Dos Mitos

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Pedro Proença

dos mitos precedido de

MESTRES SÃO MONSTROS

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© Pedro Proença © Sistema Solar Crl (chancela Documenta) Rua Passos Manuel 67 B, 1150-258 Revisão: Joaquim Gafeira Design: John Rindpest ISBN 978-989-8833-74-7 Depósito Legal: 490923/21 Impressão e acabamento: DPS - Digital Printing Services. Lda Quinta do Grajal, Venda Seca 2739-511 Cacém



nota: A primeira parte do livro é um comentário à súmula-ensaio de Pedro Eiras […] Ensaio sobre os Mestres. As frases foram escritas na cama, nos autocarros, nas caminhadas, etc., sobre o livro referido. Assim o sinal de supressão […] sobre um número refere-se à página do referido livro. A segunda parte é constituida por excertos de um texto maior chamado Dos Mitos, construído a partir do livro, Love’s Bodies, de Norman O. Brown, que foi nosso instrumento de trabalho em 1983, e que é também um súmula de citações ou glosas. É muito provável que alguma porção desses textos (ou outros) possa ter-se infiltrado por aqui, embora não nos tenhamos dado conta. As Perguntas Liquidam, de Jacques Pastiche, é uma homenagem a Fischli & Weiss. O Texto de Renato Ornato, O Melhor do Melhor, retirado do Romance Conceptista, é um involuntário prefácio ao que se passa aqui. O facto de vir quase só no fim tem como fim apanhar o leitor desprevenido e infundir-lhe perplexidades.



se não me comentar agora se nem sequer me comentar por mim será que alguém comentará? Quem cala consente é a resposta antecipada à última frase do Tractatus de Wittgenstein. Ficar em silêncio, mesmo místico, é escancarar portas para que a servidão voluntária entre.

[…] — 1


[…] — 3

):(

Mestres são Monstros [ ensaio sobre o falhanço (in)voluntário? ] ou ):( […] — 5

Mestres são Monstros ] ensaio sobre as glórias do fracasso & os fracassos da glória [ pelo soi-disant Pierre Delalande abstractor de meia-tijela & de sexta essência


Não há pensamento inaugural. Não há pensamento zero. Se é com a linguagem que se pensa, pensa-se desde logo a partir de um desordenado e impreciso conjunto de ready-mades. O pensar vem de múltiplos impulsos que precedem. Há imenso pensamento que só emerge escrevendo-o, dizendo-o, figurando, indicando, dançando, filmando, etc. São as acções que o provocam. A caneta e a tecla são instrumentos mágicos. Boa parte do pensamento não se preocupa minimamente com o impensável ou o não-dito, mesmo que um suposto “impensável” ou “não-dito”, cargas cegas, o possa (re)organizar. Haverá limites para o pensável, para o enunciável? Não sei. — diz o amável comentador sedento de contraditar.

[…] — 6


Evito citações partindo delas. Se não partisse delas como poderia evitá-las? […] — 7

Este livro conjura mais que todas as liberdades. Renasço da irrelevância e da inabilidade. Que pedidos extravagantes pode um livro pedir. O encontro incomensurável de dois segredos perdidos em não-intenções. Livros que suprimem sua liberdade voluntariamente. Livros que se enforcam nos paradoxos. O incomensurável dos segredos.

[…] — 9

Vou dizer o que não sei para tentar sabê-lo. Escrever desvinculando. Escrita sendo revolução permanente. Escrever para reescrever sem lamber. Ou antes, lamber versos como quem morde. Uma sismografia para baralhar a morte. O escritor finda a confundir contabilidades — entre o calar-se e o escrever fluido produz balbuciamentos que reescreve balbuciando melhor. Relutante leitor, meu émulo, meu desigual.

[…] — 10

Livros dizem-se acidentalmente, mais que a Potência ou a sua impotência.


Nasce-se não só das nossas moles contradições, como da inalienável fecundidade das Mães.

[…] — 11

A existência prefacia a vida. Os livros resistem a panfletos e prefácios? Um manifesto causticamente discreto. Este prefácio é intersticial, agita-se entre o esófago e o esfíncter (entre o oráculo e a esfinge) — o nosso programa é desprogramante — o texto perde-se, retoma-se, joga, marca, perde, é substituído, é expulso. O jogo nunca acaba.

[…] — 12

As obras querem ser copiadas em moldes imperfeitos — os dissimulacros são modelos desviantes de modelos, prelúdios de arquétipos forçados perdidos no bairro que mal os viu crescer. Um bosque de glosas e (des)citações. Não consigo vislumbrar a montagem. Estou desnorteado a seu lado. Sou ornamento que incompleta citações, ou que articula o fragmentário queimando a trela.

[…] — 13

O seu sonho era substituir um material imenso de citações por um monte idêntico de refutações, delírios, ainda que não houvesse aí nada para refutar ou delirar. O pensamento entrou na fase post-Dada, premeditando seu fracasso, acolhendo heranças sérias, loucas, patuscas, estrambóticas, ou evadindo-se de antemão. Ele tinha a vocação do comentário e recusava o que quer que fosse que surgisse explícito.

[…] — 14


As provas imediatas apontam contra a leitura, as teses, a gnose vinda de exegéses. Há que rever as provas inúmeras vezes. Suspeito que não há vazio nem excesso de acumulação de sentidos — só restos de bolos aos quais pombos ávidos se atiram. Não escrevo para ler nem leio para escrever. Escrevo de em-contro ao que quero ou tento ler. Escrevo no revolver que desejo que os textos me suscitem. Escrevo com cegueira escarafunchosa, com falta de autoria, com desarrumada imaturidade. […] — 15

Sabemos que os fragmentos se degradam e se recombinam. Fazem-no tardiamente, às escondidas, em corpos que ainda não são autores, feridos de falta de evidência e da turbulência da influência. Publicamos o que não escrevemos para impressionar (quem?) como se o tívessemos escrito. Seguimos a velha técnica romana — saboreamos a sede da sebenta. E a sebenta é, inevitavelmente, sibilina e ruminante. Tenho citado muito mal, em versão paródica, exagerada, oral e fanhosa. Ponho-me à prova para parecer percursor (onde?) do que nunca quis dizer. Desejamos que nos inflijam milhares de páginas de literatura e pensamento condensados para evitar ler as deliciosas partes inúteis que se vão evadir dos livros e apanhar sol na praia.

[…] — 16

Obras são sombras largadas, babas sobrando à existência na dissimulação da mesma. Escrevemos para vindouros ressurrectos cheios de cornos e máscaras — como tu, esquivo leitor.


A alegoria não é ruína — é a experiência da passagem por cavernas e labirintos, a ida iniciática ao sexo materno, a Deméter (o vislumbre de Baubô) do qual com sorte saímos para um dia lá voltar. Escreve-se e publica-se para pescar destinatários nas redes. Obras trancadas em nacos de tempo. Ganas de livros saturados, dignos de serem folheados, em que fragmentos desdenhem quaisquer tentaculos. Usar-se a si num estilo que gastou o combustível. A citação tornara-lhe os prazeres recentes, seja no sexo, na escrita, na pintura, na dança, na culinária. Aos poucos e poucos foi transformando poemas em epígrafes e resumos. Escrevia versos medianos para lhes acrescentar epígrafes fabulosas. Ando a recolocar passas em bolos que já foram comidos. Reciclava teses universitárias em aforismos. Traduzia matematicamente as citações. Frases que só abrem frases, numa combinatória, e nada mais — esvaziando segredos. Coligia refutações, ou variações de máximas, tendo em conta que aí pouco mais se saberia — o grande saber antes de morrer é variar.

[…] — 17




Espero que as citações que tombam das bocas cheguem ao chão intactas — é só apanhá-las. […] — 18

Restos de antigos textos feitos com restos de restos de textos muito muito antigos. Pensamentos para co-habitar melhor em casas. O que escrevo gosta de tomar banho dia sim dia não. Frases que incandescem, que nos cegam não só para elas, mas para as restantes. Lendo, ardo. Todas as frases, mesmo as mais canalhas, têm uma pequena dose de responsabilidade. Nenhum dom é dono de si mesmo.

[…] — 19

Cada citação promete e adia a estafada chegada de bibliotecas de citações. A citação sacrifica contextos amanhando-se em obras diversas. A escrita é a constatação de que as origens são irreconstruíveis. Eis a bizarra restauração de Babel por um arquitecto da moda. Uma citação, mesmo inóspita, nunca se livra completamente do clima que a originou (nem da carne do autor). Outrora, copiar textos era modo de os encarar e encarnar. Agora o copiar e o “pastar” é desencarnante. Resta-nos descascar textos em anotações e reacções.


Somos confusamente o que nem sequer lemos. Deus copia-nos para mais tarde nos aperfeiçoar… ou abortar.

[…] — 20

Copiar para se saciar, tornando ridículos os originais (como escreveu La Rochefoucauld). Copiar para criar a sabedoria portátil. Criar pelo prazer de ser testemunha, “assinalado” propagador. Copiar para sentir a mão, para acumular, para fingir possuir o impossível e o improvável. A cartografia da estultícia e do bizarro dão gozo a quem se crê sábio — assim se constitui o autor e as personagens no romance. A curiosidade prefere o esquisito ao vulgar, até que o esquisito se faça banal, e o vulgar exótico. A estupidez dota-nos de talentos para desfrutar coisas que são inacessíveis à inteligência.

[…] — 21

A carne deleita-se: uma imensidão de livros querem reler-nos. Só há formas novas. É impossível descontinuar. Começa-se a cada momento. Erros de ortografia e sintaxe sobressaiem mais do que o restante texto. Façamo-los. Praticava despudoradamente o copy-paste e baralhava os melhores textos. Por exemplo o Ulisses com o Veredas, Grande Sertão; o Kama Sutra com a Crítica da Razão Pura. Assim criou a desordem da qual ia nascendo a nova literatura.

[…] — 22

Plágio, cópias e traduções inventam-nos constantemente sem que demos conta — a invenção é a cópia que se distraiu.

[…] — 23


Em caso de plágio, ou em golpe de génio, prefiro-os impuros, de beleza suja, desgastada. Era uma vez um dedicado plagiador atarefado a plagiar sem se dar conta. […] — 24

Ao usar metalinguagens fico com calos na boca. A paródia é o daimon próprio da metalogologia. Evitar citar silêncios alheios — estão repletos de ritmos maléficos. A citação baralha anamneses.

[…] — 25

O anterior não existe se não o fabricarmos — memórias são novidades a distanciarem-se de si. Aspas que suspendem e queimam nas cabeças… o pensar é feito de aspas, suspendendo e incendiando.

[…] — 26

Nunca imaginei um texto de raiz — são apontamentos alheios que nos visitam para mudar de ares.

[…] — 27

A expressão retorcida do Tao, do Caminho. O labor do escritor é abalado por torturas e tonturas.

[…] — 28

Citações são invasões, ervas daninhas nas quais nos picamos, e que impedem determinados caminhos. Ler Heraclito e Diógenes como se fossem o mesmo, em fusão. Re-escrevê-los, deambulantes, aos trambolhões. Diáklito. Herógenes. Nenhum enunciado é mera possibilidade de interpretação — tende a ser várias — e a ser interpelações — como quem clama!


A pluralidade dos mundos abre a cama à multiplicação das sensações. Substituímos verdades de coisas por sensações de fábulas (a propos de Nietszche). Abre-se um texto para mirar-lhe as entranhas, como os adivinhos. Correr as cortinas da intriga. Casar o camaleónico com o herético. Não há significações fixas. Poderemos fugir, peixes fora da agua, e achar o que buscamos no seco? A página escreve-te e não te encontras nela de ti tão carente.

[…] — 29

O meu sentido é o desencontro no contacto com outros corpos. O leitor vai caçar sensações no texto, sobretudo fora dele. A impostura da língua precisa que lhe dêem atenção — ignora o caprichar dos sentidos. Eis o canto superior esquerdo do esplendor descendo página abaixo.. Era um texto que sugeria interpretações habilidosas e vagas. Desdenhava os espaços brancos, as margens e as entrelinhas. Amontoava até não caber mais. Cartas de amor escritas, não para dizer ou revelar, mas para insinuar variedades malignas. Ele só aprende à medida que vai saboreando o corpo do próximo.

[…] — 30


[…] — 33

A desordem a cavalo no burro do mundo. Ler desordenadamente livros para ter a sensação de nunca os ter lido completamente. Poemas acanhados para matar baratas nos cantos das ficções chamadas mundo.

[…] — 34

Meios entendedores para boas palavras — entendemos a metades, que o sentido é esquivo, incompleto e enganador. O legente é o orgíaco viciado no texto? Ou um voyeur de letras?

[…] — 35

Fragmentos literários e citações são fulgurações que se evadem da maçada de ler tudo. As primeiras pedras da obra já lá estão antes de começarmos. Só há que escavar um naco.

[…] — 36

Que te escrevam como se várias deusas te respirassem.

[…] — 37

Livros que quanto mais se lêem mais ficam por ler. Teorias que adoram provar a sua impossibilidade.

[…] — 38

Não há lugares no texto que escapem ao acto de escrita — os lugares fugiram, muito antes de nos começarmos. Desfazia-se das vantagens de ser obscuramente obscuro. Os autores exageram quanto aos perigos da escrita — fazem passar por acto terrível, escuro, letal, o que é uma bizarra zona lúdica, jogo infantil.


Se o poeta é movido por amor, o pintor é movido pelas ganas. E o poeta-pintor? Ganas e amor.

[…] — 45

Medo a prometer-se em livro para que nos habituemos à crueldade, à monotonia da crueldade, neste canto cru do mundo.

[…] — 46

A banalização da violência e do susto faz da calma excepção — somos estruturalmente tensos desde o tenso ventre das mães. As ortodoxias são saladas absurdas de disjecta membra capazes de, simultaneamente, absorver e condenar tudo. Coisas e eventos existem para diferir do Livro, para o tornar improvável, para o submergir no abismo sem Logos — os cumes elevam-se afundando-o mais.

[…] — 47

Ao crítico deixo a tarefa de operar a ressurreição dos textos e de os temperar com acessos de afecto (mesmo que o seja num estilo frio ou cínico).

[…] — 48

O crítico confunde o escrever sobre o que lhe deu prazer com cócegas de legitimação. O crítico sugere que quer amar (ou odiar) o texto/imagem como ninguém. A miopia crítica descobre borbulhas por espremer no texto amado. A devoração, a amplificação e a acumulação — eis o que dá em bibliotecas!

[…] — 49

O Livro une as diásporas na Leitura. Lia o Livro para saborear Deus, como quem come pão com marmelada. Uns lêem para orar, outros para masturbar — a mesma ciência, a mesma pacificação.

[…] — 50


O Texto leva-nos à Carne por antecipação. Já conhecia as Letras e as Palavras do teu Corpo antes de as provar. […] — 51

Cada um é frases a entrar no livro onde se dissipam os mundos.

[…] — 52

A triste evidência de estantes apinhadas de livros que ninguém irá querer ler. Corto com canivete, a frio, os fios com que me embaralhei escrevendo.

[…] — 53

Furtava-se ao lugar-comum em ataques de pretenciosismo.

[…] — 54

Palavras que corrompem intenções de biografar.

[…] — 55

A Lira aleita o Livro Cada livro é exílio multiplicando-se noutros livros. O livro é multiplicante do não estar aqui, das evasões consentidas. O poema não se dispersa no querer significar. O corpo nunca é estranho ao livro. Escrevo em carne. Leio em corpo. O desencarnante do livro pede-nos que sejamos mais carnais e intensos. Ou revoltos, canibais, carnavalescos.

[…] — 56

Só consegues ler o livro escrevendo nele — é o drama do delírio talmúdico — a tua carne acampa na leitura, entranhando-se no rolo ou na página. O livro em queda fabrica a potência em insaciáveis continuações.

[…] — 57

Instalara a sabedoria nas notas de rodapé e a insensatez nas notas de rodapé às notas de rodapé. Semeemos notas de rodapé em teses que romanescamente jamais findem.


Obras que têm teorias por dever de etiqueta. Obras sem pensamento são rudes, bisonhas.

[…] — 58

O que se segue são buracos narrativos. Não sei se normativos.

[…] — 59

E agora, inimigo leitor, pratica a leitura activa — recita, sublinha, rasga, cospe, queima, esburaca, arranha, clama e come as páginas do livro. Descrendo no todo viverei com o fedor desse gosto, com as migalhas do folar, com os restos da perna do móvel roído pelos ratos. Se-duzir para des-cuidar. A melhor auto-ajuda é o delírio verbal, o gosto pelos jogos de linguagem, o Witz freudiano. Na enxurrada das definições perco-me em buracos abertos pelo gozo.

[…] — 60

Ensaio para salvar falhanços.

[…] — 61

As belas falhas dos mestres. ensaios amestrados o ensaio como falhanço


EN SAIO S OBRE OS MÊS TRÊS […] — 62

No Princípio era o Logos cordas esticadas do Logos e o Logos era deuses e os deuses eram cordas e números. Salto à corda com o Logos Em Princípio = Verbo (ou Verba) e o Verbo confrontava Deus e Deus ginasticava-se nas gramáticas

[…] — 63

Em Princípio era o Erro, e do Erro se desentranhou o Logos Errante.

A origem é fissura no Ovo ou na Esfera. O indistinto no seio do Ovo alado. Este caosmos sem origem nem fim principia-nos a cada momento. O Sopro do Deuses surfava o Fluxo, e na sua vasta prancha galgava ondas magestosas que açoitavam de fúria o Mundo.


A Luz não desaparece — imprime-se nas trevas, é consciência habitando obscuridades. Os problemas chegam-nos do outrora e continuam a reproduzir-se — o agora é a sensação da sua acumulação, o cansaço com eles às costas. Deixamos na vida a maravilha para que outros possam sacudir problemas. Sentidos que esvaziam palavras. Sentidos aos quais se tira o pipo e desincham.

[…] — 64

O sentido é perpétuo parto de infinita gravidez. Se o tempo começa onde a mulher começa, onde começa na mulher o seu começo?

[…] — 65

Somos imensos corpos a confundirem-se, a traduzirem-se. É irrelevante sermos deuses. O importante é o tributo entre amantes e amados, plenos ou intersticiais, participantes no fluxo amoroso do universo. Para onde foi o sofrer que antecede a Criação? Nomes (substantivos) são indicações de dedos que acham vozes.

[…] — 66

O artista é o que sobrepõe tempos. A fala insinua inexistências nos objectos fabulosos. Inclina-se a personagem demoníaca que mina a candura narrativa — a deslaçar a eternidade.

[…] — 67

Uma fremente solidão (again & again).

[…] — 68


Dor ontológica a aninhar-se em caprichos gasosos. […] — 69

A destruição do mestre pelo mestre, a suspensão da crença do discípulo, o arco da suspensão partilhada, a fé que passou a convicções tiritando… Como é que o discípulo se emancipa do gosto pela servidão e da tentação de vir a ser mestre? Biografias que perderam a data do nascimento e da morte.

[…] — 70

Aquilo não era uma vida. Era o pulular de biografias chocando, era o modus operandi deslocando factos para novelas baratas.

[…] — 71

Pessoa só existe porque se lhe lêem os papéis — e a nossa escrita caminha nele interpolando, agitando, desajeitando, sem porto onde atracar. Há que lê-lo naco das nossas vidas, como fragmentos biográficos que nos esperavam no anzol lançado. Desocultar, baralhar, baralhar ainda, por mais máscaras que retiremos. Um texto sagrado começa por ser só mero esquiço, breve testemunho, condensação, arroubo poético — e desagua em epidemia, contorcionismo, exagero, censura, comentários e polémicas.

[…] — 72

O mito é flexão — mostra e esconde, corrompe e restaura, mente sabendo que sabe que mente… em parte. Caeiro desmistifica e desoculta-se-nos. Se se tornou fábula não foi pela boca de Campos. Perseguem-no comentadores irrelevantes como nós. A palavra mito diz o ardor das variações, relutante à historicidade, polvilhado de imanências: intra-extra-poly-mundano


As autobiografias são as primeiras a fazer-nos suspender a crença e a reverência pelos autobiografantes. Um deus que se faz filho de um pai ausente e de uma mãe fecundada por ninguém — eis o deus desconhecido.

[…] — 73

YHVH é o pai adoptivo adoptado pelo Filho. A tripla negação de Pedro desagua no firmamento. A montagem das escrituras é interpretação desviante. Estamos perante textos aptos para delirantes traições e deserções inspiradas.

[…] — 74

Não sei se se podem chamar erros às mil e uma incongruências da Bíblia. Chamemos-lhes outras coisas. Toda a interpretação bíblica é misinterpretation, um tresler. A mais clamorosa é a interpretação de Velho pelo Novo Testamento, feita pela personagem Jesus. Jesus é um grande mestre de desvios interpretativos. Ao que o abandonaram!… Os meus daimones são as palavras e as cores. As figuras-Nietszche são mais abertas e dialogais que o texto-Nietszche.

[…] — 75

Entendo textos como eventos descontínuos. Anamneses que progridem em lutas. A função da parábola é a de fazer meditar sobre o sentido da parábola. O efeito físico de reflectir sobre uma narrativa introduz no corpo uma sensação de interiorização e apatia.

[…] — 76

Não concebendo nada desligado da vida, a ideia de Obra sugere a garantida posteridade situada no inexistente.

[…] — 77


Se o tempo, segundo a física quântica, não existe, a posteridade, que é a propensão da alta entropia, ainda menos. Neófito, não há nada. O que se escreve acrescenta migalhas de valor ao esplendor da natura. 9/10 — A mesma proporção do prazer homem/mulher no mito de Tirésias. O nove é o poder de parir o Novo. O 10 a pequena proporção capaz de a fecundar. Em vez da arte dialéctica recolhia a pulsão da vinha. Zumbidos de teorias a zombar da vida. […] — 78

Durante muito tempo a metáfora para a realidade foi o soco, esse grande mestre — do Zen a Hemingway. Um mestre que não convence.

[…] — 79

A revolta é a repetição do fracasso das metáforas revolucionárias. Constroem templos para tapar o hiato entre a fábula e a doutrina.

[…] — 80

Nunca deixamos de passar à prática, mesmo se submersos nas pardas páginas da filosofia. Um paraíso revolucionário e uma revolução paradisíaca — eis o maroto mote antigo.

[…] — 81

Poetas que desfazem o feito desde o espanto primeiro — por miopia, evidentemente.

[…] — 82

Não sou eu que regresso em Ulisses, é Ulisses regressando connosco. Ulisses regressa para que Penélope venha a partir.


O ideal é continuar a subir a montanha lendo de vez em quando. O profeta aguarda no topo para silenciar.

[…] — 83

Nenhuma rosa é a palavra rosa, que pode ser quer uma flor quer uma cor que nem sempre é a da rosa. Nenhuma rosa é igual a outra rosa. A minha ideia de rosa não é igual à tua, nem sequer o conceito, muito menos o desenho. Não vale a pena insistir. Os poetas não fundam. Refundem, semeiam com o que havia para semear Preferia a plausível factualidade das biografias ao romanesco, mas não dera conta de que não havia diferença, excepto na banalidade do material.

[…] — 84

Todas as palavras são autobiográficas para cada. O romance é um modo de baralhar relações autobiográficas que o leitor lerá com suas fecundas autobiografias, a sua impertinente projectividade. Ler romances é canibalizar vidas — as bizarras vidas do inexistente. Escrevo feito cavaleiro: a montar e desmontar. Este texto é caricata montagem de desmontagens falhadas. Em Cristo a humilhação é processual e voluntária. Dessas garras o ressurrecto surge como vento pré-establecido. O melhor tom é sussurro amplificado, como em Felini. Todos somos sofistas, escreveu Pessoa como um dos títulos para organizar a obra — Caeiro e o Banqueiro Anarquista são os dois seus grandes profetassofistas. Qual é o Conto Sofista, a que se refere? Quem chega a mestre sabe que a libertação é a farsa sofística que largou a pele do discurso na caverna.

[…] — 85


Vários mestres, completando-se, divergindo-se, degladiando-se, sabotando-se, alegrando-se. Mestres que são seus milagres sabotando milagres alheios. Um mestre em streaming. Mestres disponiveis on-line. Mestres que se perderam na rua. Mestres que morrem completamente ignorados. Discípulos da indisciplina pessoana de almas. Quais são as verdadeiras paródias? Os mestres acessíveis ou os inacessíveis? […] — 86

Verdades antiquíssimas surpreendem os que as julgavam banais. Verdades velhas são catástrofes que, mesmo atrasadas, sabem esperar-nos. A verdade gosta de se vestir de vulgaridades — depois atira-se da ponte para provar o contrário.

[…] — 87 […] — 88

Achamo-nos intimamente novos e impreparados para morrer. Heterodidacta — são os nossos outros que se entrecanibalizam, que nos iniciam. Nascem de pastiches do mal conhecido e do desconhecido. Em Almada Negreiros é a geometria que inicia — ciência de Deméter, a Mestra. Conheci alguns escritores que ignoravam o século em que escreviam. Estavam atrasadamente adiantados.

[…] — 89

Meus livros sabem-te mais que tu. Escreveram-se para nos fingirmos ignorar-nos.

[…] — 90

A inesperada lentidão dos deuses?


A dádiva do deus é pobreza. Só é esplendido o que os deuses não dão. A relação entre deus e o infinito é complicado matrimónio. Ser bêbado sem beber, saboreando o poético e o divino.

[…] — 92

Só o humano pode ser santo. Os deuses estão condenados ao proverbial imoralismo, às (dis)funções dos seus poderes.

[…] — 93

O único deus perfeito seria um deus impotente, incapaz, nulo. A força do santo mede-se pela irrelevância das Éticas. Sentara-se no sofá da santidade. Deixara a sua santidade inédita, a precisar de um bom revisor do texto e da edição cuidada. O revisor do texto tornou, com sugestões, a revelação muito mais clara. Trocou tardiamente a santidade pela sensualidade. Deus é quem no fundo instiga à dúvida, para existir melhor. O Diabo é o comediante que aproveita a fé.

[…] — 94

Seria insuportável ser Deus, agora que começo a desfrutar de ser humano. Acabamos por reparar que a persistência de Deus é uma intriga narrativa, e que este é nela o Grande Intriguista. As musas deixam-nos gregos sempre que poetamos. Idades metidas dentro de outras idades — gregos que agrafam grécias dentro de eras que não foram.

[…] — 95


Ninca houve gregos antigos, nem os mais ilustres, nem Nietzche, nem Hölderlin — só houve nicos de gregos, pastiches de gregos, sobretudo entre os gregos. Um estranho ar grego vindo do fora-dentro em excitante calma. Não ser grego é uma vantagem de perspectiva e uma possibilidade de os destinar para o nosso tempo. A Grécia permanece porque é hipersexuada, revelando a morfologia libidinal das coisas. Mesmo os números têm sexo. É esse exagero afrodisíaco que faz ver nas coisas acções intriguistas de deuses. Muito antes de se falar de Ser, o tema era Helena. […] — 96

Como já ninguém é grego, teimarei sê-lo — talvez em pop.

[…] — 97

Pensamos numa espécie de idioma grego anterior à linguagem, um grego que jamais existiu, que jamais existirá. Também gostaríamos de pensar, ou melhor, escrever, em védico ou sumério. Andamos em seu redor, com ganas rítmicas e sem miudezas sacrificiais.

[…] — 98

Olham-nos terríveis as frementes infâncias. Envelhecem a assoar o mundo.

[…] — 99

Os escândalos amansaram-me. A humilhação é a maneira prática de voltar a ser criança. Busca-nos aí o reino de Ouranos. Concilia os contrários, multiplica as alegorias, metaforiza as metáforas — eis o Reino! Fui plantar galáxias no horto.

[…] — 100

Os nomes ainda estavam na aragem e não sabíamos apanhá-los.


A significação imatura dos sufocos. Vou escrevendo poemas nas línguas infantis dos Camões. No desenho dá-se a ocupação aventurosa das superfícies. É a vocação grafológica em desperdício.

[…] — 101

Os poetas relembram-se infantis.

[…] — 102

Alguns filhos bateriam nos pais se tivessem força para isso. Os pais deixam de bater nos filhos quando estes se tornam mais fortes. A cobardia é a lei.

[…] — 103

A pele exterioriza o que vai nos orgãos sem ser obscena.

[…] — 104

Não há corpos anteriores ao corpo, só gesticulações que aligeiram o peso e nos dançam.

[…] — 105

A linguagem é ressurreição imaterialista. O sorriso cúmplice de Sócrates surgindo como gato de Cheshire ou de Schrödinger. As coisas viam-nos pela primeira e derradeira vez. […] — 106

Habituei-me a estranhar o que vejo e não vejo. Uma inocência ideal mascarada de montagem modernista. Ele possuía um olhar inaugural-apocalíptico.

[…] — 107

Vou dar-te um criptograma para passares a vida a decifrar-lhe a vida… em toda a parte.


[…] — 108

O que a arte implanta é o neguentrópico, o metacatastrófico, o paraíso carnal-filosofal.

[…] — 109

A infância começa a recordar-nos quando a vida nos despede. A infância não fala… fita.

[…] — 110

Anamneses futuristas — serei-o outrora já.

[…] — 111

A lógica da ficção funda-se no acto de perder e pender — pensar em François Villon.

[…] — 112

Finjo que sou selvagem. Topo logo que são inépcias de dissimulção, fingimentos crepusculares mascarados de aurorais.

[…] — 113

Estamos acorrentados às virtudes apocalípticas da civilização. Há por aí muitas civilizações que corrompem? Para seres cosmopolita tens que te deixar civilizar por todas as culturas possíveis. Comi muitas civilizações e estou a digeri-las mal.

[…] — 114

Uma história polifónica da gritaria.

[…] — 115

O Displicente Amestrado.

[…] — 116

O criador criou-se como companheiros que o ignoram, distraídos em criações privadas. Uma caneta na mão põe-te a pensar o que jamais pensarias. O síndrome da bic.


Um deus que é víscera. Outro que consente ser geometria. A força messiânica diz-nos — somos todos Messias que se fingem adiar. Ou somos adiados a fingirem-se messiânicos? Fui surpreendido por interrogações que se desembaraçaram de Mestres.

[…] — 117

Não sinto falta de Mestres, só de Companheiros. Interrogações que erram com respostas no bolso. Interrogações que vadiam como cerejas que abandonaram o topo do bolo. Respostas que são lobos. Não quero a vinda ou o regresso dos deuses, só a perpétua companhia dos criativos. Não merecemos nada. A vida é dádiva que o ignora. Fica o ranger das casas preocupadas.

[…] — 118

Como quem se embala na sirene apesar da ambulância que lhe transporta a ânsia.

[…] — 119

É o mundo que se morre no morrer-nos.

[…] — 120

Os profetas consideram a espera mais santa que a vinda. Senão seriam insignificantes.

[…] — 121

O que terá que vir veio antes de nós — fomos os que já vieram. Estamos milénios adiantados ao que somos. Custava-lhe fechar a porta tendo o enorme medo ao colo.

[…] — 122


[…] — 123

Álvaro Campos, depois de ser tudo de todas as maneiras, foi a máquina de dissecar o nulo e de exorcizar/escarafunchar o nada.

[…] — 124

Qual a melhor hora do dia para recrutar discípulos? Os Mestres nunca chegam a Mestres — convencem-se que são Mestres, ou convence-os um amigo, uma amante, etc. Assumem o papel carnavalesco de dispensar a sabedoria que lhes seria íntima. Quando o discípulo está pronto o Mestre salta-lhe para as cavalitas. Quando a discípula mal se deu conta o mestre salta-lhe para as cuecas (ou a espinha). O Mestre promete a deambulação ao Discípulo — o conhecimento das entranhas no vagar. O Discípulo faz-se Mestre quando tudo parece quieto, falso. Nada no mundo é quietude.

[…] — 125

Bem hajam aqueles para onde vou, que me palram o bom vulgar, que se dizem sem enganar. A ideia de que os comentários são transfinitos. A possibilidade de os comentar é maior que os factos do mundo. A existência de mundos paralelos de comentários ao mundo. Heterónimos que consistem numa palavra, uma frase, uma sigla, uma vírgula.

[…] — 126

Se aceitares o desafio do enigma, seja de Édipo ou do Zen, serás a sua repetida vítima.


O Enigma é a potêncialidade da linguagem, as suas coincidências, os seus jogos, as polissemias, os equívocos, a lógica. É um animal composto que nos pretende matar. A Noite espera-nos ainda não se sabe para quê. Cabeças que procuram raios. Raios que temem cabeças.

[…] — 127

Zeus, o raio que é a cabeça e de onde as coisas desembocam. A felicidade entrara-me na vida — não percebi que ordens e desordens com ela conspiravam. Uma retórica à espera de aparições para as amparar com expressões ou elisões do inominável. Vejo-me na plenitude com óculos baços, num medo miúdo de fitar. Como se fora um berlinde gamado pelo abafador — desapareço. Os Ulisses que só partiram escrevendo-se a diluir pátrias, a reinventar raízes para regressar a intermitências onde se não está. Azedumes de azáfamas como dialecto. Disse-lhe o Mestre: segue-me, persegue-me, espia-me, como se fora estranho e desconfiável. Sigo-te desviando-me, à espera que tropeces. Alguém viera das entranhas. Alguém recolhia o orvalho das encruzilhadas. Alguém se adivinhava nos sinais que iludem a carne.

[…] — 128


O meu nome ganhava, na sua boca, saliva e sabor — era mais que sílabas entre dentes. Só os que reconhecerem a Luz no fundo da Imperfeição encontrarão os Reinos dos Céus nos Sabores da Terra. (apócrifo) […] — 129

Mentalizava terramotos e demais tremuras — uma acalmia que abria o peito. Foi a demanda que me levou ao suicídio — murmurou o fantasma do Mestre. O cão ladrava às parábolas de Jesus nas ruas de Jerusalém.

[…] — 130

Passei a vida a escrever de um só jacto e a rever e corrigir em variadíssimos jactos. Rascunhos definitivos que assombram a ligar tudo.

[…] — 131

À tua flor da pele livrar-te-ás quer do Todo, quer do Nada, quer do Fragmentário. Canto, cada vez mais miúdo, sobre os diferentes modos de deitar e levantar.

