir que o estar na posse direta do bem é condição que se mostra necessária à legitimação passiva nas ações civis públicas de natureza ambiental e à consequente responsabilização civil pela degradação ou pela lesão causada ao meio ambiente.
7. Considerações finais Feita esta breve análise de algumas das questões que envolvem a responsabilidade civil ambiental do proprietário de bem imóvel, chama-se a atenção dos julgadores a que a regra da obrigação propter rem não deva ser 12
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. São Paulo: Ed.Saraiva, 2010, p.545.
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aplicada, sem reservas, a todo e qualquer titular de área ambiental degradada. A obrigação propter rem ambiental considerada à luz do princípio poluidorpagador e da responsabilidade ambiental de natureza objetiva demonstra a necessidade de seja procedido um exame pontual, em cada caso concreto, especialmente com relação às hipóteses em que o proprietário não é o detentor da posse direta do imóvel e, por isso, vê-se impossibilitado de dar cumprimento à obrigação reparatória do dano ao meio ambiente a que não deu causa ou não teve qualquer parcela de participação. Deve haver maior cautela por parte dos titulares das ações civis públicas ambientais, bem como dos julgadores de demandas dessa natureza no que tange a aplicação da regra da obrigação propter rem ao proprietário de bem imóvel como fundamento de sua responsabilização pelas diferentes formas de recomposição do meio ambiente degradado. A responsabilidade civil do proprietário deve ser analisada, caso a caso, para se evitar a eternização de situações injustas e a assunção de prejuízos materiais e morais por parte daquele que está impedido de dar cumprimento à obrigação civil de reparar os danos ambientais causados por outrem. Ainda que, de início, do polo passivo da ação civil pública figure o atual proprietário de bem imóvel, a demonstração, no curso da demanda, de que ele não detém a posse direta da área degradada e que em nada contribuiu para o dano ambiental apontado, impõe sua exclusão ante o reconhecimento de sua ilegitimidade passiva e da impossibilidade prática de cumprir a obrigação ambiental, sob todas as suas possíveis facetas. Há que se ter, então, especial atenção na concessão da antecipação da tutela de urgência nas ações civis públicas ambientais, a fim de que não sejam impostas, indevidamente, obrigações de fazer (v.g. plantar vegetação nativa, demolir construção, elaborar ou implementar determinado plano de emergência, etc.) a quem não detém fisicamente a posse do bem imóvel, sob pena de se estar exigindo uma obrigação impossível de se concretizar ou até mesmo inexequível no plano prático. Idêntico cuidado há de ter os Magistrados na imposição cominatória de multa diária por descumprimento de obrigação de fazer de caráter ambiental que recaia sobre o proprietário que não detém a posse direta do bem imóvel, evitando-se, destarte, penalizar-se quem está de mãos absolutamente atadas ao respectivo adimplemento.
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Os recursos no projeto de reforma do Código de Processo Penal Rômulo de Andrade Moreira1
Procurador-Geral de Justiça Adjunto na Bahia
SUMÁRIO: I - Introdução. II - Do agravo. III - Da apelação. IV - Dos embargos infringentes. V - Dos embargos de declaração. VI - Do recurso ordinário constitucional. VII - Dos recursos especial e extraordinário. VIII - Do processo e do julgamento dos recursos nos tribunais. IX – Bibliografia.
I - Introdução
C
oube-me nesta revista tratar especificamente dos recursos em espécie previstos no Código de Processo Penal projetado, ora em tramitação na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei do Senado nº 156/2009), depois de ter sido aprovado no Senado Federal (Parecer nº 1.636/2010).
1
Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs), na graduação e na pós-graduação. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador (Unifacs).
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II - Do agravo Os arts. 473 a 479 tratam do recurso denominado simplesmente de agravo, em substituição ao “atual” Recurso em Sentido Estrito. Lamentavelmente, repetiu-se o equívoco em indicar exaustivamente as decisões agraváveis, ao invés de estabelecer, genericamente, a possibilidade deste recurso contra as decisões interlocutórias2, o que acabaria, em grande parte, com a (forçosa) interposição da correição parcial e com a impetração de mandados de segurança (por parte acusação), pois muitas decisões interlocutórias de natureza penal simplesmente continuarão irrecorríveis por força da taxatividade do rol estabelecido no art. 473, impelindo o Ministério Público, o querelante (na ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública) e, algumas vezes, o assistente da acusação, a continuar manejando a correição parcial e o mandado de segurança para combaterem decisões que lhe foram desfavoráveis. Quanto ao réu, continuará tendo o caminho do habeas corpus, nada obstante as restrições inadmissíveis impostas pelos nossos tribunais a esta garantia constitucional (vide, a título de exemplo, o Enunciado 691 da súmula do Supremo Tribunal Federal e a impossibilidade de revolvimento do conjunto probatório e do aprofundado exame de provas, conforme iterativa jurisprudência do Pretório Excelso). De toda maneira, e nada obstante a taxatividade das hipóteses elencadas no referido artigo, será possível a utilização da analogia e a interpretação extensiva, com fundamento no disposto no art. 6º., do projeto, segundo o qual “a lei processual penal admitirá a analogia e a interpretação extensiva, vedada, porém, a ampliação do sentido de normas restritivas de direitos e garantias fundamentais”. A vedação legal, evidentemente e muito pelo contrário, não atinge os dispositivos que tratam de recursos. O que não será possível, em respeito à regra da taxatividade dos recursos, é ampliar a utilização do agravo para situações não previstas no rol estabelecido na lei e não passíveis de serem abrangidas por interpretação extensiva.3 O agravo poderá ser interposto no prazo de dez dias. Caberá contra a decisão que receber, no todo ou em parte, a denúncia, a queixa subsidiária 2
Note-se que “são irrecorríveis as decisões interlocutórias tomadas no âmbito do Sistema dos Juizados Especiais, salvo no que se refere às medidas cautelares pessoais ou reais.” (art. 308, § 2º., do PLS). Neste sentido, Ada Pelegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes, na obra “Recursos no Processo Penal”. 7.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011, p. 34 e 133.
