MONÓLOGO DAS SOMBRAS
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PIERRE DELALANDE
© P IERRE D ELALANDE 2019 © W AF B OOKS 2019
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G RANDE M ONÓLOGO ENTRE AS
S OMBRAS REDOBLES
& MODULAÇÕES P I E R R E
D E L A L A N D E
WAF BOOKS
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O trabalho de autobiografia é o de conjurar o que temos evitado. Somos sombras de quem não somos. Todos somos sofistas. (Fernando Pessoa) A tua alma é um pandemónio meu.
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Fui a cabeça que quis herdar dos vários vivos alguma sabedoria viva, alguma sabedoria insensata e insultuosa, serôdia e luminosa. Partilhei com os outros essa insensatez, mas não a documentei nem arquivei como fazem os historiadores e os artistas. Podes fazer isso por mim ou vais só ficar a escutar-me com a capa do livro a recolher o suor das mãos? Fiquei com a cabeça na mão que contemplava a minha mortalidade a partilhar com a tua ainda mais cônscia mortalidade. E tu, partilhas os outros e a mortalidade só contigo ou és generoso ao deus dará? Eu dou-me sabotando-me e saboto-me dando. Os outros trazem as minhas sobras às suas costas ou nos seus braços peludos? Sou nos outros esse riso de desfeitas e de carantonhas, de coisas baixas e de sublime desastrado. O riso vai-se só contigo? O riso vai-se como igualdade, crua, com a dentadura entre as pernas, ridícula, com vontade de morder nádegas e coxas. O riso some-se como igualdade a desigualar-se a fazer figas. Ando a desigualar-nos na igualdade em ti que me lês com pressa. Desigualar os outros sou eu a escorregar por ti abaixo. Ao ser 7
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outros, sou eu e não sou lá muito bem eu. Sou a caricatura imperdoável do que não me julgo ser. Sou um pequenoburguês que conduz a alta velocidade o túmulo ao corpo. Sou o devorado pelo mundo devorando as cabeças do mundo. Sou o túmulo mascarado de corpo? Nada disso, nada de túmulos, só corpo, em pele, carne, cheiro, pelos, secreções. Isto é a apresentação possível do passável. Ainda não é um falhanço. É uma coisa ao lado dos falhanços, uma velha bola um pouco vazia que já não apetece pontapear. Cá vai o pontapé que ignora a baliza. Só golos ao lado, chochos, machucados. É um gesto natural, mesmo que haja balizas na natureza, essa natureza que joga os dados que a jogam. A natureza é justa castigando (como dizia, julgo que, Anaximandro)? A natureza é justa sendo injusta? A natureza é alheia à injustiça? A sua crueldade é involuntária? Tanto melhor, pois acende o instinto, esse nosso negro amigo obscuro. Fui acendendo o instinto nas coisas silvestres, no desenrasca-me aí isso. Há algo de silvestre, espinhoso, à margem da modernidade. Sou moderno por acidente, sem ter que ter sequer vontade ou direitos. Há que ser moderno dizia o outro, atarefado, de modo nenhum, ao contrário palmas. Ser moderno quiçá, mas num anfiteatro psíquico cheio 8
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de curiosidades antigas e muita coisa silvestre. Há que ser antiquadamente muito moderno. Há que antecipar o moderno, e a vanguarda até (que saudades!), antes dele vir ter connosco ao lar de terceira idade com os minutos felizmente contados. E prometo-vos, vou-me safar, garanto-vos que me vou safar e não demoro que já está na hora!
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Cultivo o verbo ser no sentido distraído de parecer,
no sentido de voltar a aparecer e possivelmente de um dia vir a desaparecer. Cultivo esse verbo com que embirro e que não me larga com as suas variadas superstições e histerias, a sua história cabotina e as contendas picuinhas. Perco-me nos bluffs do verbo ser mas não o deslargo dos meus dentes com necroses dolorosas. Mordo-o com muita força. Estou possesso dele. Perco sempre para me manter aberto mentalmente, para imediatamente devorar certas metáforas encavalitadas em autênticas metáforas, de forma que faço um museu do museu do que visto, da minha roupa velha de artista atado, impreparado sempre para qualquer estação, com as mãos descaídas a largar o roupão. Não há ninguém mais impreparado do que eu, nem sequer tu. O resto das pessoas é que têm sempre razão mesmo quando esgrimem os piores argumentos. Eu esgrimo os que acho melhores mas acabo a apaziguar e a pedir desculpa, e a colocar mais pregos ferrugentos na minha crucificação. A impreparação é a minha habilidade, as minhas tentativas, o meu sucesso prematuro. 10
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Certos exemplos velhos ficaram impreparados para sempre? Certos exemplos aguardam pelas pessoas certas que aguardam por pessoas ditas afectivas muitos e longos anos em jogos de jogos de linguagem a incendiarem a linguagem, a incendiarem divãs, num impossível cheio de divãs, num impossível que facilita muitas tarefas aos que predispõem ao que predispõe ao calhas, como o tal fetichismo, aquilo e aqueloutro que eu sei do fetichismo, pois sei que aguça a indisponibilidade para uma longa intimidade depois de uma já longa amizade bafienta, depois de todas as surpresas em que desfaço indisciplinas ou surpresas, logo eu que não desfaço indisciplinas mas que me refaço indisciplinadamente. Recuo perante algo e refaço-me indisciplinadamente? Recuo perante uma sintaxe demasiado sintáctica, algo patega na imprecisão ortográfica, e isso deve-se à intensidade que se deve à possibilidade de intensidade do pensamento — visto-me de coisa-e-tal pensamento, visto-me de apocalipses para desnudar apocalipses, para desnudar os deuses e as frases dos deuses nos mitos e as frases de um imbecil muito imbecil com que me confundo — frases que assentam mais na realidade e na poesia que adia a realidade do que num real do qual possa ser assertivo — a poesia adia 11
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não só as respostas como finta as respostas, como finta as perguntas — perguntas às perguntas, perguntas que servem para agravar o agravamento de qualquer solução hipotética. Desfaço-me de qualquer solução hipotética e desfaço-me da memória para a memória a poder celebrar — calo-me para poder celebrar. Calo-me para manter a raiva (ou a falta dela) viva a aguentar-se intensa à flor da pele, com o meu sorriso rapado, dado que o meu sorriso sem barba me tem causado, olá se tem causado, inúmeros problemas. Se fosse com barba seria mais respeitoso, embora adúltero. Porque é que os problemas chegam? Porque é que a felicidade ou a serenidade incomodam? A serenidade incomoda? Os mundos experimentam-me sempre, os mundos experimentam-me aos poucos com os sonhos e mudam-me a pouco e pouco os sonhos e mudam-me na arte da arte de sonhar hipóteses para tornar a sonhar carradas de hipóteses para tornar as ficções mais ficções e mais plausíveis com o melhor criticismo plausível, que o melhor criticismo é o suicídio e o suicídio do crítico anda-nos a comprar em segunda-mão. Confundes o gosto que se confunde com o gosto do sagrado? Beurrrk! 12
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Comi teorias impraticáveis. Tenho teorias impraticá-
veis como sobras sobre a mesa onde também jaz um resto de caviar com varejeiras. Tenho um Deus cada vez mais políptico na minha mente ou concretamente à minha frente, inteligente e espectral, pintado, emparedado num plano de ilusões em vários painéis. Agarro nos seus ossos e sei que não tenho como devorá-los, logo eu que sou um gajo cínico. São duros, bem duros e divinos. São divinamente duros. Seria melhor fazer com eles um caldo, um horrível caldo revigorante e desagradável ao palato. Pratico-me cada vez mais políptico. Pratico um poli-ateísmo polposo, uma empastada fézada materialista. É a empada ou o empadão onde deposito a minha pouca confiança no real. Dizem que eu não passo de um talvez, de uma ténue possibilidade de me vir a ser qualquer coisa de completamente diferente e dá-me para concordar num encolher de ombros fácil. E eu achome uma soma de talvezes nesta confusão que luta numa maior confusão que luta com a paciência, essa triste pachorra dos inconformados, esse remanescer dos reformados. A 13
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perfeição convida a uma perfeição que convida a mais dúvidas, a irrecusáveis dúvidas com os correspondentes tormentos. Expus mais dúvidas, demasiadas interrogações ao cair dos panos. Expus emergências de um ponto de vista dramático e egocêntrico, e todos se reconheceram em mim. Abotoei as emergências e fui para casa com as botas enlameadas de uma data de coisas que estavam a surgir do chão. Abotoo a futura debilidade e deixo a roupa de molho no alguidar. Evitas a futura debilidade? Evitas o lugar das perguntas porque tudo o que perguntas é Negação? Ficas vestido do que é Negação? Roupa negra, sedosa, ainda por cima revirada e rôta? Vou vestido de entrelaçante Interior? A resposta é a doxa do carrasco, a sua mania, o seu machado, a sua horrenda ironia, a sua barba por fazer e a cara arrepiada, a sua voz vaga e cansada. A novidade é um carrasco. Um carrasco que se embebeda todos os dias com amigos de infância que se envergonham dele. Veio para abater o que estava, e tudo o que aqui está é porque se fez obsoleto, deveras abatido, atirado para o estrado. A novidade é um strip-tease visto pelas frestas, por onde entra o fino frio que regela a casa.