[…] — 132

Ganhei o riso num ataque de fé.

[…] — 133

Contruímos bibliotecas para a memória se perder em labirintos e incendiamo-las para regressarmos ao fanatismo do real.

[…] — 134

O futurismo foi a retórica apocalíptica para animar a malta — eram modernamente bíblicos. Tinham o tipo de intolerância dos iconoclastas, isto é, reactivaram esta tradição. Replicavam a retórica de YHVH no êxodo.


Os deuses humanizam os homens que humanizam os deuses que divinisam os homens.

[…] — 135

Sem convívio não há imortalidade. A imortalidade é convivial, jamais solitária. A relação entre deuses e homens é essêncialmente comercial. O acto sacrifícial é compra de benesses ou de não-perturbação. Somos os que criam os daimones e os possuem, por mais caprichosos que sejam. Alexandra David-Neel experimentou criar um fantasma que passado algum tempo ganhou alguma autonomia. Mais tarde, através de exercícios, conseguiu desfazê-lo. Fantasmas, daimones, deuses, são projecções que se tornam em parte autónomas. Em Homero não há diferença entre daimones e deuses, de onde o mundo lhe ser tido por demonologia. Só a tua consciência te pode absolver. A do Deus nem a Ele absolve.

[…] — 136

A divindade inquire buscando semelhanças — o divino em comparação com a divindade é enigma.

[…] — 137

A transmissão da escuta pode levar ao apedrejamento. A inquirição dissimula a ignorância do Mestre, que tem a tarefa facilitada. Inquirir nunca é errar, mesmo tratando-se de perguntas erradas. Inquirir é a arte, por vezes estúpida, que consuma a difusão da autoridade sapiente. E se a consciência do Ser fosse, naturalmente, a descontinuidade que se dá em arroubos de consciência?


[…] — 138

A linguagem humaniza sempre, até o divino, o amorfo, a planta, o animal — a linguagem é a humana desmesura de todas as coisas. Coisas são crises. Aquilo que no homem é medida, na linguagem é desmedido. Deus é representação do irrepresentável, esplendor de imprecisão. Deus é como o Não-Ser ou a Ficção, convive-se com Ele como se fora mais concreto que qualquer coisa.

[…] — 139

O que está na proximidade quer devorar-nos. Místico seria que o Mundo não existisse sequer como Mundo. O Invisível é comparação alucinada.

[…] — 140

A conjunção de díspares não é surrealista: é o modo ideal do encontro poético.

[…] — 141

A honesta força da inadequação. Os inadaptados irrompem com a força que perturba os conformistas. O sucesso é conformismo tendo os ventos favoráveis.

[…] — 142

Do que é que não se pode mesmo falar? E que silêncio é que não fala?

[…] — 143

Nasci para o amor mal nasci para a vida. Não cesso de me enamorar. E de, em boa parte, ser correspondido.


Minha mãe devorou o esperma de meu pai para que fora nascido. Sou a replicação dessa devoração e de todas as devorações que a precederam. Os filhos nascem para canibalizar os pais.

[…] — 144 […] — 145

Vou substituir o pai sagrado pelo pai descartável. E à mãe “que é mãe” o que é que lhe fazemos? Um filho não nos pede para se nascer, pede para nos renascermos. Não nascemos só nascendo. Somos convidados a nascer mais sacrificando-nos em obra: criadores e criativos. Tudo é substituído pelo outrém que vem vindo — o recém-nascido procura na sua emergência vários desaparecimentos. A consciência disso é o divino. Nascer é canibalizar. Para que haja sentido no desaparecimento tudo o que se vai tem que ser reabsorvido no divino. A Natureza é perpétuo sacrifício na presença-ausência, no sacro daimon da re-presentação. Estás a desenlouquecer!… E isso é uma cura? Nem por isso.

[…] — 146

Chamam-lhe epifania e é pouco mais que pifo. Detrás da matemática há deusas a computar. Quem são? Deméter e Perséfone.

[…] — 147

Chaves súbitas que dão cabo de problemas. Encontrei o céu num espelho que estava partido no fundo da mochila. Procurei Deus no sotão onde arrumei a infância, e só achei brinquedos deprimentos.

[…] — 148


[…] — 150

Não encontramos sentido para a Terra porque lhe buscamos o nosso sentido e não o Dela. Não há ser da coisa; há sensação de ser da coisa, que está disponível na terna convivência.

[…] — 151

Em Caeiro o espanto não é recuo, é calma e tranquilidade — o maravilhamento sobrepassa o pavor. Ou ignora-o? Ou reprime-o?

[…] — 152

Milagres são esquisitos desvios ao monstruoso milagre que é viver. Os mitos estenderam seus fios para conferir esplendor.

[…] — 153

O que dispara no arco do archeiro zen, o que é isso além de ser isso? O alvo encontra, sem que se dispare. Somos a flecha e o alvo nos paradoxos de Zenão — somos feridos de morte um incontável número de vezes.

[…] — 154

Insubmisso, mesmo ante a Graça.

[…] — 155

O desforço de conseguir transforma em comédias os esforços de quase conseguir. O desforço é o Satori. O esforço é o Samsara. Se o Samsara e o Satori são o mesmo, haverá diferença entre o esforço e o desforço?

[…] — 156

Ao sagrado de êxtase diante do horror no ocidente opõem os orientais um sagrado de calma e (des)encantamento.

[…] — 158

Há mortos que tentam sepultar-nos antes de nascermos. Que os ressurrectos cuidem dos ressurrectos.


Os pais são-nos inseparáveis na consciência — separar do familiar é esquartejar a consciência e abandonar as narrativas, as fábulas.

[…] — 159

Vivo a afastar o medo dos países, da família, das comunidades — são máquinas incontornáveis que vencem pelo temor.

[…] — 160

Abandonei a casa do pai para incorporá-lo melhor ou para ser festejado como filho pródigo? O homem é um deus que se ignora no fundo da sua humanidade — a beleza é a prova da eclosão do que lhe está na vizinhança. Os deuses que o possuem são seu cerne.

[…] — 161

Metafísicas de lareira; mistérios de família com anjos ao colo — o abismo, o espanto, a maravilha: como quem partilha refeições. A sabedoria queria encontrar um punhado de terra. Achava lixeiras minúsculas, dejectos, unhas partidas.

[…] — 162

A sabedoria corrompe a adaptação social, dessociabilizando e envelhecendo a consciência.

[…] — 164

Uma sabedoria desvairada e infantil, acabadinha de nascer. Introduzimos dissonâncias lógicas para nos relacionarmos irritantemente com o mundo — daí vêm riquezas inesperadas. A coerência lógica, ou a incoerência, não nos afectou nem a acção, nem o corpo. A poesia é feita por dádiva e vocação. A poesia é encontro a revés dos contras. A sua glória é desviar a morte alheia. Para onde? Para fora do poema.

[…] — 165


A poesia deve ser feita por todos e ao molho. A poesia é feita ao contrário do contra. O interesse da história é gerar histórias e não desenxabidos exemplos, venerações, explicações, memória inútil. A história é o caos de onde me evado, mas que gosto de espiolhar. […] — 166

A quem é que vais transmitir o teu poder e o teu legado, para que o comecemos a invejar desde já? Aperta a mão para partilhares as vindouras feridas da traição. É natural desistir quando tudo se faz pouco ou nada ecoa.

[…] — 167

Os profetas profetizam ao cofiar barbas à cata dos piolhos apocalípticos do Senhor. Temos aqui uma plateia a aquiescer quanto às patranhas que lhes impingimos — vamos lá re-escrever a história insistindo no copioso e na maldade. Esta grande orelha busca um escritor que a sirva perfeitamente.

[…] — 168

Pessoa cedo se apercebeu que vanguarda = obsolescência e que só a metavanguarda pode ser impermanente, cultivando seus paradoxos. Assim inaugurou a meta-modernidade, que se distingue da modernidade e da pósmodernidade por se colocar quer no seu tempo ao mesmo tempo que está, idealmente, num meta-tempo (além-posteridade). Trata-se de dar conta das sensações despindo-as do epocal e mergulhando nas frias aguas da Impermanência. Cheguei a várias conclusões, que sem serem absolutamente contraditórias, são divergentes e propensas a co-habitarem.


Heresias e desconversas ou Recreios e escutas ou Jogos e tagarelices

[…] — 169

Estamos a ser revolucionados de um modo tão radical pela tecnologia ao serviço do capitalismo que não temos tempo senão para nos adaptarmos sem curarmos, quer de nós, quer das ingénuas revoluções que se vão fazendo. Uma vida lírica, frágil, humana, que deixe a terra ser terra, mãe, complexa, com seus bichos, fluxos, amores.

[…] — 170

O que queres fazer pensar?

[…] — 171

Pensar é fértil falhanço, e nós casas andantes, entreabertas; corpos conectados e conectantes; nariz-língua-pele-sexo-mão-pé. O raciocinar é a musicalidade dos que aguardam a presa na fabulosa teia, com o vibrar cínico-apolíneo das cordas. O pensamento é o extermínio da realidade das coisas através das orgias das palavras. Pensa-nos em gente o que vai desistindo, ocultando, sublimando, esquecendo. Se algo nos pensa no pensarmos, tem que ser concreto — não basta um conceito, ou sequer o ser.


Se queres liquidar o pensamento põe corpos diante de um pelotão de fuzilamento. […] — 172

Viciado em vinganças o pensamento acaba por ficar só e estarrecido numa cadeira de baloiço.

[…] — 173

Sou um lastro de concepções alheias que alastram. E nunca bastam. O pensamento nasce de tentativas de fuga ao deixar-se devorar pelo bestiário do tempo.

[…] — 174

Mesmo quando o pensamento se dissocia da mão, a ela fica ligado, até se for cortada. Desligar-se da mão é desligar-se da mãe. Quem pensa arruída-se e socializa o interiorizar-se. Fazemos das nossas solidões comunidades transbordantes.

[…] — 175

A natureza é partes que desfiaram definitivamente o Todo — é irrelevante se o Todo existiu ou não. Sou um provocador de ideias que não teria se não fosse para provocar. É da inconsciência da irrelevância do Todo que nascem as soberanias dos plurais. Como me poderia escolher se sou várias metamorfoses simultâneas? Sou tanque de encontradições. A tarefa urgente é arranjar um modo prático e eficaz de gerir as multiplicidades do sujeito e as crises de génio.


O barroco instala nos objectos-sujeitos o cavo e o protuberante, assim como o desigual e o acidentado — nele a imperfeição abre o Infinito, isto é, o desproporcionado, que, pé ante pé, levará à aniquilação no Sublime. Fazer passar a razão pelo buraco da agulha para que se transforme em camelo.

[…] — 176

Camuflar as teorias em romances experimentais…

[…] — 177

Não deixamos de sentir, mesmo quando pensamos pouco e mal.

[…] — 178

Somos as hesitações de sentido das coisas — são as ficções que as articulam permitindo que se lide com elas. Ficções, mitos, linguagens precedem-nas na plasticidade de cada corpo.

[…] — 179

Agarrava-se com ódio ao que queria atacar — a sua destruição seria o desastre de não-sentido.

[…] — 180

A tarefa do Mestre é desaprender a ensinar o desprendimento, isto é, propagar a ficcionalização da autoridade e da legitimidade como trabalho de casa. Há nas brilhantes obscuridades grassas idiotias.

[…] — 181

O Livro foi superado. Mantemo-nos agarrados a esse objecto viciante e lírico, quase arcaico.

[…] — 182

É impossível fugir das pedras em que temos que tropeçar, pois, como Édipo, mais tarde ou mais cedo, encontram-nos pés, sempre os pés. Coloco reticências ante o saber para não o desdenhar. É a pontuação da reversibilidade, antes da convicção.

[…] — 183

Na vida, na história do Bios, a cegueira, o táctil, antecede a visão — a visão alcança mais longe.

[…] — 184




Despir-se de saberes inúteis é aspirar à condição da cobra, animal nu e arteiro cujo savoir-faire é anterior à prova do fruto do saber bem e saber mal. Minúsculas dúvidas que reabilitam a intensidade amorosa. A pedagogia do imprevisível. Não há imprevisível se não o escutarmos. É o im-pre-visível, a desocultação para o visível do que procede. Leccionar o desconhecido, o imprevisível, o inominável. […] — 185

O simbólico mostra-se melhor nas elipses. A filosofia é a exercitação persistente de sensações que tendem para o inominável. Conceitos são invenções humanas em que se teima acreditar, como núcleos ferozes das coisas. Palavras são lastros projectivos-introjectivos. O pensamento era-lhe achar metáforas e argumentos para que um emaranhado de não-sei-quê se cristalizasse em intuições. As argumentações são no fundo erísticas, ou, no melhor dos casos, sofísticas. Argumentar para humilhar é o primeiro caso; argumentar pelo prazer de argumentar, o segundo.

[…] 186

Há o que por mim mesmo descobri, e o que se deixou encontrar vindo de alhures — há invenção e revelação. Ou são meras vozes de desocultação, de uma ciência da matéria que se quer dar a conhecer? Tiro o máximo ao me contrariar no que penso, não no que faço e sinto.


A virtude é a base dos egoísmos inumanos. Era uma vez um homem com muitas cabeças. Cada cabeça pensava a velocidades diferentes nesse homem com demasiadas cabeças.

[…] — 187

O Não que me pensa não sabe bem se me existe. Prefiro não abrir a porta à loucura, venha mascarada de razão ou de delírio. Sou lugar pensante incapaz de se evadir das suas geografias.

[…] — 188

Abriu a lata de conservas do tempo que se encontra na memória e na consciência imemorial que abre outras coisas.

[…] — 189

Nele a memória e as coisas definham por causa do atrito — cada coisa é modos distintos de atrito, e a consciência é atrito em movimento. Como não pensar mal e porcamente? Penso com repolhos que pensam. Os cães pensam melhor com o olfacto. Penso: finjo e fujo. Existo viciado na necessidade de escrever. Qualquer verdade deriva desse vício. Existo no teatro intermitente dos rascunhos. Se te queres conhecer começa por explorares o desconhecimento. Habita a amplitude das ignorâncias.

[…] — 190


Organizo-me segundo átomos de conhecimento. A “alma” é a sensação de um “corpo” que avança e retrocede mais que o corpo. Um entre difuso: entrada, o que deixa entrar, e o que se deixa adentrar. No jogo da alma o entre é o entrante. A alegria nasce-me da casca da ténebra, engolfa-se na luz, e jamais deixa de lamber a obscuridade. Somos devorados pelo que canibalizámos — espectralmente. Sou esta devoração das devorações de outrém, da insaciabilidade oral do mundo. Só vos reconhecereis, assim como ao Reino, na pobreza. O Reino está dentro e fora de nós. Se queremos ser o que somos temos que nos livrar do Reino do Pai e reencontrar a nudez e a espontaneidade. A Luz nasce táctil. […] — 191

Acabamos por encontrar nomes para o que dentro não parecia ter nome. A Alma é a força da afinidade entre os corpos de todas as criaturas — é a empatia epidérmica pelo mundo. É o estado do corpo que a aumenta ou mingua. A alma é a abertura que abre os corpos. No seu fundo reconhece-se divino e humilde… Temo que isso seja outra comédia para evitar o que vê de diverso. É a ideia de Todo que nos separa do Resto, e o Resto é o que sobra a este fragmento. A empatia inerente à alma é sexual. A alma é a comunhão centrípeta do Eros.


O sujeito não se divide só irreversivelmente — a dobra interior vai procedendo a dobras e contradobras até descobrir na íntima fragmentação a identidade com a dispersão universal. Se o meu bem e o meu mal não forem partilháveis, que farei com isso?

[…] — 192

Nenhum animal se reconhece como Animal — os animais desconhecem as categorias e os conceitos. Reconhecem-se porém na identidade da sua espécie assim como a utilidade (ou ameaça) das outras. Cada espécie cuida de ser especial. A humanidade é o egoísmo de uma especialidade. O conhecimento se não for inspirado não é conhecimento — é paráfrase. Para adquirires o conhecimento do conhecimento aperfeiçoa primeiro as sensações da ignorância. Ando a repensar o que jamais consegui pensar. — o que pensas? — observo o pensamento que nos pensa! — ou o subjectivar que natura? O ódio odeia odiar o ódio? Lia meia dúzia de frases de cada autor insistentemente para ver que efeito produziam no corpo.

[…] — 193

Sendo o problema o ritmo dos outros, perfiro atravessá-lo do que suprimi-lo.

[…] — 194

Vais regando vários ti mesmos que atabalhoadamente construiste. A alma é a exactidão do vago cujo centro é a loucura.

[…] — 195


Para nos encontrarmos temos que nos perder repetidamente dentro e fora. De quê? […] — 196

Utilizava a aliteração como ferramenta para explorar pluriversos.

[…] — 197

Gosto de indagar para incompletar, acrescentar a crescente incompletude ao completo que talvez tenha sido. É melhor perguntar-me e responder-me de borla do que pagar para ler e ouvir certos doutos. É nos desencontros que te confrontas. Não há companhia sem confronto. A repetição é solidão. Sabem-no os ditadores. Conhece-me quem retirar a solidão à alegria.

[…] — 198

Quem são estes eus que me querem ser? — perderam as máscaras e submáscaras e não sabem o que fazer comigo além de andarem aqui à volta. O auto-auto-retratista refuta desculpas, e fá-lo com dissonância moral (ver Rembrandt).

[…] — 199

O vivo é re-mistura em expansão a reproduzir-se no intersticial. Nasci de várias bifurcações entre ruínas de labirintos. Sou o Mesmo dos outros, de mim, e de não-mim.

[…] — 200

A alma constrói casas cujos inquilinos a temem habitar. Na cabeça de cada há muitas línguas a calar-se e muitas personalidades a desistirem de nascer.


Nasço da coerência das minhas contradições. Renasço delas. Também renasço dos encontrões e coincidências da coerência. Sou cada um, à vez, na multidão. Sou multidões contendo multidões. O homem é divergências a irromperem nas obsessões. O medo molda as extremidades dos objectos.

[…] — 201

A felicidade da inacção? A cada momento somos menos que um a imaginar-se muitos. Cada heterónimo é filho abandonado num mundo que não era para ser escrito.

[…] — 203

…partes a somar a partes que são amálgama a que é difícil chamar todo… Aprendi a apanhar o inesperado no descalabro das expectativas. Desaprende a tornar-te no que nunca serás sendo-o. Fui contra o que era. Agora deixo-me ir no aumento. Re-busquei-me fugindo. Reciclo-me excedendo. Recuso ao encadernar-me. Tornar-se entre o improvável e o impossível. Diviniza-se profanando e profana-se divinizando. Um autor que escreve para que as suas ficções o re-criem.

[…] — 204


Um ser só o é (des)assenhoreando-se das/nas variações — eis a comunidade divergente das simpatias. O oráculo engolfa. Se só a ti serves serás escravo desse limite. […] — 205

A surpresa como hábito. No outro mundo serei doutros mundos. Infiel ao que vejo fidelizo-me no que ignoro. As possibilidades dos que endeusamos estão muito acima das suas possibilidades.

[…] — 206

Inventava perguntas que desdenhavam respostas. Era a soberba de perguntar — a terrível alegria de inquirir. Perguntas inaptas, encantadoras, impuras, catalizadoras. As respostas chegam onde não estamos nem somos. As perguntas aspiram à condição de enigmas, de orgasmos de inteligência e sensibilidde. Esfinge e esfíncter têm a mesma etimologia. O que explica o modo como Laio tinha relações com Jocasta. A melhor resposta é dissolver a pergunta em modo duchampiano. Uma pergunta é um conjunto de palavras sustentadas por um ponto de interrogação, a que corresponde uma expressão facial ligeiramente franzida.


Desejo para perguntar. Pergunto para desejar. A filosofia nasce das ganas de deambular a questionar. Sócrates, o modelo do filósofo, imita a esfinge. Como a esfinge aparece nos mais diversos pontos da cidade acossando com questões. Abandonava as perguntas no deserto do sentido.

[…] — 207

Esperar como quem pesca. As fábulas e os sonhos fazem perguntas que nos vislumbram sem que a linguagem sirva para responder. O esoterismo involuntário dos mitos. O exoterismo constrangedor das perguntas. Ser livre é partir o espelho da consciência mantendo a força. As perguntas são estrangeiras. Nada têm e ninguém as possui. Liberdade é o que desvia o sentido da praxis para a poesis. O talvez antecede (anoitece) quer o sim quer o não. O talvez, o se calhar, o e se, precedem-nos como fausto de possibilidades e hipóteses. O adiamento da Morte como jogo de lógicas e suspensão narrativa. De tudo faço danças que evitam o ideal. Instauro pelo desenho o lugar que atrai o real.

[…] — 208


Agrada-me alternar a exactidão com a imprecisão, o claro escuro com as cores fortes, o mutável com o definido, o riso com o choro, a hipérbole com a elipse. A mistura do cómico com o sublime, diz M. S. Lourenço, é uma portuguesice. Batarda talvez tenha sido o mestre deste estilo em que o conteúdo é o sublime que o cómico disfarça com anedotas por vezes escabrososas e delirantes desconversas. Se o sublime kantiano depende da “ideia” do sublime, mais do que da experiência fisiológica do sublime (como em Burke), introduz-se na consciência e na identidade do sujeito uma desmesura. Diante de tal desmesura (o sublime do/no sujeito) todas as realizações são fracassos ou paródias. O cómico que ampara o sublime é o assumir desse fracassoparódia, em que o fracasso da paródia é a paródia do fracasso e vice-versa. […] — 209

O real é o repugnante à cata de hipóteses e projecções. O verdadeiro é o que resiste fugindo/fingindo, depois de cair na retrete. O conforto entendia. O confronto não sacia. O realismo anseia como quem adia. A descrição é um gosto larvar. Flaubert barra a compota no pão com a sensação de que a fotografia veio para lacerar. O realismo é a imprecisão sumarenta que rivaliza com a petulância conceptual dos dicionários.

[…] — 210

As subjectividades são míopes. A objectividade implicaria demasiada luz — essa luz evita a consciência e é uma cegueira… por excesso. Não refuto, finto.


Nesta miopia caiem coisas que não sei ver e com as quais ainda não sei lidar. O pensamento da prática (da praxis) seria a prática do pensamento se tivesse habilidade para isso. O Ser nada tem a ver com conceitos ou realidades — é eclosão na linguagem que a faz resvalar para planos ora de luz, ora de sombras

[…] — 211

Desencontros acham-nos em quartos desarrumados. Os fractas são pesadelos com ar matemático. Os números negativos não são o não-ser, são a carência antes das coisas, transportada por analogia. São números antes dos números, isto é, coisas antes das coisas. É como se o imaginário e o inimaginável precedessem o real e o irreal. Os números imaginários são pregas sofisticadas dentro dos negativos — são a apoteose matemática da potência do não-ser. Górgias gostaria imenso destes números. O nervosismo do video-artista parece um bando de pulgas a festejar. Um por quase todos. Todos por se calhar nenhum. Custa a entender que o real seja a sua encenação. Somos actores ignorando que são encenadores de textos insensatos com finais infelizes. Refugiamo-nos na fuga às regras, sem que consigamos escapar-lhes. Vontade de sermos autores de etiquetas que tornam as coisas menos transparentes.

[…] — 212


[…] — 213

O meu ponto de vista, o meu estaleiro de subjectividades, exagera no número de pontos de vista — é perspectivismo pluralista perdido na oferta exagerada de pontos de vista, muito desorientado e confuso. Apesar das interpretações persistem os factos, mesmo que possam ser só meros factos interpretativos. Não há interpretação, mas misinterpretation, tremeluzente tresler. Tresler treslendo o tresler. O que chamamos real é a vulgarização de um número limitado de excepções. O Universo busca o centro da sua radiação em cada um de nós.

[…] — 214

Uma caixa de onde se escapa o Bem, correspondendo em diversidade e potência à de Pandora.

[…] — 215

Se sabes que o silêncio é excelente resposta, para quê perguntar? Onde estão os silêncios que perguntam? Fragmentos de objectividade a driblarem-se uns aos outros.

[…] — 216

A linguagem gera inexperiências e a experiência gera afasia. A inexperiência dá vontade de falar. A Mudez é o próprio do contemplar.

[…] — 217

Para a Natureza seria repugnante que lhe resolvessem o enigma. Assistimos impávidos à desistência dos enigmas. Somos desiguais diante do Enigma. A Astúcia encontra-lhe soluções, não o bom senso.


A esfinge ex-finge. Tenho sonhado a minha realidade, embora mal adaptada ao cinema.

[…] — 218

Coisas são refutações de sonhos — ao lado destes o concreto é paradisíaco, confiável. O que sou é o que resiste à dissolução do onírico. Des-sonhar. Raramente deixei de dessonhar. A imaginação, o imaginário, não são actividades abstractas. A imaginação é como a gripe: viral, mutante, a adaptar-se. Está antes do vivo, ameaçadora, com tendência a propagar-se.

[…] — 219

Sou o mágico falhado que nem enfeitiça outros nem se enfeitiça — mas insiste em tentar encantar. O mundo não pode caber dentro de uma cabeça. Há uma enorme parte que fica a orbitar.

[…] — 220

Sempre que posso ponho os pensamentos fora: desalojo-os, entrego o covil a leões mais competentes.

[…] — 221

À custa de os acharmos diferentes convertemo-nos em exóticos — em índios, nativos, japas. Em breve seremos extintos.

[…] — 222

Ao reler-me passadas décadas desencadeiam-se processos de anamnese que dão ganas de aprofundar uma vida imaginária a partir desses fragmentos. Vivemos no fora a fingir que construímos romances a partir do in-vivido. Colhemos ficções em babas alheias. Fica-se com a desordem sem saber contar histórias. Escrevo romances para re-esquecer os que li e os que acabei de escrever.


[…] — 223

Metaforizo as metafísicas que vou falhando em função desta mistura de caos e nada que incontém.

[…] — 224

Somos misturas de misturas de misturas, às vezes simples, bizarras ou puras. Descascava a Criação com a criatividade fazendo rolar a faca. O vaso da eternidade racha-se com os poemas. Na obscura natureza inessencial e excessiva vivo seguindo o Poema inexacto a cada tempo.

[…] — 225

É irreparável o nascermos cada vez mais antigos, longe de qualquer origem, soterrados em inúmeras camadas de actos, com a actualidade progressivamente opaca. Há que ser astutamente actual e melancolicamente inactual. A negatividade da negatividade é a outra modernidade que superou a seriedade. O homem inventa analogias para se parecer consigo — uma estrela também serve. O arthomem é uma estrela a transformar-se em galáxias.

[…] — 226

Árvores que curtem ser homens. A Natureza sem agressão seria a morte climatizada.


A agressão é a ingerência de uma forma noutra — o mecanismo sacrificial das metamorfoses. É comum o mundo desistir da sua propensão para a beleza. Mas logo volta à carga.

[…] — 227

O que foi o pecado original? Gula. E todo o mal deriva desse impulso gastronómico?

[…] — 228

Os animais precisam de mestres?

[…] — 229

O homem é o animal que se enamorou de ser domesticado, vinculado à servidão. A educação é a feroz domesticação que, se fores criativo, te permitirá ser sofisticadamente selvagem. Domina agora a ideia de que o apocalipse que está para breve pode ser um pouco mais lento e sofrer entediantes atrasos. Já estamos no apocalipse, em versão slow-motion. Crescia em direcção ao Éter, ao Ser, enquanto deixava os pés afundarem-se nos recessos da Terra.

[…] — 230

As searas não compreendem as Geórgicas? Talvez sejam excelentes melómanas.

[…] — 231

As plantas crescem melhor com determinadas músicas. Plantas são críticos musicais inesperados. O que é a realidade elevada a determinado número? Números que são o real. Números que nos editam e fabricam.

[…] — 232




O real é sombra de números e escravo de operações. […] — 233

Vou conhecendo a mitologia dos números, isto é, a sua epidemiologia.

[…] — 234

Falar sempre do ponto de vista do Absoluto, isto é, do zero, o mais absoluto dos números.

[…] — 235

À luz do infinito qualquer quantidade é irrelevante. A desmesura do universo é-lhe pequena, relativa, ridícula. O sublime nem sequer faz justiça ao infinito. O Zero representa o equilíbrio: não está a menos nem a mais.

[…] — 236

Chamamos arte a variantes ecléticas do que se mascara de aspectos do mundo. O rei decretou que entre as coisas e as palavras há várias espécies de indiferenças.

[…] — 237

As melhores fotografias são teatrais, sejam de gente ou de coisas. Uma paisagem fotografada é um cenografia. As máquinas fotográficas têm muito a aprender lendo Shakespeare.

[…] — 238

Um poema que demora o fumar de um cigarro. Sobretudo para quem não fuma. O fumar o cigarro é o Nirvana na Tabacaria. O precisar de fumar o cigarro é o Samsara. A poesia exige lentidão e insistência. É habitada pela voracidade e por uma espécie de predação orgíaca. O real torna-se confuso sempre que a negatividade intervém.


A invenção da dialética fez do real uma discussão de casal. Os artistas têm leques de preocupações confusas a que chamam intencionalidade. Obras que se reduzem a uma intenção são pobres, mesmo quando eficazes.

[…] — 239

A arte mimetiza o obtuso. É uma sinceridade a fazer-se passar por aldrabice.

[…] — 240

O abismo entre nomes e coisas não é tão grande quanto parece. A eternidade enche-se de brechas.

[…] — 241

Perseguem-me ficções dilacerantes, qual matilha de Acteón. São as anamneses que nos inventam. À falta de verdades há verosimilhanças, embora poucas. O ódio não chega para provar. Nem a alegria. Mas é a melhor garantia. A dificuldade que oculta casos é o caminho escorreito para o castigo. Verdades são esquecimentos a recordar ilusões.

[…] — 242

A natureza é mistificação. A literatura imita-a mal. A literatura é mistificação a falhar deliciosamente. Sou o camaleão que dança.

[…] — 243

As artes que o vinho merece.

[…] — 244

O que ilumina a poesia é a pequena lanterna do leitor.


Só sabia ler criativamente fazendo excessivas associações de ideias com palavras que se desvaneciam num ápice. […] — 245

Creio, não em Deus, mas nos efeitos benéficos da suspensão da descrença. Somos o que somos quando nos esquecemos disso. A personalidade é uma defesa contra a espontaneidade mimética. Ao inventar, surge o pensamento a processar.

[…] — 246

Ao falar sou sincero, e arrebata-me o daimon perverso da argumentação. Poetas são os que transformam a língua materna em línguas que se pessoam. … assim semeava Odisseus pastiches de Aletheia… A poesia fala enquanto busca o que ignora na sua língua… Hermes é o deus do entre, das pregas, das pregas nas pregas. A vocação de suspender para co-habitar. A estrutura de Hermes: nem aqui, nem acolá. Quanto mais vero, mais inacreditável.

[…] — 247

Assemelhar é semear e vice-versa. Metodologias para inadaptar, esfoliando a repetição.

[…] — 248

Na Vénus de Milo são seios indefesos que se oferecem, como se nada impedisse de prová-los, sem braços para afastar.


O monstruoso é inadequação e inadaptação. O imaginário monstruoso é usado na teologia negativa devido à inadaptabilidade dos nomes para adjectivar Deus.

[…] — 249

Usa-se a ficção para contornar e confinar o Divino. Ou Deus é o imaginário, ou é destituído de imaginação, ou subestima-a.

[…] — 250

Erigi em princípio de vida (com rigoroso sentido crítico) o Tássebem e o Numaboa. O filósofo deleitava-se com a espessura das suas trevas. Fiquei tão aterrado com a ideia de imortalidade pessoal que comecei logo a preparar o suicídio.

[…] — 251

O homem é uma condição elástica e fractal, descentrada, sem ideais, a existência de um si inacabado, fluido, incoerente, numa sociedade opaca, devorante, co-sentida. As particularidades de um homem denotam-se nos gestos. A generalidade de um homem é as suas indefinições. O humano são as vicissitudes que perdeu antes de as ter. A desmesura do universo e o supérfluo da existência fazem com que os caprichos sejam urgentes. O ridículo do homem acrescenta riso ao mundo. O riso é o que se desvia da crueldade e do sacrifício — é um triunfo provisório sobre a morte, sabendo que é provisório. O belo cocktail da Ternura e do Humor.

[…] — 252


[…] — 253

A argumentação não é esmola: é subtil diferir da aniquilação dos outros ou vontade de presentação de si e da comunidade. A intermitência do sentido, com suas mudanças de clima, constitui intersubjectividades em diferendo. O entendimento é a miragem da linguagem que a possibilita.

[…] — 254

Para civilizar, o primeiro acto é cortar/escanhoar. A barbárie são as onomatopeias (as línguas) dos outros. A delicadeza é o critério civilizacional. O máximo civilizado é o antropólogo de todas as culturas que as viveu na pele.

[…] — 255

Os teus bocejos emocinam-me. Não se trata de ironia, só admiração.

[…] — 256

Quantas vezes não fomos derrubados por ineptos, idiotas que nem sequer procuraram a sorte?

[…] — 257

O que deixa o inacabado combatendo/ pacifica e não pacifica.

[…] — 258

Que boca me foi leão na juba de teus beijos?

[…] — 259

Era um mestre capaz de nos livrar de qualquer mestre, de todo o tipo de servidão. Retirava as máscaras para acedermos ao in-génio, à possibilidade de um si desamparado de muletas e aparatos. Gente onde o libertador palra enquanto o íntimo Hitler cresce sem piedade.


O hebreu sabe que várias verdades vêm sempre ao seu encontro. Sentam-se em cima do Livro Aberto. Para Deus uma só verdade é cegueira. O fulgor da criação solicita o sublime, com ou sem faces. A alma des-força-se, livrando-se das asceses. As criaturas desbravam a consciência através das imperfeições do ignoto.

[…] — 260

Levo-te comigo para me arrepender inúmeras vezes. Se o génio é inadequação, porque se fascinam os jovens com os que os desviam dos trilhos do sucesso?

[…] — 261

Uma zona apatetatada para espiar recomeços. São diversos os corpos de outros que são os nossos corpos, tomados, comidos, bebidos — canibalismo identitário.

