ARTE POLVERA
Antologia de Textos de Artistas
PIETRO SALATO
Preguei o infinito na minha sombra. Agora as cinzas do vulcão obscurecem-no, e caminho com o infinito agarrado a ela, ora à frente, ora atrás, ora ao lado, mas nunca sobre mim.
Transformei a energia em informação, e a informação em balbuciamento. Transformei o balbuciamento em contrainformação. Trago o mundo às costas, como Atlas.
Quero manter as coisas em aberto, embora me dê vontade de as partir com um martelo. Nada vive em minha função.
As grandes pedras da infância, que se acumulam sobre a casa dos avós, são deuses. Agora incomoda-as as tecnologias.
Um cubo que telecomunica.
Mostro a torsão das coisas, e de com o isso é heróico.
Escavo num objecto para que pareça ferido. Quero atrair a tua cumplicidade lírica. Para isso tu tens que te tornar também poeta e artista.
A palma da mão, que é o assunto da minha obra, é onde te ofereço a intimidade. Vou escrever tudo na palma da minha mão. Todos os meus poemas apertarão a mão aos teus poemas. (imagens de duas mãos com poemas a apertarem-se uma à outra)
O importante numa escultura não é sentir a sua gravidade, mas entender o seu umbigo. Há esculturas grávidas de outras esculturas.
Dedos enlaçados, sempre dedos enlaçados.
Que esculturas se podem fazer com beijos?
Esculturas que se possam abraçar, que transmitam coisas maravilhosas, mesmo que lá não esteja.
Milhões de anos levam a isto e não faz sentido.
Quero desenhar ou pintar no teu corpo o pêlo dos animais pré-históricos — é uma memória provisória. Depois podes tomar banho.
Nessa era não davas conta das imagens. Havia poucas coisas em que reparavas — casas, pedras, cadeiras, bilhas, mesas, facas.
Colocavas batatas no chão, amontoadas, formando um coração, ou uma espécie de sexo feminino.
FRANCESCO TEDESCOPassei a pôr tudo no chão, à espera que os ratos aparecessem.
Faço cópias transparentes de um tempo opaco.
Traduzi a natureza em tapetes persas.
A arte é um erro mimético. Mas não é à prova de bala.
Cegar cuspir ensurdecer fungar gritar.
Sigo o lema do poeta português — pensar é não sentir. Sinto se me dói. Sinto quando cheira mal — o lixo ou o mau hálito. O cheiro é o que mais entra no corpo. O diabo entra-nos no corpo pelo cheiro e sai pela boca. Sentir pode impedir o pensar.
Mil rios para afogar o planeta.
ROBERTO PONTI
hoje cicatrizamos entre o vago do mutável e a precisão do momento
Comecei por fazer, como tantos outros, performances com o meu cão. Eu ladrava, nu, a quatro patas, no chão de galerias, e roía ossos e mordia amigavel mente outros artistas. Expus-me nu com o meu cão numa cama, num mês de Verão. À noite vestia-me e voltava para casa.
Deixei a fase ridícula e passei a pintar. Voltei à pintura em que nunca esti ve. Pintava de roupão. Comia sanduíches de presunto. Bebia champanhe. Chamei-lhes pinturas espumantes.
Pintar é um prazer que partilho com amigos imaginários.
Amor, tonsura, veneração.
Comecei a expor, junto a riachos, filósofos imaginários. Escrevia na areia, nos paus e nas pedras os seus diálogos.
Pintei aforismos de santos heréticos em bocados de cortiça que depois atirava ao rio.
Escrevi concertos para contrabaixo e cigarras.
Estou cansado de pintar e não sei o que fazer de diferente.
ULISSE GIOSTRA
Durante algum tempo, expus estátuas clássicas com cestos de basquete e cestos de verga. No Olimpo os deuses devem gostar de jogar basquete. Tenho uma boa explicação para os cestos de verga.
A arte é o que parte os espelhos da consciência. Começa a parti-los antes da consciência.
Expus o Eterno Retorno num carrocel bastante deprimente, numa tarde de Novembro, nebulosa e fria, junto a uma ravina a dar para o Adriático. Estava lá muita gente. Acabamos a comer frango grelhado e a beber bom vinho.