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Expus os passos exagerados de Deus seguindo as pegadas húmidas do Diabo. Era um fã exagerado de Deus. Lia os seus livros e ria e chorava com as suas crónicas e imprecações. Estava apaixonado indevidamente, e Deus foi a palavra que veio ao meu encontro e me deu o seu pão e me estendeu a mesa. Mas a mesa estava vazia e só ecoavam silabas de parábolas. O meu romance é assim: era uma vez um nada seguido de nada seguido de outros nadas. Era uma vez um uno afinado nuns tantos nadas. E nesse nada havia um eu múltiplo, um eu múltiplo com gula e que era o não-lugar do não-lugar do mundo. Comi o mundo mas perdi a voracidade porque ela estava no mundo e ela era o mundo e o mundo era ela e com ela. Comi o Delalande para acabar em Delalande, esse delicado mutante com ar de velhaco imutável, esse safado de fraca saciedade, esse tolo que quer comer e ficar com o bolo do todo. Acabei no ascetismo como atleta da dúvida depois de anos e anos a alimentar-me de lentilhas e papas de aveia. Acabei no ascetismo de todos os actos dentro de uma anedota, dentro de uma conspiração, dentro de uma vitimização. E o ascetismo acaba-se comigo, ou an15
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tes, prossegue no inacabamento de mim, a desembaraçar-me de qualquer finitude em forma de sujeito ou epitáfio. Continuei numa anedota que consta que é porca e que todos gostam de contar quando perdem a vergonha, esse horror ridículo de arriscar, de arriscar por arriscar, inúltimente, só porque sim. Continuei na anedota que leva ao excesso, à ilusão, ao travestismo. A liberdade anda entalada no excesso, anda a dar guinadas, a arrancar, a fazer marcha atrás. A liberdade da natureza dá pulos na natureza do lugar. Fins simultâneos chateiam-me tanto. É como se tudo acabasse em várias partes ao mesmo tempo e não principiasse sequer num parto pateta. Quem os quer alugar? Fins simultâneos do impossível no que o poder de compra dá para comprar. Doxa do impossível que me estende a consciência com o rolo da massa, que me varre para debaixo da cómoda da celebridade. A Doxa fraca faz-me ficar mais só, na angustia soberana de querer alguém mas não estar para aturar ninguém. Juntarei convicções sózinho num raminho de cheiros. Juntarei convicções a hipóteses de hipóteses de guerrilhas. Inteligência? Porque não cultivar guerrilhas da Inteligência? Porque não assim? Vivo com sacrifícios, assim, com a faca debaixo do travesseiro a aguardar a oportunidade per16
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feita? Vivo em sacrifícios, à dúzia, com dores sacrificiais, chagas, pústulas, cicatrizes entreabertas. Porque o riso transcomunica o riso que transcomunica glórias. Habito um conhecimento carnavalesco e precário das glórias. Um conhecimento carnavalesco com muitos chapéus de coco e efeitos e enfeites. Esta autobiografia vai fazer na próxima autobiografia melhoramentos? Vamos a ver. Andamos a melhoramentos? Andamos a fingir começos exemplares com fábulas exemplares com condensações que descompensam. Andamos a expandir a vontade de sucesso nos detalhes que saem do lixo para tudo ser mais verosímil e escabroso. Finjo começos exemplares a continuar descomeços involuntários. Temos que ser selvagens para sermos trocados por divinos e loucos. A melancolia de sermos divinos é mais terrível do que imaginas. Nem sequer a ouses, ó peçonhento. A melancolia é a interrogação da interrogação em decomposição. Comi-me em decomposição e vomitei-me inteiro, embora em papa. Comi-me Delalande com molho Delalande com molho negro de Ad Reinhardt. Agradeço o molho, ó Reinhardt, sei perfeitamente que é teu e que sabe a trevas. Agradeço a inteligência da inteligência que dá deboche até às coisas mais quietas. O deboche das coisas jurídicas em17
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purra-nos pra uma castidade que não foi solicitada. Dou-me conta deste Delalande exponenciado em coisas jurídicas. Um Delalande exponenciado invadiu a quietude, a serenidade com aguadas budistas e a soberba da sabedoria conquistada. Tenho um riso político, polposo que é alvo de chacota. Não há nenhuma hipótese de riso políptico porque o riso não é um retábulo, dizem-me as vozes. Nem nenhuma hipótese de ventríloquo a falar pelo que que gostaria de dizer, embora resista, porque é uma zona pastosa e sinistra. Ai o maluco do ventríloquo. O que é que ele está práqui a dizer! Ai o maluco do buraco dá numa de irmos em fila escavar mais buracos para os apresentar ao Kafka ou a Kali. Estamos sós e amontoados no ir para os buracos que são só um enorme buraco, esse túnel sem fim do simbólico onde o Amor não te acha. O buraco dá então em símbolos? Dá em símbolos hipócritas, fraternos, eficazes. Acolhem-nos, críticos, refutando o entusiasmo nascente. Encontramos com frequência simbolos catárquicos de especialistas refutandose. Há que encontrar grandes encantamentos, ou tropeçar neles. Lisboa larga grandes encantamentos. Lisboa são montes de casas a condensar o mundo. A condensar o mundo em certos lisboetas janotas que te lambem as botas. 18
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As palavras incitam às palavras que incitam à desme-
sura de todas as desmesuras de todas as coisas a escrever graças às coisas, a escrever graças a uma obstinada inclinação pelo arbitrário, a forçar a inclinação pelo arbitrário, a fazer (com roupa escura) o detestável luto do luto, do sucesso a desfazer-se da atenção, do sucesso a desfazer-se da ilusão, a ocultar as recursivas notas, a ocultar as notas repugnante deste livro e a fazer desaparecer o carácter nojento de um livro que antes de ser escrito já se está a desfazer. Este é o livro em que aprendi a ser supérfluo e elíptico esforçadamente, para que nunca mais confiem em mim, para que me abandonem no meio da rua às 4 da manhã completamente bêbado, vomitado, de focinho ao chão. E não só me cansei de ser supérfluo esforçadamente, como me cansei de propósito para me remisturar e de me remisturar com os parenteses entre parenteses e com as aspas que coloco por cima das aspas que coloco mentalmente
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no que tento dizer para dizer. Porque todo eu me desconfio em itálicos, na brasa das ironias e das citações enevoadas. Têm-se degradado as profecias degradantes — as profecias são jogos de metalinguagem? São propensões com lava simbólica? Quando vivia em Dublin achava que sim ao olhar para as sujas sardas debaixo das olheiras de Eileen a minha namorada com a saia plissada e um azul tão acizentado nos olhos e sonsa até dizer chega. O aleatório é linguagem? O aleatório é um Deus de um Deus que se sabe vender e se sabe revender como sacrifício os seus solavancos? Há injustiças como prelúdios do sacrifício? As injustiças da natureza são da natureza ou são a felicidade a enganar a felicidade dos santos? Múltiplicidades a enxergarem um santo? A sua sujidade é a de um asceta que não toma banho há séculos e que nos quer converter estas falsifiçações em fé à viva força. Múltiplicidades a enxergarem exuberâncias e afectos que emigraram para mais exuberâncias e afectos, que depois emigraram para países frios, para países mentalmente frios e cujos habitantes passam férias nos trópicos cheios de parábolas e dinheiro que gastam em gorjetas nos bares dos
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hotéis — passar férias nos trópicos é viver em parábolas que são rasteiras.