[…] — 262

O meu corpo é comunhão, comunidade, ao conter em si desejos, empatias — o “querer sentir tudo de todas as maneiras”, “o meu corpo que é o teu corpo e o teu corpo que é o meu corpo”. Ao despertar surge o rosto O rosto de que desistiram O rosto ressacado De desejo, impotência, morte. A humilde soberba. As cínicas auto-humilhações.

[…] — 263


Podemos ter esperança na humilhação? Sim. Provoca o sublime interior, a dissolução no húmus. A humilhação gera a sensação do infinito que é a comunidade dos humilhados. Assim o sugerem alguns místicos.

[…] — 264

Se de mim divirjo, a co-existência com outros é comunidade desavinda (ou do des-a-vindo). Se não houvesse desavindo não haveria o Novo, nem nada que valesse a pena comunicar com entusiasmo. Fazia colagens com epitáfios. O encontro é impreparação. E YHVH disse: Não Serei O Que Não Serei! Continuamos os dois a lamentar as monotonias do Amor, porque a química não resolve e se acumula roupa por lavar. Todas as palavras são de ressurrectos que não esperavam sê-lo. Escrevemos com os ressurrectos e os livros desfazem em imagens o livro original que está por escrever.

[…] — 265

Filme em que deus se invertia em homem de demónios lavrados A pornografia do sagrado.

[…] — 266

[…] — 267

A alteridade do Si transporta a Mesmo do Outro. O real é alteração. O realista é o alterado. Egos de outridades esfaimadas. Os outros estão no papo, e o infinito na gaiola. A mulher tem sexos em todas as parte e o homem é um sexo sem partes, um todo virado para o nada, um nenhures a esvaír-se em espaço.


Campos de horrores substantivos. Uma valentia, uma fé, que conduz inextricavelmente ao martírio. A sabedoria brota da prudência, do medo que desvia da aniquilação — a fé, pelo contrário, é uma máquina de destruição heróica, gerando mártires, seres para a morte.

[…] — 268 […] — 269

A inexperiência — deslumbramento do ainda não experimentado. A experiência é o que nos tropeça. Deixei de ver objectos para só ver perspectivas sobre objectos. Deixei de ver perspectivas para ter sensações intermitentes sobre objectos e perspectivas desfeitas. O indizível é o apanágio dos tagarelas — Então paramos? — Paremos! (continuam a correr) O preço da tua liberdade é roubo bem maior do que imaginas. Pões avessos nas minhas palavras.

[…] — 270

Fornicam sem ouvir nem falar. Gente que à força de ser falsamente culta se tornou oculta.

[…] — 271

Semeei a Noite e colhi Crepúsculos.

[…] — 272


Fazer milhentas revoluções privadas à grande e à francesa. […] — 273

Somos nações a deixar de as ser num nico de século. É improvável ser-se deusa entre intelectuais.

[…] — 274

Eu sou eu e os outros. Sou qualquer coisa de Intermédia Sou a Luxúria e a Acédia Que acrescenta a Outrém. Cultiva em seu jardim diversas estirpes de espantos.

[…] — 275

Ao copiar figuras geométricas saíam-lhe sempre elipses. A expressão homeostética 6 = 0 (ou 6 = Ø), faz equivaler o sexo e o vazio.

[…] — 276

O pensamento era-lhe ginástica que complementava com cenas musculares. Que há mais profundo do que a pele? O suor. Perfumar os livros antes de performá-los. Substituiu todas as reflexões por exercitações.

[…] — 277

O libertino tendo renunciado ao Absoluto reconheceu que é a variação que o faz mover, e que o variar é insaciável. Também o Absoluto é variação insaciável.

[…] — 278

Tinha uma santidade de bolso que punha e tirava da cabeça.

[…] — 279

Deram-nos um céu armadilhado para atrair santidades.


Aqui quase tudo é obra alheia a obras alheias.

[…] — 280

Criava diversos manuais de instrução para a vida enquanto teimava em não seguir nenhuma dessas instruções. Cidades desenhadas expandindo-se nos orgãos.

[…] — 281

Abandonei há muito as escolas. Levo uma porrada de anos sem ganhar um tuste. Sou o mestre parasita. Encantado em conhecer-te.

[…] — 282

Reconheço-me como utopiófilo falhado. O zero tem-me educado mais que as escolas.

[…] — 283

O símbolo matemático Ø tem uma relação bizarra com os números imaginários. Interessa-me exprimir o finito como não-infinito. Deveria ser o infinito cortado por uma diagonal ascendente. O pensamento de Caeiro é a negação do infinito matemático e do Uno, dando lugar à multiplicidade dos finitos. Isto é a f(x)∼∞. O zero não é o finito. O zero e o infinito são da mesma substância. O finito é o que se opõe quer ao zero, quer ao infinito, não sendo nenhuma quantidade — é um aperçu. O real é alteração. O realista é o alterado. Egos são alter-egos.

[…] — 284

Ao Senhor foi dada a graça de não escravizar. Só não escravizando ele se liberta.

[…] — 285

O campo dos horrores substantivos.

[…] — 286


Modos de associação engendram poderes. A associação provém das carências. Clama o sábio: sacia-te de ti! […] — 287

Não sejamos súbditos, nem dos nossos ofícios, nem de competências e mestrias.

[…] — 288

Entre a autocracia da autonomia e uma ligeira interdependência — eis a liberdade. Adapto imprincípios a mitofilias.

[…] — 289

Esta parábola não é para compreender, é para ir digerindo. A explicação mata a função da parábola, que é manter a narrativa a formatar a consciência. Rico o que escuta e nem tudo entende. Rico o que saboreia as palavras. Rico o que pasma como as crianças. A parábola leva à pasmação, ao húmus da infância, à perplexidade ante o sentido.

[…] — 290

Fazer sucessivas revoluções privadas, à grande. Não é o que que falo que vos convencerá, seja claro, ou em parábolas. Só estas fábulas vos farão compreender.

[…] — 291

É ingrato ser a maravilhosa Deusa entre intelectuais. Pensar é transformar labirintos em estrelas, é articular o ventre com os céus.

[…] — 292

A cidadania e o nacionalismo tornam os povos espectrais.


Não podemos ser indiferentes ao futuro dos mortos, pois já somos parte deles. No fundo trabalhamos para uma pós-eternidade. Todos.

[…] — 293

Para além da vida e da morte — no imaginário. Ainda não tenho suficiente idade para abandonar o sentido do que ando a dizer. Não tarda…

[…] — 294

Deseteronomizo-me através de outras personagens.

[…] — 295

Desigualo-me e desigualo-te imitando. Luto-me regressando à infância. Calha ser o provocador que morde a própria mão.

[…] — 296

Não podes ensinar a liberdade a quem é livre. …e logo o terrível se coalha nos braços biográficos… O que não me alcançaria alcançou-me. Seus estilhaços cansaram-se.

[…] — 297

As vozes dos discípulos que engolia provocavam-lhe diarreias de sabedoria. […] — 290

Assumo o ser apanhado em flagrante antes de cometer actos. Legitimo […] — assim esta não-autoridade. 290 Pessoa acelerou a subversão, multiplicando-lhe as clandestinidades.

[…] — 300

No início está o Não-Ser. Logo é-se raríssima intermitência rodeada de não-seres. Depois regressa-se ao que não cessa de não-ser. Há que reduzir o adversário ao desespero para que o épico seja batalha — […] — 301 escarraremos então no cadáver do adversário?


[…] — 302

A tua essência, o teu sumo, é a traição que deves conquistar a custo — até no cerne da fraude.

[…] — 303

Sendo vivido e sonhado só em parte me conheço.

[…] — 304

Curou-se com a medicação errada. Sofrimentos — Livremo-nos dos médicos para que sejamos donos das curas, prolongadores de sofrimentos ou aceleradores da morte.

[…] — 305

A apotéose do Mestre é dar seu corpo a comer, é multiplicar-se em sagrados banquetes canibais.

[…] — 306

Em terra de Minotauro o semitouro devora Ariadnes para cagar novelos e novelas.

[…] — 307

Vou dar cabo de ti, como quem salva. Salvava-se perigando. Salvei-me da tua vida por um triz. O crente, no desespero, confia no socorro divino. O descrente toma comprimidos. O reconhecimento do pecado é uma Vida Nova ainda mais infernal. A Redenção é Derrota, aniquilação, prazer no azedume e diluição em Nulo.

[…] — 308

Faz de nós o que nem sequer queres.

[…] — 309

Mostrou-me a ratoeira: se provares a sabedoria ela mata-te.


Tens que escolher, como Adão, entre continuar e ser estúpido, ou saber e morrer. Tens um soco que opina. Tenho uma opinião que soca. Pessoa é interfaces entre des-subjectivações e pluri-subjectividades. É mestre o Lírico Postiço a azedar na Autoridade.

[…] — 310 […] — 311

A expressão é a propensão que assalta as faces.

[…] — 312

Libertei-me por antecipação.

[…] — 313

Altero constantemente o que escrevo, qual árvore a crescer, a florir, a dar frutos.

[…] — 314

O que escrevo precisa de mudar várias vezes de pele. O que escrevi desescreverei. Existem vários Caeiros, todos eles mestres na arte de ocultar o ocultar.

[…] — 315

A negatividade habita Caeiro no elástico modo eleático. Não consigo lêr Caeiro fora da sugestão pessoana de que é um sofista, adestrado nas lógicas de Parménides, Zenão e Górgias. Na origem há vontade de diferir, o que se traduz em variações entre o significante e o significado, ou o sendo e o não-sendo. Malucos são grandes mestres em enlouquecer os demais. Inquieta-nos mais o sem-sentido que o Vazio e o Nada, repletos de matizes e sobre os quais muito há a dizer. São facilmente domesticáveis e levados à plenitude.

[…] — 316


Na comédia da significação, os deuses, mais que encarnarem, vinculam-se a papéis… são manifestação + expressão. […] — 317

São fiéis traindo-se. Mas só em aparencias. Intimamente estão em ebulição. Outra frase que partira as pernas. Aprendia a coxear. Entendemos os loucos tornando-nos loucos. Afundar-nos-emos no maior delírio de onde é difícil sair sem ser pela morte.

[…] — 318

O desvio criativo, qual caldo entornado sobre o senso comum, tanto leva à percepção de mundos emergentes, quanto à caricata loucura.

[…] — 319

A generosidade de verter a sobreabundância mental.

[…] — 310

A língua que a casa fala não é a mesma com que as estrelas tagarelam.

[…] — 311

Hospícios que trituram gente. O sentido da terra enlouquece de sabedorias. Os limites da razão ajudam a endoidecer.

[…] — 312

A loucura pulverizada, distribuída, como se fora insensatez, barata. O surrealismo celebra a loucura dos asilados mas não leva loucos para casa.

[…] — 323

A psicanálise cultiva sintomas que mordem seu rabo. O Ouroborus da doença é o mesmo da cura — Samsara =/≠ Nirvana. …uma inércia audaz…


Desfaço-me da loucura geral, singularizando-a em livros que prolongam membros. Se queres desabrigar para descobrir, tens que ocultar substituições — tira-se de um sítio para tapar outro. Assim funciona a consciência.

[…] — 324

Foi para o convento porque era onde o deboche fazia sentido. Cá fora transgredir arrefecia.

[…] — 325

Sade é o legitimador da crueldade, da consagração da apatia e da anulação do Outro — ah, o canalha! A dimensão do sublime é inatingível, mesmo que a sua experiência seja concreta.

[…] — 326

O sublime desvia do belo a promesse de bonheur para a certitude du terreur. A solidão do mestre devora-o. Há que sublimar o seu poder em afectos. Um mestre que só tinha discípulos imaginários, de quem cuidava com primor. A rivalidade ridícula dos mestres. A amizade ambiciosa entre mestres. O mestre passou os últimos anos da vida a encenar a morte. Era uma vez um homem que queria comprar um papagaio. Na loja vão-lhe sendo apresentados diversos papagaios, a preços incomportáveis, cada vez mais prodigiosos. Por fim, olhando para um papagaio decrépito, esperando que seja de preço mais razoável, o homem pergunta: e este? Faz alguma coisa? Ao que o dono responde: Não sei. Mas esse não vendo… os outros chamam-lhe… Mestre! Há uma relação íntima entre a sabedoria e o papaguear.

[…] — 327


[…] — 328

Comemos vómitos de deuses. Boa parte do pensamento chega-nos em vómitos mal digeridos. Que as verdades alheias vos saibam a regurgitado. Deus dá a ambrosia nos textos. Os comentários são vomitados a acompanhar. Dava-se o caso de o comentário ser mais inspirado que a escritura.

[…] — 329

Vozes subsidiárias de vozes — súbditos cujas vozes senhoreiam.

[…] — 330

Aprendi a insurreição como prelúdio da ressurreição. Os bons conselhos foram prematuros. Já os esqueci.

[…] — 331

Poesia é falar sem medo da linguagem e de outros mandos. Arrojar faces para apetizar pavores. Vou inventando as regras do jogo que o mundo vai querer jogar. A Graça de Deus continua, finalmente livre Dele. Escrevi vozes que se evadem — se há estranheza cultivei-a em família.

[…] — 332

Só creio em deuses especializados no indizível.

[…] — 333

Se formos imparciais quanto às acções de deus, não há que ser maniqueísta. Umas vezes é mesmo bom, outras mau, e em geral “mais ou menos”.

[…] — 334

Dos mestres incompletos procedem possibilidades inexcedíveis. Bastar-me-ia uma, mas apetecem-me tanto outras, uma a uma.


O homem pré-histórico é o mutante interno que se desenrasca na selva do inconsciente. Alicerço dinamitando.

[…] — 335

Eis o que nos interessa: restaurar textos inexistentes. Esta textofagia consiste em devorar, traduzir, combinar, refutar e deixar crescer. A literatura procura a santidade na corrupção da linguagem.

[…] — 336

Sacia-se nela. Gosta de se sentir minuciosamente, deliciadamente, em falta. A autoria materializa-se no remorso de produzir prazenteiras inutilidades nas quais julga semear afectos.

[…] — 330

Nada será inferno, aqui ou depois. Debaixo da máscara do inferno está o paraíso. E da do paraíso?

[…] — 337

Quero discípulos que me confrontem e não mártires dispostos a morrer pelo “meu” prestígio.

[…] — 338

Não sou deus. Limito-me a representar esse papel no papel. Não vale a pena encarcerarem-me.

[…] — 339

Continuo a rir-me dos revolucionários porque nunca levaram a revolução até às últimas consequências de libertação.

[…] — 340

No Banqueiro Anarquista a tirania social é dada como espontânea. A tirania social e a submissão voluntária de La Mettrie sobrepoem-se à lógica hegeliana de escravo-senhor.


Ainda adolescente tentei instaurar em mim a revolução permanente. Solicitadas as forças do Universo, nem sei se ajudaram. Até que ponto cheguei? Ainda estarei a começar? […] — 341

Morrem velhos, como se fossem jovens, os que os deuses se distraíram de amar. Na mitologia a regra é os deuses matarem os/as mortais que amam. Desconfio dos proclamados radicais: cultivam ressentimentos de pacotilha para tomar o poder.

[…] — 342

O Mestre estende a teoria da sua ausência para a apresentar como glória onde o Discípulo se possa abrigar a meio do deserto do sentido.

[…] — 343

Os novos mestres não sabem como abandonar os velhos mestres. A antiga maestria queda-se no limbo. O novo mestre vai tomando consciência de que esse também será o seu destino.

[…] — 344

O humano é indissolúvel da sombra. Ela oculta-o revelando-se. Ele desoculta-a agachando-se nas ténebras da ironia.

[…] — 345

A guerra é a higiene dos idiotas. Neste sentido Homero é, na Odisseia, um crítico por antecipação de Heraclito.

[…] — 346

Gigantes às cavalitas de anões, como sempre.

[…] — 347

A revolta genuína, sem planos nem astúcias, serve sobretudo para bater com cornos em muros. Derrotas não lhe causavam verdadeiras mossas — havia outras lutas por explorar.


Achámo-nos livres da inteligência e quedamo-nos sem perguntas, sem dias contados, sem a intensidade do espanto, sem quase nada.

[…] — 348

Ando a peneirar inimigos dissimulados. Chegam a confundir-se com ouro.

[…] — 349

O meu incauto percurso teima em ajudar quer os presentes, quer os futuros inimigos. Atrair discípulos para que nos venham a trair com os novos inimigos. Traz um inimigo também.

[…] — 350

Filhos são contrabandos entre gerações que se roçam.

[…] — 351

Se sou sem unidade, disperso e plural, nada me poderá dividir em força. Precisava da cumplicidade de rivais para a melhorar. Não achou. Teve de inventar refutadores para se exercitar.

[…] — 352

Queria transformar os pluriversos numa singularidade grafológica com biografia banal.

[…] — 353

Até que a beleza abalroou o divino — há que reconstruí-lo com as pedras que sobraram ao Juízo Final.

[…] — 354

Aprendi a importância de recolher a perturbação em sensações dos que se recusam ser mestres.

[…] — 355

Aumentar a alegria da consciência sabendo que eu e tu só somos parecidos e vamos ser remisturados.

[…] — 356

Este livro é ervas que milhentos tentaram arrancar em vão.

[…] — 357

Ressuscitou o carrasco para que este o degolasse.

[…] — 358


[…] — 359

A melhor maneira de conhecer o que vai na mente do mestre é rapar-lhe a barba mental que tanto cofia.

[…] — 360

Quem clama ignora que pode ensurdecer antes de acordar o mundo.

[…] — 361

A vontade de dar erros oportunos. Recontados os erros a que é que voltamos?

[…] — 362

A fidelidade pode ser amarga auto-traição. Encontramos a perdição. É perdendo-nos que vos encontramos. Sejamos fiéis, para que cada gesto seja confiança, para que cada coisa seja divina. Antes dos discípulos já o mestre se traiu quando decidiu ser mestre. A fidelidade absoluta ao mestre é a supressão de si num mestre estúpido e egocêntrico. Atraindo me traí. Posso trair o desejo sem me trair?

[…] — 363

Amo-te com as ganas de quem traí, por amar, o seu bem mais precioso. Também o arrependimento é uma traição à naturalidade dos erros e à mudança de rumos.

[…] — 364

Deus desvia as faces do seu espelho. É o espelho que agora regula o mundo. Deus é o desviante.

[…] — 365

Emendar o uivo com haikais.


O libertador tem que cultivar um riso de tal modo franco que garanta que a sabedoria nunca gerará tiranias. Já não consigo ler o conjunto de livros que é a Bíblia sem a sensação da traição tremenda de qualquer tradução, com a certeza de que também serei inepto a traduzi-la. O tradutor aceita a priori a felix culpa do traidor.

[…] — 366

A vida é a dádiva-dívida com prestações até ao fim.

[…] — 367

Prefácios doutos que estimulam suicídios.

[…] — 368

Prefácio que ao devorar gloriosamente o resto do livro a tornava sua percursora. Leio os prefácios de Aníbal Fernandes ou do Borges retendo o essencial e abandonando o resto do livro. Quando alguém nos morre também lhe morremos. A memória são redes de afectos em redor de corpos. A traição é a Origem que obriga todos os demiurgos a traírem-se e a trair as suas criaturas. A traição coincide com a predestinação. Tudo na natureza (se) trai. Eis a lei das metamorfoses. Em que ponto a amizade passa a amor e o amor a paixão? Ou, ao contrário: que gradações acham condições? Ser amante é pragmático, enquanto amar é fluído e circunstante, uma variabilidade de interesses e simpatias. A infidelidade é a fidelidade à novidade — esfrega as mãos o libertino.

[…] — 369


A natural empatia pelo que está à volta é já devoração, activa e passiva ao mesmo tempo. O amor é empatia que se intensificou. Não se é empático por várias coisas ao mesmo tempo, tal como não se tem a sensação de dores diversas numa unidade de tempo. Pode-se ser vagamente empático/amoroso, por tudo. O drama da empatia generalizada, como o do amor cósmico, é querer ser/ sentir tudo ao mesmo tempo, de variadíssimas maneiras. O amor de Álvaro de Campos é orgíaco. A empatia é a versão soft da orgia. […] — 370

Édipo Tirano deve desaparecer para que em Tebas se lute — do Luto à Luta, da Luta ao Luto. Já provamos o sabor da fraternidade, já devoramos os testículos do demiurgo — agora a luta é fraticida.

[…] — 371

Desapareceram nos bolsos as mãos incendiárias. O deus regressou psicanalisado após o seu crepúsculo.

[…] — 372

O Reino é o Ventre que dispensa o Verbo. As massas querem libertar-se do apocalíptico através do apocalíptico regressando à Grande Mãe.

[…] — 373

O fantasma do pai é a razão adulterada. O meu pai são sete anões mascarados de Ogre.

[…] — 374

No cristianismo mistura-se a apologia sado-masoquista do martírio com as ternuras infinitas da infância. Só aceito a herança cultural a partir do húmus filial — sem pai nem mãe.


Eis-nos felizes, venerandos canalhas, avacalhando antepassados. Confundo restos alheios com restos não sei se de eus. Não está selada a memória nem o passado que entretanto esmorece. Perdõem-me os perdões.

[…] — 375 […] — 376 […] — 377

Quero ser perdoado para voltar a ser irresponsável. Um aforismo que morde a sua própria cauda até dar corda ao relógio.

[…] — 378

A vida é reciclagem da morte. Pôe dentro o que não consegue pôr fora.

[…] — 379

Nada é mais político que o poético na sua insignificância sideral.

[…] — 380

A vida faz-se contínuo acto poético mal se livra de todos os resíduos do religioso e se mantém na progressão da inteligência. A beleza da velhice vem ruminada e ruminada.

[…] — 381

Para uns estamos na deprimente fila da morte, para outros na infinita (e bem mais dramática) depravação das reencarnações. Em velhos sobra-nos o tempo encolhido dos outros e a distorção prodigiosa das memórias.

[…] — 382

O dom é dado se dermos. Não é conquistado: é impuro desperdício.

[…] — 383

Muitos desistem do encantamento para curtir a violência. A violência é o vício do desencatamento, a rejeição do tédio do paraíso para acolher a luz da glória inútil, própria dos épicos. A proibição antecede o divino — Deus é um efeito da propensão para a interdição e do desejo de transgressão.

[…] — 384


Se deus existisse, seria a pluralidade de todas as contradições, e como tal logicamente im-provável. A “inexistência” de Deus provocou outros interditos onde este se camufla melhor. Podemos acreditar em muita coisas, mesmo sendo cépticos. Deus não é nem deixa de ser um requisito para acreditar nas coisas. […] — 385

Deus resiste a existir. É, na existência, a resistência à existência — um movimento interior de aniquilação. A Deus repugna-lhe a devoção, a prontidão submissiva do devoto. Aceita actos extremos de coragem e sacrifício, porque são insensatos. Considera a entrega com pudor.

[…] — 386

Osíris, Diónisos e Jesus são imortais que renasceram para que, sem sucesso, os imitássemos. O socratismo é o silogismo como disciplina de deambulação.

[…] — 387

Entre fingir e fugir Sócrates podia ter escolhido voar.

[…] — 388

Perguntaram a um mestre zen: o que há depois da morte? Sem hesitar respondeu: isto, precisamente!

[…] — 389

Desejo a minha perpetuidade, apesar de a achar imbecil. Porquê? O futuro parece-me menos monótono. A ternura infiltra o infinito na finitude.

[…] — 390

Para o oriental (budista ou hindu) a morte não liberta, repete! A vida falha-nos quanto a falhanços. Tem-me a existência usado da melhor maneira?


A interrogação metafísica do morto: porque é que o Ser tem que regressar ao Nada?

[…] — 391

A morte é a acumulação de factos definitiva que ilumina o labor dos biógrafos. O biógrafo é a hiena aproveitando tudo quanto é nutriente no morto.

[…] — 392

Amar os deuses não os impede de morrer. Quem ama desiguala-se dando. Fica em desequilíbrio erótico, em propensão de continuar dador ou vir a recolher. Não há igual ou idêntico entre amantes, só trânsitos de afectos na órbita de egoísmos. Nascem velhos os poetas, e amam-se confusos invocando deuses, para amar alheios entre o amor próprio e a invocação divina. Deuses não sabem negar. Só o homem nega, aprofundando o buraco onde doravante habitará. Os deuses foram chamados pelos seus substitutos demasiado velhos.

[…] — 393

Estamos destinados a mais metamorfoses depois da morte. Um budista, com mais humor, diria, «nem os budas escapam à reencarnação». Morrer é a diluição que nos relaxará num profundíssimo sono. A morte é a perfeita ausência de exercitação, é a arte do pleno des-esforço. Viemos ao mundo para viver mitos, e, com sorte, mudá-los ligeiramente. Pintava vanitas para temperar a Morte, essa velha alegoria. A vida é a reciclagem da morte.

[…] — 394 […] — 395 […] — 396 […] — 397


Desistir de persistir? Os filósofos não interrogaram Hermes, o deus do crepúsculo, limitando-se a constatar os crepúsculos. Quem é afinal Hermes? E se a imortalidade fosse afinal o sentido da existência? Enquanto vivemos devemos devir imortais, nem que seja em parte. […] — 398

A vida é um perpétuo acto poético a partir do momento em que se livra da devoção. Quem abandona, nós, ou os mortos?

[…] — 399

A beleza na velhice surge mais ruminada. A sabedoria dos defuntos sonda nossas faces. Para quê?

[…] — 400

Assinou a morte, rodeando-se de discípulos, quando podia desfrutar do momento de um modo mais intenso. Quis companhia e comédia. Morrer para ser (es)partilhado, como um post numa rede social.

[…] — 401

O dom foi-nos dado e teimamos em não sabê-lo. O sossego que mata. O ruído que regenera.

[…] — 402

A proibição antecede o divino — ou antes, os deuses são efeitos do culto dos interditos. Se deus existe, tudo é proibido, incluindo deus. A inexistência de deus exige outras impossibilidades.


Podemos acreditar numa data de coisas, mesmo sendo assumidamente cépticos. A certa altura o fim do tempo individual é incontornável, em contagem decrescente — quem nos garante que o tempo alheio continuará a decorrer? Deus resiste a existir. A sua existência é resistência à própria presença.

[…] — 403

Na antiguidade havia vários tipos de alma. Será que a consciência se dilui no último sopro? Será que se vai dissolvendo e transformando? — insiste o sacerdote. Os Mestres nascem-nos no cerne juntamente com uma cambada de nabos e hábitos e chatices.

[…] — 404

A paternidade não é dada à nascença. A mãe sim. A morte do pai é a melhor maneira de o assimilar. Por fim transformamo-nos no Pai, mesmo sem ter filhos.

[…] — 405

É frequente os mortos fazerem-nos companhia quando se cria — ou é a mão do mestre que se insinua na mão que pinta ou escreve, ou está alguém dentro do quarto espalhando afecto — pode ser um antigo amor, uma avó, um amigo ido.

[…] — 406

A passagem do vivo ao morto e do morto ao vivo é um dado metamórfico. Di-lo bem a Ode Triunfal, poema órfico mascarado de futurista.

[…] — 407

Édipo, cego, dilui-se na luz — eis o enigma que serpenteia junto aos pés!

[…] — 408

Diluir-se na luz ao morrer não é raro entre santos tibetanos. Por fim a morte dá-se a ver como alegoria extremamente realista.

[…] — 409


A morte é o âmago da ironia. Ele lutava contra a morte amplificando a ternura. […] — 410

A especulação anestesiava-o, isto é, tirava-lhe o sofrimento para viver ideias de morte.

[…] — 411

É-se feliz no sentido em que cumprimos em boa parte o que soubemos potenciar — ou mais. A felicidade consiste em dar mais potência e potencialidades ao mundo. Só assim se descansa em paz.

[…] — 412

O sentido da vida é ir sentindo a vida. A morte nada sela.

[…] — 413

Fico melancólico e com um ligeiro sorriso ao pensar que a minha obra poderá não ter mais importância.

[…] — 414

O universo passaria bem sem mim. Entranhei-me nele de mil maneiras. Vai sentir a minha falta? Há partes do mundo que me sabem a herberto, a joyce, a kafka. As praias, os mortos, as impuras paisagens, as cidades, etc., precisam de poemas para lhes desentranhar a beleza.

[…] — 415

Será que os mortos lutam entre si? Haverá uma saída do mundo dos mortos por outras portas? Que tipo de corpo é o corpo na transmigração e na ressurreição? Foi dito e redito — a morte é a perfeita utopia equalitária, a cessação de sofrimentos e problemas, o contributo para a reciclagem, o fim da crueldade, o absurdo que nos livra das pressões da esperança.

[…] — 416

A pergunta do salmo é «ao que me abandonaste»? Não há lugares de abandono, há sensações de abandono, e deus também se sente abandonado qual


dejecto. Qualquer drama litúrgico é o de um deus carente, “in-significado”, em abandono, como um amante preterido por outro. Por isso o YHVH dos salmos é um deus ciumento. Os que vão morrer fazem as malas para regressar.

[…] — 417

Mais que a morte, temia os pensamentos de morte, temia o seu temer. Por isso se exercitava nos atalhos que a contornam. A cada sonho habitamos mundos de mortos diferentes.

[…] — 418

Os sonhos são a prova irrefutável das pluralidades dos mundos. A consciência pessoal é constituída de fragmentos de muitos mortos que já estão a ser parte de vindouros vivos.

[…] — 419

Afecto, carinho, doçura, é a bela parte que se safa, sabendo que a lei do vivo é a crueldade.

[…] — 420

Mortos chupando raízes ou trabalhando com o fogo que há no centro da terra.

[…] — 421

Forjar autobiografias é um consolo que aumenta o poder mágico da memória. Caeiro não é um “texto”, nem uma memória. É um pé, um sentir pedestre, sem andar depressa, na zona a nascente da cidade. Usar pára-brisas para as lágrimas. Evitar que o mundo fique embaciado de choro. Compreende-se quando se deixa de viver. Chorar é compreender mal, embora seja indispensável e assertivo.

[…] — 422


[…] — 423

A força da memória é mais importante que a “imortalidade sexual”. Sabemo-lo na história de Ulisses e Calypso. Mortos são os incapazes de recordar, de ter saudades. Vivemos e somos vividos por personagens de Shakespeare, ignorando o centro que as gerou, ou excentricidades que em entremezes foram.

[…] — 424

O alheio que jaz é indicador da inequívoca possibilidade. Resta aguentarmo-nos nas duas patas, e saltar o mais possível. O que podemos fazer pelos mortos não é aprofundar a tristeza — lembrá-los é mais presença que carência. É uma exercitação no amor e nos belos afectos. A morte é-nos dada a sentir como falta de carinho dos que partiram e como antecipação de deixar de dar carinho. A saudade tem qualquer coisa de morte, mas deseja insaciavelmente uma ficção afectiva.

[…] — 425

Os deuses não morreram nem partiram. Estão distraídos com os écrans, alienados, ébrios, egotripados, a tirar selfies. Deus é o não-sítio que vem chegando. Os deuses antigos não se comungam — é nauseante um deus que passou pela boca de toda a gente. Adopto pontos de vista alheios, para logo lhes sacudir a fruta. Deuses são modos de operar da natura. Participam-nos na consciência deixando um lastro de impensado e não-vivido. A consciência produz deuses que participam na consciência que os cria.


Levareis para a morte meus paraísos. Sabereis então habitá-los plenamente.

[…] — 431

Babélicos (ou poliglotas) são os deuses. Os homens têm preguiça de falar mais que uma língua.

[…] — 432

Ser deus é ser senhor do seu entusiasmo e semear entusiasmos nos outros. A pureza é o cerne da mácula e vice-versa.

[…] — 433

Os sistemas recusam o que lhes não cabe, sobretudo o ignoto. A vasta transparência que nos atravessa é desmesurada opacidade. Aprende a desperdiçar melhor tuas vidas.

[…] — 434

Os objectos não existem. São projecções da beleza. São ondulações, formações transitórias a ficcionar o tempo. O mundo discute-nos ao longe.

[…] — 435

É possível ser auroral neste crepúsculo aninhado na escuridão? A verdade é a parte que desirmana (e dramatiza) ao buscá-la.

[…] — 436

A presença como desistência das resistências.

[…] — 437

É importante resistir à resistência ao presente. É importante relaxar quanto às cabriolices dos fenómenos. Contemporâneo é o que adere às fugas ao imediato. Saber o que se passou ontem e anteontem deixa-me perplexo quanto ao que se vai passando agora.

[…] — 438


[…] — 439

Portugal, um acidente ocidental eivado de acentos. Portugal é um local ameno para turismos de ver estrangeiros.

[…] — 440

Na lonjura estival do imemorial.

[…] — 441

A desmesura do mundo pariu uma História anedótica. O mundo vive a diversidade dos recomeços — nunca se encontra o fim, nem no fim. Dispõe-se da sensação do fim, como num romance que se lê num só sentido (talvez errado). Ler romances a partir de qualquer página. Só assim darás conta dos seus sabores secretos.

[…] — 442

No cair do pano acha a sopa.

[…] — 443

Prólogo epiléptico montando epílogos em pulgas. Introjectamos o Filho à espera que o Pai nasça de novo com o mundo na boca, na Ponta da Lingua.. Somos péssimos no papel parental e social. O que nos exila de famílias, grupos, nações.

[…] — 444

Demasiado tempo para dizer e pouco para fazer. Quando me fizerem a biografia, gostaria que escrevessem vidas paralelas. Saboreia-se frequentemente o eterno, mas só em doses homeopáticas.

[…] — 445

Ainda não saí do fim.


A — Que estais a ler? B — Letras, letras, letras, que querem ser sentidas e faladas. Não há palavra que não seja mágica. É o som das palavras, não os seus significados, que te liberta. Tenho multiplicado obras que multiplicam inacabamentos. Renuncias a renunciar a renunciar à escrita ao lado de fetos e cadáveres.

[…] — 446

Chupo caroços às palavras. Enterro-os de seguida esperando que espectros espontâneos surjam.

[…] — 447

A confusão engendra mundos que teremos que descobrir, clarificar, voltar a baralhar.

[…] — 448

De ti nada exijo, leitor infiel. Desejo despertar-te o interesse por ti, nada mais. De ti tudo quero, fiel tresleitor. Desejo que recuperes o interesse pelo que não és, pelo que ainda não é, pelo que poderá não ser.