O artista pode chegar ao outro, mas é por um caminho que contorna as inten ções. As intenções não passam de publicidade.
Considero-me um anti-nacionalista, mas não sou nómada, regionalista, internacionalista — repugna-me visceralmente a ideia de Pátria, não a terra que habito.
GIORGIO LECCESE
Sabendo que Safo e camionistas não combinam contrarei-me e expus calendários com pin-ups e poemas de Safo patrocinadoo por uma marca de pneus.
Recordo as gravuras de Tiepolo e as nádegas de Boucher, como se estivessem sempre juntas e ao vivo. Fiz obras de arte com ambas.
As minhas cores favoritas são o rosa Tiepolo e o verde Veronese. Não acho que combinem bem, mesmo sendo ambas cores venezianas.
Recordo-me de um convento abandonado em S. João de Tarouca, e da esplên dida igreja da Flor da Rosa, em Portugal.
Recordo-me do Tesouro dos Atenienses, em Delfos.
Recordo-me do monte Atos antes de andarem a restaurar aquilo.
Recordo-me de Goa nos anos 80, cheia de hippies perdidos em droga e matilhas de cães famintos uivando junto ao mar.
Recordo-me de crepúsculos em Ferrara iguais aos quadros do Chirico depois de beber amareto.
Recordo-me da Galeria Farnese numa tarde de Julho em que subornei funcionários franceses para lá entrar.
Recordo-me de ao ouvir o Socrates de Satie escutar também o rio Ilissus e de vislumbrar, de repente, uns arredores que me aliviavam de viver numa Atenas ruidosa de outrora.
Recordo-me do forno em que Heraclito, algures na Ásia Menor, disse: os deuses aqui estão presentes.
Recordo-me do azul de Mondrian, junto ao azul de Vermeer, por mais banal que seja.
Sei que a as antiguidades gostam de vir ter comigo.
MARIO MORETTO
Uma arte que nasce dos números, que emerge a partir do caule dos números, nunca é obsoleta.
Tento incluir nos meus trabalhos a beleza da natureza como coisa agressiva, incómoda, guerreira, mas evito o sublime. O sublime desvia os olhos da natu reza para o espírito. É como o pitoresco inglês, mas em versão hard-core, alemã.
Não me limito a invocar o carácter destruidor do natural. Penso na arte como o que lhe faz frente. A arte não é nem natural, nem o oposto da natureza — é enfrentamento. A arte procura o divino e a eternidade como desvio ao carácter metamórfico e agressivo da natureza.
Exponho objectos doces rodeados de destroços naturais — árvores de grande porte abatidas por catástrofes naturais.
Acho que quase todos pensam de modo semelhante e fazem coisas semelhantes, como, por exemplo, dormir numa cama e lavar os dentes. O pluralismo é uma farsa.
A geometria é a melhor maneira de entender o natural, como se sabe desde Pitágoras e Leonardo. Não é preciso vê-lo ou constatá-lo, basta sabê-lo ou intuí-lo. Sempre que olho uma paisagem, vejo-lhes os números em força. É o número que procede a presença do natural.
Tenho utilizado para conceber obras de arte séries numéricas que são o negativo de outras séries numéricas. Por exemplo, uso a série de não-Fibonacci, inventada por Edoardo Provenzale — 4, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 14, 15, etc.
Tempo roubado aos abismos primevos.
A arquitectura não foi feita para habitar, mas para estar à porta, na soleira. O interior só serve para se proteger das catástrofes e dormir, regressar ao grande útero da terra onde moram todos os sonhos.
Tenho vindo a entornar o meu grande sono sobre a história de Arte. Agora deve estar a roncar.
