38 manifestos (monstruosidades)

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parรกgrafos sobre a

da

Poesia

m o n s t r u o s i d a d e


para a catita Rita que tanto me faz poetar


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parรกgrafos sobre a monstruosidade da poesia J o r g e J u d a s



o poema ĂŠ

1

um monstro



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não se sabe a que é que se destinam os poemas nem se percebe para que servem. assumem a sua condição ao lado das imagens e da magia, essa condição apofática que pode ser assolada por uma doce e terrível ironia sublinham-nos os isolamentos e aguçam-nos a ilusão de que tudo depende de nós, mesmo que não dependa. porque se morre das dívidas das conjecturas e é inextricável o sermos artephysis, entregues a infindas variações



3

a poesia condena-nos a viver mais, a querer adolescentemente algo maior que a liberdade



4

as regras de des(organização) de cada poema, ou a falta delas, reciclam as regras da natureza sem que não se dê conta disso — como nada escapa tudo o que está

à natureza, nos poemas é feito com os restos da linguagem que se querem subtraír á voracidade e à vacuídade da linguagem quotidiana



5

a poesia guia-nos para onde se forjam onde os segredos os cegos seguem-na

o lugar os enigmas,

não têm sentido —

como na parábola



6

o poeta traz-nos a força de ilusão, de engodo, que é o mundo — não o imita, não rivaliza com ele, não é contra algo (pode ser contra o contra algo),

mas é-lhe o suco que origina as metamorfoses factuais



7

eu sei que a poesia mesmo quando visa

espevita a acalmia —

tem que se fechar os olhos para recolher a memória que se contorce com todas as suas forças



8

o poema faz com que as cosmogonias e as cosmologias não sejam meras enumerações — acampa com suas tendas o esplendor do desconhecido — vem para instaurar algo que ficará depois dele,

fragmentário, convulsivo, imprevisível, desconcertante —

é vida

ainda mais vida

a ritmar-se



9

o poema baralha as montagens espontaneas que nos são brindadas pela ordem mais superficial das coisas —

o olhar e a linguagem são já montagem, colagem, citação —

o poema propõe a metonímia como elisão, lapso narrativo — a sua narratividade nem sequer está entre as linhas — está nas capacidades de o leitor se mudar a si mesmo



10

o poema faz uma auto-hetero separação que torna o leitor em escritor e o escritor em leitor —

cada um tenta ir à sua vida,

mas não consegue



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desde Baudelaire que muitas coisas parecem ter sido deitadas fora mas continuam a regressar —

a narratividade, o doce lirismo, e as coisas fulgurantes anteriores ao nascimento da subjectividade

mas voltam à luz de tudo o que vem sendo assombrado e assombroso desde Beaudelaire —

há muito mais descontinuidade, barulho, erosão, silêncio ou tralha



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Pound (julgo que) diz que a prosa deixou ao poema aquilo que lhe sobrava:

o condensamento? —

a poesia deita fora e continua a deitar fora o que não é possivel ficar dentro — é o instável a verter-se como biografia que não encontra o seu sujeito embora se exiba como sujeito na sua imaturidade



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alguns poetas conseguiram ser cretinos ou filhos-da-puta, e mesmo assim foram

a poesia faz a montagem insana do que não se quer confundir com montagens

faz a passagem aquilo que não está

incandescentes —

para outra coisa que será na intenção dos poemas —

é a sua função de recusa da recusa da recusa



14

houve um tempo em que o cinema parecia triunfar, e em que o poeta tendia a desaparecer ao tentar empunhar uma máquina de filmar com o respectivo manifesto — mas vamo-nos dando conta que a poesia absorveu o que seria importante no cinema, e que cada vez menos está no cinema: a sua vocação de transfusão do poético no ainda mais poético



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a poesia seria a anamnése de algo anterior a cada um, ou mesmo ao Ser —

uma incompletude advinhada antes de qualquer origem

algo sem-origem cheio de imagens frementes a originarem outras imagens —

é o recuo que avança no espaço-tempo e que torna indistinguível o tempo do espaço, numa fusão incompleta e noctívaga



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conexões desconectantes e desconexões que conectam —

paradoxos insanos que probabilizam, que fazem agir, mesmo no interior da alegoria, com paródias de simbolos