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Um livro como anfiteatro, à moda antiga, com ins-
crições latinas, severas, edificantes. Um livro com nádegas que perdeu as páginas, que é a capa em forma de uma bochecha baixa. A única coisa é um cú, diria Artaud. O Uno é um cú, assevera, aos seus seguidores. É um cú e a as suas Propriedades, o seu auto-domínio, a sua capacidade de retenção e treva. O Ser é a consequência procrastinada da evacuação, da emergência. O Ser sai pelo cú. A única coisa suportável na arte suportável são as velhas coisas de sempre dissimuladas de actualidades tontas dissimuladas de actualidades duvidosas, das que saem nos jornais e ninguém quer saber. Monotonia da maré duvidosa. Monotonia da maré de melancolia que actualmente é uma epidemia no continente europeu, atulhado na sua presunção. O tédio é como um patchwork de melancolias. O tédio é como os segredos que segredam os mortos e os vegetarianos. A arte dos vegetarianos é mais verde, mais escarrada, mais natural, e degrada-se tão rápida, ainda antes de ir para o lixo. A arte aparece como a grande vida na vida decapitada, a que sobreviveu à 22
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decapitação por astúcia. A única forma foi decapitada e não fui eu, mas o meu horrível alter-ego, o cabrão do invejoso. A única forma ama as guilhotinas. O Uno ama as guilhotinas. A guilhotina é a mais pitagórica e revolucionária das evidências cortantes. Um homem parece belo sempre que contrapõe a sua beleza junto a mesas com moscas. É fantástico o haver mesas e muito chato o haver moscas. É muito bom sentir o melhor da melhor decepção. A forma da decepção assenta bem numa mesa, e melhor ainda se tiver jarras com flores de plástico que enganam à primeira vista. A forma de Deus é outro Deus ou um acidente geométrico que se confunde com outro acidente geométrico numa pintura medíocre. A natureza parece-se uma pintura medíocre, embora tenha mais profundidade e mutações. A natureza dissolve? Culpe-se o que dissolve? Culpe-se a culpabilidade. Sou um cigarro sem melancolia para o fumar. Sou um cigarro fumado pelo sexo de madrasta (que tem um papagaio cinzento numa gaiola atrás de uns cortinados com flores verdes), por um tipo sexuado a contrariar-se num discurso rasca. Vejome como um nariz fumado pelo sexo, seja masculino ou feminino. O nariz é o anfiteatro do desconhecido, pois as coisas de onde chegam os cheiros entram nele. E há os den23
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tes tortos do desconhecido. Os dentes caiem como caiem os momentos de juventude, como caiem os monumentos depois dos golpes de estado. Outras vezes partem-se. E outras ainda são sedes de um fedor que afasta as pessoas, que as incomoda até dizer chega. E chegamos, de raspão, ao ilogismo dos momentos de juventude, quando ainda havia esperança de uma vida terrivelmente plena e despreocupada com lanches e crepes e caramelos. E voltamos ao ilogismo que pode confundir os maus hábitos que temos meticulosamente adquirindo. O crime é haver hábitos. O crime é um boi napolitano. Quando um boi napolitano é trucidado o talhante canta e adivinha a vontade do Vesúvio se manifestar em plenitude. E no entanto chove e todos parecem contentes com o frio áspero que faz mesmo neste sul sujo e pobre. Serei fumo, pó, humidade subindo da terra, vaidade, retórica da vaidade da vaidade, poalha, passageiro à espera de outro autocarro, cada vez mais molhado, dado que chove e chove. Serei um feiticeiro índio? Como sei que sou um feiticeiro índio? Tenho maracas? Fumo o cachimbo da paz? São os hábitos carnívoros hálitos carnívoros que empurram um homem para a família? A vida é só família, o fardo misterioso dos parentes a assomar-se das carências filiais? A 24
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vida só existe quando existe um homem que a inventa? É possível inventar novas vidas quando chegamos a um ponto em que as nossas vidas estão bastante estragadas? Os lenços com que te assoas limparão o sangue as lâminas que decepam corruptos, burgueses e inocentes. Esses teus lenços, se forem grandes, poderão conter autênticas cabeças de devastados pela revolução. Corta-se às ordens de quem? O ódio é qual dos personagens? O ódio é um meio a sacrificar numa boa jantarada, que é o melhor dos finais, com azia e Kompensan. Como um bicho esquartejado numa boa jantarada. Como os nossos amigos em redor dos amigos em redor deve-se estar sozinho para se aprender qualquer coisa com a angústia. Deve-se estar sozinho acompanhado de um bicho de estimação porque te podes queixar da tua solidão afagando um dorso. A lealdade é a lealdade com um fim fomentado por um fim arrematado por uma lógica. A moral é uma lógica tosca. A moral é a excepção porque inventa princípios que não tens paciência para cumprir. A moral é a excepção que confirma a violência das regras da natureza e que se quer substituir a essas. Eu sou a anexação dos outros em mais eus, sou o homem que confunde o homem que confunde as conclusões com aferições e com palha. A fina25
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lidade é palha para burros como os nossos amigos mais generosos com grandes orelhas. A finalidade é a fortuna dos cegos. As flores rodeiam os cegos nos passeios que os seus cães farejam. As flores enxugam a paixão e a paixão contribui depois para esse depois súbito do suicídio a pretexto de uma história pessoal de merda que bem podia ser uma história muito melhor. A moral do suicídio é uma linha recta com muitas curvas a voltar ao mesmo sítio. A moral é a espinha e a espinha um meio de um Meio a sacrificar depois de te livrares das escamas. A sabedoria é a coisa nobre e inútil a sacrificar numa fogueira onde cheira a louro. A sabedoria é incapaz no casamento, e no caso de ser capaz é bem possível que leve ao desastre. Somos incapazes no casamento, muito mais do que imaginávamos. Não só somos incapazes como aqueles com quem casamos ainda foram tão os mais incapazes e nem sequer deram conta da sua incapacidade e violência. Somos responsáveis pelo desinteresse das pessoas beatas? Nem por sombras! Quando é que desaparecem as pessoas beatas? O fim é um velho quando deixa de o ser. Ser velho é a certeza do fim logo a seguir. E é-se um velho erro que ainda é um 26
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erro que ainda ninguém viu como ninguém viu com companhias saudáveis. As explicações são companhias saudáveis que não satisfazem. As explicações místicas têm belas santas místicas que têm belas pentelheiras, como a Santa Teresa de Ávila. A morte esconde as pentelheiras dentro de caixões. Nem sequer sei que as rapam. A morte é o culto do culto do estar sozinho quando se deixa de estar. Os mortos estão sozinhos na sua morte e isso assusta, essa solidão de merda de gajos cada um na sua caixinha muito tapadinha para ninguém ver. Ou ficam rodeados de empecilhos num cemitério, apinhado de camadas de mortos, em que a terra é já restos de mortos e tudo se mistura de tal forma que não há inteireza e singularidade nenhuma. A arte de estar sozinho é uma morte por antecipação e antes ir beber uns copos do que isso, antes ser um velho bêbado que um solitário a definhar e a aguentar a solidão. A arte é o livre. Também é o livre arbítrio a divorciar-se do arbítrio a divorciar-se da predestinação e de toda a responsabilidade. O diabo faz a predestinação e oferece-a de presente aos tipos das religiões e eles impingem-nos essa treta. O diabo faz doer o sexo como consequência de consequên27
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cia de quase nada ou foste ao sítio errado e apanhas uma doença tramada. Há imensa gente que gosta disso e exagera a esfregar-se. Os padres enxergam o nada com uma imaginação claustrofóbica. Os padres enxugam a pátria e depois da pátria há um depois para a sujarem ao usarem o urinol com o seu mijo feito a partir do vinho da eucaristia bebido antes do almoço. O urinol está na pátria e é a principal parte da pátria onde deixamos o nosso corpo glorioso e patriótico. A paralisia é a religião da religião das minhas plantas só que ainda mexem um bocadinho sacudidas pelo Setentrião. A moral das minhas plantas é paralítica. A moral das estrelas foi assar a costela de Adão nas brasas. Será boa a costela de Adão? Será bom sentir-me Deus sentindo-se outro Deus sendo eu ateu? Eis o desconhecido, senhores revolucionários, saído de uma cartola de um ateu como muitos de vós. O desconhecido, senhores revolucionários, sou eu. Ora cá me tendes às vossas desordens.
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Das revoluções já sabemos que são meras revoluções
e já sabemos o que nos espera. Espera-nos a decepção seguida de reacção e uma carga de porrada e tudo voltar um pouquinho, mas não demais, à continuação do antigamente. Há-de tudo ficar mudado, acrescentaram. Sim, já está tudo muito mudado, praticamente irreconhecível. Nós não somos a revolução, nem no singular nem no plural. Somos melhores que a revolução, ainda que tenhamos laivos tradicionalistas e uma curiosidade epidérmica, insistiram. O humor é o resultado de uma espera defraudada. O humor é antropofagia dos vegetarianos. O erro do vegetarianismo são os antropófagos cozidos no forno. O erro é um coito que é o coito da arte. O belo é o que vem da parte da arte e traz algumas novidades na mochila juntamente com quinquilharia desinteressante. Também eu lhe trazia chocolates ingleses e oferecia-lhos no autocarro e temia beijá-la e beijava-a nervoso e inseguro, a essa Eileen de olhar de caranguejo. O belo é o amante do amante do de29
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sinteresse estético, e sabe-se que a palavra estética é elitista e faz cócegas. De ideias sujas surgem desinteresses leofilizados. Ideias sujas surgem melhor no banho antes de se fazer a barba e limpar as axilas com a toalha. Há algo melhor no banho do que fazer amor nele? Tocas-te no banho? Há meios que são meios que são mais princípios do que os princípios. O esquecimento é o que faz os outros desnecessários. O esquecimento é o neto da fraternidade, a tal fraternidade que mata o pai e depois desata à pancadaria com os outros irmão ávidos de ter mais do que tu. Fazer de cada fraternidade uma descontinuidade é esquisito. Fazer de cada acidente um oráculo é propiciar narrativas. Os acidentes polvilham os oráculos e quando penso nisso vem-me à boca o sabor a bolo de chocolate ligeiramente queimado. As dissonâncias oferecem pipocas às dissonâncias que oferecem pipocas às harmonias.
