A ARTE DO INACABAMENTO
(notas)
Nunca foi um assunto novo, e tem sofrido transformações teóricas… as ruínas em Propércio, os hexagramas do I Ching, o caos em LaoTsé, Tchoung-Tseu e Heraclito, o sentimento de fugacidade e imper manência budista que contagiaram a estética chinesa e nipónica, nos poemas, na caligrafia e na pintura. Ou até, na Índia, o Eterno Retorno, com a sensação de incomeço e inacabamento, de que tudo está sempre a recomeçar e a degradar-se e a desaparecer, a várias velocidades e ritmos — não verdadeiramente um fim cósmico, por exemplo, como no Apocalipse — neste círculo recorrente já muita coisa re-começou antes e depois de re-acabar.
Refiram-se ainda os aforismos moralistas no barroco — época de elisão e de elipses, de dísticos e poemas epigramáticos — em especial os de La Rochefoucauld.
Caíram-me alguns textos em mãos e aqui vão as reflexões. Começo pela ideia de que Duchamp nos convenceu quanto à pertinência do defitivamente inacabado, do aceitar o inacabamento e as partidas que a desdita faz — mascaradas de acaso, claro! Duchamp também acei ta os acréscimos de sentido como destino entrópico-negentrópico: ao mesmo tempo desfiguração do sentido ou do não-sentido das
obras, e adição polémica. Na continuidade da estética da recepção as obras tornam-se em parte ficções de fricções de interpretações ficcionadas. A obra de Duchamp é obra potencial (já o sabiam os do Oulipo): nas suas notas, nas suas caixinhas, com papelada rabiscada (as boîtes verde, branca, etc.). Rivalizam com as notas de Duchamp os inúmeros impublicados em publicação, como Nietszche, Witt genstein, Pessoa, Pérec, Llansol. Ou as peças inacabadas de Mozart (que ninguém toca).
No domínio do inacabado saiu, já há algum tempo, o curioso livro do poeta Henri Lefebvre, Les Unités Perdues, um texto na linha do conceptual writting, onde são enumeradas, aos magotes, obras ina cabadas, destruídas, desaparecidas, intencionadas — uma espécie de poética que coloca questões quanto ao que é potencilidade e dis sipação, o what might have been com o que já se foi. São obras que podemos poeticamente imaginar, sentir o impacto do desastre, hu mano, tecnológico, natural, assim como a propensão dos criadores para destruir obras, como quem não quer a coisa.
A arte está condenada aos efeitos da sua eventualidade: à desa gregação, aos lapsos, rasuras, definhar do sentido, etc. — a nossa mentalidade encontra prazer nas edições críticas, por exemplo, dos textos sumérios, ou dos poemas de Safo. O aparato crítico tem um ar esotérico de poema visual incompreensível, e é extraordinário apercebermo-nos de que os textos querem ter variantes e estão per manentemente a ser re-escritos, substituídos, apagados. Habita-os o indecidível, assim como a insatisfação. Envergonham-se, procuram
mais força, crescem e minguam. Há dois tipos de autor que revêm os textos (além dos que não os revêm): os preocupados em encon trar a força na condensação e na elisão, e os que consideram que os textos ainda estão numa fase de crescimento, pois querem ocupar mais espaço e ter ramificações, arborescências, folhagens. Não é raro ver ambos os processos combinarem-se. O inacabado é parte do metamórfico, como tudo no mundo — nada na natureza é acabado, e se o parece, um dia deixará de o ser, como as casas a erguerem-se e a sumirem de que fala Eliot nos Quatro Quartetos.
