Forever breathes the lonely word. The Felt
Pausa para ser lido nos intervalos
BELO HORIZONTE JUNHO | JULHO DE 2008 NĂšMERO CINCO
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expediente Conselho Editorial Alexandre Fantagussi Erick Costa Maraíza Labanca Rafael Reis II Projeto Gráfico e Direção de Arte Fernanda Gontijo II Colaboradores desta edição Flávio de Castro Ricardo Tokumoto Sérgio Laia Ulisses Moisés II Capa Ulisses Moisés II Revisão Isabela Monteiro II Impressão Guia Prático II Tiragem 1.000 exemplares II Informações Críticas Comentários Envio de Material Contato jornal.pausa@gmail.com II As opiniões expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores II Favor não deixar este jornal em vias públicas
sem tĂtulo entrevista sĂŠrgio laia prosa notas do limbo poema 17 37 tira paradoxal room poema
No momento em que (eu não estava aqui) as folhas balançavam furiosamente inexplicável urgência de – (alguém viu o amor?) tempo e espaço coexistem neste ponto apesar de tudo dizer (o frio de um outono sombrio) as flores continuam a crescer é uma força maior (a gangrena se espalha pelo corpo) as crianças brincam no arco-íris potência desmedida: (o corte seco do machado) as pétalas se abrem contra o espaço era uma vez (o amor mutilado) uma vida inteira no instante
4 II Rafael Reis
ENTREVISTA Sérgio Laia é psicanalista e traduziu o Seminário, livro 23: O Sinthoma, de Jacques Lacan, para o português.
Pausa. Sabemos da importância da literatura para a psicanálise, desde Freud. Qual seria, hoje, a importância da literatura para a psicanálise? Segundo Freud, os “escritores criativos” antecipam, muitas vezes, o que a teoria psicanalítica apresenta como conceitos e interpretações – é um fato que não deixou de ser reconhecido, de modo mais parcimonioso, por Lacan, por exemplo, na contundente “Homenagem a Marguerite Duras...” . Avant la lettre da psicanálise, teríamos, então, a literatura e, nessa anterioridade, vários analistas que amam a literatura e as artes não deixam de conceber uma primazia dessas criações sobre a psicanálise. No entanto, já é hora de também notarmos que essa primazia, sobretudo quando implica uma idealização da produção estética, compromete tanto a inventividade dos artistas e escritores quanto a novidade da clínica analítica: é o que verificamos, por exemplo, nas “psicobiografias” e na “psicanálise aplicada à literatura”, que fazem psicopatologia das obras e/ou de seus criadores. Nesse viés, que considero criticável, afirma-se a antecipação da literatura com relação à psicanálise, mas é a psicanálise que se propõe a “descobrir” a verdade da literatura. Ora, me parece muito mais interessante, para analistas, escritores e artistas, tomarmos a experiência analítica e a experiência artística para além de toda linearidade (que supõe o que vem antes e o que vem depois), para além de toda hierarquia (que supõe que uma “sabe” ou “revela” mais ou antes da outra). Literatura e psicanálise designam experiências diferentes, embora permeadas pelo “exercício da letra” e pela “satisfação libidinal” a que Lacan chamou de “gozo”. Assim, a literatura é importante, hoje, para a psicanálise porque podemos verificar que a escrita literária comporta um savoir faire com a letra, uma abordagem do gozo e é também a lida com a satisfação libidinal e seus traços que um analista deverá ler nos sintomas daqueles que se endereçam a sua escuta. 6 II Sérgio Laia
PARA PAUSA Pausa. Podemos pensar também em uma importância da psicanálise para a literatura?
Trata-se de uma questão mais difícil para eu responder do que a primeira, uma vez que, como um analista, não me apresento propriamente como um escritor literário. Ainda assim, arrisco-me a respondê-la, a partir de referenciais históricos e de meu percurso como leitor de literatura. Se tomarmos, por exemplo, o surrealismo ou, mais próximo de nós, o modernismo de um Mário de Andrade e de um Oswald de Andrade, é inegável a importância da psicanálise para a literatura. São também muitos os escritores que reconhecem a genialidade de Freud e, mesmo, seu estilo literário. O próprio Joyce, bastante crítico da “mania interpretativa” da psicanálise, não deixou de sublinhar o quanto bebeu na fonte da Interpretação dos Sonhos para compor Finnegans Wake, embora sustente que, nesse seu livro, ele opera “em alguns minutos o que foi preciso talvez séculos para se produzir”. De um modo mais amplo, considero a psicanálise importante para a literatura, na medida em que a descoberta freudiana não deixou de criar não só um gosto pela narrativa (vejam os casos clínicos de Freud), como também fundou uma prática na qual se experimentam o peso das palavras, a diluição do sentido, o confronto com o que é impossível de dizer e também de não se dizer de alguma forma.