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Amei, mas não foi só isso. Amei, não só à primeira
vista, enamorado da primeira vista, mas a muitíssimas e muitíssimas mais vistas, umas vezes completamente apaixonado e outras a pensar que o melhor seria dar à sola. Gosto de mais vistas do que as primeiras vistas, com persianas, cortinados, binóculos, etc. Gosto de conversas descontinuas sobre conversas descontinuas e de pessoas com o dom cortante das respostas evasivas. Há demasiadas respostas evasivas e não é especialidade em que seja especialista. Neste caso ponho convicções nos bolsos cheios de bombons e tenho-me por um amador outonal. Há demasiadas galáxias de ideias grávidas de galáxias de ideias com ideias e mais ideias extremamente excitantes que se vão escoar sem que ninguém as aproveite. Tanta uma gravidez a parir pulgas. Tantas cabecinhas prenhes de valentias, invejas, tristezas. Costumo perder coisas excitantes, além das chaves, dos filhos, da memória e de amores perfeitos ao subir uma rua ou abrir a caixa do correio. Costumo perder a atenção quando no meio da atenção me fazem perguntas com ar intenso e eu 31
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suspiro sem capacidade de resposta adequada. Desconcentro-me num piscar de olhos e volto a concentrar-me depois de te beijar. Gosto de pessoas com intensidade e incomodam-me os gestos moles, enviesados, sem fôlego. Gosto de pessoas que dissimulam a sua glória através de glórias postiças ou através da autodenegrição irónica, desde que não exagerem. Não sei imitar a autodenegrição irónica com convicção, só ironicamente. Quando estou com alguém que se auto-denigre com convicção fujo a sete pés. Não consigo estar preparado devidamente. Apesar de achar que até poderia estar preparado mesmo na impreparação. Apesar de várias autobiografias a parodiar várias autobiografias ainda não disse nada de concreto sobre mim além de uns desgraçados pormenores que tu até talvez aches piada. Tagarelo numa corda bamba e lá me desenrasco e vou lanchar a casa de uma antiga amiga. A corda que estico entre mim e ti é a corda em que muitos se suicidaram e agora já não têm nada a dizer. A publicidade sobre mim é assim este continuo balancear de desaguisados assertivos. A publicidade tem como função ter outra função que não a de impingir o desnecessário, e essa função é a de nos dar qualquer ilusão, qualquer patetice que nos desvie do comezinho. A publicidade faz de 32
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Deus uma carne que torna Deus ainda mais anónimo. Há que encapotar a glória num pseudo anonimato. Aprendi que é bom ser mais anónimo, mas não totalmente, e que a clandestinidade cumpre esse papel de tráfico muito semelhante aos encontros sexuais no adultério. Aprendi que a filosofia nos filosofa e nos empurra para práticas cada vez mais pessoais, mas que não são tão pessoais assim. Não encontrei nela nenhuma recomendação «descritiva» do que é que devemos fazer a sério nos momentos tramados, nem sequer sobre a maneira de nos atirarmos escadas abaixo. Encontrei nela a suavização da realidade através da evasão para as bizarras abstracções que ao fim de algum tempo sobrevoamnos e aterram nas coisas, como numa terrina numa sala bafienta com castiçais espampanantes. Haverá uma recomendação «descritiva» que faça sentido? Ou que, pelo menos, às vezes, faça sentido. Quando dei mais nas vistas foi quando tentei dissimular-me debaixo da fria pele no anonimato. As obras no anonimato escorregam-nos nos sentidos. As obras que os outros fazem por nós são as obras deles, são as obras que eu não quero fazer por eles, são as obras que me exigem um certo grau de adultério relativamente a elas. Devíamos ter bocados de personalidades dos outros? Certamente. E ao 33
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menor toque saem deformadas, mal-copiadas. Acompanhanos o estigma da insuficiência, da carantonha, do ridículo de ser parecido com o que quisemos imitar de grandiloquente nos outros. Muitas vezes essa parvoíce de emulação acaba na tragédia mesquinha do vago pastiche. Devíamos ter um sítio para guardar sítios. Museus para guardar museus que guardam esses museus que se engolfam em si mesmos. Devíamos ser sítios para guardar o que sobra às sobras das intuições, a essas migalhas que os pombos procuram nos esgotos ou no meio das praças. O erro das intuições excita. E excita muito mais do que os acertos, e de certo modo destina-se a uma fecundidade que alastra o improvável. O erro tem uma taxa de sucesso surpreendente e boa parte dela é o desastre que também leva outros à glória. Quero muito sucesso surpreendente quando já não estiver à espera. Estou à espera, com uma ambição que me engorda, desse imenso golpe de sorte que me fará famoso e feliz. Mesmo antes de saber o que é o saber, mesmo antes de qualquer coisa de de novo de inesperado, já tenho o inesperado na mão, já tenho o hábito de desconfiar do que vem aí, e no entanto atiro-me de cabeça, e seguro com firmeza a 34
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tua mão para que me acompanhes nesta aventura. As ideias desconfiam delas. As ideias têm aprendido que têm que aprender muito mais e que têm que se conectar umas com as outras, e procurar nos corpos os micro-orgasmos de um toque e a graça das sensações evanescentes. Há ideias a mudar de mim. Costumo mudar de mim e ficar quase na mesma, embora tenha uma sensação de que algo diferente e inóspito se introduziu para sempre. Uso a derrota para conhecer o sabor (amargo) da derrota e para atrair as atenções como vítima, como credível vítima de um destino que me legou uma história digna de dó e de muita atenção. Induzo algo a atrair as atenções para que me dêem carinho, mesmo que não seja voluptuoso. Induzo os outros aos outros, para que sejam atrevidos entre eles e comigo. Que sejam atrevidos pelo prazer de o serem, e até canalhas, em galantearias escusadas, colocando-me a mão na perna debaixo da mesa quando menos se espera. A inibição desinibe-me, a mim que sou tão tímido, poético, idealista. Mas a inibição que me desinibe é uma mascarilha do Zorro, uma capa de super-homem, ou outra 35
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máscara que faz uma dobra generalizada dentro do interior para os exageros heróicos no exterior. Não sei até que ponto me desinibo, porque a inibição é um reduto confortável, o meu ópio cliché almofadado, triste, sem futuro, da imensa tranquilidade auto-suficiente. Há um ponto em que se começa a partir e um ponto de não retorno que contem o ponto de origem e os pontos do devir. Há muitos pontos a pontuar e a acabar e a inacabar com essas reticências todas de pé atrás a fazer~se ao deus dará. Todo o pensamento que seja pensamento e que me precede é uma precedencia a ter em conta, é uma espécie de convite a rememorar, à anamnése, é uma espécie de convite a servir esse pensamento com lealdade e traição. Eu ando a servi-lo com duplicidades espontâneas, e envio cartas a quem amo, e temo o olhar de sabedor do carteiro, e dá-me um medo enviar as respostas porque as consequências podem ser imprevisíveis e serem a manhosa armadilha que me preparei para me perder. Eu penso o pensamento para fugir não sei de quê, eu penso-o para fugir de outros pensamentos parecidos que me provocam sarilhos e que são sobre as coisas mais comezinhas, como o tom ou a altura da minha voz que perturba a 36
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vizinha de cima. Não consigo escapar dele, desse tom e desse pensamento. Não consigo escapar ao juízo involuntário, ao olho do censor pronto a aproveitar um deslize para me lançar à fogueira. Eis o juízo involuntário muito voluntarioso, como quem dá gaffes atrás de gaffes atrás de gaffes. Sinto as gaffes na pele, o arrepio que eriça os pelos com uma carga negativa forte. Sinto o juízo, com juízo, mas como uma forma superlativa de indeterminação que magoa, que é como se apalpasse com força, sem estilo, só para doer um bocadinho. As pessoas temem a indeterminação. As pessoas extraordinárias têm uma extraordinária e enorme vocação para serem ordinárias e acharem que são a sua pessoa, a sua parvíssima pessoa, a caricatura de uma soberania que senhoreia impotência. Há gente com a irregularidade auspiciosa de ser ordinária só porque se julga dona do seu arrebitado nariz. A irregularidade é o caminho mais tortuoso para a fama, para esse abismo que se confronta com o balão inchado do ego, esse balão que até voa se houver vento, mas voa, ah isso voa, baixo. Falar pela fama. Espalhar a voz à grande 37
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e à francesa pelos milhentos cantos do mundo. Ser significativo não se sabe para quê nem porquê. Falar por falar em falar tem qualquer coisa de empolgante e desnecessário. Essa coisa de empolgante faz-me ainda mais autobiográfico.