[…] — 449

A leitura evade para íntimas exterioridades. A guerra jamais cessa. Os derrotados serão outros. Já não estaremos entre eles. Estou em simbiose com as citações que me perseguem e mordem.

[…] — 450

Falar é intermitência na caça da língua. Apolo dá o oráculo. Dióniso faz chinfrim. Hermes interpreta. O fim é o mal do filme. Pensa leitor, em tudo o que perdeste lendo.

[…] — 451


Ler para perder faces. […] — 452

Despe-te das despedidas. Quis ler mais. Entornei-me na escrita e mudei de essências. Fazer o melhor dentro do falhanço possível, imaginando que é possível melhorar. Caminhos percorrem-nos refazendo-nos e nem lhes sabemos os nomes.

[…] — 453

Fomos sombras que muito se sentiram, ternas, demasiadas.

[…] — 454

Vai ter muito muito mais, meu bem!

[…] — 455

Tens preguiça de criar bibliografias para as tuas biografias?



A solidão dos mestres devora-nos deliciando. A admiração (e a embriaguez) é-lhes inerente. Ser-lhes-emos émulos na longa posteridade, aquela que liberta os séculos fora dos muros dos museus. Quem recorda os nomes dos intelectuais renascentistas que enxertavam as obras de sentidos, senão uns experts míopes? Das obras fica a espuma postal, o ícone prometedor, a anedota maravilhosa de um acto de amor sempre renovado nos paraísos carnais. Entretanto a obra pode ter sido a desculpabilização, dia após dia, com a paleta ou o cinzel a aquecerem. Ou a atenção metafísica às coisas de Chirico e de Gertrude Stein. Carmelo Battaglia













o helenismo galerístico


DOS MITOS

Era uma vez o corpo do mundo com orgãos e tal que eram outros corpos, fosforescentes e inclinados, de deuses que nem sempre se entendiam. Era uma vez um em princípio, como um fósforo riscado em meia escuridade compacta. Uma minúscula luz tiritando entre caldos da ténebra. O mundo podia começar de várias maneiras. Podia não começar, ou recomeçar, ou ser assim e assado. Nascia na boca barda, exactamente na ponta da língua de lamber as patas. Só os bardos podem fazer nascer o mundo e os deuses, com o tempo neles metido. O mundo não era objecto porque ainda não havia coisas, nem distância. O bardo inquiria: tem raízes, língua, visões? Ou: tem o rosto de não ter rosto? De não lhe provar exactidões, sequer vaguezas? Vamos precisar de arrancar significados a ferros. Antes do em princípio havia um útero vazio que começara a encher-se. Um útero dourado de outro tempo onde se nascia. Eram águas desejantes, adjacentes. Um útero fecundado por restos de poemas, por vozes que se tinham dispersado nas espumas. Os sinais estavam ansiosos por formar criaturas.


Transmitimos involuntariamente nossos corpos. Tomam-nos e comem-nos as carnes, mesmo não dando por isso. Criar é canibalizarmo-nos uns aos outros. Só a canibalização impede que a civilização seja completamente espectral, garantem. Só devorando transformamos o que não fomos no que seremos. No acto de comer somos carnais, cozinheiros, devoradores, actores — à espera que bocas se acendam e luzam dentes diante da trovoada, para que nos amem o amor em que o princípio do mundo nos fez, antes de mais nada: o Eros, junto ao peito ingente da mãe, do qual não sabemos se já saímos, se estamos porventura (par)a sair.

Cai-se no mundo. Nascer é cair. Há que aprender a queda, provar o fruto proibido, desobedecer. Aprender a caír. O poema ensina a cair (Neto Jorge). Na queda o poema ensina. E o que ensina o poema? Não o sabemos bem. Ensina que não há poesia e mitos senão na queda e que há que caír as vezes que for preciso. Estatelar-se. Saborear a gravidade para lhe conhecer a dor, mesmo que seja tarde. Desembaraçar-se da gravidade e da dor. Cai-se melhor com leveza. O poema e o mito ensinam a cair na leveza. São a leveza em queda. Até flutuar, voar.


O mito não é uma fraternidade? Esta pergunta ecoava no caminho que sai de Tebas. É uma paternidade que começa em Édipo. Vemo-lo avançar conduzido por filhas de sedosas cabeleiras. Vai ter com Teseu a Atenas. Está cego dentro e fora. Elas têm os seios do mundo desnudos. Chupam o caroço do Logos. Uma traz o saber das serpentes na mão direita. É Ismene ou Antigona? Levam o pai para a luz. Levam a irmandade do pai para o desaparecimento. Constatam nesse momento que a sua história é a fraternidade. Isto é: o conto baralha gerações; os três saborearam o mesmo ventre, um ventre que os oráculos não queriam que parisse. Uma mãe nascida para ser evitada e que acabou por dar à luz cinco filhos, tantos quanto os dedos de uma mão de mãe.

É bizarra esta estampa: a serpente conduzindo três criaturas. À frente Isméne, a prudente, a que tem o conhecimento, a que empunha. Segura a Serpente que pulula por tudo quanto é Tebas, cidade fundada com a morte de uma serpente/dragão de cujos dentes nasceram inúmeros homens-serpentes. Segue-a Antigona, a que não se detém, a que confronta, a que recusa os poderes porque segue uma ética mais forte, a que está na fonte dos fundamentos do culto. Faz-se tumba por tumbas, tendo os ritos na morte como fundamentos das vidas.


Lê-se em Antigona uma anti-Gorgô: a que defronta o poder petrificante dos medos. A Gorgô é o medo que estatuifica e nos detém. É medo que as crianças conhecem: os terrores nocturnos, o barulho medonho, onomatopeias do obscuro, que suga, que pode devorar. E o que é o terror nocturno senão o medo maior que nunca nos abandona? É esse medo que Antigona enfrenta: o medo da morte, e o direito à igualdade de tratamento diante da morte. Não se fita a morte de frente senão morreremos? Não se fita o não-ser sem que ele nos meduse?

Para Antigona não há interditos. Alguém tem que os enfrentar, fazer face às faces da morte. Face contra faces. Em contraste com a Sophia e a Phronesis de Ismene, Antigona destempera, porque de alguma maneira é, como a loura Ariadne, uma deusa ctoniana, uma Koré fascinante, jóia reluzindo no escuro Hades. Nada as detém. Nada impede Ariadne de dançar nocturna em busca do amor na pista de dança. O labirinto começa por ser pista de dança, discoteca, local do desejo, de sedução. Só depois se transforma na casa do semibovino. A dança de Antigona é dança com a morte. Aqui ela antecede Édipo, o pai, que calcorreia estradas para morrer-se a mais maravilhosa de todas as morte. Vai para em Colona, onde há arvores dos três deuses que confluem na tragédia: o louro de Apolo, a vinha de Diónisos, e a oliveira de Athena. É devido à conjunção destes três deuses que Édipo desaparecerá absorvido no divino, no luminoso. Édipo teve que atravessar as iniciações todas. A cegueira é em Édipo a marca iniciática, comparável à cegueira de Tirésias, o que transsexuou, o que viu as serpentes copular.


Édipo não morre, desaparece como certos ascetas tibetanos. De onde vem isto? Será que a luz dos himalaias se estende no mundo tebano? Haverá um trocadilho fora do tempo entre o que é tebano e tibetano. Serpentes, rios, ratos, cegos, são todos do mesmo domínio. O rio serpenteia, os ratos deixam-se hipnotisar por serpentes. Levavam-se ratos com olhos vendados para serem devorados por serpentes em labirintos. Voltaremos a insistir neste conhecimento, sobretudo em tempos de peste, como os de Édipo, em que as serpentes são profiláticas. Fraternidade feminina. Em lugar do retorno dos deuses, o retorno das deusas. Em lugar da violência cosmogónica, as artes amatórias.

A terra impregna-se do animal. O animal é uma pregnância que se emancipou parcialmente da terra. Um corpo divisível não é corpo. Um corpo não se divide, multiplica-se. Se o pão é o corpo do deus, onde o Logos é a Carne presente, a multiplicação dos pães é a multiplicação dos corpos, é a multiplicação dos Egos e dos Logos. O milagre é a pluralidade dos eus-pães. Se o corpo da divindade não se mulplicasse, não seria partilhável. Comungar é devorar o múltiplo corpóreo da divindade. É carne que se encarna nas carnes. Des-espectralização.


Nós somos a mãe mitológica, a rede animal que segura a paisagem na vibração das flechas, o acerbado rosto anterior ao movimento...

Somos

desvelados

pelas

A natureza confunde-se por vezes com a propaganda. A natureza não é pátria, não é clima, não é comunidade. Nunca esquecer que a cultura, a arquitectura, a comunidade, a sociedade, foi construída contra a agressividade da natureza. O homem nómada adaptara-se à natureza, seguia os seus cursos e metamorfoses. O homem sedentário vive em guerrilha contra a natureza. Estar quieto e cultivar a terra é um combate permanente. O mito é a sobrevivência do nomadismo no seio do sedentário.

deusas das coisas irrequietas, Ter alma leva a querer ocultar a face. A alma é o bafo animal e é indissociável do medo e da caça. As almas dos animais erram nos sonhos dos outros animais. A alma é a parte mais animal. Perder a alma é perder a animalidade e a deambulação.

o espaço telúrico. Marota, a Eros, Thanatos e Hypnos — a tripla face da artephysis. Nunca saímos da artephysis — dela não podemos partir ou chegar.

erupção infiltra-se no bulício. O sonho domina o mundo, mais que a vida ou a morte. E o que são os sonhos. Caças, errâncias, dessedentarização.

O crime original é a distinção, qualquer distinção. Um corte, um gesto violento, a separação de elementos. O corte dos testículos de Cronos corresponde à separação das águas, ao haver um alto e um baixo. A origem, o indistinto, não são plenitude, porque a diferença rareia, ou antes, nem existe. A origem é a pobreza absoluta. Origem significa indiferença. A diferenciação é esfriamento e queda. A suposta plenitude original não é rica, é triste monotonia, não-manifestação, an-estesia. É na queda, na expulsão do Paraíso, no definhar das idades, que surge a complexidade e os enredos. O paradisíaco só é possível como anamnese da expulsão. É uma astúcia que substituiu ao que nunca foi o que pode ser no pensar e no criar. O Paraíso é o contrário da ordem selvagem; é a natureza domada, conquistada, submetida.

O mundo vegetaliza-se num músculo nómada, súbtil gozo.


O regresso a uma felicidade e simplicidade inventados é fabula. A jardinagem paradisíaca é a metáfora do opus do Demiurgo. O importante é transformar um pai terrível, incapaz de perdoar, proprietário sem misericórdia de um jardim sumptuoso, em si-mesmo, no alquimista da ideia delirante de paradisíaco, isto é, num estado em que a plenitude sensual e sexual se confunde com a ideia de arte, de criação prazenteira, de contemplação deliciada. A distinção é poder, poder tremendo. Hálito de Zeus, o grande dissimulador, o touro, aquele que rapta. Distinguir é raptar, abduzir, introduzir numa lógica de relação, outra lógica de relação desconhecida. Por exemplo, introduzir a lógica do divino na lógica dos mortais. Zeus passa a vida a inseminar mortais. Pasifae desce mais baixo e usa ardis (solicita-os, compraos) para se fazer inseminar por uma besta — embora divina. O paradoxo em Zeus, e é aí que se aproxima de Pasifae, é que para fazer amor com as jovens também ele veste a pele dos bichos, fazendo-se touro ou cisne. Assume o papel mais baixo, animal, para exercer a divindade. Perguntamo-nos: porque são atrativos estes animais para as jovens. Porque é que da bestialidade nascem ocs heróis?

O semeador semeia-se na palavra.

Há uma continuidade na separação entre deuses, homens e animais. O lastro desta diferenciação são as fábulas. É a consciência dessa continuidade que afasta os deuses do Uno. O Uno é a antítese dos deuses. Nem sequer é o ovo cósmico ou a esfera dourada do Ser. No Uno não há continuidade. A ideia de continuidade, de laços fortuitos e sexuados, opõe-se à ideia de um todo, de uma hierarquia, do totalitarismo. São os deuses que introduzem diferenciações e desordens. O seu carácter é viral. Eles propagam-se como doenças. Poli(a)teisam.


O Uno já existia nos mitos, e antecipava os deuses. Estes não vivem na Unidade, nem na Totalidade: habitam as relações, assumindo papéis nas transformações da artephysis. É a filosofia que sacrifica os deuses ao Uno, acto deveras ímpio. Zeus pode ser visto, em Heraclito e no Orfismo como imagem do Uno. Um êngodo que aniquilará o teatro dos actos e a panóplia das funções. A impotência do pensamento ante as catástrofes fez com que o neoplatonismo inventasse a teurgia, uma forma de (im)possível ingerência na vida dos deuses, como se estes fossem manipuláveis. O Uno, sabemo-lo bem, entredevora-se com multiplicidades ornamentais. O Si enrola-se no sono como uma serpente. A serpente desperta-se e alarga os seus campos semânticos. É sobre um camaleão que se compõem as cenas iniciáticas. É a Face contra o Vazio ou a Obscuridade — talvez a Noite Órfica — com o cântaro das libações ao lado. Esta Face segura com os braços da escuta uma tocha e uma máscara. Que olhos brilham contra nós na noite? Porque é que é o mimetismo que nos sustenta nestas andanças? Podemos diante da Noite manejar os utensílios do poema? Invoco Proteu, mestre das comportas do mar, deus primevo, desvelador dos fundamentos da Physis, rei das metamorfoses, da sacra matéria mudando-se na multiplicidade das formas, ó sábio e honrado, conhecedor do que é, foi e será. Não há nenhum outro deus que habitando no nevado Olimpo, voe sobre o mar, a terra e ar e que como tu tudo disponha e transforme, Foi a ti, Proteu, que a Physis se confiou. Pai, revela aos iniciados as sacras profecias e, pelos puros actos, dá-lhes velhice afortunada. (Hino Órfico a Proteu)


Palavras vazias, correspon O complexo de Édipo contém demasiados complexos em si, e também nos leva à luz em Colonna, o mais alto momento de um homem, a sua dissolução no divino. Édipo, o ético, o que investiga, o que enfrenta os enigmas, é a vítima perfeita. Não nos esqueçamos que Pentheu, o rei que é despedaçado pela mãe nas Bacantes, é antepassado de Édipo, e que Diónisos era tio deste. Há muitas correntes estranhas a correr no sangue de Édipo — Laio e Agave, por exemplo — e nelas fervilham tendências extremas e contraditórias que vão desaguar mais tarde em Antigona.

O mundo é mito. Os deuses são sensações. Estão camuflados nas sensações. Ou como diz Calasso camuflados como muitas personagens que entram e saiem. Os deuses regressam como dissimulacros. Os dissimulacros que sempre foram, o seu gosto heraclitiano de jogarem às escondidas. O encontro dos deuses connosco, mortais, é feito através de dissimulações, senão o seu brilho poderia cegar-nos. Não se pode esperar deles graça, a kharis, como no cristianismo, só percursos desviantes. Se à primeira vista parecem assegurar a ordem, e por isso lhe fazem oferendas para que as coisas sejam propícias, basta deslizarmos o olhar para nos darmos conta de que são eles mesmos que a sabotam. Muitas vezes é o sacríficio que leva à desmesura. Quando há muitos lados em conflito há muitos sacrifícios.

Palavras que insinuam o que não querem


ndentes ao vazio nas coisas. Para quê sacrificar Ifigénia? A guerra de Tróia foi guerra de deuses. Desordens amamentando desordens. Desastres enganchados em desastres. No fim prevalece o sentido do sacrifício de Ifigénia. Todos foram no fundo sacrificados, a começar por Agamémnon, na esteira do tapete púrpura. As presas vingam-se no sono porque foram incorporadas pelo predador. Agamémnon sacrifica a filha por um projecto de honra próprio e que alastra a um povo e exige vitória guerreira. Uma vitória que custará demasiado. O que pedimos aos deuses pagamos caro, com juros incomportáveis. Não se pede aos deuses, oferece-se aos deuses. Aceitar presentes deles é incorrer num desequilíbrio. Dizia-se: morrem jovens os que os deuses amam. Deveria Ou palavras cardizer-se: morrem depressa os que aos deuses pedem. regadas de miríades Dizer os nossos pensamentos é uma forma de escavação, o que em latim se de sentidos, esdiz foedere. Exploração da caverna para sair à luz, sempre de gatas. condendo, escavando É a mania dionísiaca que através da música leva à masturbação — vê-se dentro pintado num kantharos grego. É Diógenes que precede Nietszche nessa de outras acção de desdém pelas convenções, saciando-se sexualmente em público. palavras, Nietszche temia pelo seu ridículo, pelo hipoteticamente patológico à luz o sentido rebuscado, das convenções de uma sociedade em que se movia e relativamente à qual arrenão procedeu a um corte radical. Diógenes já tinha invertido todos os va- batado, o lores, já se ria descaradamente e, consequentemente, da servidão da pater- mel a ser nidade, da escravidão que é a sociedade e a família. Em Diógenes não há oferecido à deusa.

fraternidade nem paternidade. Parece ser esse o trilho dos solteiros, livres, de Duchamp a Pessoa, os Filhos sem Filhos, como escreve Vila-Matas.

dizer. Palavras que se traiem e nos traiem


Mesmo a matemática é na origem um corpo materno. Mãe-Terra, mãe dos abençoados mortais, se fo pródiga e nutriente, maturadora, destrutora, or m frutífera, abundante, matriz das estações, eta assento do mundo intemporal, Amante universal, am m o parteiras dores, que procria múltiplas vidas em sc a Eterna, augusta, fendida, amorosa ,m o ã das calmas verduras, deusa de amplos peitos s en envolvida pela voluta celeste, e fremendo sob a chuva, pr m com o círculo incomparável dos astros a esfregar-se o c a na inesgotável natura e nas possantes correntes do céu, om c ó abençoada, prodiga-nos teus espantosos frutos ão , n bom coração e das benévolas estações. tu, atirde n (Hino Órfico à Terra) Se Ao falo masturbatório de Diónisos opõe-se o falo da reciprocidade de Hermes. Na embriaguez acede-se a um todo liberto das tiranias do eu, a uma massa inconsciente e sobreabundante. Ali não há transação, só simulacros de transações, sonhos do Todo e do Uno. A embrieguez reconhe-se na embrieguês, na evasão ao princípio da realidade, na transgressão pela transgressão. O bêbado procura a farsa na comunidade dos pseudos, dos outros evadidos. In vino veritas é no fundo o assomar do recalcado que tem que vir à superfície, do escondido, não o exercer da liberdade. O conhecimento dionisíaco é escravo do seu vício, das deambulações, da tirania do próprio deus. A sua única liberdade é assumir e fugir. O conhecimento dionisíaco é em boa parte destrutivo e onânico: comunidade de sobreabundância onânica, jorrando em pura perda.


O filão hermético é o confronto metamórfico com a physis, incessante, sem fim, definitivamente inacabado. A arte é matéria em polposa expansão. Cada momento é um momento diferente de um processo criativo. O que é agora de uma maneira em breve será visto de outra, e todas essas maneiras são de alguma forma verdadeiras. O Inverno oculta-se no Verão e o Verão é dissimulado no Inverno. É a lógica das mutações, do I Ching. Se Apolo é a Forma, Diónisos o Informe, Hermes é a Metamorfose, contrabando entre Diónisos e Apolo. Ou entre todos os deuses. Hermes é a ligação, o que leva os sonhos de Zeus, o que torna a comunicação comunicável. Nada é só Forma, nada é Informe. Ás vezes é mais forma, outras vezes mais informe: Entropia/Neguentropia, Acaso/Necessidade, jogo de formações e dissoluções. O Pralaya, a dissolução do mundo, acompanha outros processos que já começaram antes. O conhecimento hermético é plural, hipereclético e radicalmente antidogmático. Hermes é o deus da ligeireza, do sexo entre opostos e do riso. Para o conhecimento hermético a vida não tem uma finalidade, é um perpétuo processo de experimentação, um fluxo de estados sucessivos. Em Hermes a consciência é imprescindível, é uma arte. A arte de si é o confronto com a physis. Deslinda os laços entre a psykhé e a physis. Nietzche espectraliza o mundo reduzindo-o a uma eliminação: Eliminamos o mundo verdadeiro: que mundo ficou? talvez o mundo aparente?… Não! Com o mundo verdadeiro eliminamos também o mundo aparente! Nunca se sai do mundo, mesmo que este se tenha desacreditado radicalmente. O mundo continua a surgir e doer. Não é possível emancipação da matéria e a matéria é transformação. É impossível emanciparmo-nos da permanente mudança. Só desfrutamos da liberalidade como o Capitão Nemo. O móvel no elemento móvel. Júlio Verne é um anarquista e um filósofo hermético. Hermes é a criatura fálica que permite o comércio, o riso, as transições, a polifonia dos sentidos, as codificações secretas. As horas de Hermes são a alvorada e o crepúsculo, os momentos em que o dia faz amor com a noite. Hermes é o deus dos caminhos, da errância, das bifurcações e trifurcações.


Do ponto de vista hermético, as diversas frases têm pelo menos três sentidos. É Hermes que abre todas as portas de todas as línguas. É Hermes que confunde, babeliza e faz sair a linguagem do seu conforto reprimido e repressivo. O irreprimível vive no corpo de cada um. A emissão verbal é indissociável das pinturas paleolíticas. Essas pinturas são pré-romanescas ou mitológicas. Não são imagens puras. Nunca há imagens (pese o que pese qualquer formalismo) que sejam separáveis da fala: as imagens falantes escorrem para o êxtase ou para o silêncio. Os heróis homéricos arrastam seus adjectivos propulsores sob a forma de epítetos. É o que os faz mover e lhes dá ligeireza e força. Nietzsche refere que a natureza (ou a “verdade”?) talvez seja a mulher que possui razões para não deixar ver as suas razões. Não é a imagem de uma virgem, do pudor e castidade que aqui surge, mas o lastro de obscenidade que faz rir e cura: Baubô, a vulva mítica, a serva que ao desvelar o sexo faz a cura de Deméter com o humor, com a porné, onde também prima Ialkos, a criança-Diónisos. Vamos onde os argumentos se fazem levados. Parece que o Logos é a pista de dança de Ariadne. O Logos é dança no labirinto. Dança serpentina, hipnótica. A relação entre o Logos e a Carne é de predação. Para se fazer carne o Logos tem que devorá-la ou fazer-se devorar. O que dá no mesmo. No final da dança, o Logos e a Carne são idênticos, um só bicho, um só monstro. é devido às imperfeições cósmicas, aos defeitos, que o paradisíaco é possível Vida não é morte: entrança-se na morte como a complexidade nasce do indistinto. A morte é o caos primevo. Antecede a vida, a degradação criativa. Renascer é regressar do indistinto ao complexo, da monotonia ao processo de diferenciação, do Aleatório primordial à Multiplicidade multiplicando-se.


Introduzir a sabedoria na caverna, no Labirinto, é favorecer a fuga. É fugindo que nos encontramos. Encontramo-nos e confrontamo-nos na sequência de vários equívocos e escapadelas. Encontramos a sabedoria, não no sonho, mas na interpretação equívoca do sonho. Escrevemos no cavernoso, criando as nossas labirínticas bibliotecas, a obra, de que somos em boa parte prisioneiros. Rasgamos antigos pactos. Propiciamo-nos. Esta é a mãe canibal caçando-nos na mitologia florestal, a lua bestial, Isis, Artémis com seu arco de prata; paisagem que nos inventa os movimentos, beleza do rosto tripartido no encalço, entre estrelas. É a terra que nos sonha. É a mãe que nos erotiza nos sonhos. Hermes é quem traz os sonhos. Hermes é o deus da erecção, das Hermai, estátuas propiciadoras que se colacavam nas ruas e caminhos. A ainda misteriosa amputação do sexo às Hermais ocorrida numa noite do sec. V a. c. conduziu à ruína de Atenas. Quem o fez? Não se sabe. É o corte com o sonho e com a terra. É o equilíbrio da união de opostos que Hermes representa sempre. Se Afrodite é o amor extremo, a sedução, a doçura das carícias, o desejo sexual exponenciado, Hermes, ainda que representado por um falo, é a Gamia, a conjugação perfeita, e, utilizando uma metáfora comercial, a transacção, o transar — terminologia que implica não só a troca, como a presença do entusiasmo, a transe: ligação entre homens e deuses, troca de fluidos. Hermes é o que liga o desligado, o deus do deslize. Sem Hermes só existiria a diferenciação iniciada por Zeus. A Noite não salta para o Dia num ápice ou vice-versa. O breve momento das transições dá a entender que alguém tem que fazer o trabalho. O crepúsculo, a aurora, os equinócios, são os momentos


No princípio eram os ecos. Ecos do caos, ecos de paraísos, ecos de desolações.

de Hermes, um deus discreto. Nietszche, o supostamente dionisíaco, exalta nos seus livros o meio-dia, a hora solar, a claridade estonteante. Os seus O títulos porém revelam um subconsciente hermético: o Crepúsculo dos Ídolos ou Aurora. Também a ideia de transvalução de valores é uma ideia murCosmogo- hermética de contrabando. Nas tragédias Hermes não está muito activo (talvez esteja presente na figura de Tirésias, esse traficador de identidades sexuais). Hermes surge em Homero em acção permanente. Odisseus é múrio nias trapum herói claramente hermético, e o desenlace “burguês” da Odisseia é um triunfo da Gamia hermética, isto é, a legitimação do comércio que da orialhonas. O eco das é o casamento, depois dos avatares da memória e do banho de sangue Universos despoletado pela mania (possessão) apolínea. O apogeu da Odisseia é o origens leito-árvore onde Penélope e Odisseus se deitam. A Aletheia, o desvelar, gem atrapalhados. é a cama-árvore da concors discordia. Uma cama para ser verdade tem que não tem mergulhar nas profundezas, tem que ter memórias e raízes. ecoa Impureza origem,

O caduceu de Hermes é figurado na metamorfose final dos velhos Cadmo outras

purificadora e Harmonia a saírem de Tebas feitos cobras entrelaçando-se. Esta figura não tem

é bem conhecida no mundo indiano, em particular no tantrismo, ligado, à oriexperiência da Kundalini, da transformação radical a partir de uma líbido de base. O jogo hermético é o constante vai-e-vem entre contrários. A exInversão do pansão da consciência, o sentido da vida é a transformação na articulação gens, não tem de contrários. e gloriosa. Logos,

introjectivo fala, não

outros

Hermes dá a pedra que é o pão para que os gigantes a soprem. A pedra, a partir do o pão, antes de ser partida ou repartida, cantada, mastigada, tem que ser tem silênmursoprada, acolher no seu seio o fôlego divino.Nada aparentemente menos introjectivo. hermético que Saturno, grande, escuro, pesado, longe da órbita do Sol. cio. Hermes é o planeta que parece deslocar-se mais depressa — ligeireza e múriMetáforas a velocidade, superando Afrodite. Há todo um entendimento da psicologia e dos deuses que se deduz a partir da presença dos planetas e da vizinhança os. fremer nas destes de uma estrela. Para o fazermos teremos que entrar na cozinha astrológica? coisas. Princípio da realidade esvaziando-se na expansão.


Para

m e s t r e

Os lapsos da filosofia fazem progredir as linguagens.

O

O saturnino é o oposto do hermético, mas como o hermético é o acasalamente de opostos, o saturnino tem que se casar com o hermético. Kronós e Hermes são os dois polos da obra. Hermes acabará ao longo dos tempos por absorver Kronós, o astuto castrador, o triste Titã, o desmesurado dos iluminar primórdios. Saímos alguma vez do corpo da nossa mãe, da physis, do mito, de Baubô? e ventilar,

d a Duas s serpentes copulando é outra imagem do Logos. Tirésias dá-se conta

é e s

A filosofia é errância fecunda, prega que desintrojecta depois de tanto abstraír.

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da dinâmica que as faz copular. Serpentes fálicas que se disputam. Mordem a cauda uma da outra ou entrelaçam-se. Devoram-se incessantemente sem deixa que se devorarem. Dupla serpente ouroborica. Vagina heraclitiana onde habita e beterno. r a s onfogo as pala-

O caracol é o labirinto. O caracol, unissexuado, quer transformar-se em árvore, as árvores querem transformar-çse em caracóis, em labirintos que se arrastam com a sua baba campos afora. A Senhora do Labirinto é a Dame aux Escargots, senhora dos caracóis e da ressurreição, deusa e feiti- vras sejam ceira, como Calypso e Circe. Porque tem tantos seios? E que faz ela com p ovo e catrás t r das o costas? Quer que o ovo nasça da pedra e a pedra nasça um do ovo? O que interessa na filosofia não são os conceitos, é o modo como as palavras se projectam fora de si mesmas, arrepiando a pele e plantando vidas novas.

preenchidas

v e No r centro b a ldo Labirinto, onde o sangue do Minotauro foi derramado cresce agora uma árvore, uma viva donzela de madeira, cuja cabeça é estrelada.

com luz e

Midas foi, apesar de tudo, um melómano, e n Sendo c a dmaue crítico a n dmúsical, o pese embora o seu novo-riquismo, e as manias ostentatórias. Quer Apolo, quer Diónisos o humilharam. O facto de Midas preferir a música de Pan ar: sopros. (ou Marsias) à de Apolo testemunha apenas um gosto musical duvidoso, o mas legítimo. Midas vai pelo fácil, pelo devaneio, pelo sentimental, pelo pechisbeque. Entretanto aprendeu as lições, desdenha o ouro, soergue as orelhas asinas, leu o artigo da enciclopédia Einaudi sobre a escuta e é Fiat lux. m uentendido n d o em . microtonalidade. Na intimidade pratica música e entretém relações priviligiadas com Hypnos. É como se uma corda os unisse — o cordão da mácula, da ambiguidade, da felicidade melómana.

Meher licht.

Descondensar, espairecer, tornar-se criatura romanesca de milhentas possibilidades.


Agora é Midas que corre. Foge, foge. Em lugar de orelhas de burro tem umas possantes orelhas de abano. São os sonhos que o perseguem, que lhe sopram a divindade, os jogos caprichosos dos deuses. Os sonhos dão medo a Midas. Midas retira a sua substância desse medo onírico e continua a fugir. Ignora que dos sonhos não se pode fugir.

Quem é Teseu? O insaciável? O astuto? O libertino? O desejo que prossegue para além da necessidade? Para Teseu não há fim. Cada conquista é mais um conquista. Teseu é outro das ganas, como Astérion, como Picasso. São semelhantes, não sendo o mesmo. As ganas de Teseu são finas, como D. Juan ou Casanova. No balanço final Teseu parece ser bem sucedido, pese embora a sua morte longe de Atenas e a usurpação do poder. O seu historial pedia um fim mais trágico. É da parecença que se alimentam os mitos. Teseu parece-se com o Minotauro que se parece com Diónisos, mas Teseu só se parece com Diónisos na posse de Ariadne. A semelhança, o Hómoios, ao contrário do Simulacro, faz com que a presença seja real, com que haja um reduto irreprodutível nas imagens. Parece-se relativo a outra coisa, que nem sequer é modelo: é outra parecença. É como as mutações virais e não como as reproduções virtuais. Não há grande diferença entre Ariadne e Proserpina. Teseu seduzindo Proserpina acompanhado de Píritoo é uma paródia de Teseu na aventura com Ariadne. O mito de Teseu e Proserpina parodia e inverte o de


Ariadne abandonada, o do galanteador crápula. Teseu tem que deixar no Hades parte da nádega e o seu amigo predilecto, um substituto, como Dummuzi para Inanna, ou Enkidu para Gilgamesh. Ariadne diviniza-se no sexo total com o filho de Seméle — os que a leixaram foram pretextos para saber os limites da dor — da fragilidade nasce a carne incandescente. Em Naxos os fios de Ariadne desvelam a sacra aranha cretense que nos prepara a cama. A cama em que quase todos morreremos. (Sandra y Sónia) Entre os vários Minotauros de Picasso um deles é como Teseu. Embarca rodeado de sereias com uma Ariadne desfalecida nos braços. Há também o Minotauro que contempla, com ternura, a Koré — vítima ou amada. Ou o Minotauro ferido nas margens com donzelas numa barca. O que festeja, bebe, sacia a sua luxúria despreocupado. Ou o Minotauro morrendo na arena, humilhado, como qualquer touro. Há muitos Minotauros: o Minotauro escuro e o branco, o de cabeça de touro e o de corpo de homem; o voyeur; o que graceja; o que lê; o bibliotecário enamorado do labirinto de livros; o perverso, de luxúria insaciável, émulo do seu assassino; o cego, angustiado, abandonado, conduzido por uma Koré, ou pedindo ajuda a Ariadne para sair do Labirinto; o advogado, que protege Ariadne da insaciabilidade sexual de Teseu; o Músico, cúmplice de um Hamlet perplexo, terapeuta através do som, estabelecendo nexos entre a melodia, a iniciação e a morte; o pintor levado pela sua pulsão destruidora, cujo modelo é Picasso. Há também o Minotauro dançarino, dançando com sua irmã complexas danças; o que maneja a Labrys no sacrifício (ou é ele mesmo sacrificado); o Minotauro de Borges, cuja casa é Tebas, a das mil portas, incapaz de lidar com o mundo, inepto ou misantropo, assolado pelo seu enigma. Labrys, libris, lubris. Labrinto = livro = lubricidade. Língua que ora e labora. Nó de súbita ciclotopia que serpenteia e sopra no feérico ofício, a aviar.


A geometria

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p r o f ec i a

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p o é t i c a .