FIAMETTA LUDOVICE
os objectos abandonados na lixeira recordam-me sempre mulheres que alguém abandonou identifico-me com todo o abandono e com a beleza feroz da tristeza — se não me abandonarem não me sinto no meu elemento tenho dado o meu amor todo, e ponho-o nas obras de arte dentro do possível — também as obras de arte que faço, mais cedo ou mais tarde, me abandonam só a ideia de abandono não me abandona — o que de um ponto de vista exterior me torna totalmente livre e só as cores abandonam-me a cada dia depois do crepúsculo — fico em casa com as luzes apagadas ao passear na areia molhada as minhas pegadas mostram que até partes de mim me abandonam, e quando as pegadas desaparecem, por fim, dou-me conta de que nenhuma arte veio para ficar cubro-me com roupas de luto como quem se desnuda, porque mostrar a morte é hoje obscena e nua expus numa galeria seis mulheres de luto, muito velhas, sentadas num banco, que comentavam cochichando cada pessoa que lá entrava li um livro da Clémence Ramnoux, sobre os filhos da Noite — agradam-me essas figuras terríveis que as cidades fingem ignorar — quero mostrar a inquietação as Euménides povoam as grandes cidades
ALBERTO PAVESE
Tiro labirintos da cartola do coelho. Tiro a ocultação da natureza da cartola.
Gosto de assistir ao nascimento da perspectiva a partir de um ponto. É sempre uma epifania.
Devíamos estar cientes de que a perspectiva potencia o infinito e faz ver melhor as coisas.
Comecei por fazer citações. Depois fiz palimpsestos. Agora mostro coisas que estão praticamente apagadas — irradiações do que já lá esteve. A hipótese da citação ter acampado.
A elisão é sinónimo de libertação. Para nos libertarmos, é preferível já termos experimentado.
Durante muitos anos, tive a cabeça cheia de coisas. Agora vou esvaziando-as como quem se clarifica. Quando penso nisso mudo mentalmente de sexo e sou uma mulher muito serena e doce.
A filosofia árabe, na sua diversidade e contendas, desagua na minha obra. E digo desagua como acerto. É o encaminhamento das águas que ela procura. Não imagino, por exemplo, Averróis, sem uma corda a içar um balde de um poço para a verter numa bilha. Também me vejo (é um autorretrato) como alguém que passa a vida a içar água de um poço.
Durante anos, tentei aplicar as ideias de Mallarmé ao meu trabalho, sem que os meus conflitos fossem brancos ou unânimes. Falhei nesse interesse?
Ícaro encontrou-se com o labirinto do mar.
Fabricar falsas confidências, como nos romances do século XVIII.
Gosto da palavra dialéctica, porque é muito semelhante à palavra dialeto.
Procuro familiarizar-me com as obras menos conhecidas de grandes artistas para criar um museu na minha consciência, um museu que não posso mostrar a ninguém, mas que existe cá, em mim, no meu corpo, exacto, maravilhoso.
GINO ERMINI
Uma arte que se quer combate político deve, justamente, mostrar os mecanis mos de combate político, e ir mesmo à luta, sem medo, sem esteticismos. Onde podemos começar? O que é que ainda não está domesticado ou minado?
Numa Itália neo-fascista é preciso algo bem mais eficaz e intiligente que a brincadeira de meninos que foram as Brigate Rosse.
O fascismo enraizou-se na tecnologia. O tecnofascismo espalha-se, e Deus não é alheio a isso.
O paradoxo da globalização é que estamos todos conectados pela internet e tememos estar a face a face com o supostamente outro, quando na verdade já não há o Outro — nem nunca fomos todos tão parecidos.
O meu trabalho tem consistido em inventar slogans revolucionários que pos sam ser aplicados a todo o tipo de coisas — das redes sociais a revestimentos de rebuçados. São minhas as frases que hão de tornar possível a revolução. (nota: reescrever em mais eficaz os slogans de Maio 68)
DOMENICA RUBINI
A folhagem de O utono, o avermelhar-se da vida, como se tudo já tivesse conhecido o fogo.
Tenho como base do meu trabalho a mulher em brasa — de Kali à Grande Prostituta da Babilónia.
Expus um tapete de Púrpura e afiei a faca.
Rubedo é a última fase da alquimia — é neste estado adiantado e difícil que me tenho concentrado. Nele todos os opostos se unem. Na minha alquimia o aces so ao rubedo é directo e espontâneo. Isso é a arte. Um cântaro do qual sai fogo.