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O que é o que é o que é? Pois o que é? Pois pois! As
grandes descobertas, pois, essas que se tornaram imperceptíveis! As tais grandes descobertas chegam com prazo de validade contra a nossa validade vã. O que é a validade? É o que é capaz de ir à guerra dar e levar e depois ficar. Quem é que disse isto? Uma frase escondida na boca de alguém disse isto? Uma síntese informativa excepcional que se condensa numa bola e que gera um milhão, e que depois gera outro milhão de desinformações que nos convencem, olá se convencem, de que tudo é mais simples do que o que se julga. Desinformações de desinformações em expansão a acariciarem o teu amor, o nosso amor, e tudo o que vem daí. Estou impessoalmente indefeso? Não sou a expansão, mas estou no desconforto da expansão, com os braços a crescer, a cabeça a crescer, as pernas a ficarem muito muito mais para cima. Não sou o artista que é um artista que os outros possam vir a pensar que o seja. Sou o artista que eles não conseguem localizar por causa da expansão íntima e dos 39
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diversos desdobramentos e que nem eu mim localizo. Sei lá o que é que seja! Sei que se apaixonam por se apaixonarem por mim, mas não por mim. Não sei se dou, nem sei se deixei de dar por isso. Sou o por isso. A inclinação que macaqueia. Sou o carrasco da legitimidade. Quando é que se é carrasco da legitimidade? Quando te levantas com um capuz ou quando o vestes? Quando me dizes algo, dizes-me algo que eu ainda não sabia com a tua voz saída das pregas a almofada? Ah, isso não é exactamente aquilo que me estavas a querer dizer. Na prática era outra coisa aludindo a algo escabroso, talvez um crime que tu ou eu cometemos, ou, hipoteticamente, uma mentirola. O que é sintoma de querer dizer o que temes dizer? O que eu não sei é praticamente quase tudo. É muitíssimo mais do que o saber ridículo e preciso que arvoro em bicos dos pés. A prática de quase tudo é uma tarefa impossível, e não me venham com essa. Há muita prática por aí. As frases em que julgamos que pomos tudo, como estas, são pretenciosas. As frases que salvariam o mundo talvez o 40
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pudessem salvar mas não o salvam mesmo quando salvam intermitentemente algo ou alguém. Essas frases nem se salvam quando se salvam a si mesmas. Oh, sim, a si mesmas, porque o mundo, ai o mundo, decididamente, prefere perder-se. Porque o mundo, está decidido, prefere voltar a perder-se vezes sem conta e resvalar para o nulo. O nulo é um cemitério de frases feitas e silogismos. Os silogismos da bananalidade procuram uma posteridade para casamento perfeito. Quero a glória como acaso? Anda aí uma glória como acaso genético atrás dos teus genes manhosos. A actual desordem vem da desordem antes da génese, dessa desordem que sobrou à ordem que se instaurou durante a génese e em que ainda hoje mamamos. A actual desordem é o inadiável encostado à tua arte de morrer. O inadiável da ordem prepara a desordem do futuro. A liberdade pede futuro mas tem um furo no pneu. A liberdade pede à natureza que esta a siga como o grupo de cegos de Brueghel para o abismo, de mãos dadas, num dia enlameado. Há que ter visão para evitar cair no abismo. Há que ter opiniões deveras inúteis a fingir que os problemas mais urgentes se resolvem a partir delas. Inúteis como gui41
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lhotinas em tempos tolerantes. A desdomesticação implica as guilhotinas, e com elas o terror revolucionário mais uma vez. A desdomesticação implica a disseminação, e a disseminação, o egoísmo, o nomadismo, e outra vez o egoísmo, e mais o nomadismo, etc. Quer dizer que vamos andar todos de um lado para o outro sem encontrar um poiso definitivo. Tens nostalgia disso, dos nossos antepassados sem poiso? A modéstia fica numa de invejas, de olhar para o lado e a querer o que o outro tem para querer o que outros outros ainda têm mais. A modéstia na natureza é sempre natureza e é sempre falsa, porque queremos de nós mais que nós até quando não temos mãos para tanta fruta. A escala das coisas é falsa. O que se percebe num corredor com uma janela para um horizonte distante, e em que, à medida que vamos avançando, os objectos vão ficando mais pequenos perdidos num espaço maior (só muito tarde é que reparei nisso!). A escala é o que permite ver sem chegar a ter intenção. É o estado de ver com os olhos auxiliados pelas coisas mais próximas e pelas ideias menos frescas. A escala de um 42
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anão não é a de um gigante e o gigante sendo grande tem muito menos mundo, e até pode ser menos de metade do mundo à vontade. A paisagem é a paisagem como demónio a arrecuar conteúdos. O demónio do conteúdo dá ferroadas na tua alma. O crime é afilhado de um crime maior que é por sua vez afilhado da honestidade. A justiça da honestidade tenta ser justa, mas custa. A justiça é uma indústria que é débil e que abusa dos fracos fingindo defendê-los. A falsidade do débil é melhor e mais justificável que as falsidades do forte. A falsidade da inteligência é a melhor artimanha para um gajo se autocompreender, e é melhor que a nobreza autêntica dos materiais. A prolixidade da minha prosa tem-me aproximado de ti, e posso levar-te as matérias primas que te prometi no outro dia. A prolixidade torna-nos infames e gabarolas e desnecessários. A harmonia torna-nos infames e conservadores. A harmonia é menos um conteúdo do que o conteúdo do descontentamento encapotado no conformismo. O terror é um descontentamento que se exprime plenamente. 43
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O terror é o pressuposto do pressuposto de qualquer esforço de esforço jurídico para controlar algo novo e insensato. A desarmonia convida à complicação do jurídico. A desarmonia convida ao conformismo do deixar-se levar e esse conformismo arrasta-nos para o ópio que é a parte melhor da vida mais parecida com a morte.
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Há uma confusão entre a confusão das hierarquias
do mundo a fabricar hierarquias do mundo e as palavras a falsificar palavras, da qual nunca nos iremos desembaraçar. A história serve para nos desembaraçar dos excessos do presente. A história serve para sobrepovoar ou despovoar o vazio do presente. Olha o vazio do presente, lá vai ele! À força de sermos fortes ficamos desordeiros e depois tornamo-nos clássicos, impecáveis, engomados, penteadinhos, meninos da mamã. Como desordeiros tornamonos mais clássicos que os outros clássicos porque lhe acrescentamos o granus salis. A bem ver temo tornar-me clássico, ou, bem pior do que isso, acabar em neoclássico, com metralhadora nas manápulas. Como escapar ao totalitarismo evadindo-nos do totalitarismo do presente? Pratica-se o presente? Pratica-se a retórica da virtude retórica ou a virtude para tornar o deboche mais consequente. O deboche mais consequente é a 45
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quente, a escaldar. O a frio é imaginário e sádico. A composição tem estado e não estado em estado de decomposição. Já não nos preparamos para isso, nem usamos a divina proporção do Pacioli, nem os esquemas marados do Rembrandt. As melhores circunstâncias fazem a decomposição, e as hienas estão lá, prontíssimas, sorridentes. As melhores circunstâncias assentam no repúdio do terror. As piores assentam o terror sobre as coisas, mesmo que tenham naprons. As ferramentas, garantiu-a a Erika, foram feitas para transformar e matar. Teorias que abusam de ferramentas desmoralizam-nos. Teorias que amam cadeiras eléctricas matam. A quem amam as cadeiras eléctricas? O poder exerce-se contra cada poder e exerce-se cada vez mais com um sentimento de um sensação de falta de espaço onde falta deveras espaço – que sufoco! A virtude é um erro publicitário. Estou feito aos erros de publicidade. Estou a usar a telepatia como forma telepática de desmaterializar a desmaterialização da arte e no entanto a desmaterialização da arte tem-me permitido materializar algumas coisas.