É Durga (ou Kali) que se desfaz do Minotauro dando-nos o labirinto, alameda ajardinada. Teseu procura o sexo suplementar, o não-desflorado, Os trocando do semitaurino a parte, mas das enigmáticas arquitecturas distinto. (Sandra y Sónia)

comentarios

Ser transformado em pedra é fixar a cabeleira da Medusa, as serpentes que hipnotizam antes de devorar as vítimas, em particular os ratos. A morte q u e medusa, congela, petrifica. Frigorifica. É a cabeça do antepassado. É o ídolo, o eidolon, erecto: monumentalidade em reverência, espírito de gravidesentranham dade. Se há um Minotauro também há Minotauras, ou, se preferirdes, Minova- a s cas. Ou Minocabras. E um Ariadno e uma Teseia. Pode Diónisos ser uma deusa? Ou uma máscara de uma Grande Deusa? Pode Diónisos ser uma energias máscara de Ariadne, de Deméter, de Proserpina? tentes Da mãe à mãe, de Deméter a Deméter, da Geometria à Geometria: el anão paramos de partir onde não se cessa de chegar. Não saímos do mesmo sítio, da grande mãe, da artephysis, da natureza, do útero que recolhe n otodos s textos os passados. Será que nos queremos evadir? Nas fábulas pintadas e escritas de Manuel Vieira os homens andam perdidos dentro da vulva onde está o r que nam-se o mundo inteiro, a plêiade de amantes da mãe-terra. Uma versão tdo é o masculino? E o feminino? Será que se perde? Será que cada mulher incarna a Grande Deméter? ferramentas de

Deméter é a vulva e o labirinto. É no desvelar do sexo de Baubô com um revelações pequeno Diónisos, uma barba, um clitóris, que ela se reconhece na sua natureza ridente, eriçada, indissociável do deus do vinho. No fundo do luto encontra-se um reduto de gozo, um Eros piloso, frontal, bárbaro, guerreiro. f o r É aí que Deméter recobra forças. Nada a pode derrotar. Entre Le Queu e Duchamp é a vulva rapada que surge como desnaturalização e revolução. A anatomia é plenamente desvelada numa encenação

tes.

Predizer contra as previsões. Contradi v i n h a r. Fazer o que não se faria.


pitagórica, pura, limpa, sem incidentes. O templo é, como sempre, a vulva, mas o sagrado já não é o sagrado, é a profanação pelo gosto (a sexo) da profanação sob o signo de Higeia, a higiene, a saúde, atributo de Afrodite, limpíssima, lavada nos melhores bidés republicanos. Pelo contrário, a Origem do Mundo de Courbet é um hino materialista a Deméter, a physis com suas impurezas e sarcasmos, bestial como a pintura. O nome grego para a pintura é indissociável da bestialidade. O pintor é o zoographos, o que regista a animalidade. Besta como um pintor era o provérbio que considerava o artista um animal, e de algum modo está certo. Porque a pintura é um animal, tal como o poema, dixit Aristóteles, . Pintar, poetar, é incorrer na bestialização. Mais que ser um primitivo é ser um animal.

As teorias morrem, passado um certo tem-

Uma teopo, mas ria éOuma poeta é o mesmo animal prolongado que o pintor. Um tem a infância aposta pesbaraboca, soal na que se outro tem-na nos dedos. A pintura é actividade matérica, como a alquimia. As cores são drogas, pharmakons, como refere Empédocles. O substitui às quezílias pintor pertence à matéria. E o que é a matéria? É o intervalo de tempo das l h a m a s da fraternicoisas estarem, sobretudo nas mãos, entre os dedos. dade. cartas

É contra o lado bestial da pintura que Duchamp desvia sabiamente o fluxo da arte, a sua natureza matérica, para a malandrice mental, leonardesca. O frio humor, um pouco chá de tília de Duchamp, conduz-nos a outros mistérios. Ou não há nada onde conduzir, nenhum enigma? A sexualidade mecânica e transparente do Grand Verre é complementar da ocultação voyeurista do Ètant Donnés. Dizia Duchamp que não há soluções porque não há problemas. A partir do seu derradeiro trabalho clandestino, vislumbrando, encontramo-nos diante do hipotético mistério de Eleusis, voyeurs do sexo da Grande Mãe, onde a vida e a morte se confundem?

antes de desaparecerem, de um modo

Não há versões originais, só uma tradição paródica perpetuamente inverre-finatendo-se. Não há origens. Não há raízes. Não há pureza. Os mitos que temos por originais acusam o varietur. Todas as histórias foram corrompi- d o . das e invertidas. Nenhum mito é invariante, original, anterior, recuado ou


Palavras

avançado no tempo, a não ser na sua percepção circunstancial, histórica, usadas nas especificidades políticas e antropológicas. Um mito para ser mito tem de gostar A de variar,ttem eque seoentrançar r icomaoutros mitos,etem que m continuar a crescer na grande floresta mitológica dispersando-se nos tempos. para O Mito é Mixis. Um mito que deixe de variar, de misturar, morre ou fica à espera.

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O mito é uma paródia que quer ir além de si. Para isso tem que se fazer pretar o enigma, tem que se tornar esfinge e perturbar, alado, as cidades. Édipo é a esfinge que ignora o seu enigma, é aquele que se equivoca nas interpretao dizem respeito.d Ter-se-á e requivocado i vno enigma a dda esfinge? a çõesdque lhe mundo. Não esconderia esse enigma outros enigmas? De sexualidade desviante? Da dificuldade em interpretar o vaticinado? De inscrever a cegueira anal Escolios na face?

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que sen- Viajar, fingir que se sai do útero, é perder países, como quem deixa um

lastro de tempo a arejar. Viajar é recordar o que foi e o que poderia ter de anamneses. Odisseus viaja fazendo provas à memória. sualizam sido:pfluvialidade r e d o m i Também ele caiu no esquecimento sexual da eternidade com Calypso, a dos belos brincos e de firmes seios, a maga recurva, a mulher que canta na o sentido. gruta, a sedutora fatal.

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Metá- Circe faz dos homens porcos. Mostra a sua vontade de se rojarem na lama.

Circe é plena como um amor novo: lunação, carne, círculo negro. Circe é foras o recôndito, a plenitude de uma cama porca como não as há nos lares — acedes ao desejo porque o busílis aguarda com cães esfaimados na lonjura. florindo O que deveras buscas são passos amigos, a suave tagarelice das cidades — o sexo é inconsolável, nada soberano, imprescindível. (Sandra y Sónia) nos conceitos.

O sexo é ocultação, vida clandestina, êxtase do útero, forno alquímico. A ninfa é desejada como caça, como hálito e não como hábito. O paraíso de

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Sábio quem

A novi r eç na oav al abduçã fitar o b s c da Kr a das a do a d e , tempo. ventar faz os claro da noi s cmuar na i, ânsias amores o de f l a m a Reform r eh nea cs c to. sa ve deter Vi d a o

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dade é al uç zã on a e ão. É a face c u r i risis e Koré mdeessm- o . É ino dia s nós, depois ite obf e sct oa m , de s inscona d o s . ma ou ci idmoe n, Ditoentura. rmina nova.

certo.

Ogígia onde Calypso retém Ulisses é tédio e repetição. Há que retornar, voltar à complexidade da vida, aos afazeres, à excitação do trivial. Ulisses não obedece, no fundo, ao princípio da realidade. Incorre na necessidade de diversidade, de diferenciação. Quer retornar à luz de Apolo. É o herói do retorno, do nostos, dos círculos que supõem um centro. Abandonar a triste caverna, a ocultação sexual, a eternidade a dois, dos amantes que depois de renunciarem ao mundo nada encontram mais do que a sua dualidade incapaz de se reciclar fora dela. Em Ogígia há só ciclos, o retorno da sexuação sem desejo, formas redondas, seios, ancas, ondulação do mar, monotonia do curvo. Há que voltar a Ítaca, a ilha da linha recta.

Logos Ogígia é o exílio, a dor do exílio. There’s no place like home. Ulisses tem a dor da saudade encravada. Sente-se desfamiliarizado. O que é uma ilha mais que um pedaço de terra rodeado de círculos? O mar é o verdadeiro labirinto, o mais extraordinário deles, onde as provações não são só as de fractal um monstro filho de um touro que veio do mar. Não esqueçamos este pormenor. A origem do labirinto vem de Poseidon, de um touro que emerge do mar. É um touro capaz de fúria, um animal cuja enormidade o faz desejável. Porque quer Pasifae desfrutar deste touro? Por ciúmes de Minos? e fenix Porque ele é força e fertilidade? É Poseidon que a faz apaixonar-se pelo touro. Pasifae também é mãe de Ariadne. É como uma deusa, associada à lua, a Selene. Pode ser que este gesto de Pasifae represente o puro cio, naturalíssimo, existindo em bruto na natureza, sem outra razão nenhuma. ológico. Ou o ciúme consumando a sua vingança com a cumplicidade de um astuto arquitecto cretense, também ele um fogo maior que acende desejos. A Grande Mãe, além de ser natureza, é arte. As deusas ctonianas são artífices. Os gregos já tinham a ideia de Gaia, a deusa-terra, como artista-artesã capaz de fabricar utensílios como a foice. Trata-se de religar para além da espécie, e até do vivo; por isso falamos da indissociabilidade entre arte, saber, natureza, informação, contrainformação. E qual é o primeiro gesto artístico do mundo? Castração, separação. Cortar os testículos de Ouranos é feito com um instrumento que colhe cereais e frutos. A foice dos feiticeiros, dos conhecedores de drogas, plantas raras.


Gaia oferece a Krónos uma foice para castrar Ouranos, o céu, o grande cobridor que ocupa toda a abóbada celeste. A separação do céu e da terra surge do sexo não desejado, brutal, da falta de delicadeza. Para que Gaia, a Terra, fabricasse a foice, a arte e a natureza tinham que ser indissociáveis. A castração feita por Krónos é uma artimanha, uma arte.

É curioso ter sido este o “primeiro dos utensílios”, porque tem a forma de um ponto de interrogação, e porque adoptou proeminência simbólica no mundo cerealífero-comunista. Gaia e Deméter são aqui chamadas. O primeiro acto da foice no mito de Hesíodo teve inúmeras consequências — libertou o espaço, permitindo o fim da sexualidade cega; foi um acto de castração-libertação da figura tutelar paterna; fez com que a espuma desta castração provocasse o nascimento de Afrodite, isto é, deixou que o desejo surgisse, borbulhante, espumoso, sempre a fazer-se e desfazer-se, como uma insaciável ilusão, um devaneio sexuado. Esta necessária ilusão, esta comichão erótica e desejante é indissolúvel da emergência do espaço. O espaço é assim inextricavelmente desejante e sexuado. A foice, a harpé, não serviu só para castrar Ouranos, também foi usada por Perseu para cortar a cabeça da Górgona Medusa, figura de morte (sendo que a morte é vista como uma ceifeira), de petrificação. Não interessa se a harpé é mais comprida ou curva. A variação morfológica testemunha a existência de uma recta e de uma curva — junção de opostos. A foice já existia antes do neolítico, mas é neste que se torna decisiva. Ao contrário de alguns utensílios ligados à caça, a finalidade da foice não é a morte. Está vinculada a um tempo cíclico, a um corte com a não-espacialidade, a que corresponde uma temporalidade obscura e circular (Ouranos é esférico).


O corpo do deus, ou da deusa, somos nós. Cada um à sua maneira, e todos ao mesmo tempo.

Quem utilizou primeiro a foice foi Kronos, o de retorcida-astúcia (Κρόνος ἀγκυλομήτης, krónos ankoulomeítās). Há neste nome uma prefiguração das características de Ulisses, um pensamento em que a astúcia é redobrada, quer no ankoulo, o lado recurvo e físico (como um braço curvo), quer na Métis, a astúcia mental que é inteligência pragmática. Em Kronos a Métis é já viva, isto é, a lógica do recto-curvo da foice está incontornavelmente presente. É com Apolo que essa lógica do complementar recto-curvo se cristaliza noutras figuras-base, a do arco e da lira. São figuras recorrentes da antropologia grega que se vão fixando, e a que poderia acrescentar a labrys (a dupla machada) ou a rede.

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Labirinto. Também se dá este nome a obras de engenho em versos, ou em prosa, com certo género de coplas, dicções, ou letras, tão artificiosamente intricadas, que sem se conhecer o artifício, não se pode entender o sentido. Nos Labirintos, que se compõe de letras, mete o Poeta nos versos as letras que quer, & nos lugares que convém, segundo a figura que há de levar o Labirinto, porque uns se fazem em figura redonda, outros em quadrada, outros pintando uma ave, uma fonte, uma Cruz, uma Estrela, ou outras figuras, proporcionando as Coplas, & as letras com aquela figura. Outros Labirintos se fazem de versos inteiros, os quais lidos ao direito, ou ao revés, saltados, ou cruzados, ou de outras maneiras, fazem copla com um soneto retrogrado. Outros se compõem de Coplas, Redondilhas, ou de Sirventésios. Outros há donde não se lêem os versos de muitas maneiras, porém lidos de outra, fazem o contrário, & compõem-se de Coplas de Arte maior, & de Redondilhas menores. No seu livro intitulado Metamétrica traz João Caramuel muitos exemplos de engenhosíssimos Labirintos. Também faz menção deste género de composição o nosso Felippe Nunes na sua Arte Poética. (Dicionário Bluteau)

A projecção como um espelho de dua s car as.

egos?

Uma

Um mundo filosófico que cresce como floresta no corpo.

É de um corte à traição que nascerá Afrodite. Nasce a partir de uma castração. A castração antecede o desejo e a sedução. A castração de Ouranos é a origem do desejo sexual espairecido: o nascimento de Afrodite dos seus


testículos. O marido de Afrodite será um metalúrgico, alguém que também fabrica foices, o seu contrário, feio e coxo como Édipo. Há um lado metálico, cortante, na deusa que a faz reluzir, e há um lado marítimo, espumoso, borbulhante, que se desfaz. É a espuma do mar, das ondas, roçando-se na costa. Esse mar que é o labirinto gera aquela que torna os desejos labirínticos, a pandémica deusa da sedução e dos cochichos. Hephaistos, o marido de Afrodite é o deus metalúrgico, artesão, das profundezas, o vulcão. O que o faz coxear? Há um defeito na origem, e esse defeito é a propensão para a queda. Coxear é não vir direito, é não caminhar em linha recta. Hephaistos é como Édipo, nasce das suas contradições, dos seus defeitos, da sua mácula, das suas cadências.

Há um jogo de espelhos entre Zeus e Hera. Athena nasce por partenogénese da cabeça de Zeus (psicanaliticamente, da sua genitalidade) e Hefesto nasce, nalgumas versões, por imitação de Zeus, também por partenogénese, da cabeça de Hera. Hefesto é um deus clitoriano, tal como Athena é de ordem fálica, guerreira. O paradoxo é que é Hefesto que empunha a labrys, o Labirinto, que auxilia o nascimento de Athena. É o deus-clítoris que ajuda ao nascimento da deusa-falo.


Ouranos é filho de Gaia. Antes do complexo de Édipo o filho já copulava com a mãe e o seu desejo era insaciável. Ao contrário de Édipo, Ouranos copula com a mãe com conhecimento de causa. Não há ali ninguém mais para o fazer. O seu corpo com o corpo da mãe fazem a unidade da qual vão irrompendo outras coisas. As coisas não têm espaço, não respiram. Estão recalcadas. Há que castrar para poder respirar e para poder desejar. É o espaço. Sem espaço não há desejo, só copulação. Além de Ouranos, Gaia gerou de si, por partenogénese, Ponto, as profundezas, os abismos marítimos. De Ponto quase não se fala. É um mundo desconhecido, fluído, salgado e escuro: é o que fica por dizer, a casa obscura do não-dito. Krónos é e não é Chronus, o Âion, o grande tempo com que a criança joga aos dados. O tempo é granular. É nos grãos do tempo que podemos aceder ao kairós, às suas oportunidades. Semear o tempo, co-laborar com o que as parcas nos oferecem, não forçar no momento aquilo para o qual ele não está inclinado. Os heróis errantes são heróis fálicos, cretinos, em estado permanente de erecção; vaga-bundando pelas planícies. O termo coito designa a sexualidade genital como uma caminhada, mas o recíproco é verdadeiro: toda a caminhada, toda a errância no labirinto, de pé ou de gatas, constitui uma acção genital-sexual. (Norman O. Brown/M. Vieira) Hermes, o falo, é o deus dos caminhos, dos portais, de todas as entradas e saídas; de todos os movimentos. O herói fálico, tal como o corpo de mulher, é fabricado a partir do corpo de quem dorme. É a erecção hermética do sono, o caduceu, envolvido pelas serpentes da ressurreição, entrançando-se uma na outra.


morte. a matamos Experimentando

Os deuses introduzemse nos nossos corpos para se experimentarem uns aos outros.

Escuta-me, Hermes, mensageiro de Zeus, filho de Maya, de poderoso coração, que tutelas o jogo, condutor dos mortos, generoso e fértil em recursos, correio dos Argivos, guia de aladas sandálias, amante dos homens levando a palavra profética aos mortais, ó forte, que te deleitas na exercitação e nos ardis, portador de serpentes, de tudo intérprete, que prodigas aos comerciantes fortuna e apaziguas as angústias — em tuas mãos levas a ferramenta da paz. Senhor de Korykos, afortunado, benfeitor, eloquente, adjuvante nos afazeres, carinhoso com os carentes. Para nós cinges a hábil e venerada arma da língua. Atende às minhas preces e concede um nobre fim para a vida e os labores mantendo o dom da palavra e da memória.

(Hino Órfico a Hermes)

A psicanálise come os pastéis de açafrão da visão órfica, egípcia ou oriental da vida. Há nela um lado de leitura de lamelas de ouro com escrita antiga. O sono é perturbado pelos sonhos, e a vida surge como perturbação que emerge da morte para a ela regressar: uma prega amargurada irrompendo no nada. No último Freud a vida é catástrofe, queda, traumatismo, repetição. Tratar-se de investigar o nosso próprio desaparecimento como enigma. O que nos mantém agarrados à vida é o seu lado hieroglífico espelhado nos sonhos. O psicanalista, o paciente, são ambos Édipos a investigar o crime que não sabem que cometeram, qual deles o maior. A análise é o encontro com uma trama e um crime, a desculpar, que ignorávamos ter cometido.


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A visita do amor (O Amor em Visita) é a morte da Koré, da donzela surpreendida a colher flores pela morte. É o lado desprevenido, o ligeiro, que lhe colhe a vida, como em Euridiké. Em cada mulher acampa a morte silenciosa, acrescenta-se. E enquanto o dorso arrepia, sob dedos, os bordões da melodia, a morte avança dedo a dedo, navega o lastro de sangue, desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto. É a nocturnidade absoluta que surpreende a Koré no acto sexual que a desvirginará. Nunca voltará à mesma vida. É a jovem com arbusto de sangue. É com ele que se encanta a noite, a Morte. Trata-se de usar esse arbusto sanguinolento, ao mesmo tempo mênstruo e vinho. (Ornato/ Herberto) É em Perséfone-Deméter que começa o tempo. É no ventre da mãe, antes de se ser parido, que o tempo se faz tempo, que o tempo e a consciência emergem um só, para lá de todas as contagens. É na mulher que o tempo principia. É a materna vulva que desencadeia o reino, o evento entre zero e zero. O homem, às apalpadelas, só pode tentar continuar. (Ornato/ Herberto) O Poeta, o Amante, assume o papel de Hadés, da obscuridade. De um Hadés que é como Heraclito diz, Diónisos. Baga espezinhada, fermentada, percorrendo o sangue: a morte trepa, sulca as carnes, dissolve-se ébria no amago devorante. O sangue do Poeta-Deus é o mesmo do arbusto de sangue da Koré: enquanto manarem nas suas carnes videiras de sangue cantará o corpo da Amada, beberá a sua boca, entrançará no canto os caldos da alegria com as ossadas de Thanatos. (Ornato/Herberto)


Quem é este Diónisos terrível? É a noite, a acudir firme, como deus esmagado e ascendido. O colher de flores em território de Deméter, da Grande Mãe, é desviado pelo macho fatal, que lhe rouba a virgindade, a vida. Na morte referve o vinho. E esse acto terrível leva a ténebra ao coração da mãe, gela a mãe na sua distância amarga: a lua estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo se desfibra. À estação das colheitas, abrasadora, difícil, inclemente; segue-se o tempo das vindimas, onde escurece, o tempo abranda e se prepara para findar e renascer no solstício de inverno. Ao tempo de Deméter segue-se o de Diónisos, e é nesse tempo em que o vinho fermenta, que se semeia. (Ornato/Herberto)

Deméter é silenciosa, e indissolúvel da filha. O rapto de Perséfone é a morte de Deméter, a sua funda depressão que só será salva pelo desvelar do sexo de Baubô: pêlo, clítoris, vulva. O seu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre sopro e amor. As coisas nascem dela, dos campos fecundos. O tempo, os instantes, nascem da sua oferenda. O tempo brota do corpo materno de Deméter: onde a boca se desfaz na lua. Começa o tempo onde se une a vida, a grande vida de Deméter, à nossa vida breve. Através de Deméter a nossa brevidade acha-se na perpetuidade. Entre nós e Deméter deixou de haver fronteiras. (Ornato/Herberto) É entre o vinho e a espiga, como sucederá com Cristo, que as bodas da vida e da morte irrompem em ciclos, indistintos um do outro: a vida jorra alta, o povo renasce, o tempo toma a alma. O desejo saboreia a flor do vinho. (Ornato/Herberto)


O amor desproporcionado, louco, à surrealismo, como Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, o Amor de Perdição, que foram o paradigma do amor romântico oitocentista, nasce nesta ideia de imaturidade com fundo mitológico. Uma jovem donzela, uma situação feita de impossibilidades, e um conjunto de peripécias, arrastam para a morte. Há um júbilo na fatalidade tanática. É como se uma epidemia se singularizasse e o amado e a amada surgissem para desorganizar estruturas familiares ou políticas arreigadas. É a Koré e não a Ninfa, sua rival, que se faz presente. Sorri com a força labiríntica do não-ser. Nada a pode deter nas decisões. Há uma sensação de poder inédita, como no escrivão Bartleby, mas bem mais intensa. Não a impassibilidade, mas a autodestruição voluntária, num sacrifício impávido, heróico. A flor não chega a desabrochar. Sabe reter a sua potência e sabota colateralmente as potências alheias. Há em inúmeros adolescentes esta terrível facilidade em desaparecer, diluindo a sua natureza na natureza universal. Num adulto, num velho, mais singularizados e separados do mundo, o sentido do desperdício perde-se gradualmente


É a mácula, a infelicidade, a carência, que abrem para a vastidão, através de uma dupla inversão da mimésis: homens imitando deuses que imitam homens. O homem imita-se na iniciação ao seu desastre. Salva-se pela fragilidade, pela depressão, pela escuridade que o habita, pela nobreza em que se reconhece no fundo da mácula, na doçura em que arrisca no fundo dos medos.

O pensamento alude à vida e ao sul, às temperaturas prazenteiras e à alegria de mergulhar, do mar estendido na toalha dos mitos. Alude também ao ócio, ao ardor livre da posteridade, que desdenha começos. Estou possuído pelo dom paradisíaco com que se criam vários estilos a partir de um corpo que exala tempos, na comunidade dos diversos e dos amorosos. A unidade é o terror de que me safei. A minha falta de unidade faz parte dessa liberalidade, aberta e movente. O universo já não se livra de mim, nem de vós — a doçura é uma inspiração impura, soberba, alcançável.


As vozes involuntárias nos mitos vêm do hemisfério esquerdo. Vozes em eco sonoro do hemisfério direito. Vozes ecolálicas, alucinatórias. (…) A origem das coisas divinas é um eco da língua materna no hemisfério que se quedou vazio, sem linguagem. (Quignard) A consciência infiltrou-se nos deuses, e a Sophia tornou-se polifonia focal. Já não há só uma deusa Voz, como a hindú Vac. O que se sintoniza é um oratório, um assomar não programado de vocalidades cantantes. A Charis, o carisma, o propiciatório, são o sorriso — é um welcome, uma bem-vinda, ao estranho e exterior. O sorriso abre ao Outro, à alteridade. O sorriso é a grande mais-valia de um sistema. As gradações que vão do riso ao sorriso dão a expressão do distanciamento, da crueldade, da doçura, sendo inquestionável triunfo sobre a dor. No riso e no sorriso a dor vem vencida, espectralizada, atomizada. Ambos exprimem o contágio da alegria, a expansão, e, de algum modo, a beatitude e a divindade. Por isso, a ideia de superação exige sempre riso, ou sorriso, e a inevitável alegria. O crescendo espinosiano/nietzschiano começa no riso das estátuas e expande-se na estética da pluralidade de Pessoa como exorcismo da morte a partir do riso vindo da morte. Jocasta troca o ânus nocturno pela vulva conjugal (de Hera) através de uma acção dionisíaca, embriagando Laio. É neste desvio que se traça a justiça e a cegueira que irão atrair oráculos e epidemias. Não se pode impedir a maternidade. O princípio de Laio é uma constante antiga: um filho matará o pai e este tenta evitá-lo mandando matar um filho que entretanto sobrevive. É um tema interno: os filhos para se tornarem eles mesmos têm que matar o pai que levam dentro de si. Édipo mata o pai sem o saber e semeia na sua origem anos a fio, nessa mãe repetidamente sodomizada contra sua vontade no seio do primeiro casamento, antes e depois de ter o filho (tantos anos!). É em Jocasta que se origina a raiva contra Laio. Mais que ninguém ela anseia a morte do filho de Lábdaco. Édipo foi a oportunidade de voltar a ter filhos que são netos. Jocasta faz-se avó directamente. É por esta confusão que baralha a ordem social que os filhos de Édipo tinham que morrer depressa.

hum

grunf

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bolas

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safa

poças


Fala-se de Urszene em Édipo como se esta fosse o encontro com a esfinge, ou o encontro com o pai e o seu assassinato acidental. A cena é outra, mais óbvia ainda. Sabemos bem que a Cena Primitiva, ou Originária, é o acto de cópula dos pais. A Cena Originária dos mitos gregos é a incessante e indesejada cópula de Ouranos e Gaia, e é dessa cena que a castração surge como possibilidade do desejo se instalar no mundo. O Vocabulário de Psicanálise de Laplanche/Pontalis é muito claro: a Cena Originária é a cópula entre os pais observada ou inferida pelos filhos tendo por base certas indicações ou fantasias que são interpretadas pelos filhos como um acto de violência da parte dos pais. A partir do caso do Homem dos Lobos Freud destaca diferentes aspectos: primeiro, o coito é entendido pela criança como uma agressão pelo pai numa relação sado-masoquista; segundo, a cena dá lugar à excitação na criança providenciando simultaneamente uma base para a ansiedade de castração; terceiro, a criança interpreta o que se passa, no quadro da sexualidade infantil, como coito anal. Se o segundo aspecto é claro no mito da castração de Ouranos, o primeiro e o terceiro designam a cena de fundo do mito edipiano da forma mais literal e óbvia. Édipo nasce de e contra essa cena e o conto constrói-se como justificação narrativa dos pressupostos da cena primitiva. Só da rememoração da cena primitiva Édipo se pode tornar o seu complexo. O desejo da morte do pai deriva das agressões da Cena Primitiva. Por isso a história de Laio se desenrola, fora do Édipo Tirano, como a de homossexualidade violenta sobre Crisípo, que, dependendo das versões, ou se enforca de vergonha ou é morto pelos meios-irmãos. Quer Ésquilo, quer Eurípedes nos deram variantes que complementam a tragédia policial de Sófocles.


O fundo edipiano é anterior à concepção. Em Laio o negar da gestação pela preferência homoerótica e o coito anal (e sádico) marginaliza Jocasta. Esta só vence e finta Laio (o exclusivamente masculino) através da embriaguez, um subterfúgio dionisíaco que restabelece a fecundidade, embora como engodo. O complexo de Édipo é o desejo de exclusividade da mãe, do fecundo, do doce, do curvo. Escolher narcisicamente a sua origem. É quando o filho começa a canibalizar a mãe. Édipo não se vira contra o pai porque o quer respeitar e integra-se nele. nesse processo de urdir a morte, porque o nascimento de Édipo lhe traz a própria morte. Ninguém se vira contra o pai, nem sequer Jocasta. Esta é só a vítima repetida, anos a fio. Não tem hipótese de fuga. A sodomização não é vista pelo filho, mas está presente no corpo da mãe, das várias mães da cidade. É um padrão. É a sua vida e a vida da maioria das mulheres antigas. Há uma crueldade que fica por resgatar derivada da mágoa de Jocasta. Cidades redimem os heróis do esquecimento infligindo-lhes enigmas e certificando oráculos — a fatalidade dos incestos é inocência sonora. As mães só tardiamente se apercebem quanto foram prematuras. Nunca Jocasta foi casta. (Sandra y Sónia) É uma maldição proferida por Pélope, pai de Crisípo, que se abate sobre Laio, ou antes, sobre toda a Tebas. É uma história de cegueira, como a de Odisseus quando cega o Cíclope, ou de Tirésias quando vê as cobras copular. O olho anal é o correlativo da cegueira de Édipo. É uma cena que não se vê. É o regresso de Édipo ao útero, à Noite. Também ele é um filho da Noite. Laio é um nome, e cada nome destina narrativas. As conjecturas etimológicas quanto a esse nome traçam a trama: ele é o efeminado, as pedras da encruzilhada, o por-trás, o canhoto. No nome Laio tudo é desvio. Édipo é um desvio ao desvio, um duplo desvio, uma negação da negação.


ível.

scind-

impre-

mente

gosa-

peri-

nura é

A ter-

Assim se constrói a sabedoria: retorcendo o torto. Nem assim o torto se endireita. Para isso teria que se ser um deus.

Os favores do acaso são afins à desordem.

Há qualquer coisa de caprichoso e imotivado na Esfinge, como se os enigmas não necessitassem de justificação e nascessem dos divinos jogos da linguagem, do encontro fortuito entre sonoridades, homofonias, pequenas substituições de letras (à Roussel), multiplicidades de sentidos da mesma palavra. É certo que, numa das versões, a Esfinge surge como castigo pelos actos iníquos de Laio face a Crisípo, enviada por Hera. Noutros casos, quer Hera, quer Diónisos enviam a Esfinge para Tebas, não havendo nenhuma razão específica para o fazerem. A Esfinge, a que questiona, é como a rosa de Angelus Silesius, sem porquê. Questiona-se porque se questiona — é uma força maior, prazenteira e cruel, para lá de qualquer necessidade. É como certos achados da poesia que nos encantam pelo lado engenhoso; trocadilhos (como os de Biévre), mots d’esprits. A Esfinge é o mito — visa mais longe que o sentido comum e estável e multiplica adequações e contradições. Segundo Colli é o enigma que está na origem da sabedoria grega: uma sabedoria louca que atormenta a polis. A Esfinge grega ecoa a Esfinge egípcia tal como a Tebas grega ecoa a egípcia. É uma abdução, um rapto que acompanha o rapto da Europa, uma monstruosidade oriental com que o homem tem que se confrontar e desfazer para que seja mais homem. Tanto pode ser o que estreita, impede, impossibilita, como, no sentido egípcio, uma imagem vivente. A Esfinge é a aporia que mostra o que separa a imagem da linguagem, a escrita do som. É já de um esquecimento de que se trata. Muito do que significou já não voltará a significar. A morte da esfinge é o triunfo da economia do alfabeto fenício sobre a escrita hieroglífica que a precede, a vitória dos heróis sobre o monstruoso. A Esfinge, como o Minotauro, tem preferência por criaturas tenras, juvenis, jovens machos imberbes. Seria uma criatura ávida de rapazes, talvez uma prostituta, uma variante das sereias, essencialmente devoradora.

Quem

não se

vive

como

arte

não a

entende,

nem se

entende.


É criatura selvagem, imotivada. Parece que só em Píndaro é que o enigma se faz Esfinge: a adivinha, das mandíbulas selvagens da donzela. O encontro da Esfinge com um enigma ou anedota corrente sobre o homem, que também está atestado em Asklepides, faz com que a figura da Esfinge se impregne do enigmático. A imagem esperou que um jogo de linguagem a adoptasse. A partir dessa adopção há uma conexão vívida entre o questionar e o devorar, entre o canto, as garras afiadas, e as colunas ou os rochedos. A Esfinge é uma ficção, quiçá uma ficção social, como se uma população a fabricasse de um modo projectivo, partilhado. Fazer desaparecer ficções sociais e desencadear puros jogos verbais que vão variando o indivíduo e transformando-o em sujeito, eis a arte. Em Sófocles e Eurípedes a resposta destrói a Esfinge. Ésquilo apenas a remove. A Esfinge faz recitais no palco da cidade. É como os títulos dos jornais de escândalos, fazendo vítimas. O esfíngico é o operático. A história de Édipo


é um escândalo surpreendente que se vai desenrolando ante os olhos de uma comunidade sedenta de ódio, que necessita urgentemente de um bode expiatório para aplacar a peste, e sobretudo, de uma criatura monstruosa que, além de governar a cidade, durma com a mãe. As sociedades deleitamse em encontrar monstros nos quais possam escarrar. Os heróis ajudam o sujeito a ir-se produzindo. Há uma diferença entre a Ilíada e a Odisseia que é radical diante da morte. Na Ilíada é o destino do herói em face da memória da comunidade. A bela morte é uma morte tribal, para todos. Na Odisseia o tribal desapareceu e a morte é horrenda, como tudo na comunidade é suspeito. A subjectivação inicia-se com Odisseu, prossegue com os laivos líricos de Safo, pluraliza-se com a tragédia e esforça-se por reunir-se com a filosofia. Os heróis, os enigmas, participam nesta transição de um modo activo, até que a filosofia os dissolve, assim como aos jogos de palavras que os acompanham. A filosofia não tolera a multiplicidade dos sentidos e o eros metamórfico dos mitos. Para que


a verdade seja possível, para que as categorias sejam estáveis, para que o pensamento não seja mero devaneio, a polissemia deve ser erradicada. Os gregos antigos não conheciam a introspecção. Algo se mantinha na luz da superfície, nos movimentos dos corpos em face dos corpos. O eu lírico de Safo, o eu trágico de Édipo ou Antígona são uma prega em confronto com a Diké da cidade e até com o Nomos divino. Há uma inconformidade na origem do sujeito, e um desajustamento neste nascimento. Enquanto os heróis da Ilíada brilham em combate antes de morrer, conhecendo o esplendor, Édipo obscurece-se em vida, extripa de si a luz, é a mácula, num strip-tease invertido. A luz, em que Édipo desaparece nos campos de Colona, ele não a vê. É uma luz que lhe toma a ténebra, como se a ténebra condensasse misteriosamente a luz, ou, pelo contrário, fosse a inalienável dimensão ctónica da terra, mundo de cavernas e serpentes, onde o homem outrora soube viver e rastejar.