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ou os respectivos aditamentos, bem como da que indeferir o aditamento da denúncia ou da queixa subsidiária (aqui temos um exemplo do chamado recurso pro et contra, cabível nas duas hipóteses de sucumbência, ao contrário daquele secundum eventum litis). Ainda que cabível o recurso, entendo que se as decisões de recebimento da denúncia, queixa subsidiária e aditamentos traduzirem manifesta ilegalidade ou abuso de poder, e tendo em vista a potencial ameaça ao direito à liberdade (ínsita sempre que alguém responde a um processo por crime), não se poderá deixar de admitir, ainda que excepcionalmente, a impetração de habeas corpus para afastar imediatamente, e com mais eficácia, a referida ameaça. Como se sabe, esta garantia constitucional deve ser também conhecida e concedida sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Logo, se a medida foi abusiva (não necessária), cabível a utilização do habeas corpus que visa a tutelar a liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. E da decisão que não receber a denúncia ou a queixa subsidiária? Caberá apelação, já que se trata de uma decisão que extingue o processo, nos termos do art. 267, I e II: “São causas de extinção do processo, sem resolução do mérito, a qualquer tempo e grau de jurisdição: I – o indeferimento da denúncia ou queixa subsidiária; II – a ausência de quaisquer das condições da ação ou de justa causa, bem como dos pressupostos processuais”. Será igualmente agravável a decisão interlocutória na qual o Juiz decida acerca da competência do Juízo, seja declarando ou infirmando a competência (recurso também pro et contra). A propósito, segundo o projeto de lei, a incompetência territorial poderá ser reconhecida pelo Juiz de ofício (arts. 95, § 1º, e 443) ou no julgamento da respectiva exceção (art. 442). Em ambos os casos, as decisões serão agraváveis. A decisão de pronúncia (art. 327) também desafiará este recurso, hipótese em que terá sempre efeito suspensivo, impedindo, portanto, a realização da sessão do Tribunal do Júri. Também comportarão recurso de agravo as várias decisões relativas às medidas cautelares, sejam reais ou pessoais, a saber: as que deferirem, negarem, impuserem, revogarem, prorrogarem, mantiverem ou substituíremnas. Estas medidas cautelares, reais e pessoais, estão disciplinadas e indicadas nos arts. 525 a 654 do PLS. Nada obstante a previsão recursal, entendo, pelos mesmos motivos ditos acima, ser cabível, excepcionalmente, o remédio heróico para evitar dano imediato e irreparável à liberdade de locomoção Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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do indiciado ou acusado, quando patente a ilegalidade ou o abuso de poder (por exemplo, quando decretada a medida cautelar por Juiz incompetente ou tratar-se de decisão sem fundamentação). Também caberá agravo sempre que o Juiz conceder, negar ou revogar a suspensão condicional do processo, em qualquer das hipóteses previstas no Código (ou mesmo, e eventualmente, em lei extravagante, salvo disposição em contrário). Veja-se no projeto de lei o art. 266 (“Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”, bem como o art. 150: “Se o acusado, citado por edital, não apresentar resposta escrita nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar, mediante requerimento do Ministério Público ou do defensor público, a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar quaisquer das medidas cautelares previstas no art. 533”. Outrossim, são passíveis da utilização do agravo as decisões sobre produção e licitude da prova e seu desentranhamento (“Art. 167. São inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos e as delas derivadas. Parágrafo único. A prova declarada inadmissível será desentranhada dos autos e arquivada sigilosamente em cartório”), e também quando o Juiz recusar a homologação do acordo no procedimento sumário, previsto no art. 283. Da decisão que inadmitir a apelação também caberá agravo, no prazo de dez dias, nos próprios autos do processo. Neste caso, o Juiz de Direito não poderá negar seguimento ao agravo, ainda que intempestivo. Se o fizer, para a acusação será cabível a interposição de correição parcial (ou mandado de segurança), e para a defesa o habeas corpus. Observa-se, mutatis mutandis, que a orientação já firmada pelo Supremo Tribunal Federal é a de que “os órgãos jurisdicionais de origem não podem reter o processamento de agravo de instrumento, destinado a assegurar o conhecimento de recurso extraordinário que sofreu juízo negativo de admissibilidade.” (Reclamação 6074, relator Ministro Joaquim Barbosa). Nos tribunais, da decisão que inadmitir o recurso extraordinário ou o recurso especial também caberá agravo, no prazo de dez dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça. Por fim, da decisão que julgar a impugnação Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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do ato de cumprimento da carta rogatória cabe agravo, cuja legitimidade e interesse são de qualquer interessado ou do Ministério Público (art. 724). Quanto ao procedimento, o agravo deverá ser interposto diretamente no tribunal competente (todavia, poderá a petição do agravo ser postada no correio com aviso de recebimento ou transmitida por meio eletrônico, na forma da lei ou dos regimentos internos dos tribunais), e a sua interposição não retardará o andamento do processo. O relator sorteado para o recurso poderá, a seu critério, dar-lhe efeito suspensivo quando, sendo relevante a fundamentação do pedido, da decisão puder resultar lesão irreparável ou de difícil reparação (presentes, portanto, o fumus boni juris e o periculum in mora). Esta decisão somente é passível de reforma no julgamento do agravo, salvo se antes o relator a reconsiderar. Neste caso, ou seja, havendo reconsideração por parte do relator, entendo cabível o agravo regimental previsto no art. 39 da lei nº 8.038/90, caso haja evidente gravame causado ao agravante. A petição de agravo será obrigatoriamente instruída com cópias da denúncia ou da queixa subsidiária, aditamentos e respectivas decisões de recebimento ou indeferimento, bem como da decisão agravada, certidão da respectiva intimação, além de outras peças que o agravante entender úteis; a formação do instrumento ficará a cargo do agravante, que declarará, sob as penas da lei, a autenticidade dos documentos juntados. É necessário e imprescindível que o recorrente, no prazo de três dias, requeira a juntada, aos autos do processo principal, de cópia da petição do agravo e do comprovante de sua interposição, assim como a relação dos documentos que o instruíram. Se não o fizer, o agravo será inadmitido. Neste caso, também entendo cabível o agravo regimental acima referido. Caberá o juízo de retratação, ou seja, o juiz, em face de cópia da petição do agravo, do comprovante de sua interposição e da relação dos documentos que o instruíram (peças estas que também foram juntadas aos autos), poderá reformar a decisão, devendo ser o relator informado desta nova decisão, a fim de que se considere prejudicado o agravo. Se o Juiz reformar a decisão, entendo ser cabível a interposição de um novo agravo naquelas hipóteses em que cabe o recurso pro et contra (agora impetrado pela parte contrária), ou mesmo a apelação (art. 480, caput, c/c arts. 267 e 268). No respectivo tribunal, e após a regular distribuição, o relator poderá negar-lhe seguimento, liminarmente, em caso de intempestividade ou quando for manifestamente inadmissível ou estiver prejudicado. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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Aqui também cabível o agravo regimental. Se não for o caso de rejeição liminar, o recurso deverá ser conhecido e julgado no mérito se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com Enunciado de súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal. Também se houver Enunciado de súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido da decisão recorrida. Caso entenda necessário, o relator poderá requisitar informações ao Juiz, que deverá prestá-las em até dez dias. O agravado deverá ser notificado para responder no prazo de dez dias, facultando-lhe juntar documentação que entender conveniente. Atentar para o art. 467 do projeto que exige a resposta do defensor a recurso interposto como condição recursal de validade. Porém, no caso de agravo contra o indeferimento de pedido de produção de prova, o agravado não será notificado se a medida puder comprometer a eficácia do recurso (quando, por exemplo, e por razões óbvias, tratar-se de um indeferimento da interceptação das comunicações telefônicas – arts. 245 e seguintes). Neste caso, entendo, o Juiz deverá fundamentadamente justificar as razões pelas quais não determinou a notificação do agravado, em respeito ao contraditório e à dialeticidade que caracteriza todo e qualquer procedimento recursal.
III – Da apelação Os arts. 480 a 491 tratam do recurso de apelação, cujo prazo de interposição será de 15 dias, sendo cabível contra decisões que extingam o processo, com ou sem resolução do mérito, dentre outras, aquelas elencadas no próprio projeto de lei, a saber (arts. 267 e 268): indeferimento da denúncia ou queixa subsidiária; ausência de quaisquer das condições da ação; a usência de justa causa; ausência dos pressupostos processuais; impronúncia (art. 328); absolvição sumária; extinção da punibilidade; aplicação da pena no procedimento sumário (art. 283); condenação (art. 423); absolvição própria e imprópria (art. 421). De se observar, como dito acima, que caberá agravo quando o Juiz receber, no todo ou em parte, a denúncia, a queixa subsidiária ou os respectivos aditamentos, bem como da que indeferir o aditamento da denúncia ou da queixa subsidiária. As decisões de pronúncia (art. 327) e de desclassificação (art. 332) também desafiarão o agravo. Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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No caso de extinção da punibilidade, a apelação será cabível, segundo penso, ainda que a decisão tenha sido tomada antes de proposta a ação penal (art. 51), já que se trata de uma decisão de mérito, não agravável, portanto. Das decisões proferidas pelo Tribunal do Júri caberá apelação: quando ocorrer nulidade posterior à pronúncia (devendo o réu ser submetido a novo júri, caso procedente a apelação); quando a sentença do Juiz presidente for contrária a lei expressa ou à decisão dos jurados (caso em que o tribunal apenas fará a devida retificação); se houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança (também neste caso o tribunal tão-somente procederá à devida retificação) e, por último, na hipótese de veredicto manifestamente contrário à prova dos autos. Neste último caso, procedente o apelo, o tribunal sujeitará o acusado a novo julgamento, não se admitindo, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação, prevalecendo aqui a soberania dos veredictos (art. 5º., XXXVIII, c). Caso o réu seja submetido a novo Júri (hipóteses 1 e 4), impossível a reformatio in pejus indireta, ou seja, a nova sentença a ser proferida no segundo julgamento, em nenhuma hipótese, poderá ser mais gravosa que a primeira; neste sentido, ainda que despiciendo (pois decorreria de interpretação constitucional), há regra expressa contendo a proibição (art. 471). Atendendo-se à regra processual da unirrecorribilidade das decisões, o projeto de lei estabelece que quando cabível a apelação, não se admitirá agravo, ainda que se recorra somente de parte da decisão. Exemplo: caberá apelação, e não agravo, contra sentença condenatória, ainda que o apelante se insurja apenas em relação a medida cautelar imposta, mantida, revogada, substituída, etc. (art. 423, parágrafo único). Quando interposto em favor do acusado, este recurso será recebido também no efeito suspensivo, devendo o juiz decidir, fundamentadamente, sobre a necessidade de manutenção ou, se for o caso, de imposição de medidas cautelares, sem prejuízo do seu conhecimento. Aqui deve prevalecer o princípio constitucional da presunção de inocência e a garantia ao duplo grau de jurisdição. A relativização do princípio e da garantia deve ser absolutamente excepcional e devidamente fundamentada. Obviamente, como fiscal da lei e órgão de Justiça, o Ministério Público poderá apelar em favor do acusado. Nos crimes da competência do Tribunal do Júri ou do Juiz singular, se da sentença absolutória, de impronúncia ou que extinguir a punibilidade Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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não for interposta apelação pelo Ministério Público no prazo legal, terão legitimidade para o recurso a vítima ou, no caso de menoridade ou de incapacidade, seu representante legal, ou, na sua falta, por morte ou ausência, seus herdeiros, conforme o disposto na legislação civil, ainda que não tenha se habilitado como assistente. Neste caso, o prazo, contado a partir do dia seguinte em que terminar o do Ministério Público (recurso supletivo, portanto), será de cinco dias para o assistente e de 15 dias para a vítima não habilitada e demais legitimados. Uma observação: a doutrina sempre justificou e admitiu este prazo em triplo concedido à vítima não habilitada como assistente (e aos seus sucessores), exatamente em razão do ofendido (e aquelas demais pessoas) não terem sido intimados da sentença (arts. 425 e 426 do projeto de lei), razão pela qual se justificava um prazo maior pela dificuldade de conhecimento oficial da decisão. No entanto, estabelecendo o projeto de lei que da sentença será também comunicada a vítima, parece-nos, à luz do princípio da igualdade, que o prazo deve ser o mesmo de cinco dias (art. 91: “São direitos assegurados à vítima, entre outros: (...) V – ser comunicada: (...) d) da condenação ou absolvição do acusado. (...) § 2º. As comunicações de que trata o inciso V do caput deste artigo serão feitas por via postal ou endereço eletrônico cadastrado e ficarão a cargo da autoridade responsável pelo ato.”). Ainda neste caso, observa-se o Enunciado 448 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. O assistente da acusação arrazoará em cinco dias, após o prazo do Ministério Público. Em caso de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, o Ministério Público terá vista dos autos para arrazoar, no mesmo prazo. A apelação devolverá inteiramente ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada pela acusação, podendo também, neste caso, o tribunal conhecer de matéria que, de qualquer modo, favoreça o acusado, pois, como se sabe, é perfeitamente possível no processo penal a reformatio in pejus para a acusação ou a impropriamente chamada reformatio in mellius (art. 471, § 2º.). Por óbvio, não terá efeito suspensivo a apelação da sentença absolutória devendo o réu ser posto imediatamente em liberdade. Tratando-se, porém, de apelação contra sentença absolutória imprópria (art. 421, parágrafo único, III), entendo que o recurso tem sim efeito suspensivo, devendo-se aguardar o trânsito em julgado do acórdão para o início do cumprimento da medida de segurança (como é cediço, trata-se de uma sentença em que o Juiz afirma a tipicidade e ilicitude de um fato, certifica a autoria e aplica uma medida Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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de segurança restritiva (tratamento ambulatorial) ou privativa da liberdade (internação), razões pelas quais não pode ser executada imediatamente, em homenagem ao princípio da presunção de inocência). Quanto ao procedimento no Juízo a quo, deverá o Juiz, ao receber a apelação, mandar dar vista ao apelado para responder, no prazo de 15 dias. Se houver mais de um recorrido, o prazo será comum, contado em dobro, devendo o juiz assegurar aos interessados o acesso aos autos. De toda maneira, em qualquer caso, o prazo será contado a partir da data da notificação das partes. A propósito, entendo não ser possível a subida do recurso sem as razões e contrarrazões, em obediência ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório. Neste sentido, atentar para o disposto no art. 467: “A resposta do defensor é condição de validade do recurso, mesmo que a decisão seja anterior ao oferecimento da denúncia. Ademais, é indispensável a intervenção do Ministério Público nas ações penais públicas e na ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública. Neste sentido, conferir o art. 57 do projeto de lei, bem como o art. 158, II, além, evidentemente, do art. 129, I da Constituição. Apenas em relação ao assistente da acusação admito a subida dos autos sem as razões ou contrarrazões recursais. Ao comentarem o art. 601 do atual Código de Processo Penal (que admite a subida dos autos sem as razões), afirmam Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Magalhães Gomes Filho que o dispositivo “infringe o princípio do contraditório”, ferindo, outrossim, o princípio da dialeticidade dos recursos, pois deixa de estabelecer “o imprescindível contraditório em matéria recursal.”4 Como se sabe, o devido processo legal vem consagrado pela Constituição Federal, ao estabelecer que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e ao garantir a qualquer acusado em processo judicial o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; todos estes direitos e garantias estão estabelecidos taxativamente no texto constitucional. Aliás, dispõe o art. 3º. do projeto de lei que “todo processo penal realizar-se-á sob o contraditório e a ampla defesa, garantida a efetiva manifestação do defensor técnico em todas as fases procedimentais.” Como ensina Alberto Binder, “ninguém pode ficar indiferente em face da efetiva vigência destes direitos e garantias. Eles são o primeiro – e principal – escudo protetor da pessoa humana e o respeito a estas salvaguardas é o que 4
Recursos no Processo Penal. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2009, p. 36.
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diferencia o Direito – como direito protetor dos homens livres – das ordens próprias dos governos despóticos, por mais que estas sejam redigidas na linguagem das leis.”5 Além do texto constitucional, refiro-me aos pactos internacionais subscritos e adotados pelo nosso Direito Positivo. Assim, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos firmado em Nova York, em 19 de dezembro de 1966 e promulgado pelo Governo brasileiro através do Decreto nº. 592/92, estabelece em suas cláusulas alguns preceitos garantidores e reveladores de um devido processo legal, assim como citado o Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, promulgado entre nós pelo Decreto nº. 678/92 (Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Segundo o Ministro Gilmar Mendes: (...) O direito de defesa constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana. Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (“rechtliches Gehör”) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18).“ (HC 85294). Por outro lado, não há devido processo legal sem o contraditório, mesmo porque, “para que haya un proceso penal propio de un Estado de Derecho es irrenunciable que el inculpado pueda tomar posición frente a los reproches formulados en su contra, y que se considere en la obtención de la sentencia los puntos de vista sometidos a discusión”.6 A exigência do contraditório representa 5 6
Introdução ao Direito Processual Penal (trad. Fernando Zani). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 43. TIEDEMANN, Klaus. Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona: Ariel, 1989, p. 184.
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a plena igualdade de oportunidades processuais. A respeito, Willis Santiago Guerra Filho afirma: Daí podermos afirmar que não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário (cf. Nery Jr., 1995, p. 25). Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães. (grifos no original).7 Importante, outrossim, extrairmos esta lição de Bacigalupo, ao afirmar que o devido processo legal: Aparece como un conjunto de principios de carácter suprapositivo y supranacional, cuya legitimación es sobre todo histórica, pues proviene de la abolición del procedimiento inquisitorial, de la tortura como medio de prueba, del sistema de prueba tasada, de la formación de la convicción del juez sobre la base de actas escritas en un procedimiento fuera del control público. Es, como la noción misma de Estado democrático de Derecho, un concepto previo a toda regulación jurídico positiva y una referencia reguladora de la interpretación del Derecho vigente. (grifo no original).8 Apresentada a resposta, o Juiz, se for o caso, reexaminará os requisitos de admissibilidade do recurso. Da decisão que inadmitir a apelação caberá agravo, no prazo de dez dias, para o tribunal competente, nos próprios autos do processo. Como adiantei acima, neste caso, o Juiz de Direito não poderá negar seguimento ao agravo, ainda que intempestivo (se o fizer, poderá o apelante utilizar-se dos remédios constitucionais – mandado de segurança ou habeas corpus, conforme o caso – ou mesmo a correição 7 8
Introdução ao Direito Processual Constitucional. São Paulo: Síntese, 1999, p. 27. El Debido Proceso Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2005, p. 13.
