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parรกgrafos sobre a
da
Poesia
m o n s t r u o s i d a d e
para a catita Rita que tanto me faz poetar
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parรกgrafos sobre a monstruosidade da poesia J o r g e J u d a s
o poema ĂŠ
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um monstro
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não se sabe a que é que se destinam os poemas nem se percebe para que servem. assumem a sua condição ao lado das imagens e da magia, essa condição apofática que pode ser assolada por uma doce e terrível ironia sublinham-nos os isolamentos e aguçam-nos a ilusão de que tudo depende de nós, mesmo que não dependa. porque se morre das dívidas das conjecturas e é inextricável o sermos artephysis, entregues a infindas variações
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a poesia condena-nos a viver mais, a querer adolescentemente algo maior que a liberdade
4
as regras de des(organização) de cada poema, ou a falta delas, reciclam as regras da natureza sem que não se dê conta disso — como nada escapa tudo o que está
à natureza, nos poemas é feito com os restos da linguagem que se querem subtraír á voracidade e à vacuídade da linguagem quotidiana
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a poesia guia-nos para onde se forjam onde os segredos os cegos seguem-na
o lugar os enigmas,
não têm sentido —
como na parábola
6
o poeta traz-nos a força de ilusão, de engodo, que é o mundo — não o imita, não rivaliza com ele, não é contra algo (pode ser contra o contra algo),
mas é-lhe o suco que origina as metamorfoses factuais
7
eu sei que a poesia mesmo quando visa
espevita a acalmia —
tem que se fechar os olhos para recolher a memória que se contorce com todas as suas forças
8
o poema faz com que as cosmogonias e as cosmologias não sejam meras enumerações — acampa com suas tendas o esplendor do desconhecido — vem para instaurar algo que ficará depois dele,
fragmentário, convulsivo, imprevisível, desconcertante —
é vida
ainda mais vida
a ritmar-se
9
o poema baralha as montagens espontaneas que nos são brindadas pela ordem mais superficial das coisas —
o olhar e a linguagem são já montagem, colagem, citação —
o poema propõe a metonímia como elisão, lapso narrativo — a sua narratividade nem sequer está entre as linhas — está nas capacidades de o leitor se mudar a si mesmo
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o poema faz uma auto-hetero separação que torna o leitor em escritor e o escritor em leitor —
cada um tenta ir à sua vida,
mas não consegue
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desde Baudelaire que muitas coisas parecem ter sido deitadas fora mas continuam a regressar —
a narratividade, o doce lirismo, e as coisas fulgurantes anteriores ao nascimento da subjectividade
mas voltam à luz de tudo o que vem sendo assombrado e assombroso desde Beaudelaire —
há muito mais descontinuidade, barulho, erosão, silêncio ou tralha
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Pound (julgo que) diz que a prosa deixou ao poema aquilo que lhe sobrava:
o condensamento? —
a poesia deita fora e continua a deitar fora o que não é possivel ficar dentro — é o instável a verter-se como biografia que não encontra o seu sujeito embora se exiba como sujeito na sua imaturidade
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alguns poetas conseguiram ser cretinos ou filhos-da-puta, e mesmo assim foram
a poesia faz a montagem insana do que não se quer confundir com montagens
faz a passagem aquilo que não está
incandescentes —
para outra coisa que será na intenção dos poemas —
é a sua função de recusa da recusa da recusa
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houve um tempo em que o cinema parecia triunfar, e em que o poeta tendia a desaparecer ao tentar empunhar uma máquina de filmar com o respectivo manifesto — mas vamo-nos dando conta que a poesia absorveu o que seria importante no cinema, e que cada vez menos está no cinema: a sua vocação de transfusão do poético no ainda mais poético
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a poesia seria a anamnése de algo anterior a cada um, ou mesmo ao Ser —
uma incompletude advinhada antes de qualquer origem
algo sem-origem cheio de imagens frementes a originarem outras imagens —
é o recuo que avança no espaço-tempo e que torna indistinguível o tempo do espaço, numa fusão incompleta e noctívaga
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conexões desconectantes e desconexões que conectam —
paradoxos insanos que probabilizam, que fazem agir, mesmo no interior da alegoria, com paródias de simbolos
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o poema é o espetáculo onde se abisma o vacilante —
por isso só pode ser cada vez mais simultaneo, não consegue vir sózinho, e quer-se acompanhado de multiplos modos de enumerar deslumbramentos, abandonos, apatias, extases — sem por isso se livrar de uma retorcida metalinguagem que até pode não estar lá
o poema engravida
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sem gravidade —
traça o espaço materno e mortal a céu aberto, insistindo no amor e na morte, terríveis e maravilhosos, embora turvos, obscuros, a trilharem caminhos que parecendo fatais são incertos
o terror
da advinhação
é no poema
do sacrifício
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também a cinza