A descontinuidade é alusiva. Pound e os dadaístas perceberam que a colagem provoca a euforia que designa por portas travessas. A teoria da montagem modernista justifica-se como propensão para dizer indirectamente, no esplendor da imagem, imitando a técnica con trastante dos haikai, coisa que é ensinada nas escolas de cinema (não podemos separar Pound de Eisenstein). Com o Open Field poético de Charles Olson, surgiu a ideia de que a poesia se quer expandir para além do mero efeito de montagem até abraçar o que não é cla ro, a própria abertura, o espaço poético, ou o arejamento da página. A montagem faz-se espaço e o poema alude-se a si mesmo e aos es paços que cria. John Cage leva o poema à desagregação final, como os letristas, mas dá-lhe ainda mais espaço, silêncios, e polvilha-o de imagens. A leitura passa a ser uma experiência mais sensorial do que interpretativa. O leitor apercebe-se do seu papel performativo. Ler já não é uma mera recepção passiva. O que era passividade fez-se performativo — ler, mais do que reproduzir hipotéticos sentidos numa mera intertextualidade, produz sensações efectivas derivadas
da pura percepção que se propagam na vida. O texto é, assim, um lugar interactivo, uma leitura passeada, intimamente recitada e in teragida. Vila-Matas, por seu turno, escreveu um breve ensaio chamado, A Arte de Nunca Acabar. Nele refere que o Talmude não possui as pri meiras páginas; que os aforismos de Lichtemberg estão destituídos de acabamento, sem pontos finais, sem destinatários; que os finais elípticos dos contos de Bolaño nos deixam no terreno da potencia lidade (o inacabado potência mais que o acabado porque não fecha); etc. Se inacabar é quase uma fatalidade, começar é parte do inacaba mento, é a sua antecipação, vindo em euforia ou em angústia da página branca. Num ensaio sobre a poeta Szymborska, Ricardo Gil Soeiro mostra o carácter físico (tacteante) e continuador de cada começo (embora nem sempre saibamos o que estamos a continuar): “Porque começar é interromper o devir, assumamos a exacerbação da palavra-encantamento, procurando auscultar a respiração contí nua do mundo.” Começar é inacabar ao contrário, é arranjar modos de continuar decisivamente, nem que seja à força. Daí o caldo exis tencialista, desde Kierkegaard, com o tal achamento/busca/dramatização da decisão, ética ou não. Ou o avançar não sabendo, numa espécie de docta ignorantia processual, como no Otto & Mezzo, do Fellini. A verdade é que a consciência criativa precisa de crescer: luta por ocupar mais espaço seu, e confunde isso com um começo, quando há toda uma exercitação que o antecede, ou gerações de
gerações que contribuiram para isso. Neste re-começar os inacabamentos pode-se fingir o Novo, e aí alicerçar a ilusão de contempo raneidade. Continua-se às próprias custas com a sensação simplificada de que para nada serve, mesmo que sirva não se sabe bem para quê — suplemento de afecto, momento de veneração, exercitação da inteligência, etc.
O pintor Kitaj, no seu Segundo Manifesto Diasporista, e em boa parte da sua pintura tardia, faz a apologia do inacabamento. Cita, a pro pósito, Bonnard, que continuava a dar pinceladas já com as obras em mãos alheias. Seria uma característica do pensamento da diáspora este ir-se perpetuamente inacabando, pincelando descontinuamente ao sabor do envelhecimento? O modelo heróico de Kitaj é Kafka, e os paradoxos enunciados por Borges, no ensaio Kafka e os seus per cursores. Também a ideia de Análise Interminável, de Freud, é aqui importante. Expandindo-a constatamos que a terapia produz cada vez mais inacabamento, assim como a sensação de que tudo é interminável e inacabado, tal como o estudo nos taoístas (todo o estudo é interminável, escreveu Lao-Tsé). O trabalho sobre si é infindo, e a produção da obra e suas metástases é incessante. Daqui deriva uma angústia quanto à condição embrionária do sentido e a dificuldade de lidar com ele: o sentido é uma catástrofe invisível que se tece entre o fremir dos inacabamentos.
Gostaria de falar também do expurgo. Herberto ou o Joaquim Ma nuel Magalhães, depois de publicados uma série de livros, renegaram alguns e amputaram-nos do “direito” a lermos certos poemas. Dos
que sobraram, muitos foram revistos e alterados e transformados em textos completamente diferentes. A prática é horaciana. Para que a obra resista, há que livrá-la das variantes, da inércia, da mácula artística que lhe tolda a força. O caixote do lixo enche-se para que o ostinato rigor seja possível. A durabilidade de uma obra-vida depen de precisamente do tê-la como invariável, o tal texto definitivo? Na prática de depuração há a sensação de que a maioria tem que sumir e que o poema se faz quase poeira, ou uma radiação, resto esparso de matéria outrora moldável, espessa, pesada e pegajosa.
Tudo começa na escola eleática — primeiro na interface entre o Ser e a opinião-aparência; depois na introdução do infinito nas aproximações dos vários paradoxos de Zenão; e por fim na incomunicabilidade quer do ser, quer do não-ser em Górgias, assim como a potenciação do não-ser através do acto de pensar (o pensar o impensável).
Também Deus se comunica por fragmentos, sendo, por exemplo, o Alcorão uma colecta de textos que desdenham o todo — uma soma de fulgurações. E há a Bíblia, onde prima a montagem ou a interpo lação. E se a interpolação for inspirada? Pergunta Pessoa. Indícios da voz de Deus multiplicada. Fragmentos encastrados em fragmentos no palimpsesto demencial com que se fabrica o mundo enlaçado no divino. Acresce a sensação que temos dos chamados pré-Socráticos, como um corpo de fragmentos que fazem apelo ao fragmentário, sobretu
do em Heraclito. A exponenciação do fragmentário como estética deve muito a esses gregos, através da famosa edição oitocentista de Diels-Kranz, ainda hoje referência. É só em Heraclito que o fragmentário parece fazer sentido como designação de um apelo da grande potência, designando-a como Logos, ou Zeus.