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parcial). Observa-se, mutatis mutandis, que a orientação já firmada pelo Supremo Tribunal Federal é a de que “os órgãos jurisdicionais de origem não podem reter o processamento de agravo de instrumento, destinado a assegurar o conhecimento de recurso extraordinário que sofreu juízo negativo de admissibilidade.” (Reclamação 6074, relator Ministro Joaquim Barbosa). O processo subirá em traslado se houver mais de um acusado e todos não tiverem sido julgados ou todos não tiverem apelado, o qual deverá ser remetido ao tribunal no prazo de 15 dias, cabendo ao serviço judiciário promover a extração das peças dos autos. No Juízo ad quem, o tribunal, câmara, turma ou outro órgão fracionário competente poderá, mediante requerimento do apelante, proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir testemunhas ou determinar outras diligências. É óbvio que neste caso, nada obstante o silêncio do projeto de lei deverão estar presentes um dos membros do Ministério Público que atuem junto ao respectivo órgão julgador e o advogado da defesa (ou um Defensor Público), sob pena de nulidade absoluta do ato processual, tendo em vista o descumprimento do devido processo legal. Durante o processamento da apelação, as questões relativas à situação do preso provisório serão decididas pelo juiz da execução (e não mais pelo Juiz da causa), se necessário em autuação suplementar, ressalvada a competência do relator para decidir sobre a concessão ou não do efeito suspensivo, bem como acerca da necessidade de manutenção ou substituição das medidas cautelares, com comunicação da decisão ao juízo e posterior encaminhamento dos autos ao Ministério Público. Esta decisão do relator poderá ser contestada pelo já referido agravo regimental ou mesmo por habeas corpus, pelas razões acima expostas. Lembremos que as decisões do Juiz da Vara de Execuções Penais sujeitam-se ao agravo previsto no art. 197 da Lei nº. 7.210/84 (Lei de Execução Penal). A apelação não será incluída em pauta antes do agravo interposto no mesmo processo. Se ambos os recursos houverem de ser julgados na mesma sessão, terá precedência o agravo.
IV – Dos embargos infringentes Os embargos infringentes são tratados entre os arts. 492 a 496 do projeto Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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de lei, sendo oponíveis em relação a acórdãos condenatórios não unânimes que, apenas em grau de apelação, houver reformado sentença de mérito, em prejuízo do réu. É, portanto, recurso privativo da defesa e devem ser opostos no prazo de dez dias. Todavia, entendo também ter o Ministério Público legitimidade e interesse para recorrer em favor do réu, tendo em vista a sua destinação constitucional e legal. Neste sentido, conferir o art. 57 do projeto de lei. O efeito devolutivo do recurso limita-se à matéria objeto da divergência no tribunal. Observa-se que só é cabível tal recurso em relação a acórdãos proferidos no julgamento de apelações, donde não ser oponível quando se tratar de acórdãos proferidos em ações penais originárias ou no julgamento de quaisquer outros recursos ou ações autônomas de impugnação (habeas corpus, mandado de segurança ou revisão criminal). O recorrido tem o mesmo prazo de dez dias para oferecer contrarrazões, após devidamente notificado. Os regimentos internos dos tribunais deverão estabelecer o procedimento para o processamento e julgamento dos embargos, devendo o órgão julgador ser obrigatoriamente composto de modo a garantir a possibilidade de reforma do acórdão da apelação; ou seja, os integrantes deste órgão de revisão não podem ser todos os mesmos que compuseram o órgão que julgou a apelação, mesmo porque estes já expuseram, decidindo, o seu entendimento. Exatamente por isso, do sorteio do novo relator será excluído aquele que exerceu tal função no julgamento da apelação. Como é perfeitamente possível que somente capítulo do acórdão não tenha sido unânime, em relação aos demais capítulos (decididos unanimemente) poderão ser cabíveis os recursos constitucionais – especial e extraordinário - em clara exceção à regra da unirrecorribilidade das decisões judiciais. Neste caso, o prazo para interposição dos recursos extraordinário e especial ficará sobrestado até que o recorrente seja intimado da decisão dos embargos infringentes, inclusive em relação à parte unânime do acórdão recorrido.
V - Dos embargos de declaração Segundo dispõem os arts. 497 e 498 do projeto de lei, caberão embargos de declaração quando houver na decisão proferida obscuridade ou contradição ou quando for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o Juiz ou tribunal (uma questão federal ou constitucional, por exemplo) e só poderão ter efeitos infringentes (ou modificativos) na medida do esclarecimento da Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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obscuridade, da eliminação da contradição ou do suprimento da omissão, devendo, neste caso, ser ouvida a parte contrária no prazo de cinco dias. A propósito, admito perfeitamente que em sede de embargos de declaração possa ser a pena aplicada alterada, “sendo preferível corrigir o erro em embargos de declaração – nos limites da contradição ou omissão – do que chegar ao mesmo resultado pela via de outro recurso”, como afirmam Ada Pelegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Magalhães Gomes Filho.9 Dispõe o projeto de lei que os embargos serão opostos uma única vez. Com base na doutrina acima citada e em farta jurisprudência, não vejo sentido nesta limitação, ou seja, em não aceitar a possibilidade de oposição de novos embargos declaratórios da decisão proferida nos primeiros embargos: “o que não pode haver é a reprodução da crítica feita nos primeiros embargos” ou a “arguição pela primeira vez da existência de qualquer dos defeitos apontados na decisão já embargada.”10 É preciso, portanto, amoldar esta limitação legal à garantia constitucional ao duplo grau de jurisdição e à da fundamentação das decisões judiciais. O prazo para os embargos é de cinco dias (também nos Juizados Especiais Criminais, caso em que poderão ser opostos também oralmente – art. 310) e devem ser oponíveis em petição escrita dirigida ao Juiz (contra sentença) ou relator (em relação a acórdão), com indicação do ponto obscuro, contraditório ou omisso. Quando opostos contra sentença, deverão ser julgados no prazo de cinco dias. Já nos tribunais, o relator apresentará os embargos em mesa na sessão subsequente, independentemente de notificação, proferindo voto. É importante observar que se forem tempestivamente interpostos, interrompem o prazo de interposição de recursos para qualquer das partes, ainda quando não admitidos e inclusive no procedimento sumariíssimo (art 310, §2º). Em caso de intempestivamente, por óbvio, não terão tal efeito.
VI - Do recurso ordinário constitucional Atendendo à determinação constitucional, os arts. 499 a 503 tratam do recurso ordinário ao Superior Tribunal de Justiça das decisões denegatórias de habeas corpus e de mandado de segurança. O prazo de interposição será de dez dias e deve ser apresentado nos próprios autos e apenas quando a 9 10
Recursos no Processo Penal. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 181. Recursos no Processo Penal. 6.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 182.
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decisão for proferida em única ou última instância pelos tribunais (não pelas turmas recursais, quando, então, cabível será outro habeas corpus dirigido ao respectivo tribunal, tendo em vista que no julgamento do HC 86834 – DJ de 09/03/2007, o Supremo Tribunal Federal superou o Enunciado 690, decidindo que a competência para julgar o writ contra decisões das turmas recursais será dos tribunais). Perante o Supremo Tribunal Federal, é cabível o mesmo recurso, no mesmo prazo e também nos próprios autos, em relação às decisões denegatórias de habeas corpus e de mandado de segurança originários do Superior Tribunal de Justiça. O recurso deverá ser interposto perante o tribunal recorrido e remetido ao tribunal ad quem, devendo ser aplicadas, no que couber, as disposições relativas à apelação. O Ministério Público terá vista dos autos pelo prazo de dez dias. Conclusos ao relator, este submeterá o feito a julgamento na primeira sessão. No caso de impossibilidade de observância de qualquer dos prazos pelo julgador, os motivos da demora serão declarados nos autos. Não havendo o julgamento na sessão designada, o processo deverá ser imediatamente incluído em pauta. Não observado o prazo legal para manifestação do Ministério Público, o relator requisitará os autos para prosseguir ao julgamento. Neste caso, deverá ser oficiado ao Procurador Geral da República, caso não tenha sido ele próprio o responsável pela dilação indevida. Nada obstante o recurso previsto, admite-se, como se sabe, o habeas corpus substitutivo do recurso ordinário, não havendo qualquer vedação legal ou constitucional neste sentido. Outrossim, segundo já decidiu o Supremo Tribunal Federal, para a interposição deste recurso não é necessária a procuração dada ao advogado (HC 86.307-8, RT 853/500). Ademais, compartilho com o entendimento doutrinário, segundo o qual “a decisão denegatória do habeas corpus não impede que os mesmos fundamentos e as mesmas provas sejam reapresentados em sede recursal.”11 Tais permissivos jurisprudenciais decorrem da natureza e do objeto deste recurso que visa a evitar a privação da liberdade por ilegalidade ou abuso de poder. Não esqueçamos que “a interpretação das leis processuais penais orientar-se-á pela proibição de excesso, privilegiando a dignidade da pessoa humana e a máxima proteção dos direitos fundamentais, considerada, ainda, a efetividade da tutela penal.” (Art 5º). Por fim, ressalte-se que o projeto de lei 11
Teoria e Prática dos Recursos Criminais. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 169.