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a memória que o poema conquista é uma memória diagonal às memórias pessoais — é um passear-se com o corpo entre a paisagem retroacção neguentrópica e tropical do que se parece esvair e degradar
inextricável, e o inexistente —
a poesia é o adiamento
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da Necessidade, da Fatalidade, da velha Anangké, (perdoem-me a redundância) e das tarefas do dia-a-dia —
procrastinação em deterimento
do corriqueiro da experiência do essencial
22
o poeta perfere a perguiça à meditação ou ao trabalho —
fazer um poema é esperguiçar-se
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a poesia vive do excesso de referências, mesmo daquelas que não estão nem poderiam estar lá — terrorismo linguarudo que quer rebentar com qualquer quadro de referências, violência que se abate sobre a violência da linguagem comum —
desvio do sentido corrente dos sentidos
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…é um jogo que acolhe dispositivos retóricos — disponibilidade para retoricar, induzindo o leitor a vários engodos e, se possivel, ao grande encantamento
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a poesia é experiência anti-epistemológica —
não procura outro conhecimento que não seja o do corpo saber experimentar de uma forma mais intensa —
exorcisa-nos dos conhecimentos das ciências, embora se possa nutrir deles
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a poesia ensina a saltar e a caír — para cima, para a frente, ou até para o lado ou para trás — penso na frase do Nuno de Bragança:
U Omãi Qu Dava Pulus
ou no senhor Valéry de Gonçalo M. Tavares, que consegue estar por momentos mais alto, ou no poema que ensina a caír sobre vários solos da Luísa Neto Jorge —
altivez cadente que se autoprojecta em espaços
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a página, desde Mallarmée e Marinetti, exige cada vez mais ser conflito tipográfico do unânime branco com a multiplicidade negra de ritmos, de grafias, de ortografias e de rimas que não estão no fim — a página quer ser vista e lida com um prazer inesgotável e acolher em si
quer a intensidade do complexo, como a do simples ou do insignificante
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a poesia atrai imagens para que a acompanhem e apetece-lhe, nestes tempos do virtual e do incorpóreo, ser cada vez mais coisa,
objecto, livro, voz, exposição —
a poesia quer a sua fisicidade
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a pontuação na poesia é a beleza dos seus sinais e dos respectivos espaçamentos — é a relevância do tamanho das letras a compararem-se intuitivamente — é o exercício da virgula, ponto final, parágrafo e demais formas elas expandem-se desde Pound como galáxias ideogramáticas —
de fazer respirar ou dar sentido a um texto
é claro que as teorias de Gertrude Stein são relevantes — a implosão do tempo na página corresponde a uma explosão gráfica, a uma respiração outra, mais vasta, com os pulmões a encherem mais a folha
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a pontuação já não é ruptura na voz, mas rapto de glifos —
há algo de rapina, rápido, que cai súbito, e que é um rosto que encontra outros rostos —
predação balbuciante — ou
diálogo, combate, desacato, amarfanhamento, desaparecimento
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poesia é maceração, coisa que se desfolha, rasura, escapa, balbucia, parte coisas,
espanta,
é um trabalho artesanal,
opera — mesmo sem mãos
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as palavras acontecem em colisão, formam tribos, andam à porrada, entrando umas nas outras —
é o lado de debandada, cinematográfico, de forças a espairecerem e a interferirem recíprocas —
contenção, agonia,
enfrentamento,
ressurreição
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a poesia é sobre o inconformismo perante a impermanência — diz as irritabilidades, as ângustias, os entusiasmos, as raivas, o maravilhoso, a serenidade —
insiste
diz
e insiste
que os corpos estão entre a hipotética transcendência e a insuficiente imanência —
e insiste
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o poema faz roçar o que se acha com o que se buscava, e dá conta de quão são diferentes —
entroncamento entre o que poderia ser ter sido e o que se não faz a mínima ideia do que poderá vir a ser
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há uma certa porrada
apocalíptica
mesmo no que se dá
de uma forma tranquila
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esgravatar, fazer garatujas, escrevinhar, rasurar, abrir espaços privados nos muros do espaço público, ser a traça
pôr redes a fermentar,
regar uma planta de vozes,
que esburaca a cortina, entranhar-se
na rocha,
um para-dentro que exterioriza,
o que abre a luz
da intímidade
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poesia é o traço de uma serpente que morde por vezes
a cauda,
noite cônscia dela mesmo, obscuridade a fulgurar, com todas as contradições, odos os sons do medo e todos os medos a sonorizarem e a esconjurarem a morte intrínseca — e também, pelo contrário, escuridão que apazigua e apaga ou embala as ângustias extremas (diria o Campos)
a poesia é o seu porquê e o seu sem porquê — com sujidades extremando
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táctil, ambígua
e limpezas libertações
fazendo a erosão do que constrange criando constrições que abrem possibilidades ecos em anamorfose duplo que se esfuma entusiasmo na decadência inversão da catástrofe
escrito paginado e ilustrado por Jorge Judas num dia como este em Fevereiro de MMXVI