Artaud viu bem que o teatro é essencialmente epidemia, cujo nome vulgar é peste: estado de excepção, calamidade onde tudo acontece, seja ou não permitido. Também as bacantes são epidémicas. O culto de Diónisos, do teatro, é uma forma de domesticar a epidemia, de renaturalizar os urbanos. Na origem da persona estão as epidemias. O nascimento do sujeito coincide com o do teatro. A genitalização da consciência, através da multiplicidade dramática, não pode ser só vista como negativa. O sujeito é uma epidemia que se joga entre Penteu e Diónisos. Quem castra é Diónisos. Na embriaguez o sexo não é capaz de se erguer, de mostrar a empatia da erecção, metido no solipsismo do eros tóxico. Penteu perde a cabeça, o pénis, a virilidade, a vida. Os rituais dionisíacos são feminizações: a cabeça, o pénis do rei deve ser cortado para que a anarquia grasse e a harmonia do mundo animal regresse. Ecologia das mulheres que seguem o deus vindas da Lídia versus a selvajaria das matronas de Tebas, com Agavé liderando o cortejo.


pandemia museológica & gastronómica



A Terra la

mbe-te os

dedos dos

pés

A persona também é a face de Perséfone, aquela que foi roubada a sua mãe. Não é difícil conectar com Perseu e com as Górgonas. A Persona medusa os espectadores. A Górgona é toda a heroína trágica, como Medeia ou Antigona, cujo fito é arrastar gente para a Morte, a começar por elas, heroínas que celebram Thanatos. Os cariados caninos das Górgonas... (Sandra y Sónia) Faces que não se podem fitar, como Eurídice, porque confiar é deixar de olhar. Não se pode confiar em Orfeu. Por isso os visuais des-com-fiam emaranhando linhas. Antigona e Ismene levam Édipo. Édipo já não pode senão confiar nelas e em si já não confia, perdeu todas as convicções e evita as farsas dos enigmas. Édipo é um cego que vai caminhando levado por outros. Irá onde o levarem, onde o caminharem. Caminhará na obscuridade. Quem o conduz é a uma bengala, um ventre, uma serpente. É em nupcial vocalidade que os actores do divino acorrem à construção das paixões. (Sandra y Sónia) Antes da literatura ser literatura os mitos foram-se apercebendo da sua propensão para serem o furor literário, uma memória dinâmica e activa invocável que podia atravessar séculos, e que queria muito mais do que ser objecto de sacrifício ou de dádiva. Na origem estaria o sacríficio, e as relações mais profundas podem vir do entendimento da natureza. Uma coisa estranha sucedeu — a natureza dos mitos quer ser bizarra e caprichosa como Zeus, ou leve e rápida como Hermes. O mito grego começou a contaminar as artes e a literatura como local de deleitosa excitação. Infiltrou-se na alquimia e nos sonhos. Continua, muito depois de cessarem as actividades rituais, a suscitar bem mais que interesse. É a fonte em que as artes gostam de beber, como se fosse o seu soma natural, a sua bebida de imortalidade.

línguas vindas do regaço de Ceres subirte-ão até aos esgares, ou aos céus em que teu corpo arrepia as carnes do Absoluto.

er, em te rev Mato-me m texto como a u r. el de fixa impossív


Os mitos gregos são parideiros e sincréticos. As histórias dos gregos e dos romanos coligidas por Ovídio insinuam-se em Bocaccio, Chaucer, Camões, Shakespeare, Soror Inês de la Cruz, Rimbaud, Joyce, etc. Atravessam o melhor da história da pintura e foram durante algum tempo o alvo principal do ódio das tradições meta-representativas e iconoclastas. Acatar os São ainda hoje vistos como um Mal, um sintoma reaccionário, quando o que o que estas fábulas põem em causa é a moralidade hipócrita, seja sob encantamen- que forma seja, da ortodoxia religiosa ao rigorismo dogmático dos radicais revolucionários.

Espelho-me na felicidade que contamina. Adptem-se a ela como caminhantes à rua.

tos — que se

A fuga dos mitos ao rito evocava as contínuas acções adúlteras de Zeus. Com essas incursões, aquele que era o pai da Diké e a fazia sentar no entranhem as trono à sua direita, figura de justiça e ordem, demonstrava ser “contrário à justiça” e engendrar um pensamento “contrário à ordem”. As incursões maravilhas, divinas eram uma inesperada sobreabundância da realidade. (Calasso) O mito grego é visceralmente adúltero. Evadiu-se do rito, e os vínculos antropológicos ao ritual só lhe recolhem o acessório. O mito colhe-se no seu lado transbordante, desviante, excitante, porque o adultério está-lhe partilhados, no cerne, como voltará a estar com os mitos em torno do Graal. É como se o mais importante, incluindo a alma, gravitasse à volta da desmesura, da as compridas transgressão, do impulso trágico. os sonhos

Disseram-me que o amor tem demasiados rostos. Ou são os rostos a detonar demasiados amores.

línguas das A sobreabundância é a característica dos artistas e da arte. Como gerir

uma coisa que não visa cumprir função nenhuma, que traz em si forças que não se contêm, que contradita pelo prazer de contraditar, que explora o cores, as peles inexplorado, que é desapiedadamente infantil? A arte é como Afrodite — não se limita a reproduzir, a multiplicar: espairece, propaga-se, disseminade factos -se O seu centro é um prazer afim ao do sexo. Um prazer que busca um prazer maior, sempre maior, insaciável. rosáceos.

Mitos são melodias — melodias que buscam variações. O tema é o nome. Por exemplo: Tirésias. Apolo é o deus da melodia, da peste e da cura.


As melodias são histórias que serpenteiam em redor das cidades. Veja-se as entarTebas. Por isso Cadmo desposou Harmonia, palavra que na altura não tinha na música as conotações que tem hoje. A melodia na antiga Tebas decendo. fez crescer as muralhas da cidade prodigiosa. Hoje porém a melodia faz resplender a epiderme das mulheres, e a pele dos animais — até quando a A canícula música embalará a passagem da Sacra Enfermidade? (Ornato/Villa) A leitura?

Não há um corpo único na origem, só multiplicidades que nunca confinavacomeçaram, ou grãos, pontos, recorrências, constituições, dissoluções. Um corpo é uma misteriosa atracção que teima em não se desfazer. Para te te a uma

A questão, o que é um corpo?, é a mesma que: o que é que é comido? Vivemos de devoração. Matamos para viver. Como o cordeiro que come a planta. A história da pintura começa aí, sugere Stendhal, na imensa devoração, na necessária crueldade. Picasso acrescenta: um quadro é uma soma de destruições, de devorações, temperadas a tomilho, louro, orégãos, segurelha, etc. Um quadro, um poema, é um filme, uma montagem de cenas que escondem cenas, de crueldades que obscurecem crueldades. A destruição é cinematográfica. Fazemos a montagem da crueldade, dos momentos de devoração e predação. E no meio há a arte de preparar alimentos. É aí que os antropólogos se concentram. O Eu é a designação reflexiva de um fio orbitante de relações em torno de um centro que sedia a consciência. O facto de haver consciência, ou pensamento, provoca a sensação do Eu. Não há mais do que um eu a pensar ao mesmo tempo num só corpo. Em paralelo a Descartes que firma o eu como mascarado (o seu lema era larvato prodeos, avanço mascarado); o eu que avança, como figura de fundo que garante o conhecimento, tem que lidar com dispositivos caprichosos. La Rochefoucauld propõe uma gymnásia do eu complexa que atingirá mais tarde o coração do pensamento de Nietszche — o amor-próprio, esse mecanismo de auto-conservação do pronome eu, está sempre a gerar desvios, traições e inversões. São esses desvios que ditam a nossa acção, alegria, enganos, infelicidade e ruína. O que pode um corpo, pergunta Espinosa? Desde logo comer e ser comido. Aumentar-se ou desaparecer.

Ta n t a s i n s ó n i a s q u e b a l d e i s o b r e t u a s f o r m u s u r a s e n e m t e d e s t e c o n t a …

Veraneav-

rósea hipnotisar, imobilite abodade, nem canhar, te menos brejeira. estremecer Nos os selos. silvos de Afrodite também ecoaste.


O budismo e o hinduísmo inventaram maneiras de analisar, dissolver ou superlativar a experiência do eu, centrando-o ou descompactificando-o. BanhoUma espécie de suicídio? Coincidência do eu com o “Absoluto”? Com ias Ébr Stirner entramos no vaudeville do eu — este é ao mesmo tempo a origem me em da consciência, das convenções, caprichos, conversões; como é Nada, um Nada do qual tudo emerge, uma criação ex nihilo. babas

A experiencia da devoração relaciona-se com a caça. Desenhar para caçar (como nos Anu). Ser também a presa na caçada. O canibalismo mentais. não é possível sem a assimilação identitária que vai construindo a nossa personalidade. Construo-me experimentando os que consigo ser, mas também esses são investidos pelas minhas pregnâncias, também a sua Não sei percepção se deixa contaminar pelo tê-los sido.

pernas

desovam

se nas-

cituros o que o

mundos mergulnome

ham, ou mergul-

evita.

harão, nelas…

A tradução, fiel ou infiel, é o modo mais corrente de canibalizar. Eu traduzo-o, logo existo-o. A interpretação, num grau maior ou menor, canibaliza. Nesta lógica predatória, também o canibalizado nos canibaliza — há um duplo sentido espectral devorante. Interpretar é deixar-me interpretar, é encarnar nesse enigma. O canibalizador insaciável tem fome de mais e mais influências — é a Vontade de Influência, de crescimento, de devoração cósmica. É uma extrapolação de Gonçalo M. Tavares. Esta mania predatória traduz-se na soberba da curiosidade continua e crítica — é um talento adolescente, como se num ápice o vol-d’oiseau pudesse abarcar obras inteiras e opinar, despachando, um autor numa só penada. A ideia nietzschiana da morte de Deus pressupõe que se canibalize Deus, que sejamos as hienas da morte de Deus, e que saibamos impôr um riso triunfal ante a morte, onde parecia haver angústia, nada e desnorte. O cadáver de Deus, da metafísica e da filosofia continuam nutritivos? Não sei se até os ossos já foram devorados… Canibalizamos pela primeira vez? Ou canibalizamos sobras de sobras de sobras, um vazio do que já foi carne, osso, tutano?


A ale A i g ra é V ri i n aa av ati hoso graç ã. ç a a m sb c ve raço ôxas nto s . s.

O canibalismo criativo não implica a destruição do outro, a sua morte na predação, fazendo-o desaparecer — pelo contrário: recria-o, reconstrói-o, descobre aspectos ignorados. É um pacto de continuidade que não cessa. Homero ou Ovídio continuam a ser acrescentados sempre que são canibalizados. Penso, por exemplo, em Joyce ou Kazantzakis.

Se não existem deuses a quem é que realmente sacrificamos? Sacrificamos ao sacrifício? Parodiamos a crueldade da natureza? Ou inserimo-nos na sua lógica? Todo o sacrifício é violento e é para a manducação de alguém. Religiões como o cristianismo e o budismo sacrificaram o sacrifício, impedindo-nos de sacrificar ao sacrifício. Cristo não é mais do que o sacrifício sacrificando-se para erradicar a crueldade do acto sacrificial. Para que a presença do sacro não desapareça mantém-se a imagem do sacrifício numa paródia: é o homem e o deus que fingem que se sacrificam. Ainda é um sacrifício? Ou não passa de uma cerimónia, de um simulacro, de um pseudos, de um símbolo, quer se queira quer não, paródico? Os deuses não habitam nem em altas nem em baixas moradias. Vagueiam, nómadas dos seus atributos. (Alquimista Cornudo) O pão nosso de cada dia; uma encarnação quotidiana. É sempre o seu corpo que comemos. Ele morre quotidianamente, sem morrer completamente. A realidade do corpo está no pão, comido, nesse extenso complexo de mitologias cerealíferas onde pontua Deméter, a Ceres dos gregos, a deusa de Eleusis, a maior das práticas mistéricas.


Dissimulo-

Aceita o inusitado feitio de uma fera que te arranque a felicidade aos lombos.

me em

A presença real é o culto do pão. Nada mais verdadeiro que o pão. O pão é o explendor do fogo clamando. Heraclito, segundo Aristóteles, diz junto ruínas ao forno onde se coze o pão: aqui também os deuses estão presentes. É no pão — a esque se incarnam os vários deuses dos vários elementos. O pão é epifania e deuses. Traz o selo do fogo. perança Que fazer quando o poema é pão? Tira-se do forno? Cospe-se da boca? Mastiga-se para deglutir ou para vomitar entre linhas? O poeta também quer ser pão? Instrui-nos entre migalhas, côdeas, salivas e fermentos? Pão entre panos, com Penélope-Aracné fazendo e refazendo o texto que leveda. Concorre no poema a atracção aracnídea. Homero, ao contrário do que diz que faz Caeiro, trabalha o poema como um tecido. E cada vez que o tece é espontâneo. Um fazer e desfazer que imita o fazer e desfazer da natureza. A natureza não se dá toda de uma só vez, e o poema, como o pão, precisa de bocas que o saibam saborear.

A desfaçatez dos animais entornados? Ou arredores a desfazer dúvidas?

Se queres dizer uma coisa, ineludível, onde o homem civilizado se faz homem, é o pão. Os heideggerianos dirão, o Kantharos (de Diónisos?), a jarra, o recipiente de água. É o pão que paira na condição pós-nómada, é o pão que fixa os homens a uma terra, às árvores, à construção de si mesmo ante um fundo, uma paisagem, com a qual se quer identificar. O pão é a fidelização ao cultivo dos cereais, tem que crescer, tem que ser cuidado, ceifado, triturado, amassado, cozido. Nele também está presente o Quadripartido, os quatro elementos. O pão e a jarra são a presença da presença. Por isso Cristo se faz pão, para que entre com os quatro elementos no nosso corpo, como coisa concreta, civilizacional, com a energia da transformação do grão numa massa repartível.

cobriuse de voracidade. Viera para devorarte o medo e negar feridas acumuladas. E trago

Assim desvaire estação acima, sem agapé, jocosa, com acepipes curtidos na assiduidade (na canícula!): fragante lacuna do mais obscuro, cadente e vinho carente recanto do profeta. Ou hábito ungido no engate breve. Sob a grã para a batuta cá está, e não só, a animalidade (ai! ai!)! — Minotauro dionisia-se,

ravessia das trovas.


Diónisos minotaura-se. Fundeiam fragmentos nos tremores do engenho embevecido a curar circunstâncias nas sedas do conúbio — revirados, A desfatónicos, a confluir no mutante transe. Arrisca pois as glosas boreais que deslizam para a frondosa Naxos, desvio fatal pela hybris hirta (encravada?) de Ariadne em achados céus abertos — manta miraculosa para Diónisos a çatez dos fornicar devagar. Recursos gelatinosos, desfeitos, na coroada flexibilidade. Luzes afloram a dor que adoça a glória, celeste jeremiada, morte das mortes: animais a criança dionisíaca, Iakchos, sai da paisagem que circunda a vulva louca: a panela, o tacho! A mão tacteia acima o riso de Deméter, a peleira turva, o ânulo do templo que nos remata, ó serva! Não precisas de me morrer: graça-me na fibra de luz própria com aluviões, membrana em mambo a entornacentrencurvar o crânio. Vá-se a carraça, que nos engastamos prestes tão altos, no frontão hípico da deusa texticular, nascitura em espuma. ( Jorge Judas) dos? Ou Porque é que Perséfone e Deméter partilham o cogumelo? Robert Graves diz que se trata de um cogumelo alucinogénio, o amanita muscaria, e que arreé bem provável que a iniciação eleusina não fosse nada mais que uma experiência alucinogénia, onde outras drogas, como o ópio também estariam presentes. Estamos interessados nessa cumplicidade presente dores a no cogumelo, entre o mundo cerealífero na morte e ressurreição da Koré. É possível que nada haja a dizer destes mistérios. Ou, como na xamã mexicana dos cogumelos, Maria Sabina, talvez haja muito para dizer e cantar — nadar no imenso, em todas as formas, ser a mulher do livro que desfazer está debaixo da água ou que lhe rouba o sangue, indo à origem do canto da origem. De alguma maneira, o saber poético que viceja em Homero dúvidas? também vem de outros sítios, e procura-nos. (Ornato/Sabina) O cogumelo parece uma cabeça fálica, mas é uma vagina. Ártemis oferece-lhe lobos, Hermes as cobras do seu caduceu, Diónisos uma taça de vinho. O cogumelo é a grande deusa que nos adestra para as metáforas, as metamorfoses, os enigmas. Escrevo-te como quem te fuma, nas inclinações erráticas da paixão, com o livro ali a acumular-se entre outros e a lã a largarse caprina, sendo eu a cabra cabal, a hirsuta cabala, o lívido novelo da huri. Não sei, confesso, corrigir desejos de fancaria.


A Noite é a deusa da experiência mística, do recuo ao fundo do útero, onde a ternura da materna vulva nos envolve, como se fora antes do nascimento ou do renascimento. A Noite é Órfica, o sereno locus ameno da anamnese. O espelho é a presença da ausência, jogo, desvio, entusiasmo. O vinho também é civilização. Não é como a água, cristalino e natural. É turvo, habitado por espíritos. É embriagante. Altera a consciência. Faz o phrenes, o diafragma, vibrar. Consegue que o iniciado caminhe no fogo sem se queimar. Há nesta planta algo retorcido, que se encaracola, que é suspeito, que não segue a linha recta da corda do arco de Apolo. Em Diónisos, o vinho, e a carne crua são o contraponto à imagem pacífica e civilizacional do pão. A crueldade não é dissimulada, e a comida, a carne do animal, não passa pelo crivo sacrificial do fogo e é ingerida directamente, sem hipocrisia civilizacional. Diónisos e Deméter são cúmplices, deuses do submundo. Diónisos, diz Heraclito, é Hades, deus dos mortos. Ignorá-lo é não compreender os mistérios. Foi Hades que roubou Proserpina a Deméter. Proserpina passa um quarto do ano com Hades e o restante com sua mãe. A partilha da Koré que é Proserpina, a donzela do submundo, faz-se entre Hades e Deméter, entre Diónisos e a deusa das colheitas. O Cristo mitológico recolhe numa só cerimónia Diónisos e Deméter, presença da presença e presença da ausência: verdade e simulacro.

Preciso ir a Nápoles para te amar o amarelo, esse que se acumulou entre as unhas e se afogou nas folhas que afagaste com incertezas cúmplices.


O fio do cio forma o ó do ócio, e eu laboro para aprofundar esse ócio.

Eu te invoco, ó trovejante Diónisos, eclodindo, lançando evohés, ó primordial, de dupla natureza, três vezes parido, senhor possesso pelos delírios báquicos. Selvático, inefável, obscuro, bicorne, coberto de hera, com face taurina, belicoso, de gritos jubilantes, sagrado, que te satisfazes com crua carne nas festas, três vezes ao ano, adornado de cachos de uva, revestido de tenras parras, engenhoso Euboleu, deus imortal, fruto da cópula secreta entre Zeus e Perséfone. Dá ouvidos à minha voz, ó afortunado, ladeado de moças de esbelta cintura e sopra, com coração propício, teu assentimento, suave e benfazejo.

(Hino órfico a Diónisos)

Se Diónisos é o deus do simulacro, Hermes é o deus da dissimulação. A lógica é outra: toda a presença esconde outra presença, nada é exactamente o que parece, e no entanto a presença das coisas vive da sua ocultação, do pudor, da dissimulação, de ajuntamentos de dissimulacros. Cada alimento é uma genealogia de deuses. Em cada fruto se oculta um mar de histórias. Nenhuma palavra é pura e os diccionários sabem-no bem. Mesmo com a boca lavada e a pretensão à pureza, as palavras propagam o seu caracter invasivo, a contaminação que salta para cima das colunas para nos indagar o âmago. Temamos o fundo do tacho das palavras. Pelo contrário, é da impureza, do seu caracter inalienável e somático, que as palavras restablecem forças. Cada palavra, entre salivas e dentes, é assédio viral: uma mistura pastosa de sons, memórias, bactérias, restos de animais e plantas mortas.

Nasci entupida na sorte.


Ou restos de poemas que são restos de outras comidas mal digeridas por outras bocas de desdentados e poetas. Eu sou Kronós, o que abriu espaço no espaço, o que devorou seus filhos, pois foi predito que em caso contrário eles me destronariam. E assim me destronaram. A physis é fluxo de devoração onde tudo quer ocupar mais Teme a espaço e crescer à custa dos outros. Para persistir no seu ser, como propõe cadela do Espinosa, qualquer criatura tem de devorar, tem que se reciclar, tem que ser cruel. Não há aqui inocências, só crueldade. A lei da persistência é a descon- devoração continua de plantas e quiçá de animais. O sacrifício é a consciência da crueldade: ritma, regula e poetisa a crueldade. Ignorarmos a crueldade do mundo é ignorar tudo o que somos e nos afecta. O sagrado, tentao sacrifício, dá a ver essa crueldade, olhos nos olhos. E por isso é terrífico: mento e é o terror que governa o mundo, inconscientemente. O sacrifício apazigua a angústia de que a devoração está fora de controlo. Sofro de snobismo esotérico. os desaNão podemos mudar o passado; podemos arrependermo-nos, ter remortinos que sos, memórias. O futuro, pelo contrário é incerteza, desejo, ansiedade, espaço aberto e destino talvez. Podemos viver voltados para ele, modelá-lo, porque ainda não existe. (Rovelli) biscam provérbios.

No fundo de cada eu estão os fiapos de outros eus, devorados, introjectados, mal assimilados. O eu é Mixis, mistura. O eu é transformação, reciclagem. A identidade é desenrasque entre o poder das influências. Não me posso tornar no que sou, porque não há uma identidade que eu seja, só um processo identitário, confuso, mastigado. É certo que tenho alguma autonomia, capacidade de introduzir na reorganização do meu processo, elementos talvez originais, sincretismos, dispositivos fecundos, mutações decisivas. É no lastro processual que sou — enigmática propensão, ou inclinações várias que outros quiçá possam retomar. Vós sois deuses, dizem YHVH e Yeshua. Somos deuses. O significado da eucaristia é esse reconhecimento através da devoração. Somos deuses que


se alimentam do deus que se auto-sacrificou. Deuses devorando deuses. Ignorarmos que somos deuses é traír a comunhão, esse retorno ao fundo originário que é o canibalismo, o Eros devorador. O Incêndio de Eros. Na origem, antes de tudo, antes do indistinto, do abismo, do Kaos, havia Eros. A teogonia de Hesíodo é reencenada pelos Invenpós-estruturalistas. É o desejo que liberta. Desejo de desejo. Ou não há fim para o desejo? Habitai o desejo! tei motes Buda: a extinção dos desejos é extinção do fogo, de Kama, do Eros hindu: para te Buda bombeiro. Pode o fogo de que se constitui o universo ser extinto? Sim. Extinguindo o universo. O nirvana é a extinção desse fogo, do Logos extorquir que não cessa de se fazer Carne. O nirvana é a extinção do fogo do mundo. O ardor é sofrimento e libertação. Aceitar o fogo é dominar o fogo. Aceitar desejos. o desejo, o mundo, a carne, é a libertação. Mas não

Manter o fogo, cuidar dele, alumiar todos os dias um fogo pelo mundo, manter a incandescência do amor, o Eros que sustenta e conecta as coisas, te fies como o fazem todas as manhãs os brâmanes.

— ao

Qual é a sede do amor? O peito, o coração. É aí que Eros se deposita, onde está o Sopro e a vontade esclarecida, onde o sangue bombeia e pensa. O contrário amor arde no peito, consome o amador. O Eros é o fogo da transformação do amador no ser amado. E como vivo e puro Amor, como matéria simples seriam busca formas e busca a Forma. O fogo é o Logos a moldar-se carnívoro. É também a carne na predação de formas. (Ornato/Camões) O ardor é tapas, ascese. O asceta hindu retém o tapas, arde, torna-se num fogo vivo. Consome-se a si mesmo. A ascese é um erotismo interno, preferindo o espaço interior, a autonomia, à interacção, para não estar sujeita aos acasos. A ascese centra-se exclusivamente no erotismo do que depende de Si.

suspeitos.


sageza.

É em

tilhos da

Agosto,

dos esparno feroz

os seios

explen-

soltam-se

dor de

adjacentes, Apolo,

metrias

que teus

e as geo-

ângulos

dos astros, embas-

animais

bacam.

os nódulos Em que

me e ante

praias

assediam-

queres

símbolos

enros-

Os

car?

Há uma poesia feita de violência e apocalipse. A violência do desejo leva a extremos: morrer no desejo total do incêndio amoroso. Deflagração final, combustão na loucura, na embriaguez, no máximo da intensidade. Poesia enamorada da variedade da dissolução cósmica, como no prayala hindú ou no radicalismo unívoco do Apocalipse. É a experiência também kantiana do absoluto e do sublime, do terror, das alturas, do infinito sediado na mente. O sublime é o extremo que dissolve as defesas, o ego, que corta a cabeça, o pénis. O sublime, como em Attis, assemelha-se à castração, à dissolução no regaço de Cibele. A imolação no fogo, no sacrifício. O amor absoluto busca o altar sacrificial. No amor comum há centelhas do amor absoluto. Se não entendes o que é o absoluto deixa-te ir na paixão, segue a linguagem do irrisório, da tagarelice absoluta. Deixa-te odiar pelos sérios, e diz, escreve, pinta, canta as coisas tolas da paixão. O fogo é gourmet. Devora o que há de melhor: florestas, belas casas, palácios, bibliotecas. Há uma apetência do fogo pelo que é nobre, delicioso. Daí que o fogo goste de vestir a pele de um animal, o lobo, e lhe custe descer do topo da serra, como se o uivo não se extinguisse jamais. Também o fogo quer crescer para além das raízes e ser colhido pelo sexo da terra, amainado por uns tempos, para voltar a despertar mais tarde, em primaveras, na carne lúbrica das plantas Também a mulher surge como Loba, nos trovadores. E em Homero ela é cão, lobo domesticado. As mulheres, mais que os homens, são como cães, dado que são colocadas na zona mais baixa da hierarquia social, e porque podem ser terrivelmente capazes de ver através das convenções sociais têm a capacidade de se recusar a permanecer no seu papel. Mas a ideia de que não é a mulher ou a própria deusa, mas a sua face, que é como um cão, sugere que isso se pode dever à percepção que os homens têm das mulheres, em vez de ao desejo feminino, que ameaça o tecido social. (Emily Wilson) Amei a mail arte de amar-te. Nhec nhec nhec!


Cantar é incandescer no amor. A arte poética, a sua única razão, é essa incandescência, para além de todos os metros, das explicações comezinhas, dos bicos dos pés, das teorias mais sofisticadas. Andas a inalar nebulosas? Há algo de demasiado imperfeito no ar alumiado. As tremuras da terra alvoraçam a mesa? A boca afina a luz? O corpo desaparece nas fatias de fogo, no fole ritual de Vulcano, o feio. É na mesa estendida que a teia se instala junto a talheres. A argila sangra. Ainda não tens a certeza? ( Jorge Judas) Nem a cinza nem o fogo roubarás, mas passarás pelo fogo sem que te queime, para que no ardor se vão consumando mudanças: ardor carnavalesco sim, ladroagem de formas para formas sim, metamorfose das plantas sim: os antigos que sobraram aos incêndios e à barbárie pois, com o absoluto também subjacente — intensidade dissimulada para além de assinaturas violentas e a velatura do edénico sobre o crime, ou Kleist parodiando na morte o Werther — desde que sacrificado foi o sacrifício todos os testemunhos sacramentais são farsa. ( Jorge Judas) Há que alimentar o ardor das vetustas vinhas, o fogo da fonte que manará em terra vasta, minha mãe, minha irmã, minha amada. Nenhuma cor fora tão persa que me lambesse assim a cara. Serpentes de sol a desembrulhar contrapicados na infância; agacham-se no útero: no poço — lume colhido na água, fogo no períneo cerrado. ( Jorge Judas) Julgam que poetam sobre Diónisos, o obscuro, quando falam de Hermes, o vermelho, dos equinócios: nascituro na obscura tez do crepúsculo, deidade das vielas empoeiradas. A exuberância dos frutos em que cessa o Verão mora-lhe o rosto. E cada membro é exactidão rubra e soberana. Eis a Doxa fulgente e prudente, que de uns faz deuses e de outros mortais. (paráfrase de Sophia etc.)




que te entesem, para que

A palmeira que Ulisses vê em Nausikaa é a antecipação do templo grego. A palmeira é como uma coluna do templo, o que sustem um sagrado que não é fechado. A donzela dos Feaces antecipa a ideia de cariátide, de uma jovem que sustenta o templo, como se as donzelas virgens fossem o verdadeiro pilar do sagrado.

metáforas

A nau é nove, é o novo, o convite à viagem, e para Ulisses, o convite ao retorno: a Vita Nova de uma vida velha que teme esquecer. A Vida Nova rememora e recicla a vida velha. Que viu Ulisses em Nausikaa? Uma extraordinária palmeira? A Jovem Penélope? Ou ardeu ele de amor secreto? Ou viu no rosto ridente da Koré a natureza do mundo?

Urdirei

O Fogo são as Musas. É o ardor da jovem que Ulisses fita, naufrago e nu, despojado, miserável, feito um caco. É Nausikaa, a nau de fogo, filha do rei dos Pheaces. É um objecto ardente que se lhe depara, uma boa nova, como a sarça ardente de Moshé. É a novidade absoluta do dia, a força da artephysis, da vida.

na

Não podemos separar o Ser do Sexo, a Ontologia da Pornografia, o Absoluto da Ironia.

tua

da pélvis viceje e venha.

Aceder à existência é provocar inimigos. Ser-se um eu é ser reconhecido como existente, classificado para entrar em guerra. Toda a autoria é uma entrada numa guerra. Visão do mundo destrutiva e combativa. Apascentar somas de destruições, como dizia Picasso. É a estabilidade da guerra que garante a autoria. Ou como escreveu Ad Reinhardt: a primeira palavra de um artista é contra outro artista. Irromper para sobreviver. Maldizer para sobreviver à viva vista.

retorta

O lume é a incandescência dos mitos, um fogo que teima em reacender-se, medrando nas raízes dos dias, renascendo das cinzas acamadas, tinindo o inesperado. Também os mitos se mantêm em brasa, na zona mais funda de Gaia, ou num caudal subterrâneo da consciência. Podem ser um fogo de conforto ou tornarem-se num incêndio.


Dá-se o caso que o vírus não é bem vida, sendo, no entanto, uma personalidade. Uma personalidade que as células lêem, a partir das suas formas, da superfície. A leitura é omnipresente na vida. A informação é permanente leitura. Os vírus são personagens mutantes, redondas, ao contrário das personagens planas. Os detalhes de Homero precedem, sábios, a ideia redutora de que há um elemento subjacente, ou um sopro detrás de tudo. Com Homero mergulhamos na profusão das minúcias, nas especificidade das situações: são os detalhes que criam essas especificidade, na trama da narrativa, bem como na riqueza das palavras. Assim o poeta usa o tempo para fazer os deuses falarem, deixando-os dizer longamente como e por que vão realizar tal gesto, atribuindo-lhes um discurso redundante, sem nenhuma dúvida, do ponto de vista da intriga, mas precioso para tudo o que essa palavra diz dos próprios deuses. (Ornato/Sissa) No mundo homérico tudo é fragmento e personalidades. Não há diferenças entre narração e metanarratividade, entre plot e character. As

sa be ndo- o. divide ndos. a gosto. ide a renascer anzói s mere ci dos, as linhas de fuga, os averiguados — cáli da, e mbevecida, caídinha. Engastar-nos-emos

O eu é um aforismo. Cada aforismo é uma persona, e cada persona um feixe de possibilidades, de mutações. Uma frase pode ser uma autobiografia, como sugeriu James Lee Byars. Até uma abreviação de uma frase pode condensar uma existência. Cada eu nasce da gana aforística. O Kantharos partiu-se, o pão foi repartido, o espelho estilhaçou-se. Cada caco designa a personalidade do todo. Outrora a ideia do Uno obscurecia os detalhes. Mas foi depois da personalidade de Homero. A busca da personalidade de Homero é um mito, outro mito, porque em Homero tudo é personalidade e personagens. O poeta à procura das suas faces. As faces do poeta são mais múltiplas que as faces dos deuses.

Ide, Acertai os Ou vinde

Voltar às musas em livro menor, em pontapé de epigrama, em esboço de aforismo, em quase frase, meio maleita, verde, a passar a madura, um pinto de tinto, uma gamela de gordura. ( Jorge Judas)


Ruídos

de

te

roer

a

cada

risco

da

Retiro pe sina.

Mal

te

forças que fazem mover os deuses e os factos também são personagens. Os deuses são a sua entre-causalidade reequilibrando-se ou desequilibrandose. A epopeia descreve-os, dá o ar da sua graça à concatenação animada dos factos. Zeus lança a culpa na terrível Ate, potestade congénere, que o cegou e o impeliu a gabar-se estupidamente, provocando por conseguinte a infelicidade de Héracles. Portanto há na narrativa poética uma força exterior que conduz o jogo. Mas, na narrativa, essa força é em si mesma uma personagem; tem, com certeza, o poder de determinar a conduta de outra personagem, a qual, por sua vez, pode enfrentar e castigar a anterior. Os acontecimentos são movidos por uma causa, mas a causalidade toma uma forma conflitual e dramática. (Ornato/Sissa) A Odisseia é uma grande narrativa que colecciona vários contos, que açambarca uma multiplicidade de pontos de vista. Cada ilha é um ponto de vista, um aforismo que nos inicia nas personalidades do Kosmos. Odisseus — Persona. Pois de ilha em ilha, de aforismo em aforismo, de personalidade em personalidade, todo te percorreste. Desde o areal onde se arvorava a palmeira Nausikaa, até aos medonhos rochedos onde senhoreiam as cantatas agudas das sereias. (glosa de Sophia) Caminho amante, longe de plácidos palácios, com palavras subindo às pregas da Dama que nos seios serpentes emana

Diante do espelho as roupas despediram-se — —


elo riso. vejo,

vão-se

as

rugas

é

paradoxando

que

te

apanho.