O fragmento instalou-se no mundo antigo pelo hábito da citação, via compêndios greco-romanos e medievais: punhados de saber sabiamente colhidos para instrução e não perder tempo. Os compên dios não abarcam tudo. São o estado possível do coleccionismo de saberes, a arrumação de curiosidades recolhidas aqui e acolá.
Depois há autores como Barthes, Quignard, Jabés e Canetti, e a mania aforística, também de artistas e poetas (Picasso, Braque, Cocteau, Picabia). E as perguntas de Byars, e os aforismos de Ian Hamilton Finlay. Ou o work in progress do Finnegans Wake (outro livro definitivamente inacabado).
A euforia criativa de Pessoa traduziu-se numa disforia do pathos dos seus escritos. A pulsão criativa, a curiosidade (a vontade de influên cia), a inconstância das opiniões, o prazer de se auto-refutar, a ideia de multiplicidade e de diversificação, o desalento, ou ainda o famoso homem de Porlock, o fatídico interruptor, teorizado por Pessoa. Sa bemos hoje que o homem de Porlock talvez não tenha existido, e que a “interrupção” por ele provocada é um mito como outros mitos de Coleridge, como a flor colhida no inferno. Isto é, o tal poema nunca foi sonhado. Pessoa sugere que há um desejo latente de ser
interrompido, que não é o dar lugar a que se possa descansar, a que outras coisas tenham direito a emergir, a ser interruptoras, sabendo que mais tarde também serão interrompidas. A edição da sua obra tropeça com o excesso dessas emergências. Muitas vezes, o que foi editado como poema são vários poemas. É o caso, julgo, do poema de Campos, O ter deveres prolixa coisa em que os últimos dois versos me parecem outro poema, ou um início, depois do enfático final: Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile!.... O que se segue é: Tenho desejo forte, /E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.
É nesse desejo forte a substanciar-se que o fragmento faz a passa gem, isto é, encontra um caminho para que o desejo se transforme em mundo e o mundo em ainda mais desejo.
Da procissão ao salon, do Museu às redes sociais, a expansão dos dispositi vos de exposição da arte sofreram uma mutação que se traduz na inflação curatorial. O lugar é a sua duplicação e os seus múltiplos. A experiência expositiva é confronto, presença, documentação e difusão. As inocências, tendo sido já há algumas décadas perdidas, cederam o lugar ao mal-estar e ao cinismo. A reconversão de todas as resistências da arte (às institu ições, ao mercado e à museologia) naquilo que precisamente a negavam, tem vindo a demonstrar a impotência e o triunfo paradoxal do filão futurista. A utopia da articulação da arte com a vida e o mundo é concreta e vertiginosa. A arte tem sido nas últimas décadas essa confusão, esse mix de ironia, sublime, banalidade e alegria que nos dá o frisson ou nos leva a abanar a cabeça. O artista oscila entre cumprir as regras do jogo e a vontade de reaver a inocência. O dilema já ocupava Duchamp. Art must go underground — há que continuar a fazê-la na clandestinidade, na privacidade. Tendo a arte, devido ao seu caracter voraz e expansivo, aparentemente perdido o locus disciplinar das beaux-arts, ao misturar-se com a parafrenália de disciplinas (estas são por vezes condescendentes), mantem uma ligação embrionária com a pintura, a escultura e o desenho, e todo o legado que vem desde “as grutas”. No essencial a arte é o fenóneno de haver públicos, sejam quais forem. Com o advento das redes sociais já não podemos chamar Sociedade do Espetáculo à canalização das massas. O pendor hipnótico e de alienação no uso das telecomunicações convive e alimenta o carácter viral do espectacular, que se tornou somático e em parte interactivo. Nós já não estamos mesmo aqui nem agora, e o espaçotempo não é o que pensavamos.
¿Por qué nos inquieta que el mapa esté incluso en el mapa y las mil y una noches en el libro de Las Mil y Una Noches? ¿Por qué nos inquieta que Don Quijote sea lector del Quijote y Hamlet espectador de Hamlet? Creo haber dado con la causa: tales inversiones sugieren que si los caracteres de una ficción puedem ser lectores o espectadores, nosostros, sus lec tores o espectadores, podemos ser ficticios. En 1833, Carlyle observó que la história universal es un infinito libro sagrado que todos los hombres escriben y leen y tratan de entender, y en el que también los escriben. (Borges, Otras Inquisiciones)