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O território invadiu a arte. O território invadiu os
mapas. Temo-nos tornado os mapas cobertos de um pó que atravessa os territórios vindo de um deserto antigo. Temonos tornado os escravos da documentação e da documentação da documentação. Os escravos da documentação focamse nos actos libertários como causas mortas. Há uma ilusão quanto à relevância dos actos libertários. A prostituição divina como prostituição divina é a tautologia como tautologia. A finalidade da prostituição divina e da tautologia é resolver o problema da luta de classes. A moral inclinada das classes anda com o sobrolho arregaçado. A moral é o subúrbio do subúrbio da Opinião que embeleza. As opiniões que fazem a Doxa entortam-na com adjectivos. As opiniões dependem do próximo e dependem do próximo subsídio, àquele que mendiga com perfeição preenchendo alíneas e completando curriculuns. A grandeza como subsídio é comum em muitos povos. A grandeza dá frequentemente numa variedade intri47
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gante de uma variedade intrigante de mediocridade. As calamidades da mediocridade são o pão nosso de cada dia. As calamidades são discípulas de gestores competentes. A demiurgia compete com os sofistas. A demiurgia como suicídio está na moda. O como do suicídio eis a questão. O cadáver de Deus alimenta-se do cadáver de um deus rival que é o mundo. A natureza está sob a natureza que está sob a alçada da alçada de subtilezas jurídicas. Uma opinião tem subtilezas jurídicas. Uma opinião (Doxa) não se desenvolve, desembaraça-se. A única coisa que desenvolve, desembaraça-se. A única tarefa de um governo é que deve ser governo e deve proteger a complexidade. O mal torna-se complexidade. O mal torna o poder paranóico. Como poder paranóica-se. Como acreditar numa liberdade que precisa de precisar de subsídios? A doxa é o oposto dos subsídios. A doxa é uma propriedade a aprimorar a propriedade do visível à sombra da enunciação. A enunciação da enunciação dá-me vergonha. A enunciação como Divina Anunciação vem de helicóptero. A invisibilidade é o retardamento ou adiantamento das coisas no tempo e parece um mero efeito do tempo. A desobediência social tornou-se mais e menos desobediência frugal, tornou-se uma fantasia de uma fanta48
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sia de submissão. Quem incita à submissão excita-se. Quem incita ao crime combate-se. A vontade de crime combate-se com a exercitação dos pequenos grandes prazeres. A vontade de Deus é um Deus em Negação atrás de Negação atrás de Negação. A justiça vai com a Negação à Missa. A justiça vai ao cabeleireiro porque acha que não se acha suficientemente opulenta. A justiça tem rapado ultimamente as pernas e os pelos do sovaco. A refutação torna-se opulenta e corpulenta. A refutação torna as evidências estimulantes. Quem quer as evidências estimulantes?
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Quem insulta Deus louva-o e insulta Deus louvan-
do-o (Eckhart?). O que faz aqui o Eckhart? Quem o louva insulta-o. A igualdade louva-o e insulta-o. A igualdade é uma evasão singular deitada sobre a calamidade pública. Temos constatado que é pública tal como certos urinóis onde se vislumbram figuras de costas sacudindo. Temos constatado que os jogos de jogos de meta-linguagem se parecem com a linguagem mas gaguejam na zona mais obscura da rua. Ou são jogos de pseudo-linguagem? Também não são jogos de santa de linguagem – ai que linguagem – o que é que é que está então em jogo? Não há liberdade de jogar aos pontapés com a linguagem? Não há liberdade sem excessos. Os conceitos vêm sem excessos? Ou são o excesso que vem? Os conceitos impõe-se para camuflar as camuflagens marotas do vazio. A Doxa do vazio bem podia ser o satori. A Doxa emerge no fim que emerge do plano final do striptease conceptual. Vou à boleia no strip-tease conceptual. Ir para o campo a partir do campo pode ser deprimente. Te-
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nho o direito a poder ser deprimente por ser deprimido, embora isso possa incomodar imensa gente. O revolucionário é um revolucionário que é um tirano que ainda não é tirano porque ainda não apanhou a moda no momento certo. A revolução do revolucionário que é a revolução não tarda será a sua tirania reaccionária. A demiurgia é a moda, sobretudo depois de tirares a roupa. A demiurgia é a dissipação das cautelas. Só o incriado, porque não tem nem pai nem mãe, não se degrada. Os demiurgos degradam-se e degradam os mundo que insistem em criar. Os revolucionários sofrem de insónia porque em boa parte estão vigilantes e há tiros nas ruas e há medo. Os deuses que estão sempre atentos sofrem de insónia nas suas camas de nuvens. Sendo a potência diabólica a mãe de todos os actos, todos os actos se tornam divinos, com brilho próprio. Somos divinos por inércia e anti-divinos por vocação. Somos nós mesmos por provocação. Os casos exemplares são inadequados para os outros. Os exemplares são inadequados. O segredo está no não dizeres nada a ninguém (nem à tua mãe) e na excelência da sorte. O que é que queres fazer com a tua excelência da sorte? O acaso ajuda a es51
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palhar mais acasos multiplicando conjecturas e desfazendo os casamentos mais complicados. As guerrilhas são sempre desagradáveis. O objectivo dos governos é cobrar os impostos e varrer o indivíduo para a última recolha de lixo. O capital acumulado pelos estados ao longo dos séculos é muito maior do que aquilo que alguma vez podemos desfrutar. O estado garante privilégios e privacidades para os que lhe assaltam o poder.
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A mudança de mudanças para um homem é o ho-
mem a assobiar o seu destino que lhe foge. Não própriamente o seu destino...
A abreviação canalha do destino
com a face encorcovada. Não concebo um jardim, agora, que se recuse a ser recusa como o é a poesia moderna (essa recusa do que quer que seja com a violência no goto). A violência erótica e o histrionismo libertário fazem a poesia moderna, mas os deus cultores nem consumam o erotismo nem se libertam. A privacidade é mais concreta que o concreto se o seu destino for a a generosidade pública. Retomo a generosidade pública com ternuras privadas. Retomo o sentido através do sentido através do antiquado para jardinar o antiquado, para jardinar revolucionáriamente as heranças que sobraram. Sou apenas mais um, revolucionáriamente, com a pá e a vassoura na mão. Sou apenas um jardim sentimentalmente natural que se recusa a ser abandonado. Fechei-me ao ser abandonado e fiquei triste muito tempo no meu casulo e depois fartei-me e desatei a rir. Fechei o jardim da compreensão aos que pela compreensão 53
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pensam tiranicamente…
Na natureza não existe recusa.
Mas se existe alguma recusa, logo ela existe na natureza e existe na natureza como uma ilusão, um engodo. A recusa,é a ilusão própria da ilusão, é o próprio do homem, do que pode ser homem, do que recusa a si mesmo para se identificar. A infelicidade é a recusa natural em ser natural. Serei benéfico ao natural com esta linguagem rouca, velha e artificial? Serei sempre um recorrente principiante da antiguidade neste tempo ambíguo que promete nada. A antiguidade é a o sabor ao antes no encontro ressurgente da geometria com a naturalidade. Gosto das maneiras descaradas da naturalidade. As maneiras de escrever o mundo a escrever o mundo têm que ser regadas regularmente. Sou um tipo recatado regularmente na mais desmesurada das intimidades. Sou um privado que admira as pretensões às pretensões do público ao sublime. Sou um tipo que gosta do sublime, do erótico e do fraterno ao mesmo tempo. A musa fraterna é minha habitué. A musa deve sair da estante e jardinar revoluções. Aprendamos a jardinar revoluções! O que se segue à legislação é roubar o jardim ao povo e dá-lo às fundações privadas. Privatizar a privacidade do público. Aspirai ao povo e à jardinagem. Aspirai contra a mania dos cemitérios. 54
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Aspirai contra as opressões vindas do povo ressentido. Aspirai ao lado do povo nas vossas casinhas. Aspirai com o povo as grandes essências onde o espirito está enlatado. Aspirar ao fim do túmulo do povo. O crime é a ideia fixa, disse o Grande Testa. As minhas mãos não são crimes, e a violência repugna-me, mesmo num filme. Os poetas não são parentes dos criminosos por mais que sejam tentados por essa imagem de força. Sou filho do mundo e primo afastado da legislação. O mundo da legislação não é o mundo da jardinagem. Na jardinagem tem que se semear na altura certa. A desigualdade da subtileza jurídica não é pastoral. As circunstâncias seguem as tempestades. As circunstâncias seguem os homens para estes acolherem sabiamente o entusiasmo. O que é que protege o entusiasmo? O onde! A igualdade existe na natureza? Em várias partes! A igualdade é estar no campo só para estar no campo inteiramente a respirar a pulmões plenos? Ora, ora… O engenho é uma inércia produtiva. O engenho é próprio do sábio na desordem e nos combates. O engenho é muito útil na desordem e na guerra. O engenho é uma subtileza das subtilezas do acaso. A justi55
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ça também é acaso, diz-me o moço da mercearia. A justiça também é infâmia quando é infâmia, quando se esquece da natureza. Tanto se esquece a natureza.