Eis a Outra parindo-me da inquinada flor da língua cujo sabor condimenta, deforma, enfatisa e desgasta errâncias que na lentidão se encastram. A anamnese é um dom canino. Mulheres e cães recordam melhor, persistem em recolher no tempo que já não é tempo, regressando com uma força que não é simplesmente fantasmagórica. A luta contra o esquecimento é essencial para entender que a Aletheia antiga se dá nas provas de memória, em certos sinais e sensações. É um cão que reconhece Ulisses. Foi ele que guardou a memória intacta, o laço noético. E a memória, como em Proust resgata-se no cheiro. É no cheiro que se desvela o nó mais fundo da presença. É indisfarçável. Nele o tempo regride com a panóplia de cenas adjacentes, adjectivadas. A essência é um tema nasal — o noos, o espírito, os sopros, os cheiros, entram e saem pelas narinas. Conhecemos as essências pelo odor, não pelas palavras. Queres saber o que é uma rosa? Cheira-a. O entusiasmo é próprio do dom poético, arrasta o pensamento no ritmo do diafragma, no phrenés, onde se aloja a sabedoria divina, onde o corpo se deixa possuir. Ou como escreveu Blake: O caminho dos excessos conduz ao palácio da sabedoria. Escrever entranha-se. Já nem sequer aproxima: está na pele, nos órgãos. Não há metalinguagens

— — — — —sobejos de finesse salgando o cetim.


que não sejam língua, nem meta -poesia que entenda mais da poda que a poesia. Mas escrever tem que ser o pior de tudo? A beleza é terrível, é certo, mas maléfica? Há aqui um demonismo que nem sempre é efectivo, dependendo dos exemplos — leiam-se poemas hindus, persas, Llansol, Duchamp, Stein, Williams. Serão precisos revólveres, violências, a superstição de que a revelação só nos apanhe pela morte, a fugir, com as calças a cair? Escrever, pintar, desenhar — mostrar o que resta e o que falta. Nunca se toca o fundo, sequer do poço. Há outras funduras ou alturas. Morre-se do que se renasce, e vive-se de tanto morrer e renascer. Não é a escrita ou a arte que matam ou enlouquecem, é a letalidade ao lado, o caracter devorador, substitutivo, do mundo, e isso processa-se agredindo. As artes dão o esplendor, vão suplementando para quem o queira acolher, ou tenha esse privilégio. Dissolvem o que constrange, abrem possibilidades no interior e no exterior que antes não existiam. Sabia-se outrora que no interior do labirinto estava uma criatura sacrificial porque o labirinto é a labrys, a dupla machada do sacrifício. E também estávamos cientes que Hephaisto, o deus artesão utilizou essa machada para que Athena fosse parida sem ser pelo sexo, pela cabeça de Zeus. Teu corpo é o meu Museu — arrasta clareza enigmática — totalidade amorosa subindo em ganas polposas, de Pompeia.


catita a valer!

(são graçolas!)

Há demasiadas criaturas e figuras a confluir no labirinto — o Minotauro, o grou, a dança, Ariadne, o fio, o arquitecto, as asas, o caracol, o engenho, serpentes, ratos, o cérebro, os intestinos, Dédalo, Ícaro, Pasifae, o Touro, Diónisos. Mas também, com Borges e Picasso: a biblioteca, a inscrição e a cegueira. O que é claro em Herberto é o arrepio sacrificial do labiríntico, que acompanha, redobra ou parodia o mundo e os restantes sacrifícios. Por mais que se queira ver no poema a imagem de uma violência sacrificial e no poeta um misto de homem-besta, o sacrifício no poema é isento de sangue e morte, e o lastro poético acaba por sucumbir à depuração e às exigências das finezas do poético, que têm a sua racionalidade específica. Estamos no domínio das metáforas e duvido que o leitor herbertiano se sinta agredido porque sabe que as intenções violentas do poeta podem dar alguns casos suicidários, mas não dão serial-kilers. O minotauro autofágico apenas se baba ante a Koré. Ela sorri enquanto mundo não se desvia. O Minotauro, o poeta, teme é, como no conto de Borges, sair do labirinto. Pode entretanto ir falando do que vislumbrou lá fora. Os deuses não largam as línguas mortas e seus papiros. Continuam aferrados a documentos que são a sua tábua de salvação. Quiçá voltem ao antes… talvez já não lhes interessem os ritos… têm uma existência secreta. Podem incitar a vidas paralelas, pela escrita, pela pintura, pela ópera. Assemelham-se a curiosidades retóricas. A vida está lá. Não desapareceram completamente. O que é novo só pode sê-lo pelo corpo. No saber poético homérico, por exemplo, que permaneceu no coração da cultura democrática das


No la-

birinto da

lubri-

cidade

dir-me-ás

se verde-

jas ou

enrubesces

— se és a

toura de

lunares

tetas ou

Ariadno

cujo cono

enfreia.

cidades gregas, o corpo é completamente protagonista. A materialidade da existência, num corpo de homem ou especialmente da mulher, está na base da concepção do humano. (Sissa) A arte é a forma suprema de felicidade — mas pasta-se a felicidade “também” no espetáculo do mal. Nos seus teatros em forma de concha os Gregos desfrutavam do mal representado em cena, como por vezes o europeu se sentia mais “seguro” lendo em revistas ilustradas os rios “sem leito” da China, que no seu trágico vaguear varriam homens e países. Toda a Grécia é em forma de concha, fechada com as costas virada a ocidente, e as válvulas dos seus portos abertas a oriente. Também os primeiros teatros eram deveras orientados deste modo: as traseiras a ocidente, a boca de emissão da cena a oriente: onde surge o Mal e a Tragédia. (Savinio). O Canto é uma rememoração da voz materna, a que se ouvia dentro do ventre e aquela que embala e tranquiliza os bebés. Mnémosiné, o fundo da memória, é a voz primeira, insubstituível. A Musa é a voz que jorra do peito, com a doçura do leite, e esse som e esse sabor tudo serenam. A felicidade é o canto dos mitos. Por isso há que ser amigo das histórias, ser um filómito, mais que um filósofo, porque o canto do mito contenta, é eficaz, e a busca da sabedoria não tem fim. O canto pode ser uma armadilha, e o enigma é-o certamente. O Canto dos Mitos mostra a unidade entre o Canto das Mães, o Canto das Musas, o Canto da Esfinge e o Canto das Sereias. Qualquer um destes cantos é doce de se ouvir e arrasta para o esquecimento. Há vários tipos de esquecimento, e há formas de esquecimento que são rememoração.


vai um petisco?

É nessa rememoração das Musas que se entrançam as Sereias e as Esfinges, seus duplos malévolos, que em lugar de dedos que acariciem ou dedilhem, são garras. Tomai nota: desconfiai dos cantos das aves e dos sons estrídulos das divas. Lembraivos dos harpejos virtuosos e crus da Rainha da Noite. A delicadeza dos dedos dos mortais também já foi garra, sobretudo para tomar presas. Antes de serem hábeis, versáteis, capazes de entrançar, desenhar, acariciar, tocar música, os dedos serviam para tomar presas. É nos dedos que a morte dos outros se toma. Adivinhar é saber ler os sinais e desentranhar-lhes as consequências. É uma ciência de Apolo. Nem sequer é necessário ver os sinais desde que se tenham visto a fundo. Tirésias não vê os sinais, mas entendeu o doloroso sentido da concatenação das coisas e das formas observando a sexualidade serpentina. É desse entrelaçar do serpentino que se deixa de ver o visível e passa-se a ver no invisível. É um dom que vem transsexuado.

paletas.

astros,

de sexos,

movedor

o desejo,

coagulam

os astros

dos e que

pelos de-

varadas

memórias

acolhe

que a tela

Ignorava

A singularidade pro-vocacional da inocência é uma mântica. Ver é produzir metáforas. O dom poético diz o enigma e, tal como o oráculo de Delfos, acena. O leitor de poesia, mais que intérprete, tem que se fazer adivinho, tentar entender o animal com que luta, e que na maioria das vezes se esgueira entre as frinchas. Por isso o poema supõe esse incumprimento do sentido e a dificuldade, porque o que vem nele inscrito é a espontaneidade perdida do leitor. O poema não faz compreender como a filosofia.


Te n s

t r u q u e s

o m n í v o r o s

p a r a

O leitor tem que se fazer poema e poeta para entender o poema. Mais, como no dito de Jesus, tem que se fazer humilhado, criança, para aceder ao domínio do poema, à sua viva e estranha espontaneidade celeste. A linguagem é uma coisa estranha, complexa, confusa, que temos que aprender a usar, a citar. Cada palavra que aprendemos vem prenhe de significados e usos para os quais não estamos preparados. Percebemos que algumas coisas são menos difíceis: o nosso nome, algumas partes do corpo, os alimentos, e coisas como bola, casa, céu, árvore. Mesmo essas palavras trazem a saliva e o odor de muitas bocas, ainda que nasçam da boca da mãe. A boca materna já está contaminada, já tem a sua morte inscrita no nascimento dos filhos, o passar a vida a outrem. O que se salva da boca da mãe é o timbre, as inflexões, a prosódia. São estes factores que criam o laço, a familiaridade, o sentido de pertença e de presença.

coabitar,

Vejo-nos

am-nos.

temper-

ruídos

ros — os

desespe-

tombaram

Por ora

paixões.

mendiga

bra que

Som-

A ideologia, a teoria, é um erecção que caga. A merda não é estéril pois fertiliza a mãe Terra.


m e

a d i c i o n ar e s

p i m e n t a s ?

A teoria descreve-se como espelho metamórfico de ser autor, de assumir/ assomar na máscara autoral — aquilo contra quem incentiva é sintoma, mesmo quando se batalha contra a teoria, a megalomania, a paranóia. O artista entra na comédia das demiurgias. É o demiurgo de um mundo limitado, particular. Mas ainda assim vibra na maravilha que é o carácter suplementar da obra que não foi chamada a este mundo, que é fruto do seu atrevimento, do ter persistido numa insensatez da qual tem que responder e dar conta constantemente.

cio.

acima do

de amar,

cansamos

não nos

lençol de

mais o

a puxar

advérbios,

cial de

o manan-

a desviar

As artes surgem como associabilidade e estranheza face à fecundidade e à erística. No entanto não se desembaraçam delas. De alguma forma tentam proceder aos reequilíbrios desencadeados pela multiplicidade das forças da natureza, do corpo ou dos grupos, através de ritos ou materializações que aparentemente pouco têm a ver com elas.


Não interessa o que trans-

Comer e ser comido, sacrificar e ser sacrificado, persistir e destruir. Os artistas sabem que criar implica destruir, e que essa destruição é simbolicamente e inextricavelmente incorporada no acto criativo.

mutas…

Apolo mata a Python, mas não a suprime. Suprimir a Python seria suse é primir o fluxo, os rios, as forças ctónicas, o corpo. Apolo absorve a força serpentina e dá o oráculo. A poesia não é o oráculo. É parecida com o oráchumbo culo. Tomou-lhe o veneno sem lhe sucumbir. É das Musas e de Apolo que ou ouro, a poesia vem. Podem-se invocar outros instrumentos, tortuosos, malignos, de culturas que não as dos gregos. Apolo não é menos terrível, estranho enchoou exótico que um deus oriental ou africano. O seu instrumento é a lira, ou se preferirem a harpa. Parece musical. Em certos povos as harpas são fre ou alimentadas. Com quê? Ovos. cobre. A arte está em ser o fogo, o vaso, o fluxo. A Pedra não é o transmudado éo transmudar.

Os oráculos que a pitonisa te revelou acompanham-te no estilo e na crepitação de gestos — tu só não soubeste de que língua os tinhas que traduzir. (Sandra y Sónia)

Há uma dificuldade em entender Homero, porque a sabedoria que é posterior cozinha-se contrária aos atributos de Odisseus, um herói iniciado por Hermes, Athena e Apolo. Odisseus é possuído pela loucura apolínea quando assassina os pretendentes: é incitado/ excitado pelo fio do arco, pela vibração, vib-ratio. É no entendimento da corda


A neve surge dos sintomas do sistema: verdura labial, corrida, champagne, sono, galgos, desencontros pequeno-burgueses nas avenidas de boa memória e tilintar de moedas nos centros comerciais.

A cena roída até ao ventre.

esticada que se fixa o mundo, seja a harmonia dos sons, das relações numéricas que determinam a harmonia; seja no acto de ferir de longe. A mania de Apolo é a Corda e a sua tensão. A incapacidade dos pretendentes de Penélope de usarem o arco é a impiedade ante o deus Apolo — o desconhecimento da tensão justa e da força necessária. Os pretendentes integram-se no deus como vítimas sacrificiais de Odisseus. A luz faz-se sangue. Parece antagónica de um Odisseus hermético, astuto, risonho. É na crueldade e impiedade deste mar de sangue que ressalta a afinidade oculta entre Hermes e Apolo, dado que há uma vibração que une a corda da lira à corda do arco. Ítaca é uma corda esticada, um cordão umbilical, a inseparabilidade do homem de um ponto que o faz orbitar. Odisseus nunca se separa desse umbigo terrestre. Quando se traçava um círculo esticava-se uma corda a partir de um ponto. É na extremidade da corda movendo-se que o círculo é traçado. O círculo é a corda movendose. Por isso Heraclito dirá mais tarde que o caminho recto e o curvo são o mesmo. Nada é contemporâneo. Cada um vive o seu tempo paralelo ao de outros, bombardeia as vidas de outros pulverizando sensações que se lhes entranham. Essas sensações penetram em tempos alheios, nos eventos que cada um dos outros é. E os deuses, também vivem no nosso tempo? Eles que são imortais co-habitam, de alguma maneira, síncronos connosco? Ou são fábulas que nos agrada que sejam fábulas? Não há actos simultâneos: tu e eu nunca fomos contemporâneos, e é diverso o tempo em que vivemos. Da obscuridade nascemos. Na inactualidade perecemos! (Alquimista Cornudo) No banho de sangue há outras cordas que pairam literalmente no ar, para além do arco. São as cordas onde as amantes dos pretendentes acabam por ser penduradas com aves. São essas cordas que as unem à morte. São as cordas da gravidade do pensamento, perpendiculares à terra, a Gaia.


Estão suspensas. Pensar é suspender, deixar-se ir na força da gravidade. É um espaço intermédio entre o céu e a terra. No fim só há a poesia que havia no imprincípio. No (in)fim a representação é o poema que é o corpo, o sexo, a loucura materna, a angústia dos filhos, os terrores de Gorgô. No fim não há fim. É a glória incessante do mundo a desbocar, a ser urdido no caos da boca, no espaço que vomita palavras. Sempre arremedos sujos de Aracne a soltar espanto, maravilha, terror. A caça apoderava-se dela com comichão verde — poderiam dar-lhe o nome rebuscado de ninfa — recusa instintiva da monotonia da terra lavrável. (Sandra y Sónia


Reciprocidade de sobreabundâncias, prazer das tran smutações.

Suspendo a descrença para que os deuses se contetem. Consigo vê-los na mesma medida que visualizo os romances. Nem sequer têm traços genéricos. Não os vejo, como não vejo as personagens lidas dos romances — são descendentes de deuses ou deusas. As suas faces estão-nos vedadas. Ensinaram-nos a cobrir o rosto diante do divino para não lhe reconhecermos as cicatrizes. O imaginário que vem da palavra é poderosíssimo, mas dispensa traços essenciais. Somos cônscios que Apolo é jovem, e que um filme é um mau substituto da fábula porque nos impõe rostos de actores. E um rosto, sabemo-lo bem, pode ser a ruína dos encantamentos. A homofonia, o trocadilho, é o pensamento. As narrativas constroem-se nesses jogos de palavras como em Raymond Roussel. A Ilíada e a Odisseia são oulipianas. Homero diz e dá a ver o célebre ser na sua aparição soberana, tal como se mostra aos homens. Ver, em pagão, é desde logo ver a luz, phaós. Ora phaós é a mesma palavra que “luz”, com acento agudo em lugar do circunflexo — mas os acentos foram tardiamente codificados — também designa em Homero, o homem, o herói, o mortal. O homem e a luz andam juntos. O prazer de ver a luz liga-se à felicidade de ser um homem. ário.

. Renascer do impuro imagin

Ir onde os imortais não podem


É uma bela maneira de dar a entender que para desfrutar da luz do mundo, tem que se ter o privilégio de morrer um dia. (Ornato/Cassin) A fosforescência dos deuses projecta sombras nos homens. Na Ilíada é no trocadilho entre luz e homem, entre deuses e mortais, que o homem compete por uma memória que se lega. É a idade dos heróis que muitos povos não possuem. Os heróis gregos competem por um lugar no fôlego do noos e orbitarem em torno da psykhé que talvez venha a ser mais importante que os deuses. É a psicologização do herói grego que possibilita a emergência do sujeito, porque é nele que reconhecemos os nossas provas, vacilações, fracassos.


Os heróis são a Doxa, e esta assenta na mortalidade, e no confronto com um vasto número de provas, como o fizeram Hércules, Ulisses, Teseu, Édipo, Antigona, Aquiles e Perseu. A Doxa dos homens, através dos heróis, lança um repto à frivolidade dos deuses. Será que os deuses se têm que tornar sérios? Como é que o homem conquista, dentro da sua inclinação para ser sombra, a ligeireza que sobra às limitações do oráculo? Que luz é que se pode deixar para outros na face da terra? O próprio do homem é o diálogo, a liberdade, a festa, a perpetuidade — isto é, a capacidade de ir legando mais alegria sobre a terra. Os deuses são hierárquicos e competem. A sua competição gera desordens. Nos deuses o diferendo sobrepõe-se à cumplicidade. Na divindade dos homens é o inverso. A glória dos homens está nas afinidades, na partilha, na ligeireza conquistada no confronto com os deuses, na alegria em volta do fogo que se interiorizou em cada um, que é onde julgamos que nos reconhecemos da mesma substância ígnea dos olímpicos. Em Homero, ao contrário dos cristãos ou dos neoplatónicos, não há confusão entre os divinos e os mortais. Os heróis podem ter sido gerados de deuses, mas a sua materialidade é distinta. O herói acerca-se dos deuses, não é deus. O corpo de Odisseus pode brilhar, não é um corpo perpetuamente brilhante.

o, erráticos. Os deuses são inconstantes, sem fund Trocam atributos, narrativas, nomes. O que que julgas que os deuses disseram teve vário sentido outrora.


enigmas mascarados de glória cosmogonias a parodiar agonias

É com Homero e contra ele que se foi construindo o pensamento ocidental. Em Homero o pensamento nasce das coisas, está entranhado nelas e conta com os jogos de forças que estão sempre a mudar. A partir de Platão é inequívoco que as coisas começam a desaparecer porque o pensamento tenta pari-las, imitando a partenogénese de Zeus, como se tudo fosse simulacro do pensar. Os simulacros não têm existência, testemunhando antes a vacuidade que os concebeu. Por alguma razão há uma fremência que vem de Homero e que atravessa as artes — pede, é claro, a co-laboração das musas, cocheiras da Memória. Na ideia de alegria (e de arte, como recolha da alegria) está implícita a de jouissance paradísiaca. Pensar o Paraíso é já vivê-lo, escrevia Ernesto de Sousa. As generalidades são obsctáculos ao paradisíaco. A essencialização suga o sangue à maravilha da linguagem. A ideia “humano” é o obstáculo mais duro ao livre e feliz desenvolvimento da mente artística, do mesmo modo que a ideia “família” é o obstáculo mais duro ao livre e feliz desenvolvimento das relações entre os homens. O homem mental não deve perder de vista a reconstituição do paraíso na terra nem deixar de pensar nesta reconstituição como o único e verdadeiro destino da


humanidade. . A arte é imagem, é a voz, é o pensamento deste pensamento — e isto, ao menos isto, ninguém o pode negar. A arte traz no seu regaço a recordação do paraíso perdido ao mesmo tempo que a promessa do paraíso reencontrado: se só tivesse a recordação destituída de esperança, ninguém reagiria à desesperada tristeza dos poetas, dado que a voz dos poetas é a maior consolação dos homens: directa para os mais dignos, indirecta para os outros; e o ter em si apenas a recordação do paraíso perdido, é a razão do pouco amor que eu tenho à poesia de Giacomo Leopardi. (Ornato/Savinio) Todo o utensílio é uma arma. Na natureza o utensílio é dado naturalmente. Uma pedra não é só para florir, é também para atirar, ferir, matar. Diz o Qoheleth: há um tempo para atirar pedras e outro para apanhar pedras, como quem diz, há um tempo para lançar flechas e outro para recolher os mortos. O Logos é isso — atirar e recolher. Já Geia prodiga o utensílio da castração. O seio e estar no seio são a mesma coisa. O amamentar é um regresso ao útero, um namoro com a morte e a obscuridade. Por isso há que usar os utensílios e castrar o pai. Acabar com o sexo centrípeto de Ouranos para gerar o sexo centrífugo de Afrodite. A terra já vem armada, armadilhada.






Nos antigos dicionários vagam Metamorfose, Metáfrae Metafísica sucediam-se

Quanto à significância, tens que a apanhar de um ramo alto. Aquele a que ninguém quer subir. Nada é simbólico. As coisas não são ocultas: florescem, transitórias, instáveis. Nenhuma significância veio para ficar. Escrevo contra as evidências que colhi. Cada texto é um jardim exposto às inclemências dos deuses. Está sempre a ser mudado, regado, transplantado. Traduzir é perverter, é surpreender na língua a vontade de equívoco, é importar metáforas que enlouqueceram outras línguas. Pintar é traduzir os mitos mesmo quando não os há. Colhem-se na atmosfera, nas dissonâncias às cavalitas da natura. Deuses A língua é a força da fraqueza. Da minha boca saem gerações de palavras não outormastigadas, não espadas ou chamas. Eu nem sequer vos trago a espada. gam, Desta boca sai a impureza, a manducação de outras línguas: estrangeirismos, são o outorgar, solecismos, erros de ortografia, ambivalências, intermitências, complicações, o dom nadas. que é o recipiente, o vaso na ilimitada transmutação.


sempre nas nuvens!

Desmembro-me como Diónisos, como Orfeu, em anamnese, a recordar a dilaceração. Cada fragmento do passado me reconstitui. Sou uma acumulação de eus diferentes que vão impregnando o mundo, ou que se deixam ensopar em línguas vindouras.

A Obra é amante Não somos sonhos ou sombras. Sobre esse museu de hábeis metáforas impúdica prevalecemos, em incertos e fúteis cânones sobrando. (O alquimista disposta a tudo cornudo) o que jamais Excitação manducatória da linguagem — a linguagem é o que introjecta. imaginaste.

Festim que devora, incorporação que expropria. Daí que a linguagem contenha o seu negativo e torne indissociáveis os contrários, gerando paradoxos. Há que comer. Come-se para sobreviver. E no comer há negação (e supressão) do outro, aparentemente subtil (ou brutal), mas concreta. A supressão manducatória é a negatividade. A negatividade, mesmo antes da lógica ser formalizada, é subjacente à linguagem. A linguagem é manducação fictícia. Por isso falar e comer são indissociáveis. O banquete é o espaço de manducação recíproca. Em cada frase copulam deuses de religiões diferentes.


Abismos que devoram espelhos, enigmas, demandas, pretensões…

A entrecanibalização dos participantes é paradisíaca. O banquete é também combate — quem fala mais ou quem come mais? Eis o combate! O exibicionismo dos banqueteantes faz com que a igualdade dos que estão à mesa passe a ser uma manobra de poder.

É este mundo que é glória, Kavod, não outro mundo, nenhuma eternidade: pense-se, não num mundo corrompido, mas na corrupta eternidade. (Alquimista Cornudo) Todo o deus que se manifesta é impuro, e o que cala ignoto. (Alquimista Cornudo) É estranho como a representação nas artes é habitada pelos poemas. As imagens que desenhamos, pintamos, imaginamos são contaminações.


É certo que existe o fora, o lá fora, os objectos à procura da neblina metafísica. Eles pedem atenção, como filhos ou velhos. O pintor, o poeta, estão distraídos na obra, na diletante ataraxia de se deixarem possuir pelas sementes do poema. Descuram da violência que engolfa as estações: os dionisíacos bagos de uva contêm o deus Apolo, fazem-se raízes do sol.

Os contrários amadurecem ou despontam na insone exterioridade que rega o alheamento do poeta no poema. Na guerra das coisas, na ironia da devoração, a paz exterior das coisas é teatro. É na melancolia dessa batalha que o poema adquire a indestrutibilidade e insustentabilidade. Não se aguenta porque é indestrutível. É uma paráfrase do poema abreviado que originou o mundo — sílaba, sal da vacuidade, vibração e incandescência. O poema faz-se com e contra: com a confusão e intensidade. Vem da carne e vai contra a carne. Fica na carne. É Eros que espreme o esplendor. Porque o que vejo foi cinzelado primeiro pelo desejo, deus hábil. (Alquimista Cornudo) O tempo diz-te: a cada instante ressuscitas.




A humildade é a forma arguta de penetrares nos primores da matéria. A rosa devora porquês.

A arte, tal como a filosofia, é o conhecimento do Eros, o mais indisciplinado e rude dos deuses. São domínios que não podemos circunscrever nem entregar de bandeja à universidade, ao mercado, ou a qualquer modo disciplinado. Saltita, esbraceja, convida ao riso pós-apocalíptico e à atmosfera carnavalesca. A natureza é um carnaval sublime que pede eufóricos, amorosos, e entusiastas indisciplinados. (Coccia/Ornato) Os poemas desenvolvem-se incertamente na confusão do talho, vão acima do objecto com alho, sem famintas palavras — somente com larvas e a ferocidade do arregalado dente. A poesia é a picadora que desfaz o tempo e a carne. A carne é o tempo. A poesia tira-nos o tapete onde buscávamos consolação e esplendor. (Herberticum Museum) Poesia é sublimação da incapacidade de gerar em si filhos. Escreve-se na inveja das mães, e o desdém pela fertilidade materna não é mais que isso. Pode-se dizer mais ou menos: filhos são nada de nadas. Carne de carnes são os poemas escarrapachados, sobretudo contra poetas e leitores amenos. O poema cresce no corpo como nostalgia da unidade perdida com as mães loucas, paradisíacas, pestíferas. Não é capaz dessa simbiose, terna e fértil, da mãe-filhos. Que pode o poeta senão aleitar outra loucura e encenar solilóquios em que rivaliza com o poder ilimitado e doce das mães? Escreve-se com as mães contra as mães no corte de ser filho, de passar a ser um mero Eu e uma obra com a faca na mão a tentar ser contra o mundo em vão. Ser obra é ser eu? Ou é deixar-se coabitar no conviver com vários daimons? A obra é a maldição de um corte e da certeza da morte. A morte da mãe que adivinha a minha morte.

O que esverdece no sopro e o que sopra a esverdecer…


a devoção enerva o autor e o deus A este paraíso fomos dados para que as metáforas celestes fossem infernais. (Alquimista Cornudo) As mães não precisam do poema, muito menos do tal poema que fez nascer o mundo, acossada demiurgia. Podem escrever mais que o poema obrando proles que enovelam o mundo e seus empinados sentidos. As mães são pastoras de infantes que irão cravar lâminas nos mais antigos pais. Que lhes podem dizer versos? Acumulam entre legumes e epitáfios crânios para dissimular babas de nostalgia. Escrevem por desfaçatez, para esmigalhar machos que as fecundaram e traíram. Escrevem com o útero a parir sangue como quem liquefez pedras. E já nenhum rebento, nenhuma letra, lhe procurará o peito, sequer o silêncio com sua boca de morte e cal, em concludente lição nos tempos escancarados. A obra torna o autor seu filho? A autonomia da obra, a sua lógica interna, faz do criador uma parte do processo criativo, uma espécie de putativo operário da opus. A obra humilha o autor. O autor existe para ser humilhado pela obra. Nunca estará à altura do que imaginou, do imo pseudo-apocalíptico, onde a violência tem a cor das miniaturas moçárabes. É do falhanço que colhemos o gosto, acre, que já nos impregna: amargura de fundo dando prazer, melhor que violência.

prudências

ligeiras im-

imprecisão,

calhar, uma

um se

um talvez,

Obra não é obra. É outra coisa. Ou pretende ser outra coisa. Uma parecença, uma dissolução, uma paródia, uma recusa de paródia. Solver. Ou então canibalizar. Entre a dissolução e a canibalização surge o tom de alteridade, o desencontro voluntário, e coisas que se desfazem. O autor procura no processo encenar um pseudo-apocalipse para dentro. Quer livrar-se dos seus tiques e, sobretudo, da forma, da garantia do prestígio acumulado. Descobre nos chineses o gosto da imperfeição, o esfarelado, o contraste dado pelo rude, pela espontaneidade e as sandálias a caminharem sozinhas sobre a cabeça. O autor pretende, como os budistas, extinguir-se nas rugosidades da obra. Vai ser muito difícil. Não deixa de tentar. A doçura do buda sua na vaca ferrugenta.


o meu dogma é a metamorfose

Animais que trans-

O gosto pela complexidade faz buscar a confusão. Ao fim de se beberem uns copos a destruição faz parte da alegria, é um deixar-se ir no irreprimível. O poeta agarra num poema como uma bacante e começa a despedaçá-lo e a comê-lo vivo, fresco, em sangue. Dança, porque o poema é a vertigem de se livrar da pele, do estilo, do prestígio, das éticas e dos comportamentos civilizados. O lugar do poeta como bicho, ou fera, ou maldição é a forma de o achar como exemplo civilizacional na reserva poética natural. Vai ter uma conduta exemplar para reproduzir maldições e mal-estar. E sacrificar a biografia pela obra; preferir o estar contra o mundo à santificação deste. Onde estão os acertos?

portam às costas a melancolia da

Transforma-se em leite, em materno afecto, tudo aquilo em que se toca. Como Midas o faz de modo impotente, acidental, estulto, quanto ao ouro — ó ironia dionisíaca! O leite é a devoração dos inícios, é o mais carnal e antropofágico dos alimentos. Entre o leite e o ouro joga-se o poema, a opus, com ou sem alquimias. O inverso talvez fosse mais útil e profundo: transformar o ouro em leite, a obra em carne. Haverá forma menos estéril de poetar em vida?

A página onde se escreve o canto é branca, solar, caiada. A página é uma ruína solar que procura a voz, a linha da melopeia, o próprio fio tenso da gomelira que encarnou na boca. Apolo vem das cordas vocais para encontrar na página do poema o templo, a exactidão do ritmo, do número, da proporção. tria.

Pousas o livro ao lado do figo. Sabes que figo quer dizer útero. É primo da vinha. São frutos que escolhem Agosto e Setembro para a colheita, o kairós. É esse o tempo de colher os versos? Ou o elegíaco Outono? O caracol que com suas antenas afaga a romã entreaberta — o deus dos mistérios.


Quem fogo come, aguas verte.

Ou quando floresce e o desejo não se detém ante nada? Parece que o Inverno não é o tempo da poesia… O inverno é bom é para escrever prosa. À falta de fazer tempo em filhos desfaz-se o tempo. A obra desentrança o Chronos, o tempo que esbranquiça, a concatenação dos actos, o A implicar B. Nada tem que ser deste modo. A ficção, em Penélope, diz que o assim pode ser assado. Contra a espera evita as franjas das fatalidades, o aguardar feérico da morte: des(a)fia tudo, até o refrão que alinha a fatalidade, o penúltimo prurido dos fios das Parcas. Refaz o tempo aleitado na memória. Resfolega na obra mais uma vez.

Os dados estão enlaçados.

O porco ama o travesseiro.

Penélope é pandémica, é de todos, e de todos acabará por gerar Pan. É a deusa orgíaca que habita o centro da arte — visual e narrativa. À Penélope casta corresponde uma Penélope que é da Polis, que encarna em si o corpo lúbrico da cidade. É dela que nasce o deus da comichão sexual, Pan, criatura masturbatória, feia, patética — o desejo insaciável. A dignidade de Penélope é demasiada para Odisseus que a várias outras se entregou, como aliás a maioria dos aqueus. Só a persistência da fiel Penélope lhe conserva o poder e permite que a cama e dignidade não sejam ultrajados. Para que volta Ulisses? O ethos a que volta já não é de luminosidade juvenil. A luz mudou e a casa está parda. As companheiras de infância, de sorriso efevrescente, já têm rugas, espressões requebradas e uma gravidade que as começa a enterrar. O que havia a resgatar é irresgatável. Foi para isto o regresso?




É a confusão das línguas que nos desliza para acertos de desvelamento. É a linguagem estirando-se para além dos usos convenientes que permite não só sobreviver, como ultrapassar os limites naturalmente impostos ao humano — ruído que sobra a silêncios entretanto amarelecidos. Ou rio de rumores ressoando sob a brisa na intensa floresta de Babel. (Ornato/ Sandra y Sónia)

O silêncio perturba as palavras? O silêncio acolhe as palavras. Cinge-as como som e sensação para além do formulado e informulado. O silêncio ajuda as palavras a sentirem que são só palavras; jogo complicado que complementa os demais modos de relacionar. Um Zero grávido. Um Pavão Zero. O que parece o Nada, o Vazio, o Nihil, é um mero truque de magia saindo da cartola, um bluff, um Tacet, Tacet, Tacet. Tudo vem de qualquer sítio. Como diz Cage, o que julgamos silêncio ainda é som, sobra de vibrações que vão minguando. Há um excesso no Zero, como se voltássemos a pedalar. Nem na morte a força do mundo desaparece de qualquer lugar. O zero frutifica. É uma planta. O zero é o primaveril que regressa com mais do que o espectado anteriormente. O homem tem que devir planta para frutificar, tem que devir zero para que o novo não seja arranjo modístico, mero consumo. O consumo é devoração improdutiva, passiva.

Prato vazio não mata o cio.

Anda a pescar no incesto

A escrita dos deuses (os livros ditos revelados ou inspirados) surge como um corpo imunológico, um corpus que permite a sobrevivência em situações difíceis. A escrita é uma imunologia sobreabundante, tal como a leitura.