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revoga expressamente os arts. 30 a 32 da Lei nº. 8.038/90 que tratam hoje do recurso ordinário em habeas corpus.
VII – Dos recursos especial e extraordinário Inicialmente, atente-se ser perfeitamente possível a interposição simultânea dos recursos especial e extraordinário “se houver fundamentos legais e constitucionais que autorizem as duas impugnações.”12 O recurso especial somente é cabível contra decisão de única ou última instância, sendo inadmissível quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido pelo tribunal de origem (Súmula 207 do Superior Tribunal de Justiça).13 Não é cabível contra decisões proferidas por turmas recursais. Observe-se, porém, que na lição de Ada Grinover, Scarance Fernandes e Magalhães Gomes Filho, não se pode excluir “a reapreciação de questões atinentes à disciplina legal da prova e também à qualificação jurídica de fatos assentados no julgamento de recursos ordinários.”14 A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “o erro sobre critérios de apreciação da prova ou errada aplicação de regras de experiência são matérias de direito e, portanto, não excluem a possibilidade de recurso especial.” (STJ, RT 725/531). Esta errada valoração da prova pressupõe contrariedade a um princípio ou a uma regra jurídica no campo probatório e não que se colha das provas produzidas nova conclusão.15 Ambos os recursos, a par de servir às partes sucumbentes, têm como escopo tutelar o próprio direito federal ou constitucional acaso atingido pela decisão guerreada. Ademais, não é cabível perquirir-se acerca de matéria fática, devendo ser analisadas apenas as questões de direito já examinadas pelo Juízo a quo, mesmo porque, se assim não o fosse, o recurso se prestaria a uma segunda apelação. Neste sentido, atente-se para o Enunciado nº. 07 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” Eles, a princípio, não teriam efeito suspensivo, segundo dispõe o art. 27, § 2º da lei nº 8.038/90. Atente-se, porém, para a lição de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual o art. 27, § 12
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GRINOVER Ada Pelegrini et al. Recursos no Processo Penal. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 37. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 774.162-SP - Rel.: Min. Aldir Passarinho Júnior/4ª Turma. Obra citada, p. 270. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 769.722-RS - Rel.: Min. Aldir Passarinho Júnior/4ª Turma.
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2º. da Lei nº. 8.038/90 “visa a regulamentar os recursos de forma genérica, não sendo aplicável, quanto aos efeitos prisionais, à esfera penal.”16 Neste mesmo sentido, Paganella Boschi, para quem este parágrafo “endereça-se unicamente aos processos cíveis, porque nestes a execução provisória da sentença, mediante caução pelo autor, é perfeitamente admissível. Jamais as sentenças proferidas nos processos criminais, por implicar ofensa aberta, direta e frontal à garantia da presunção de inocência, antes citada.”17 Aliás, não é mesmo possível admitir-se o efeito somente devolutivo do recurso especial (e mesmo do extraordinário) na esfera penal, pois estaríamos contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência.18 Observa-se que mesmo sendo cabível o encarceramento provisório (por ser, repita-se, necessário), o não recolhimento do acusado não pode ser obstáculo à interposição de eventual recurso especial pela defesa, e se recurso houver, a fuga posterior não lhe obstará o regular andamento. Para que sejam conhecidos estes recursos constitucionais, indispensável o prequestionamento que nada mais é senão a necessidade de que tenha havido no Juízo recorrido o debate e a decisão sobre a matéria federal ou constitucional objeto dos recursos, “emitindo juízo de valor sobre o tema”19. Se tal circunstância não ocorreu, deverão ser utilizados os embargos declaratórios20 visando a provocar efetivamente a discussão do tema objeto do recurso. Admite-se, excepcionalmente, o chamado prequestionamento implícito, “exigindo apenas que a questão tenha sido posta na instância de origem” (Resp. 2.336-MG, RT 659/192). “É chamado de prequestionamento implícito o que reputa uma questão implicitamente apreciada, em razão de expressa apreciação de questão outra, que daquela é decorrente. Um exemplo de prequestionamento implícito consiste na questão da competência do Juiz: se ele julga a questão de mérito, implicitamente reconhece sua competência”, segundo o ensinamento de Bruno Mattos e Silva21. Considera-se ocorrido o 16
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Apud DELMANTO JUNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e o seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 206. Revista de Estudos Criminais n.05. Porto Alegre: Editora NotaDez, 2002. De toda maneira, temos o Enunciado 267 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: “A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão.” MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2002, p. 1.401. Observa-se, contudo, que “os embargos declaratórios não servem de expediente para forçar o ingresso na instância extraordinária, se não ocorreu omissão do acórdão, que se limitou a examinar o pedido tal como foi formulado, sob o aspecto da legalidade do ato.” (STJ, ED no MS 632-0, DJU 25/05/92, p. 7.352). Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 10. Sobre o
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prequestionamento implícito, quando a matéria tratada no dispositivo tido por violado tiver sido apreciada e solucionada pelo Tribunal de origem, de tal forma categórica e induvidosa, que se possa reconhecer qual norma direcionou o decisum objurgado22. É importante também ressaltar que somente será admissível tais recursos se esgotadas as vias recursais ordinárias. A propósito, veja o Enunciado 207 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: “É inadmissível recurso especial quando cabíveis embargos infringentes contra o acórdão proferido no tribunal de origem.” Atendendo às disposições constitucionais, os arts. 504 a 514 disciplinam o manejo dos recursos extraordinário e especial, que poderão ser interpostos no prazo de 15 dias23, perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido (ou da turma recursal, tratando-se de recurso extraordinário), em petições distintas, que conterão a exposição do fato e do direito, a demonstração do cabimento do recurso interposto e as razões do pedido de reforma da decisão recorrida. Interpostos tais recursos, o prazo prescricional ficará suspenso até a conclusão do julgamento. Observe-se que estas disposições projetadas não fazem “mais do que repetir os referidos textos legais e a sistemática que vem sendo tradicionalmente adotada pelos Tribunais Superiores”, conforme anota Francisco de Assis do Rêgo Monteiro Rocha Júnior.24 Este autor, aliás, anota a omissão legislativa futura, consistente na falta de previsão sobre a possibilidade de utilização do protocolo integrado (p. 334). Dispõe o projeto de lei que quando o recurso fundar-se em dissídio jurisprudencial sobre lei federal, o recorrente fará a prova da divergência mediante certidão, cópia autenticada ou citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a decisão divergente, ou, ainda, mediante reprodução de julgado disponível na internet, com indicação da respectiva fonte, demonstrando, em qualquer caso, as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Neste caso, deve o recorrente “transcrever os trechos dos acórdãos que configurem
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assunto, conferir a obra de MEDINA, José Miguel Garcia, O prequestionamento nos recursos especial e extraordinário. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 769.722-RS - Rel.: Min. Aldir Passarinho Júnior. Enunciado nº 418 da súmula do Superior Tribunal de Justiça: “É inadmissível o recurso especial interposto antes da publicação do acórdão dos embargos de declaração, sem posterior ratificação”. “Recurso Especial e Extraordinário no Anteprojeto de Reforma do CPP”, artigo integrante da obra coletiva “O Novo Processo Penal Á Luz da Constituição”, p.333, da Editora Lumen Juris, 2010, organizada por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho.