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Demasiadas leis: míngua de afectos. A legislação de-
veria ser de afectos, e se preciso, com a boca. Uma legislação a ser feita para todos os membros do mundo, pelos corpos em empatia das pessoas espalhadas no planeta. A comunidade não é o mundo mas seria bom que caminhasse nesse sentido. A comunidade não é uma inércia inerte, mas uma florestação. A opulência é uma infâmia restaurada. A liberdade é a infâmia restaurada no sopro que escapa. A liberdade do homem não é do homem e não ressurge no túmulo. O crime ressurge no túmulo na posição do cadáver e do cangalheiro a ser bem pago. O crime prepara um futuro indirecto. O crime é filho de um mundo que ficou vazio da desordem derivada da desordem dos outros (já me livrei da culpa!). Há virtudes que são só para os outros, e eu só quero uma bondade espontânea. Há virtudes que exigem raiva, e são suspeitas. A arte de oprimir exige alguma raiva. Oprimir o mal (ou o bem) não conduz ao bem e não conduz necessáriamente à virtude. A virtude leva à guilhotina? O melhor é fugires. As circunstâncias levam à guilhotina? Podes crer! As 57
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circunstâncias ornam a infâmia. Ornam a infâmia nos romances. E para escrever romances faz como diz o Throlope: imita o sapateiro, ao findares um sapato começa outro. A propaganda dos afectos é necessária para que os romances te agarrem desde a primeira página. Milito na propaganda dos afectos, na efervescência das vitaminas das emoções. Quais as circunstâncias distintivas que fazem distinções na natureza? Será útil ser útil à natureza? A inutilidade, dizem os taoistas, é muitas vezes mais útil que a utilidade, no caso da natureza. Será útil um engenho que sirva para nos desfazermos do mal? É ecológico oprimir o mal? As casas dos afectos defendem-nos do mal? As casas dos afectos estão rodeadas de parques de empatia? Um governo débil dá cabo dos parques e investe em auto-estradas. Um governo débil pesa ainda mais sobre as coisas que pesam sobre as coisas do mundo que por sua vez pesam nas nossas cabeças. Um governo do mundo já não parece uma utopia e devia ser instaurado já. Um governo débil que se faz pesar sobre o povo é uma bananalidade. O povo não é governo, mas é uma bela ideia para legitimar quem governa através de um truque soidisant democrático. Enquanto a informação estiver nas mãos dos capitalistas a democracia é uma fantochada. A 58
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marca de um governo é uma marca distintiva na natureza, porque não há nada fora da natureza. A coisa jurídica serve para chatear muita gente e fazer jus a uns raros. O Sexo é uma flor selvagem na qual estamos sempre a tropeçar. Interessantropia! Sexo com flor selvagem na boca. Interessantropia outra vez! O sexo num poeta moderno é nostalgia da predação animal. Tenho nostalgia de sexo pitagórico, com números e vibrações. Houve alguma vez sexo pitagórico? Sim, pois tudo nas relações entre números é sexo. O remoto Homem-Natura tinha uma orgânica geométrica? O remoto Homem-Natura é a medida da medida de todos os jardins. Todos os belos jardins incitam ao amor quando chega a primavera. A Ecologia teve que ser uma verdade equívoca para mostrar a complexidade escondida debaixo do rabo da simplicidade. Uma verdade equívoca para se tornar uma escultura ecológica só precisa de dar um passo em frente. Queres tornar-te numa escultura entrópica? Um banco para ver arte entrópica. Um banco agradável para sentar o nosso prazer público. A Solidão pode ser um prazer, como quando se escreve. A Solidão como secularismo, a livrar-se da servidão ao absurdo, sem murmúrios nem genuflexões. Jardinar como secularismo. Jardinar em prol do socialismo. Jardinar 59
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um Poema? Ou um Poema a jardinar? Pode-se jardinar com a Poesia e regador na mĂŁo? Pode-se jardinar sem Poesia?
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A Eco-colocação da Poesia? A Eco-colocação de uma
coisa na palavra. É melhor jardinar a palavra e regá-la cantando. O melhor do jardinar é encontrar o sítio certo onde se pode ter prazer fazendo-o. Ando a jardinar o sexo com prazer num labirinto. Ando a jardinar o sexo sob a égide do número. É a Eco-colocação do número. É a Natureza-Filosofia que ao ser lida nos lê. Os anagramas chegam da Musa como uma tradução trapalhona. São a Musa brincando com os seus elementos abreviados noutras posições sexuais. Anagrada-lhes os seus elementos serem abreviados. Anagrada-lhes viver um problema comprido ou comprimido? Uma vida nova comprida e por descompactar. Uma vida nova para um vivo amor por alguém vivo. Uma vida nova também é um anagrama antigo a descobrir uma paixão literária. Um anagrama antigo redescoberto apanha logo com o prestígio nas trombas. Os anagramas são o destino dos deuses esquecidos. É no grego, seja antigo ou moderno, que nos julgamos esquecidos. É no 61
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termo grego Pandemos que encontramos a ebulição de Pandemos, que encontramos a conexão entre o povo e o sexo desabrido, e essa conexão une-nos. Um anagrama é uma vida que não é uma vida simplificada pelo dinheiro? Queres a coisa simplificada pelo dinheiro? Tens uma carteira no bolso? Ou uma vida a sério? Ou uma vida complexificada pela relação meio confusa com a Natura? Há demasiadas transacções com a Natura? Ou poucas? Demasiadas letras ficaram com algum vazio entre as letras, ou entre as pernas das letras. Onde está a campo sexuado, a natureza mãe minha amada? Onde está a Musa brincando com as aspirações do povo à revolução? O anagrama não é povo? Não. O anagrama provoca-me dores de cabeça e eu tomo aspirinas. Saussurre mostra-nos o opressivo sobre o anagrama e o libertário em Lucrécio. A morte em Lucrécio livra-nos mais uma vez da posteridade. Saussurre mostra-nos que o sentido lateja com o chicote das suas ambiguidades nas demais ambiguidades e no anagramático. E que anagramático!
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E quem é Afrodite? Apetecer comer o Outro? Afrodi-
te conduz-nos a umas traseiras onde há alguma ciência e muita Arte. Afrodite é indissociável de ervas aromáticas. Artémis deveria ser da Arte, e é, mas Afrodite é muito mais com os seus cochichos, a sua espuma, o seu sexo ardente. O Anagrama pulveriza o Anagrama onde se oculta Afrodite. A repetição pulveriza-se no pandémico. A exuberância é o pandémico. A opulência é a infâmia (disso ninguém tem dúvidas). Profetizando ficou vazio da infâmia. Profetizando ficou um vazio de anagramas em mutação. A pulsão é mutação? Sim, essa pulsão adolescente, fecunda e desajustada. A pulsão do anagrama em si, isolado, não! Demasiadas letras acampam nos nossos destinos. Onde o destino desembarca o oráculo diz. O povo precisa de exemplos concretos. De exemplos concretos e não de palavras de ordem opacas ou discursos balofos. A jardinagem erótica e a ordem geométrica são bons exemplos para começar. O anagrama é um jardim que quer sacudir quer a desordem quer a a perfeição. Juntamos o engenho à perfeição. Demasiados exílios para 63
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tão poucas heteronímias. Os governos não levam a sério as heteronímias. Um governo livre de legislar, é livre de legislar tudo poéticamente. Um governo deveria fazer tudo poéticamente. Um governo que se protege nos anagramas é de desconfiar.