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o poema é o espetáculo onde se abisma o vacilante —

por isso só pode ser cada vez mais simultaneo, não consegue vir sózinho, e quer-se acompanhado de multiplos modos de enumerar deslumbramentos, abandonos, apatias, extases — sem por isso se livrar de uma retorcida metalinguagem que até pode não estar lá



o poema engravida

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sem gravidade —

traça o espaço materno e mortal a céu aberto, insistindo no amor e na morte, terríveis e maravilhosos, embora turvos, obscuros, a trilharem caminhos que parecendo fatais são incertos



o terror

da advinhação

é no poema

do sacrifício

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também a cinza



20

a memória que o poema conquista é uma memória diagonal às memórias pessoais — é um passear-se com o corpo entre a paisagem retroacção neguentrópica e tropical do que se parece esvair e degradar

inextricável, e o inexistente —



a poesia é o adiamento

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da Necessidade, da Fatalidade, da velha Anangké, (perdoem-me a redundância) e das tarefas do dia-a-dia —

procrastinação em deterimento

do corriqueiro da experiência do essencial



22

o poeta perfere a perguiça à meditação ou ao trabalho —

fazer um poema é esperguiçar-se



23

a poesia vive do excesso de referências, mesmo daquelas que não estão nem poderiam estar lá — terrorismo linguarudo que quer rebentar com qualquer quadro de referências, violência que se abate sobre a violência da linguagem comum —

desvio do sentido corrente dos sentidos



24

…é um jogo que acolhe dispositivos retóricos — disponibilidade para retoricar, induzindo o leitor a vários engodos e, se possivel, ao grande encantamento



25

a poesia é experiência anti-epistemológica —

não procura outro conhecimento que não seja o do corpo saber experimentar de uma forma mais intensa —

exorcisa-nos dos conhecimentos das ciências, embora se possa nutrir deles



26

a poesia ensina a saltar e a caír — para cima, para a frente, ou até para o lado ou para trás — penso na frase do Nuno de Bragança:

U Omãi Qu Dava Pulus

ou no senhor Valéry de Gonçalo M. Tavares, que consegue estar por momentos mais alto, ou no poema que ensina a caír sobre vários solos da Luísa Neto Jorge —

altivez cadente que se autoprojecta em espaços



27

a página, desde Mallarmée e Marinetti, exige cada vez mais ser conflito tipográfico do unânime branco com a multiplicidade negra de ritmos, de grafias, de ortografias e de rimas que não estão no fim — a página quer ser vista e lida com um prazer inesgotável e acolher em si

quer a intensidade do complexo, como a do simples ou do insignificante



28

a poesia atrai imagens para que a acompanhem e apetece-lhe, nestes tempos do virtual e do incorpóreo, ser cada vez mais coisa,

objecto, livro, voz, exposição —

a poesia quer a sua fisicidade



29

a pontuação na poesia é a beleza dos seus sinais e dos respectivos espaçamentos — é a relevância do tamanho das letras a compararem-se intuitivamente — é o exercício da virgula, ponto final, parágrafo e demais formas elas expandem-se desde Pound como galáxias ideogramáticas —

de fazer respirar ou dar sentido a um texto

é claro que as teorias de Gertrude Stein são relevantes — a implosão do tempo na página corresponde a uma explosão gráfica, a uma respiração outra, mais vasta, com os pulmões a encherem mais a folha



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a pontuação já não é ruptura na voz, mas rapto de glifos —

há algo de rapina, rápido, que cai súbito, e que é um rosto que encontra outros rostos —

predação balbuciante — ou

diálogo, combate, desacato, amarfanhamento, desaparecimento



31

poesia é maceração, coisa que se desfolha, rasura, escapa, balbucia, parte coisas,

espanta,

é um trabalho artesanal,

opera — mesmo sem mãos



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as palavras acontecem em colisão, formam tribos, andam à porrada, entrando umas nas outras —

é o lado de debandada, cinematográfico, de forças a espairecerem e a interferirem recíprocas —

contenção, agonia,

enfrentamento,

ressurreição



33

a poesia é sobre o inconformismo perante a impermanência — diz as irritabilidades, as ângustias, os entusiasmos, as raivas, o maravilhoso, a serenidade —

insiste

diz

e insiste

que os corpos estão entre a hipotética transcendência e a insuficiente imanência —

e insiste



34

o poema faz roçar o que se acha com o que se buscava, e dá conta de quão são diferentes —

entroncamento entre o que poderia ser ter sido e o que se não faz a mínima ideia do que poderá vir a ser



35

há uma certa porrada

apocalíptica

mesmo no que se dá

de uma forma tranquila



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esgravatar, fazer garatujas, escrevinhar, rasurar, abrir espaços privados nos muros do espaço público, ser a traça

pôr redes a fermentar,

regar uma planta de vozes,

que esburaca a cortina, entranhar-se

na rocha,

um para-dentro que exterioriza,

o que abre a luz

da intímidade



37

poesia é o traço de uma serpente que morde por vezes

a cauda,

noite cônscia dela mesmo, obscuridade a fulgurar, com todas as contradições, odos os sons do medo e todos os medos a sonorizarem e a esconjurarem a morte intrínseca — e também, pelo contrário, escuridão que apazigua e apaga ou embala as ângustias extremas (diria o Campos)



a poesia é o seu porquê e o seu sem porquê — com sujidades extremando

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táctil, ambígua

e limpezas libertações

fazendo a erosão do que constrange criando constrições que abrem possibilidades ecos em anamorfose duplo que se esfuma entusiasmo na decadência inversão da catástrofe


escrito paginado e ilustrado por Jorge Judas num dia como este em Fevereiro de MMXVI


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