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o dissídio, mencionando as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, não servindo à demonstração de divergência a mera reprodução de ementas.”25 No mesmo sentido: Não se conhece da divergência jurisprudencial em relação a aresto cuja cópia não foi juntada aos autos, nem houve a citação de seu repositório oficial pelo recorrente, mesmo porque, o conhecimento do recurso especial fundado na alínea “c” do permissivo constitucional requisita, em qualquer caso, a demonstração analítica da divergência jurisprudencial invocada, por intermédio da transcrição dos trechos dos acórdãos que configuram o dissídio e da indicação das circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados, não se oferecendo, como bastante, a simples transcrição de ementas ou votos (artigo 255, parágrafos 1º e 2º, do RISTJ).26 O procedimento estabelecido na lei prevê que, recebida a petição pela secretaria do tribunal, será notificado o recorrido, abrindo-se-lhe vista para apresentar contrarrazões. Findo o prazo para apresentação de contrarrazões, serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15 dias, em decisão fundamentada. Como afirmamos em relação à apelação, entendemos que não é possível a subida dos recursos sem as razões e contrarrazões (ver supra). Em relação ao recurso extraordinário, não será emitido juízo de admissibilidade se o recurso deva ser sobrestado em virtude da aplicação da sistemática da repercussão geral (sobre repercussão geral, ver adiante). Proferido juízo de admissibilidade positivo, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. Concluído o julgamento do recurso especial, serão os autos remetidos ao Supremo Tribunal Federal, para apreciação do recurso extraordinário, se este não estiver prejudicado. Na hipótese do relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível (cabendo, nada obstante, os embargos declaratórios27), sobrestará o seu julgamento e remeterá os autos ao Supremo 25 26 27
Ag. Rg. no ag. nº 13.972-MG-DJU de 16-10-91, p. 14.4773. STJ - RESP 220188 / MG - DJ DATA:04/02/2002 PG:00580 – Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Afirmam GRINOVER, Ada Pelegrini et al. Recursos no Processo Penal. 7.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 173: “Ainda quando o texto legal, expressis verbis ,qualifique a decisão como irrecorrível, deve entender-se que o faz com a ressalva implícita aos embargos de declaração”.
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Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário. Neste último caso, se o relator do recurso extraordinário, em decisão irrecorrível (idem), não o considerar prejudicial, devolverá os autos ao Superior Tribunal de Justiça, para o julgamento do recurso especial. Dispõe o Código de Processo Penal projetado que o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível (idem), não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. Para este efeito, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, o que deverá ser demonstrado pelo recorrente em preliminar, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal. Ademais, haverá repercussão geral sempre que a decisão for contrária a Enunciado da súmula ou jurisprudência dominante do tribunal. Se a turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, quatro votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. No entanto, caso seja negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. O relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, também nos termos do Regimento Interno (trata-se da já conhecida figura do amicus curiae28). A súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do regimento interno do Supremo Tribunal Federal, cabendo ao tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo desta última Corte. Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente 28
A propósito, ver os trabalhos dos professores Dirley Cunha Jr., “A intervenção de terceiro no processo de controle abstrato de constitucionalidade – a intervenção do particular, do co-legitimado e do amicus curiae na ADIn, ADC e ADPF”; de Fredie Didier Jr., “Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil”, São Paulo: RT, 2004”, de Edgard Silveira Bueno Filho, “A democratização do debate nos processos de controle da constitucionalidade”, publicado na Revista de Direito Constitucional Internacional, nº. 12, abril/junho de 2004, de Cássio Scarpinella Bueno, “Amicus curiae no processo civil brasileiro”, 2.ed., São Paulo: Saraiva, 2009, além de Damares Medina. “Amicus Curiae: Amigo da Corte ou Amigo da Parte?”, São Paulo: Saraiva, 2010.
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inadmitidos. Porém, julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos tribunais ou pelas turmas recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se, independentemente da análise dos requisitos de admissibilidade. Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o relator reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada na Suprema Corte. Caso haja multiplicidade de recursos especiais com fundamento em idêntica questão de direito, caberá ao Presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo deste último Tribunal. Não adotada esta última providência, o relator, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. O relator também poderá solicitar informações, a serem prestadas no prazo de 15 dias, aos tribunais federais ou estaduais a respeito da controvérsia. Aqui também, o relator, na forma do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça e considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia (aqui mais uma vez trata-se do amicus curiae). Recebidas as informações (e, se for o caso, após a manifestação do amicus curiae), terá vista o Ministério Público pelo prazo de 15 dias, findo o qual será remetida cópia do relatório aos demais Ministros, a fim de que o processo seja incluído em pauta na seção ou na Corte Especial, devendo ser julgado com preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem terão seguimento denegado, na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça ou serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. Nesta segunda hipótese, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, farse-á o exame de admissibilidade do recurso especial quando, então, o relator poderá, liminarmente, reformar o acórdão contrário à orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça. O Superior Tribunal de Justiça e os tribunais de segunda instância deverão Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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regulamentar, no âmbito de suas competências, os procedimentos relativos ao processamento e julgamento do recurso especial em matéria penal. Da decisão que inadmitir o recurso extraordinário ou o recurso especial caberá agravo, no prazo de dez dias, para o Supremo Tribunal Federal ou para o Superior Tribunal de Justiça, nos próprios autos do processo, salvo quando o acórdão impugnado não der causa à extinção do processo, caso em que o agravo dependerá da formação do instrumento. No que diz respeito ao procedimento, dispõe o projeto de lei que a respectiva petição será dirigida à presidência do tribunal de origem. O agravado será intimado para, no prazo de dez dias, oferecer resposta. Em seguida, subirão os autos ao tribunal superior, onde será processado na forma regimental. Observa-se, neste caso, que a orientação já firmada pelo Supremo Tribunal Federal é a de que “os órgãos jurisdicionais de origem não podem reter o processamento de agravo de instrumento, destinado a assegurar o conhecimento de recurso extraordinário que sofreu juízo negativo de admissibilidade.” (Reclamação 6074, relator Ministro Joaquim Barbosa). Na Suprema Corte e na Corte Superior, o julgamento obedecerá ao disposto nos respectivos regimentos internos, podendo o relator não conhecer do agravo manifestamente inadmissível ou que não tenha atacado especificamente os fundamentos da decisão agravada. Caso contrário, conhecerá do agravo, para lhe negar provimento, se correta a decisão que não admitiu o recurso ou para negar seguimento ao recurso manifestamente inadmissível, prejudicado ou em confronto com súmula ou jurisprudência dominante no tribunal, bem como (e ainda) para dar provimento ao recurso, se o acórdão recorrido estiver em confronto com Enunciado ou jurisprudência dominante no tribunal. Quando o agravo depender da formação do instrumento, deverá ser instruído com as peças que forem indicadas pelo agravante e pelo agravado, devendo constar, obrigatoriamente, sob pena de não conhecimento, cópias do acórdão recorrido, da certidão da respectiva intimação, da petição de interposição do recurso denegado e das contrarrazões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e da procuração do defensor do agravante ou agravado. Provido o agravo, o recurso especial prosseguirá com o seu processamento e julgamento. Este mesmo procedimento aplica-se ao agravo contra denegação de recurso extraordinário, salvo quando, na mesma causa, houver recurso especial admitido e que deva ser julgado em primeiro lugar. Na hipótese de ser provido o agravo interposto da inadmissão do Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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recurso especial ou extraordinário, não caberá novo recurso, salvo quanto à admissibilidade daquele a que se deu provimento.