Se entornares as papas na cabeça não chegarão aos miolos.

É com-sumir, deixar-se sumir na devoração universal, na anomia do capitalismo tanático. O zero possibilita a passagem do espectador a co-actor-autor. Trata-se de co-agir-autorar. A morte do autor é o nascimento do poli-co-autor-actor. Não se trata de o substituir por anónimos, pelo não-humano, pelo sem-rosto, mas sim de acessibilidade, vocalidade, performatividade e partilha. A criação dá-se a partir de qualquer coisa. Nasce sempre de restos, influências, entusiasmos, intuições. Eu não crio o meu Eu do Nada, como diz Stirner. O meu Eu é já canibalização, digestão, reorganização e invenção a partir do que vem vindo virado e revirado. É daí que retira a sua força. Digamos que tudo surge espectralizado. Dos espectros do capitalismo ao comunismo. Mas este corpo está aqui e eu conheço as sensações das minhas metáforas. Não saímos do corpo da artephysis. Nunca saímos deste corpo indissolúvel de outros corpos. Espectros são ilusões. Ideais, conceitos, generalidades. Tudo ilusões. Só há interacções e ligações.

Metáforas são órgãos interagindo no riverrun dos fluídos. Os órgãos procuram fábulas. Palavras são ervas daninhas povoando borburinhos silenciosos. A ausência de palavras aguça o indizível. Saber ler contra as entrelinhas. Saber contradizer intuitivamente as intuições. Espairecer em todos os sentidos. Saborear a literalidade. Correr a cortina que obscurece os mitos. O dialeto dos deuses são os solecismos, a queda no poético, sobre vários solos, o sumir repentino da terra sob as patas. Queda de amor, que outra podia ser? Azar de moscas.


O sentido da história está na maximização das funções do corpo — na consciencia, na elasticidade, na expressividade, na elegância. O acto de criação não é isolado. Não há demiurgia. Nenhum gesto instala definitivamente a polpa do mundo. O poeta e o artista que se encenam como demiurgos são patéticos. Toda a criação é co-criação, interdependência, reciclagem, fremer de criatividade maior vibrando com os astros. O pequeno demiurgo é ridiculíssimo se não se deixa integrar na vastíssima rede de que é cúmplice. O demiurgista julga que tem a força e só é farsa. Uma minúscula ejaculação precoce sem ver um palmo à frente.

As teorias vêm da necessidade de fazer pontes. Teorias articulam o surgente deslaçado, o que está distante. Misturam, relacionam, clarificam. Ou obscurecem. As teorias fazem parte da grande transformação. São continuidade do trabalho vegetal, expansão da respiração e da canibalização. Operam sobre o mundo ao operarem sobre quem as colhe ou se deixa possuir por elas. Teorias podem tornar-se espectros (como o comunismo) ou deuses. As teorias poéticas podem encantar/encarnar o mundo, são a grande magia.


A minha identidade é a minha pluralidade, é o prazer de ter tantos pseudo-egos em vez de um ego defensivo, couraçado. A minha identidade não é minha: é despossessão, dissimulação, paralogismo, afasia, solecismo, sentido sem-origem, balbuciamento, trifurcação, desembaraço, ligeireza, riso comovido, entrega a multiplicar-se. Descarregar e singularizar sem se arreigar no identitário. Constituir, pulverizar seminalmente.

Não dizer nada ou dizer o nada. Dizer o não-ser, e que este é incomunicável, é aquilo com que Górgias nos confronta. I have nothing to say, and I am saying it, and that is poetry. Dizer o nada que não se tem para dizer é poesia, escreve Cage. O poema, assim como o amor, é esse bicho fabuloso, deambulante, inexistente, vazio, intoxicante. O poema insiste em provocar sensações do não-existente: faz sentir o nada ou o não-ser, mesmo quando confuso, destituído de sentido, aleatório. O risco do poema é esse, o de avançar no incomunicável, comunicando o incomunicável, malgré soi. E no meio disso o que diz é o corpo, sempre o corpo.


Quem budas come, sutras caga.

Parece que entre Tirésias e a Esfinge há uma cumplicidade narrativa. Os estragos provocados por Tirésias não são menores que os da esfinge. Ei-lo com o seu bastão-cobra, num pau que refloresce, envolvido num manto, lançando um não-olhar à esfinge acocorada num plinto ou num rochedo. O que é o enigma? Uma formulação misteriosa, diz-se. É necessário acrescentar que a resposta ao enigma é também misteriosa. A solução ao enigma é pois um novo enigma, ainda mais difícil. (Calasso) Ou um empurrar, apertar. Cadeia de enigmas sobre enigmas. Inquietação da lógica a fibrilhar. Livras-te deles dando um grito, como o mestre Zen. Ou… neófito, não há enigmas.

O enigma, sendo uma instância da língua, vem de Apolo. A esfinge é criatura solar, bem mais apolínea do que o que se pensa. Também ela, como Diónisos, vem de fora. Em Tebas quase tudo vem de fora. É como se o ermo se experimentasse numa pólis condenada ao epidémico, ao incesto e ao fracasso — de Cadmo a Diónisos. Nenhuma cidade é tão estrangeira quanto Tebas. E em nenhuma há tantos dragões e serpentes. A esfinge contém em si o grande predador que é o Leão e a mixis da sedução e do roubo. A esfinge é a figura do mito. Todo o mito é esfíngico, uma remistura. Todo o mito nos acossa: decifra-nos ou serás devorado! Ou antes, cada mito nos responde-devora mesmo que lhe respondamos. Ou ainda, o inconsciente é o mito-esfinge, para lá dos sonhos. O medo forte põe velhas a trote.


A esfinge contém o mais poderoso dos predadores, o leão, figura solar, fulva. De que cor eram as esfinges? Trata-se de uma inversão da caça? O homem volta a ser presa dos mitos, da língua, do inconsciente? E tudo isso começa na associação do sol com uma mulher, com uma mulher solar que nos caça. Sabemos que Ártemis é lunar. Mas não será também solar? Ou é um travestimento de Apolo que se faz em si mulher? É a esfinge (o esfíncter) o desdobramento de um ânus solar (na expressão de Bataille)? A esfinge contrapõe-se e completa-se no Labirinto. A Mulher-Leão e o Homem-Touro são duas instâncias mistéricas e cruzam-se constantemente connosco. São predadores na origem do sacrifício. São entradas na caverna. O corredor da caverna é o esfíncter por onde o homem penetra a terra, a Grande Deusa, para que se sonhe. Édipo poderá regressar ao ventre antes da morte? Podem os homens fecundar a terra? Ou não passam de vãos e estéreis sodomizadores que se limitam a sonhar o vagar dos desejos? O enigma parece dado para que a claridade seja total. Poderá a claridade ser total? Há um outro enigma esfíngico que parece arredar definitivamente a ideia de claridade pura: Há duas irmãs. Uma dá à luz a outra, e essa, por seu turno, dá à luz a primeira. Quem são as irmãs? A aparente resposta é a Noite e o Dia. Não te livras nunca da obscuridade porque a claridade gera a obscuridade e a obscuridade a claridade. E a claridade do enigma espalha a cegueira, e Édipo foi a cegueira que se desfez em luz. O entrelaçar dos contrários é o coração do enigmático. Também Cadmo e Harmonia se devem entrelaçar enquanto serpentes. Quiçá nem sequer houvesse perguntas específicas por parte da esfinge, como nas versões mais antigas do mito. A esfinge seria a mera possibilidade de entrar na cidade, a chave, a cifra, o sexo, o toque certo. Cocteau faz a Esfinge revelar o segredo a Édipo depois deste fazer amor com ela. A Esfinge quer livrar-se na sua vocação predadora inútil, do matar por matar, do caçar por caçar.

Limpei a luz fixa com o guardanapo, a poeira de Pã a saltar no prado empestado de papoilas.


Há um cansaço no esfíngico que vem dos tempos mais remotos. Há um cansaço no coração do sacrifício, um desleixe intersticial. Será isso a tragédia? Um orgasmo do Ser quando o sacrifício definha? Será a pertinência do Ser só possível porque o sacrifício se foi tornando inútil? Esfinge deriva-se de um verbo que vale o mesmo que apertar, porque a Esfinge com as suas questões que fazia, apertava de modo que não era possível achar-lhe saída. (Bluteau)

Diz-se que a Esfinge foi enviada por Hera e por Ares. Por Hera para santificar o casamento, por Ares porque no seio do casamento grassa a perpétua guerra entre sexos. O casamento é o contrato da absoluta disponibilidade sexual no corpo de Jocasta, da prostituição da casada em função da tirania do esposo que persiste em a sodomizar, porque um filho,


qualquer filho, é o desabar do desejo sexual, e será a morte do pai, o seu inevitável substituto. Entre Laio e Jocasta o sexo e a guerra coincidem, e Laio e Jocasta são só os emblemas da sexualidade grega. É muito provável que a Esfinge antecedesse todo o drama edipiano, e que surja como uma figura da inutilidade da inquirição, como em Duchamp: Não há soluções porque não há problemas. Ou antes — a questão é coisa da linguagem, humana, inútil. A tarefa do pensamento, um pouco como em Wittgenstein, seria desfazer os equívocos da inquirição e regressar ao silêncio anterior às linguagens e questões — regressar à imagem ou à obscuridade.

Em Colona, nas malhas do exílio, Édipo desaparece, dissolve-se como certos ascetas tibetanos, num corpo de luz. Há um caracter miraculoso nesta cena, como se finalmente o enigma do Édipo Tirano se resolvesse em dissolução, no desaparcendo no coração luzente do absoluto. É a dor que se some por fim.


Eis-nos nesta casita, nesta cabana, onde confluem tantos espaços e tantos tempos. É o coração de um contentamento que leva a inúmeras coisas; que escrutina, organiza, pensa, cataloga, baralha, se emociona. Como podíamos não morar nela? Na caverna da artephysis, na fonte da criação possível, onde não há segredos, onde por ora vamos continuar, a ver o que acontece.



belo corredor!






As Perguntas Liquidam?

( Jacques Pastiche)

A melancolia é doença de intelectuais? | É possível distinguir sentimentos falsos dos verdadeiros? | Como usar ironicamente clichês românticos? | Posso arriscar falar do que não sei? | Como descobrir a pólvora por acidente? | Está alguém dentro do armário? | A felicidade encontra-nos quando não a procuramos? | Posso voltar a confiar? | As coisas são liquidáveis? | Como nos pensam, e se pensam, os outros animais? | Porque tenho tanta sorte? | Eu sou eu ou outro qualquer? | Porque parece que o sol nasce e se põe todos os dias? | Os nomes acham coisas que lhes são adequadas? | Em que espaços se passam os sonhos? | A comida vai comer-nos? | Serei a criatura ao fundo do buraco? | É possível várias pessoas virem a ser uma só? | Quantas últimas oportunidades posso perder? | Vão-me perdoar todas as dívidas? | Porque não me param de chagar o juízo? | Porque é que as cidades se expandem caóticas? | Qual a largura máxima e comprimento do Tejo? | Temo fazer contas? | A poesia vem directamente da lua? | Falta-me algo para perder o controle? E para ganhá-lo? | Como é que as músicas se metem na cabeça? Porque não saem? | Os pais são os grandes


culpados da infelicidade? | Porque é que os planetas se seguram? | De onde vêm as intuições? | Tenho antepassados assassinos? | Qual o sabor do meu leite materno? | É melhor trabalhar que estar de papo para o ar? | Se a Terra é mãe, os outros astros são o quê? | Pode-se mumificar a inteligência? | É bom ir para a cama com muitas pessoas? | Perde-se demasiado tempo a cozinhar? | Quando é que os pais se vão embora? | Terei forças para organizar e limpar o frigorífico? | Levarei à letra o complexo de Édipo? | Viciaram-me nas redes sociais? | O meu corpo e a minha consciência são uma minúscula parte da interacção geral? | Consigo ter poder sem ser sua vítima? | Tenho um eu que sou eu ou sou um agregado de sei lá o quê? | Serei desculpável, tendo feito tudo errado? | Porque há tantas teorias da conspiração na América? | O que me tira a tesão? | Porque é que a merda do Dalai-Lama é vendida como remédio? | Aos outros é que acontece tudo? | Estarei possesso por um ou mais demónios? | A verdade vem mesmo sempre à superfície? | Andam-me a tramar? Quem? | O lado negro é bem mais interessante que a normalidade? | Porque me trocam por piores que eu? | O homem é naturalmente caçador? Ocioso? Trabalhador árduo? Burocrata? | A desmesura do Universo é assustadora? | Continuo invejoso? | Ainda quero ir pra a cama contigo? | Porquê este hálito horroroso? | Porque é que o diabo continua perverso? | Amar ou desconfiar do próximo? | É arriscado andar à boleia? | Preciso de sair para o engate? | Um mantra, ou uma fórmula mágica, pode dar cabo de alguém? | Porque é que os gurus não resistem a comer gajas? | Para onde foi a memória que não encontro? | Vale a pena meter o nariz onde se é chamado? | Conhecemonos a sério? | Estarei a flirtar sem me dar conta? | Há escolhas erradas que dão certo? | A poligamia e a poliandria são saudáveis? |Porque tenho tantas opiniões? | Quantas pessoas estão apaixonadas por mim? | Se tudo é buda, posso ser outra coisa qualquer? | O mundo conseguirá desenrascar-se sozinho quando eu morrer? | É melhor viver num subúrbio de Londres ou numa tribo da Amazónia? | O que é que Satã toma ao pequeno-almoço? | Sou o meu pior intérprete? | A dor de


corno faz-me amar mais? | É a Tirania Social espontânea? | Porque fujo a sete-pés das utopias? | A vanguarda perdeu o glamour? | Pode o Wishful Thinking fazer a revolução? | Conseguirei ser o seguidor de todas as modas? | Estarei a ficar (ainda) mais velho? | Porque é que as galáxias mais próximas são muito distantes? | É melhor ser nómada ou sedentário? | Porque é que o idealista-altruísta resvala para realistaegoísta? | Preferes andar ao sol ou à sombra? | O real quer-me demitir outra vez? | Se os outros são o meu inferno, serei eu o inferno dos outros? | As pessoas fofinhas são mais descartáveis? | Preciso de uma decoradora ou de um canalizador? | Serei filho do meu pai? | É possível que a Terra volte a ser um Paraíso? | Espelho meu, espelho meu, há alguém mais estranho do que eu? | Como comer o bolo e mantê-lo? | Dormes com ou sem cuecas? | O lobo mau está à minha espera? | Que animal virá a dominar o planeta? | Onde pus os preservativos? | Porque é que a linguagem gera tantos mal-entendidos? | Quem tem medo de mim? | É melhor ser autossuficiente ou interdependente? | Onde é que não há câmaras a vigiar-nos? | Como se sabe se é sobrenatural? | Porque não tiro os olhos da televisão? | Atraio a humilhação? | Onde está o livro de reclamações? | Faço parte de uma cambada de tarados? | Porque me justifico em vão? | Qual é o horóscopo certo para os próximos dias? | Porque me identifico com o Homer Simpson, sendo um intelectual feminista? | Porque é que Deus gosta que o louvem? | Caminha tudo para o abismo? | As intrigas das séries são adaptáveis à minha vida? | Porque se reproduzem depressa as novas patologias psicológicas? | Porque nunca me deixam ter razão? | Consegues viver com desarrumados? | Boa argumentação garante a verdade? | Porque é que ainda não me beijaste? | Porque está sempre mau tempo nos dias das minhas inaugurações? | Quantos alter-egos tenho ou posso inventar? | Vale a pena escrever autobiografias só com citações? | O que é que nesta confusão é normal ou saudável? | Quem inventou a culpa? | Os deuses são humoristas? | Querem ver-me drogado? | Cabe a verdade numa palavra, num som, numa frase, numa fórmula, num único livro? |


Conseguirei mudar de atitude? E de cidade? | E se a roupa já não combina bem? | Quanto tempo serei indispensável? | O que é que me apetece comer? | Como explicar de outra maneira? | Estão a tomar-me por parvo? | Posso gostar de escritores que foram fascistas? | Pode uma mentira salvar muitas vidas? | E se ninguém culpasse ninguém? | A fasquia da moral é demasiado alta? | A ciência anda a enganar-nos? | Porque é que as dúvidas aumentam? | Quem tem razão, Einstein ou os quânticos? | As interrogações contribuem para o progresso da humanidade? | Está na altura de dar de frosques? | Aproveito-me de ele estar bêbado? | Porque detesto ser simpático? | É possível começar tudo de novo outra vez? | Como emular génios? | Monstro ou santo? | Qual é o lado errado para o qual virar? | Porque é que os mestres humilham? | A psicanálise deveria ser gratuita? | Porque tenho vergonha de certas frases de heróis de filmes? | Como voltar a perder a inocência? | Como é que acaba a telenovela? | Estou demasiado relaxado? | As dietas fazem mal? | Porque é que não migramos como os pássaros? | Continuarei a insistir na auto-ironia? | Pode uma puta amar-me perdidamente? | Qual é o teu rosto secreto? | Para já, ou depois? | Quando é que o jantar está pronto? | Crio vários mundos de ilusão? | Estará com outro na cama? | Vivemos em mundos paralelos que parecem cruzar-se? | Como relaxar-me sem me esforçar? | Os paradoxos usam-se para tudo? | Pensamentos podem inventar realidades? | Há conspirações sem ser em código? | Quem sabe o nome de todas as estrelas visíveis a olho nu? | Há almas que contêm corpos? | Encontrarei o caminho para casa pelo cheiro? | Vou levar metáforas à letra? | Porque é que há tantas perguntas no ar? | Quem quer morrer por uma ideia ou pelo país? | Como propiciar acontecimentos? | Esforço-me o suficiente para ser famoso? | O combate com a morte faz-me mais autêntico? Ou batoteiro? | Vou continuar a fazer amor até que horas? | Como perdi os limites? Que limites? | Onde pus os óculos? | Está alguém aí atrás? | Quando é que começa a ser muito? E demasiado? | O Universo tem entranhas? Cabe numa lata de conserva?


| Como é que um país adquire personalidade? | O infinito torna tudo vazio e insignificante? | Posso divertir-me a autodestruir-me? | Ler é disparate? | Demasiada interacção faz mal a quê? | Perguntas deslocadas fazem rir? | Ser disciplinado ou selvagem? | Porque são os adolescentes parvos? | O humor serve para disfarçar o meu mau-feitio? | Os canibais são mais felizes que os veganos? | Quantos segundos sentidos podes introduzir numa conversa? | Será que a relação acabou? | Porque te ris de nervoso? | O humor é inadequação consentida? | Talvez pode ser uma escolha? | É-se mais feliz com a cabeça arrumada ou caótica? | Felicidade é evasão? | Que coisas dão um ar misterioso? | Serei o actor perfeito para papéis errados? | Querem que seja igual a eles? | Faz alguma diferença ser diferente? E indiferente? | Porque não sou fotogénico? | Consegues não me roubar os lençóis quando durmo? | O bom gosto é cruel? E o mau gosto faz mal? | Será possível desconectar da realidade. | Posso ser ocioso sem má consciência? | Antigamente é que era bom? | Tudo pode ser arte? Até quando? | É o nonsense viável? | Faz sentido continuar a fazer o que outros fazem melhor? | Porque é que desaparecem meias na máquina de lavar? | Porque é que os domingos são deprimentes?




O MELHOR DO MELHOR (a Nata da Nata) Engalanava a galada galáxia no engodo da teia. Depois de muitos anos, e doenças, em que fui incomodado pelo estado em que as artes iam mergulhando, decidi pôr de parte esse preconceito que era fonte de milhentas angústias. Estava, sem dúvida, no lado erradíssimo da história. Imaginei assim, para contrapor a esse mundo de oportunismo e cinismo, de conveniências estereotipadas, a minha versão melhorada: o Selected Art World. Poderia este projecto, quem sabe se partilhado, ser o melhor dos melhores mundos da arte? Não sei se sobre isto há muito mais para dizer… Talvez entre venenos e faunas se aproveitem obras e lastros opinativos… O importante é: mãos à obra! O Selected Art World Fiction é assim o grande projecto em que me tenho envolvido desde que me custa mais a acordar e puxar as persianas, evitando a ciática, ainda que adore a claridade matutina e o eco do trânsito na ponte diluído pelo saguão. Fico um bom tempo a acautelar fantasias, a coçar as costas, a inventar exposições virtuais. Volto a empilhar os livros que levei, antes de dormir, para cima da cama. Isso evita que pense em problemas mais sérios, como a adorável mãe que vive em Rimini e que se queixa das minhas longas estadas em Lisboa onde há demasiado turismo e atrativos sexuais (ah! as estrangeiras!). Fui assim, à custa de jazer várias horas dentro do édredon, que deparei com esta ideia de um Outro Mundo da Arte, que é constituído de obras e narrativas que se adentram, em fictiva legitimação, nelas. A sua desmesura e dinâmica supera as boas intenções dos velhos mestres de quem Obrist recolheu os ensejos.


Antes, em 2011, tentei (em acanhado?) a grande biblioteca Pandemos, resultando na criação insensata de 1.500 livros, feitos através da mistura por cut-up de outros livros, como os de Joyce e Pérec, muitos deles com um número exagerado de páginas. Quase mil capas foram concretizadas. Haverá alguém com capacidade de os imprimir e manter numa biblioteca? O que se pretende agora? Criar centenas, quiçá milhares de artistas, escritores, curadores, críticos, músicos, com produções significativas, assim como instituições (museus, fundações, galerias, etc.), publicações, documentação variada. O afamado ideal de Breton seria ser (para si?) toda a vanguarda, ou pelo menos a sua forma antológica, com pitadas de percursores. O ideal aqui é ser toda a vanguarda e pós-vanguarda, assim como as falsas retaguardas. Não apenas recolher percursores, mas inventar inverosímeis percursores e sucessores. A linhagem Duchamp, o wit, é o dever de (a)variar, livrando-se de propósitos e funcionalidades e legitimações. É um paradoxo que a obra de Duchamp sirva precisamente como motor de legitimações para um corpus cada vez mais vasto da dita cuja Arte. Perderam-se os seus inúteis jogos verbais para aceder a plataformas políticas, sociológicas, museológicas, etc. O que era do domínio do lúdico, após inúmeras peripécias, é da esfera do lucro. As suas argúcias conceptistas, perversas, algo jesuíticas, foram convertidas num complexo serialismo onde a moral marxista e protestante andam de mãos dadas. Pensamentos para co-habitar melhor as casas, para abrir as casas aos bichos e às plantas. Os animais aguentam-se nas cores das plantas. As plantas enrolam-se nas memórias dos homens. Os sonhos nascem da interacção das criaturas com essa designação supérflua que é a paisagem. O pensamento dos antigos ou dos não-ocidentais vive com os contemporâneos e com eles gosta de tomar banho (isso é o actual).


Mesmo a natureza, o mundo vegetal, observa Emanuel Coccia, é feito de policronias (o termo é nosso e designa a pluralidade de tempos no mesmo tempo) — a Natura é polícroma/polícrona. Há que traduzir a arte americana dia sim dia não. Apanhar nas antípodas frases que incandescem. Ser europeu do ponto de vista exótico de um japonês ou de um cubano (usando a ideia de Lezama Lima). Sentir o lado deslaçado, descentrado, perdido de qualquer povo do hemisfério sul, etc. Assumir que ora nos abrem os olhos (no xamanismo ameríndio, por exemplo) ora nos cegam os grandes filões culturais (China, India, Suméria, Pérsia, o mundo árabe, etc.) Convém praticar a contínua tradução, livre, auxiliada, fiel, pessoal, diagonal, ousada. A revolução permanente só é possível na multiplicação das (re)traduções permanentes. Também não há libertação sem tradução — e isso percebe-se quando lemos os canones budistas — cada misinterpretation é mais um passo num outro samadhi, num diferente nirvana, num sacana de um satori. Como tradutores somos vitalistas, dado que viver é traduzir, e entender os sinais alheios implica sempre actos de tradução — mais que a interpretação fidelíssima, as traduções são respostas orgânicas, viscerais. Não há vida sem interacção. E a interacção gera sobretudo traduções, mesmo ao nível da pré-vida, viral. O viral é o espontanear da informação. A adaptação, a que se liga a sobrevivência, é também uma espécie de adaptação nos planos de ficções que produzem o nosso comportamento animal. Voltar a Shakespeare e arder no dorso do palavreado adornado ou do chiste condensado com laivos venenosos. Quanto mais condensado mais cruel, assassino, profundo, prestigiante, etc. Todas as frases, mesmo as mais descascadas, despoletam processos seriais. Casebres de Pessoa-Llansol, mas com fungos amáveis e flechas desferidas por índios tupis.



Hamlet teve a responsabilidade de explorar o Eros Destrutivo da Melancolia, e as Pregas do Sujeito Ensimesmado. Nenhum dom é dono de si, e sobra às suas limitações. A condição do artista contemporâneo é ser poeta contra o cinismo ardente, mesmo, como a Casada do Grande Vidro com seus soltos solteirões às voltas. Cada citação promete e adia a teatralidade pop. Mas como?

(Renato Ornato in Romance Conceptista, cap. XXII)




Colhemos ficções em barbas alheias, e não deixamos crescer barbas porque somos mulheres saudáveis. As barbas possíveis são os pêlos sobre a vulva, em close-up. Os pelos púbicos são o deus da transgressão, mesmo que não tenha nome e seja passageiro. O sangue menstrual é a essência concreta e não-conceptual da arte. Não vale a pena figurá-lo. Há que tomar banho em água corrente. Fica-se com a desordem na pele. Também já curti com curadores— para poder contar histórias e desviar conteúdos. Escrevo romances sob a forma de pinturas para re-esquecer as dores passadas — sobretudo as dores de corno. Na conjugação de contrários há mais do que o equilíbrio e a fecundidade. Dá-se o regresso do paraíso à fonte. É na fonte hexagonal que os contrários se aperfeiçoam. O ouro nasce do inscrever. A alquimia da pintura é bem superior à dos metais. Na alquimia, no tantrismo, e nos domínios do esoterismo, só me interessam as imagens e não a confusão e complicação que aí vai. São essas imagens que se infiltram nos sonhos de todos, e que afinam o engodo das psicologias. Não são codificáveis. Funcionam como alavancas para que outras imagens sejam possíveis. Metaforizo as metafísicas e depois figuro as metáforas. Vou reproduzindo a imortalidade em vida, como incursão na substância que fabrica deuses. O meu trabalho aperfeiçoa o caos e o nada que o incontem. Somos misturas do mundo com anseios e anseio de mais misturas de misturas. Às vezes o mundo pede-nos imperfeições. Em resposta cozemos pães e beijamos filhos. Elsa Torino


Fiz-me artista tornando-me terapeuta e fumando charutos no intervalo dos pagamentos das consultas. É o Nirvana na Tabacaria, com chocolate, jovens artistas de estimação e justificações de algibeira. Há sempre charutos por acender, neuras à volta do cinzeiro, borbulhas na zona dorsal, e gente com dor de corno. Gosto desse jogo de passar por sábia e de sobreviver devido ao prestígio. Sou como o antropólogo que se sente um tanto ou quanto antropófago (ou tanso). Ele declara com pretensiosismo: é precisar fumar os charutos dos outros, as banhadas da alteridade. Interessa-me ajudá-los a resolver o que é o Samsara, dando passas em dunas onde já passaram formigas, humanos e camelos. A arte exige uma lentidão proporcional aos problemas que suscita. A arte é rapidez de carreira que aveluda sombras e enche de cortinas olhares retrospectivos. À medida que o universo se vai expandindo a criatividade aumenta. E a insistência também. É habitada pela voracidade. Crio indirectamente, e é frequente encontrar na pura predação soluções para trabalhos de tendência orgíaca. O real faz-se confuso sempre que especialistas por lá passam. Lucas Lucas




Agradam-me banalidades e frivolidades para requentar as obsessões metafísicas, a teologia islâmica que estudei em novo, as traduções árabes de Aristóteles, os poemas de Kabir e Ashbery. Só depois me interessaram as manchas de Vuillard, as conversas de Louise Bourgeois e as cores de Anish Kapoor (embora sejam plágio de Yves Klein). A personalidade é uma defesa contra o que cada um pensa de si. Emocionam-me as invariantes contra a espontaneidade, que no fundo é um empecilho que condicionada a vocação. Ao inventar a minha identidade surgem os equívocos da auto-estima nos quais o pensamento se entretém a processar. Mudo-me contra o que foi dado. O dado é limitador. Ernst Lubitsch é o modelo. Ao falar sou sincero como um pacóvio, ao pintar prodigo artifícios. Todos se reconhecem um pouco nesta atitude franca, sem papas na língua, parecida com as figuras dos mestres com chapéu texano do velho Oeste, de vagarosa fala nasalada. Nasci num contexto em que o importante era ganhar dinheiro e esquecer que o meu pai era um taxista paquistanês a trabalhar durante a noite toda. Tenho dois irmãos fundamentalistas que andam por guerras. Continuo a ler místicos persas e deleitar-me com miniaturas. Gosto da arte metida entre textos. Qualquer obra de arte americana comparada com as miniaturas persas é um disparte de escala, de pretensiosismo e de superficialidade. Um museu é uma má imitação de um bom livro iluminado. Que me surjam os anjos retorcidos. O Anjo é o grande mestre onde se alicerça a arte. Nada mais medíocre que o lugar-comum dos popistas e a perversa argumentação dos filhos dos conceptuais. Poetas são os que dão luz às minhas imagens. Transformam a língua materna em língua moderna, mortífera.

Dilip Rushdie


Curto cada vez mais mestres obscuros, inconscientes do seu doutrinar, que escrevem e pintam com um pincel grosso capaz de linhas finas e de alarves borrões. Existem vários mestres, todos eles hábeis em dissimular o mestre idealizado, o mestre dos mestres que se recusa ser mestre, afastando constantemente os discípulos com o seu mau-feitio, as suas imprecações e bastonadas. São incautos na arte de ocultar o oculto vindo na obra. Trabalham de modo desastrado a semear maravilhas. São prolíficos no quase anonimato. Têm momentos excepcionais de inteligência e intuição. Brilham como pérolas na obscuridade (desculpem o clichê). Nos mais antigos, a negatividade habita o mestre no modo de obscurecer e tornar incompreensível. Esses dão-me um prazer elástico ou eleático. Não consigo ver um mestre incomparável num mundo viciado em banalidades. Esse mundo é evitado ou vomitado. Há a sugestão de que quebrar tabus e barreiras é ser sofista, adestrado na lógica, no fluido lúdico da refutação. Julgo não ser o único a traçar uma genealogia apetitosa do negativo que começa em Parménides, Zenão e Górgias, que saltita nos tratados secos de Nagarjuna, que é aflorada entre os sofistas chineses e outros sábios por Tchouang-tseu e Lie-Tseu, que regressa na estética derivada do pseudo-dioníso areopagita (ou na mística renana) explodindo por fim na escandalosa obra de Pessoa. Na origem há a quebra, o refinado enigma do Não-Ser. É uma leitura difícil, esquiva como a lontra. Lê-se e pratica-se em resistência. É uma vontade de diferir, uma sabedoria com muitas faíscas demenciais.

Ferruccio Isaac



Faço obras opacas, devorantes, co-sentidas. Sou translúcida desde a medula. E polposa. As particularidades de uma obra mudam de um para outro museu. A montagem humilha-as. A maquilhagem dá-lhes graça. Denotam-se os gestos que não são do autor. Produzo peças intimistas para afastar a intimidade. A desmesura de uma peça grande senta-se num quarto e desaparece num museu. Gosto de obras de arte onde se dorme, se fode e se morre, ou nas redondezas. As obras feitas são ornamentos que propiciam pensamentos. Olhamse sem esforço e acompanham-nas nas alegrias, nas tristezas e na degradação. Hoje criam-se obras para museus, para a não-existência, para a contemplação, de passagem, com a história às cavalitas. A urgência de determinadas pinturas, como as de Van Gogh, deu lugar à circunstância de ilustrar uma teoria, ou venerar um período. Gosto do lado caprichoso, de puro divertimento, sem altivez ou degradação. O ridículo do masculino é acrescentar promessas à existência. Assim julgo que mudarei o riso ao mundo. O riso é o mundo. É esta a minha revolução, a que se desvia da crueldade e do intelecto, tão idênticos, filhos de Kant e Gengis Khan.

Levina Castro


O monstro deleitava-se com a espessura das suas vertigens. Queria armadilhas e coisas nas trevas. Fiquei tão aterrado com a ideia de imortalidade pessoal que fechei à chave todas as portas da casa e me enfiei logo em lençóis a tremer. Há um halo enganoso e retórico, balofo, nessa imortalidade de pseudo-eleitos. Aprendi a lidar com isso lendo Burroughs. Com outros a imortalidade é o entrar em deleite num sofá com a hipótese de uma posteridade fecunda — devaneio de dandy vitoriano entalado num empregado de escritório saído de Kafka. O roupão de seda foi substituído pelo nó da gravata. Desde muito novo comecei a mergulhar na melancolia do engodo, no prazer de preparar o suicídio em cadernos pequenos, pautados, onde pontuam recordações da infância na Suíça com vacas inclinadas nos sopés dos alpes e empregadas de hotel mamalhudas que me piscavam o olho. O homem é o facto de nos deixarmos enganar por termos venenosos como arte, intensidade, beleza, merda. Rony Horny


Uns gostam disto como ignoto, outros como atabalhoado, outros ainda como desolado. Tudo junto parece triste, ainda que no fundo seja jubilante se filmado em technicolor por um tipo mesmo bom. Levo-te comigo para me arrepender inúmeras vezes. Já descalcei uma bota. Irei descalçar a outra. Traí todos os que amei e amei todos os que traí — homens, mulheres, cães e gatos. Corri persianas ante telefonemas violentos. Gritei muito para ser feliz. Gosto de uma boa discussão depois de um jantar que esfriou depressa e de escavacar dizendo obscenidades. Continuo a amar o que abandono e como queijo, para esquecer mais e melhor. Os outros são armadilhas com minúcias. A quantidade aguça o gosto. Várias vezes aperfeiçoa. Se o génio é inadequação dêem-nos ratos como pretexto para matar Polónios.

Roberto Ponti







uf!




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