Sérgio Laia II 7
NOTAS DO LIMBO Aos poucos descobrimos o dom da dispersão. Somos agora o espectro do fumo. Em toda parte tentam nos oferecer consolo. Diga oi para os anjos. Trago os dias escassos. Como as moedas que me restam. Eventos trágicos aconteceram, acontecem. Mas são indiferentes. Poucas moedas no bolso pesam menos e me livro mais facilmente da sujeira. Trocados agradam o comércio. Basta a relação entre um homem e uma moeda pra dar notícia de seu passado, seus vícios, suas frustrações. Seu futuro. Reúno numa mesa alguns cafés, vários cigarros e sombras. Fazemos balanços, registros do dia. Notas do limbo: hoje um displicente não viu seus últimos dias atirados num bueiro; um amante desiludido trocou suas últimas esperanças por tragos solitários num balcão; numa mesa de jogos, um velho decadente agradou uma prostituta com as últimas gorjetas. Atiraram ao vento suas últimas gotas de sangue. No fim, cairão certamente numa vala em um piscar de olhos. Num beco, lia-se a placa: “eis o arauto, eis o homem, eis ali, em sua boca, o mundo.” Levaram primeiro suas moedas. Deixaram os cabelos longos e o olhar torto. Depois levaram toda a vestimenta do corpo. Não vêem que assim invocam a legião, o submundo? Não
8 II Erick Costa
o ouviram. Eles precisam de mim, tenho que caminhar na frente; se não avanço os dias, eles também não. Os cães que ali reviram o lixo? Fui eu que pari. Pari os cães raivosos e a fome. Aqueles dois, não vê?, vão se esfaquear, e fui eu que os pari. Gerei em meu ventre o assassínio. O assassinato a frio, a ganância e a morte. A mulher que vaga no rio. Eu pari os seus peixes. Pari a água e a salmoura. Eu pari suas unhas sujas, o primeiro grão de areia, a falésia. O abismo em que se atira todas as noites. Pari o amor noturno indesejado, o vazio insone da noite. São todos meus filhos, eu já tive, terei todas mulheres. Eu nasci muitas vezes. Dizia-se o curandeiro da Grande Dor. Mas abortaram sua generosidade. Tentou doar o que lhe restou em vida. Rasgou à faca o próprio peito. Não estavam prontos para sua generosidade; estancaram-lhe peito e boca. Hoje diz muito pouco, as pessoas já não o freqüentam, já não lhe tocam o corpo. Temos poucos acessos. Da janela, a cidade cáustica. Nenhum problema. Mais rabiscos na parede. Gosto de muito poucas coisas. Vai-me sair cara uma nova pintura. Trago nas mãos uma pequena morte. A morte manuseada habilmente entre os dedos.
Erick Costa II 9
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Ela tinha piercings e tatuagens para tudo quanto era lado. Piercing nas línguas. 17 anos, perdida na rua de Campinas. Bebia e ficava bêbada, beijava uns mocinhos por aí mas não tinha nenhum amor. Amor algum, talvez um Chicabon com cerveja e malditos cigarros de cravo, figurinhas coloridas nas roupinhas novas. Sapatos malucos, unhas azuis. Girando os olhos enquanto fala, o brinco estalando nos dentes. Nem sabe quem foi Nabokov.
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Ela tinha perfume e ex-maridos para tudo quanto é lado. Veneno na língua. 37 anos, esquecida na rua de Campinas. Bebia e não ficava bêbada, amava uns mocinhos por aí mas não tinha nenhum amor. Amor algum, talvez um uisquinho com lexotan e malditos cigarros slim, brilhinhos de vidro no vestido novo. Sandálias obscenas, unhas vermelhas. Enxugando os olhos enquanto fala, o batom lambuzando os dentes. Nem sabe quem foi Balzac.
10 II Flávio de Castro