VIII – Do processo e do julgamento dos recursos nos tribunais Os arts. 515 a 524 tratam do processo e julgamento dos recursos nos tribunais (apelação, agravo e embargos), que deverão ser julgados de acordo com as normas de organização judiciária e de seus regimentos internos. Tratando-se de recurso intempestivo, manifestamente inadmissível ou prejudicado, o relator deverá negar-lhe seguimento (caberá o agravo regimental acima referido). Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com Enunciado de súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal, o relator poderá dar provimento ao recurso; havendo súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça no mesmo sentido do acórdão recorrido, poderá conhecer do agravo para negar provimento ao recurso. No agravo de instrumento e no recurso de apelação, ressalvado o caso de requerimento expresso de concessão de efeito suspensivo, os autos serão remetidos ao Ministério Público, independentemente de despacho, para manifestação em dez dias. O relator, ou órgão instituído por norma de organização judiciária, decidirá sobre a concessão ou não do efeito suspensivo, bem como acerca da necessidade de manutenção ou substituição das medidas cautelares, com comunicação da decisão ao juízo e posterior encaminhamento dos autos ao Ministério Público. Conclusos os autos, e salvo disposição regimental expressa em contrário, o relator os examinará em dez dias, enviando-os, em seguida, quando for o caso, ao revisor por igual prazo. Não haverá revisor no julgamento de recursos de agravo e de apelação, ressalvada a hipótese de processo da competência do Tribunal do Júri. Das decisões do relator que não admitir o recurso, negar-lhe provimento ou reformar a decisão recorrida, caberá agravo (interno ou regimental – art 39 da lei nº 8.038/90), no prazo de cinco dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso. Não havendo retratação, o processo será apresentado em mesa. Observa-se que as decisões que inadmitirem ou sobrestarem recursos com aplicação da sistemática da repercussão geral são irrecorríveis (sendo cabíveis apenas os embargos de declaração, conforme entendimento acima declinado). Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 143-167, julho/dezembro - 2011
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Na sessão de julgamento, o recorrente poderá sustentar oralmente suas razões, cabendo ao recorrido se manifestar no mesmo prazo. No caso de recurso da defesa, poderá ela se manifestar novamente, após o Ministério Público (a inversão gerará nulidade absoluta, em homenagem ao contraditório). Atentando-se para o disposto no art 5º, LXXVIII da Constituição, caso haja impossibilidade de observância de qualquer dos prazos estabelecidos pela lei, o julgador deverá declarar nos autos, expressa e obrigatoriamente, os motivos da demora. Outrossim, não havendo o julgamento na sessão designada, o processo deverá ser imediatamente incluído em pauta. Igualmente, não observado o prazo legal para manifestação do Ministério Público, o relator requisitará os autos para prosseguir ao julgamento. Nos julgamentos, o tribunal decidirá por maioria de votos, prevalecendo a decisão mais favorável ao acusado, em caso de empate (princípio do favor libertatis). Após a tomada de votos, o resultado será proclamado pelo presidente, observando-se, sob sua responsabilidade, o seguinte: caso prevaleça o voto do relator e ressalvada a hipótese de retificação da minuta de voto, o acórdão será assinado ao final da sessão de julgamento ou, no máximo, em cinco dias; no caso de não prevalecer o voto do relator, o acórdão será lavrado pelo relator designado, no prazo de dez dias, sendo obrigatória a declaração de voto vencido, se favorável ao acusado; no caso de retificação da minuta de voto, o acórdão será assinado no prazo máximo de dez dias.
IX – Bibliografia CASTELO BRANCO, Tales. Teoria e Prática dos Recursos Criminais. São Paulo: Saraiva, 2003. CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Criminais. São Paulo: Editora Atlas, 2002. GOMES, Luiz Flávio. Direito de Apelar em Liberdade. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996. GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Recursos no Processo Penal. 3.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. MACHADO, Marlon Wander. Os Recursos no Processo Penal. São Paulo: Madras Livraria e Editora Ltda., 1998.
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MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e Legitimação para Recorrer no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. MOSSIN, Heráclito Antônio. Recursos em Matéria Criminal. 2.ed. São Paulo: Editora Atlas, 1997. PEREIRA, Almir de Lima. Recursos Criminais. 3.ed. Belém: Edições CEJUP, 1987.
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Sistema penal preventivo – Interdisciplinaridade e proteção social
Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira1 Juiz de Direito no Estado de São Paulo
RESUMO: O direito penal e o direito processual penal precisam ser utilizados dentro de uma ideia de prevenção dos riscos inerentes à vida em sociedade e com interdisciplinaridade em relação a todas as demais ciências do conhecimento humano. A prevenção e o controle da criminalidade dependem de ações sociais, em conjunto com medidas políticas, passando pelo investimento na área da infância e da juventude, com a criação de varas e a preparação de profissionais. PALAVRAS-CHAVE: prevenção; interdisciplinaridade; infância; dignidade.
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onforme mencionado por Tércio Sampaio Ferraz Filho2, a ideia de sistema deriva da música e da sua harmonia, ou seja, da junção de notas musicais e sons que se combinam entre si para a composição
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Professor de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutorando em Processo Penal pela PUC/SP. Professor coordenador do 6º curso de especialização em Direito Processual Penal da Escola Paulista da Magistratura. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003.
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de uma melodia, ou seja, da ação conjunta de notas e de sons para um fim. Falar de sistema no âmbito jurídico não difere da ideia de melodia, uma vez que se discute organização e interdisciplinaridade, dois elementos necessários para se ter estabilidade, eficiência e credibilidade, virtudes necessárias para a melhoria da vida em sociedade através do Direito, ao que se soma o elemento prevenção, necessário em face dos riscos sociais decorrentes dos novos tempos. Infelizmente, as ideias de estabilidade, organização e interdisciplinaridade, ao longo do tempo deixaram de estar alinhadas com o que se convencionou chamar de sistema jurídico brasileiro, passando a existir um isolamento entre os diversos poderes do Estado nas suas atuações e entre os diversos ramos do Direito, em especial o Direito Penal. Esse ficou reservado apenas para as questões mais críticas da vida em sociedade, reduzido a um mero direito de punir sem uma finalidade preventiva real. Em razão do isolamento do Direito Penal e do próprio Direito Processual Penal em relação aos outros ramos do Direito, essas ciências passaram a ter uma natureza reativa, perdendo o Estado duas plataformas de equilíbrio social através da prevenção. A ideia de um Direito Penal reativo, fundada nos chamados princípios da ultima ratio e da intervenção mínima, representa um equívoco que se mostra no aumento progressivo da violência na vida em sociedade, além de um contrassenso, porque se aguarda um resultado mais grave para o exercício da ação do Estado, quando o bem jurídico tutelado mais importante já foi violado e até destruído, bem como só restam sanções mais graves como é o caso da privação da liberdade. Outro ponto de crítica contra a imobilidade do Direito Penal, merecedor de consideração, reside na limitação da ação do Direito Penal ao início dos atos de execução, excluindo-se os atos de cognição e de preparação, ou seja, permite-se que o mal se organize e inicie a sua ação nefasta para o Estado passar a proteger a sociedade, política criminal que potencializa o risco social, mais precisamente, o perigo de viver em sociedade. A somatória de tais posturas passivas e isolacionistas, além da ausência de investimentos em ações sociais e nas Justiças da Infância e da Juventude, bem como Criminal, em todos os seus níveis, já não se sustentam em um momento de crise mundial na segurança das sociedades, decorrentes do banditismo generalizado, da ação de grupos criminosos organizados e de condutas criminosas transnacionais, gerando um crescente sentimento de Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 169-175, julho/dezembro - 2011
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medo por parte das pessoas, bem como um sentimento de impunidade dos infratores, em especial em grandes centros urbanos, como é o caso da cidade de São Paulo, redundando em instabilidade social e descrédito no próprio Estado. Além disso, viola o dever do Estado para com a sociedade, permitindo com isso a chamada “quebra do contrato social” apregoada por Jean Jacques Rousseau3, dando margem à autotutela, marcada por violência sem limite, uma situação de selvageria em sociedade e a própria negação do direito. Observo que a ação de grupos de extermínio é um dos efeitos da perda da credibilidade social do Estado. Inclusive, para os que defendem o Direito Penal mínimo, apresenta-se interessante questionar: como será a vida em sociedade sem o Direito Penal e baseada exclusivamente na força? Será que os mesmos que defendem o Direito Penal mínimo poderão cuidar da própria segurança? Entendemos que não há como ser alcançada uma sociedade igualitária, com segurança e apta a desenvolver a vida do homem, sem limites, além de instrumentais preventivos e punitivos, relacionados com a atuação efetiva de um Direito Penal também preventivo. Conscientes dessa realidade de que o Estado não pode ignorar condutas que elevam o risco social e que o Direito Penal deve atuar em conjunto com os demais ramos do Direito e, ainda, com outras áreas do conhecimento humano e de ação do Estado, os Estados Unidos da América do Norte, mais precisamente a cidade de Nova Iorque, desenvolveram a ideia de um sistema penal preventivo, marcado pela ação conjunta entre os três Poderes do Estado, através dos seus diversos órgãos, com o único fim de prevenir a prática de infrações penais. Anoto que a finalidade não era a punição, apenas, mas a prevenção! A interdisciplinaridade foi efetivada pela ação social do Estado, em conjunto com as forças de segurança internas, apoiadas pelos Poderes Judiciário e Legislativo, separando problemas sociais de infrações penais, e, acima de tudo, cuidando de ambos com a mesma eficiência para que não haja migração do primeiro para o segundo. Criou-se a ideia de comportamento de risco social, ou seja, todo aquele 3
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. (Trad. Edson Bini). São Paulo: Edipro, 2000.
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capaz de colocar uma pessoa como potencial vítima de uma infração penal ou como infrator penal, como, por exemplo, um jovem de nove anos de idade perambulando, sozinho, pelas ruas e exposto à marginalidade. A criança não é um marginal, mas uma potencial vítima de infrações penais ou, na continuidade do seu abandono, alguém que poderá ser parte da própria violência social, tornando-se um infrator quando um pouco mais velho. Logo, a criança abandonada deve ser acolhida por qualquer órgão do Estado, em especial pela Polícia, assim que tomar contato com a situação e, após, encaminhá-la para a Assistência Social. O órgão da Assistência Social com atribuição, após abrigar o menor, procede a uma investigação preliminar da sua situação com relação aos seus responsáveis, apurando, acompanhando, orientando e encaminhando para medidas a serem tomadas, que poderão envolver o Ministério Público e o Poder Judiciário quando for o caso. Também, o ato de dirigir sob efeito do álcool, a participação em brigas, o uso de drogas e até os pequenos atos antissociais, como são os casos das chamadas pichações, passaram a ser objeto da atuação mais efetiva por parte do Estado, redundando em um sistema preventivo denominado broken windows theory, que passou, efetivamente, a prevenir infrações penais mais graves, com resultados expressivos na diminuição da violência na cidade de Nova Iorque. Somado a esse processo interdisciplinar de proteção social, usando o Direito Penal como um dos instrumentais e não como último instrumental, verifica-se a chamada “Racketeer Influenced and Corrupt Organizations (RICO) Act”, de 1970, e, ainda, o crime de conspirancy. A primeira medida foi diretamente contra o chamado crime organizado, envolvendo uma interdisciplinaridade entre o Direito Tributário e o Direito Penal para prevenir, acompanhar e punir a prática de legalização de valores obtidos através da ação ilícita do crime organizado (lavagem de dinheiro), com medidas no âmbito penal e fiscal, em especial com a tributação de valores sem origem lícita definida. Já a segunda medida representa a prevenção, acompanhamento e punição imediata de atos de cognição de crimes graves, não se aguardando o início da execução para a tutela do Estado. Apresenta-se oportuno mencionar que não há como solucionar definitivamente o problema da criminalidade em sociedade, em especial, Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 169-175, julho/dezembro - 2011
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nas grandes metrópoles, mas é possível controlar o seu desenvolvimento e retroceder a prática de crimes mais graves. Retornando para o Brasil e para os nossos problemas em particular, verificamos que a cidade de São Paulo e outras metrópoles brasileiras não se diferenciam, no tocante ao chamado risco social, da cidade de Nova Iorque, razão pela qual é possível a utilização de soluções semelhantes, dentro da ideia de um sistema penal preventivo, marcado pela interdisciplinaridade entre as diversas ciências do Direito e outras pertinentes. Não vamos acabar com a criminalidade, haja vista a razão do crime não ser apenas de cunho social, mas, certamente, diminuiremos os sentimentos de medo e de impunidade, bem como a prática dos crimes mais graves e a superlotação das nossas cadeias em decorrência deles. A ação do Direito Penal preventivo deve ser efetivada no acolhimento de menores e de mendigos que vivem abandonados e perambulando pelas ruas, sem qualquer espécie de controle e alguns usando drogas, visando evitar que sejam vítimas da criminalidade e até que venham a fazer parte dela como futuros algozes. Pelo controle de pequenos atos antissociais como são exemplos as pichações, os chamados “flanelinhas”, os quais muitas vezes praticam o crime de extorsão e os vendedores ambulantes entre os carros, conduta que facilita a ação de ladrões, pela separação da ideia de comportamento de risco da ideia de crise social, poderá haver uma melhora no quadro social atual. A própria mendicância, embora não seja mais uma questão do Direito Penal, não deixa de representar um risco social, necessitando de uma melhor atuação por parte do Estado, o mesmo se diga sobre o uso de substâncias entorpecentes lícitas ou ilícitas. O que se nota é a ausência de interesse por parte do Estado, sendo a miséria social a justificativa para a sua perpetuação, como se os problemas sociais legitimassem até as pequenas infrações penais e a inércia do Estado no âmbito dos três Poderes que o compõem. Adiciona-se a inércia do Estado na prevenção social, a falta de uma educação efetiva que ensine as pessoas a viverem em sociedade, a se respeitarem e a respeitarem os outros, tão importante como ler e escrever. Por amor à verdade, não desconhecemos a ação isolada de pessoas jurídicas e físicas, entre elas sociólogos, professores, médicos, magistrados, promotores de justiça e outros que tentam fazer a diferença com relação aos problemas já apontados, mas reclamamos contra a ausência de uma política Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 169-175, julho/dezembro - 2011
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de Estado na proteção da dignidade da pessoa humana. Acreditamos que o Poder Executivo precisa ter uma ação fiscalizadora efetiva em sociedade, não confundindo ordem com ditadura. O Poder Judiciário, por seu turno, precisa investir em Varas da Infância e da Juventude, preparando magistrados e exigindo atuação social e não meramente jurisdicional. O magistrado que atua em varas especializadas precisa ser preparado na área e nas ciências afins, sendo interessante pensar na possibilidade da exigência de um curso de especialização para promoção às varas especializadas, evitando-se o risco de pessoas inabilitadas e desinteressadas nas funções a serem exercidas. O Poder Legislativo precisa buscar a formulação de normas de cunho pragmático que permitam uma atuação mais efetiva dos órgãos do Poder Executivo e do próprio Poder Judiciário. Finalmente, precisa existir a interdisciplinaridade sempre entre todos os Poderes do Estado, entre os ramos do Direito e, acima de tudo, precisa ser inaugurado um sistema penal preventivo para a diminuição efetiva do volume de pessoas encarceradas e de vítimas dos perigos sociais, em especial, os contemporâneos.
Bibliografia de apoio AMARAL, Cláudio do Prado. Bases teóricas da ciência penal contemporânea. São Paulo: IBCCRIM, 2007. BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. (Trad. J. Cretela Jr. e Agnes Cretella). 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português, as conseqüências jurídicas do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 2003. GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. (Trad. Edson Bini). São Paulo: Edipro, 2008. PALAZZOLO, Massimo. Persecução penal e dignidade da pessoa humana. São Paulo: Quartier Latin, 2007.
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 169-175, julho/dezembro - 2011
SISTEMA PENAL PREVENTIVO – INTERDISCIPLINARIDADE E PROTEÇÃO SOCIAL
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. (Trad. Edson Bini). São Paulo: Edipro, 2000. ROXIN, Claus. Derecho penal, parte general, tomo I. (Trad. Diego-Manuel Luzón Peña e outros). Madri: Dykinson, 2000. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 11, nº 1, p. 169-175, julho/dezembro - 2011
Coordenação Geral Des. Antonio Carlos Malheiros Coordenação Editorial Marcelo Alexandre Barbosa
Revisão Paula Hercy Cardoso Craveiro Editoração, CTP, Impressão e Acabamento Art Printer Gráficos Ltda. Formato Fechado 150 x 210 mm Tipologia Agaramond, Frutiger Papel Capa: Cartão Revestido 250 g/m2 Miolo: Offset Branco 75 g/m2
Acabamento Cadernos de 16 pp. costurados e colados-brochura Tiragem 3.500 exemplares Dezembro de 2011