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Relembro-me que eles ex-filosofavam e diziam que
eu era a serpente, essa criatura apocalíptica ou inicial que povoava o Treco-Lareco. É falso que eu fosse a serpente, e se a fosse estaria a enroscar-me em ti com um gozo imenso. É falso que eu seja um filósofo perdedor, derrotado na rua por tipos que sabem argumentar melhor que eu e com braços robustos preparados para a porrada. Tu vens jantar comigo como se eu fosse um filosofo perdedor, porém meigo, e pedimos vinho na mesma, nem sequer é preciso ser um vinho caro e garanto-te que tudo vai acabar na maior. Vens com a larápia sobre o Rilke, e ele é o Rilke, o poeta que trata os poemas como esculturas, a desbastar, e ele é o teu Tibetano, o que te faz meditar enquanto mastigas lentamente a salada e deixas cair pingas de vinho na toalha de plástico. Podes exibir o teu Tibetano, o teu mongezinho budista e tântrico com sorriso meigo. Podes pedir-lhe que faça milagres? Através dos nomes de certos veneráveis super-ioguis, podes pedir-lhe? Através dos nomes, lembras-te do Princípio esverdejante. Eu não, mas tu lembras-te do Princípio esverdejan65
PIERRE DELALANDE
te porque o traduziste de uma língua morta. Chamas-me o Picha Tonta por antífrase. Chamam-me o Picha Tonta, o que é logo ridículo e tenho ovos para dar, e tenho ovos para deixar à porta das casas como agradecimento de serviços de vários géneros. Ando a envelhecer e agradecer sem engrandecer. Sou mais um a envelhecer mais um pouco, com rugas, olheiras, menos cabelo e esquecimentos frequentes como o Montaigne. Upa, lá vens tu e apareces! Os nomes flamejam mais contigo perto. Os nomes flamejam ao almoço para melhorar a filosofia a que me atenho como a um caso literário mesquinho. O Cómico é apenso ao pensar, faz parte do núcleo duro da sua insensatez. Se é um membro a mais é um membro simples, seja de um corpo, de uma seita, de um partido: mera energia do Buda com auréola de Buda e tudo. É simples: a mera energia do Buda vem mesmo a calhar, vem mesmo ter connosco e entra-nos nos pés e vai subindo subindo até nos achar em obra e graça no cocuruto. Eu sou a esfera que contem outras esferas e tu a poesia magnética que atrai o real para a sua ratoeira, para a sua rata sábia — escuta a poesia magnética — escuta a solúvel filosofia tibetana, talvez, friccionando com a ponta dos dedos muito bem as tuas orelhas. Há um ideal na solúvel filo66
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sofia tibetana que ao assentar a poeira parece uma calmaria, um esplendor natural e original como se diz nos anúncios. A um ideal para alguns ou para outros, beijadamente doce, e não precisa de ser tibetano ou norueguês nem de raça ou religião nenhum. Qual é esse ideal. É este, este remoer em prosa, ou não o adivinhavas? Dou-te a Dúvida como uma grande oferenda, mais uma vez, e uma fatia de um queijo que faz muitas migalhas para te esqueceres melhor. Fica Grande/Quieto, puramente e beijadamente doce aí onde estás. Dou-te a Dúvida, a tal, a que te fará mudar o ar troloró. Grande/Quieto, puramente poeteiro, declamo numa alegre almoçarada que eu cá sou um poeteiro mui alegre e ofereço-vos uma almoçarada de escritos porreiros na qual vocês não estão nada interessados. Preparo-me energicamente para dar porrada com a energia de um poema ou outros escritos afins. Preparo numa chávena de energia que se irá remexer na História de Arte. O Eu, esse safado, expõe as histórias parvas dos artistas, com seus queixumes, imbecilidades e inteligência visual. "O Eu expõe bem", diz-me um gajo abanando o cachaço. O amor existe? É claro que o amor existe! Com o verão perfeito dourando e a toalha de banho paradisíaca e a visão da linha do horizonte bem esti67
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cadinha. Oh! Oh! Sou o Vociferador do verão perfeito dourando os vossos corpos e a taça de vinho branco a acompanhar as conquilhas. Eis-me vociferador de escrita a pagar a conta do almoço — não é lá grande almoço, não é lá grande fotógrafo esse grande fotógrafo encartado que me invadiu a casa e me pôs a fazer poses parvas. Protolínguas andam a flamejar para especialistas poliglotas ficarem maravilhados. Protolínguas a flamejar como um todotudo que se derrama sobre certas esculturas em pedra ainda agarradas aos blocos de pedra quase da pré-história. Perguntemos? Porque é que máquina de fotografar não me deixa bonito? Há esperança de que a cara não seja tão feia. Equaciono a Dúvida Imperfeita como parte de mim, essa parte abstracta e esquiva que teimo em chamar minha em letras maiúsculas? A Dúvida Imperfeita com o seu fabuloso e glorioso gostar de ser assim, pouco sistemática, vagamente convicta, com defeciências parciais e globais. É agradável durante 999 quilómetros gloriosos a gostar de ti. Depois há um quilómetro que falha e vai tudo por água abaixo. Espero por ti numa miniatura persa, com padrões e cores fabulosos. Quero fazer amor contigo em várias minia68
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turas persas porque há cores maravilhosas a rodear-nos. Espero que venhas com o som da tua voz todo especial e até podes tocar flauta ou um instrumento de cordas. Andamos separados e até é cómico porque antes estávamos juntos, muito juntinhos, como se não descolássemos a recordar o termos estado muito mais juntos, no princípio do nosso amor. Chega de sins a fazer chinfrins, é melhor experimentar uns nãos a abanar o rabo redundantes. Dizes que é cómico? Chega dessa saga de sins com heróis teutónicos e capacetes com cornos. Dizes “está lá” e preparas a tinta para encheres a tela de uma cor sólida. Espero que me proves os filetes, e que expliques o que sucedeu com datas e factos. Oh, espero mesmo que tu os proves! Oh tu, amante, especialmente ficas tão enroladinha como uma lagarta. Ou enroscada no meu corpanzil. Como amante especialmente te enrolas tal qual uma lagarta. Como é o Génio ao longe? Dizem que o Génio está ao longe, mas não dizem onde. Aguarda. Vejo os fumos. Ele lê muito, mas o quê? Lê muito obrigado, ó Beijocada Querida! O Verão Alegre passa, obrigado, Beijocada Querida, por este sumo de pêra e este salmão fumado! O 69
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Verão Alegre passa como mais uma risada ao longe, e como mais uma risada ao longe surge o Outubro a obscurecer e a esfriar ao entardecer. Verão a entrar no Outubro fora de estação, e contudo a saber a Verão mas com menos horas e mais chá de crisântemo.
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Ele considera-se um artista, "um artista em exílio".
Foi um dos que capitulou, que escolheu o exílio em segunda mão, ao abandonar a fama ao sair de uma antiga estação de comboios num subúrbio de Dublin. É um Pitagórico da fama ainda que coma favas com chouriço no mês de Maio. É Pitagórico mas com uma ligeira imperfeição, com um gosto pelo desvio maroto às formas perfeitas: uma coisa um bocadinho imperfeita é mais excitante do que uma coisa totalmente perfeita — é uma coisa mais ou menos perfeita? Quando é que uma coisa menos perfeita passa a imperfeita? — os acidentes que tornam imperfeitos são uma forma menos visível e mais secreta de perfeição, são o granus salis — eles têm a sua glória própria que se abre, que desabroxa do seu lugar tenebroso de cheiro intenso, para o tempo, para esse tempo perfumado pelos acasos com húmidade junto ao tojo na calçada. Entrar no tempo como numa brecha. Viver é estar nessa brecha que se escoa da tirana eternidade, da monótona, sensaborona e perfeita eternidade. A perfeição da eternidade é inócua e improdutiva. A perfeição natural, 71
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espontânea, temporalizada, será diferente da perfeição matemática, da insustentável perfeição matemática? A imperfeição matemática abre como uma porta que range para a perfeição natural? Ou a perfeição natural não precisa de portas, é já um aberto sem caminho nem portas? Ou é a vizinhança da perfeição matemática que torna a coisa arquitectónica, com escadarias barrocas, corredores kafkianos e belas janelas dando para paisagens arrepiantes? A perfeição matemática faz o inacessível pelo rigor? A inacessível porta por onde nunca entrarás pode ser a do paraíso, mas não é a porta da perfeição natural! No Yantra a perfeição natural surge como num ménu de restaurante? No Yantra o informe e o espontâneo reconciliam-se com o rigor matemático, e dão sentido às fomes abstractas do geométrico. A perfeição natural difere-se de si mesmo para que tudo floresça, para que tudo se faça espaço, mais espaço, dentro ou fora do espaço própriamente dito. A guilhotina faz florescer decapitações no espaço. A guilhotina é a irmã reluzente do pastoral. A revolução é o momento de emergência pura, cruel, inóspito, misturando uma inaudita alegria com o mais tenebroso terror. Quero o maravilhoso, a caducidade do maravilho-
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so, a caducidade precipitada e trapalhona. Temo, porém, o inevitável terrível.
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Cheguei a Buda no Inferno. Satori no inferno mes-
mo a calhar. Satori no inferno a achincalhar. Atinar no espirito é dissolver-se no Espirito do Santo. Esse santo foi o meu agente secreto. Tenho um agente secreto para fazer edições clandestinas que chegam ao inferno. As edições dos meus livros têm sido perfeitas e revoltosas, perfeitas na sua clandestinidade sem publicidade, revoltosas porque não conseguem ficar quietas. Edições que ser encontram nas estantes em casas particulares, em caves, no meio de florestas, em zonas escuras e por vezes perigosas. A realidade é tantas vezes clandestina. A realidade é uma conjectura escabrosa. Uma conjectura escabrosa que ainda não foi bem formulada, mas da qual temos uma viva impressão e uma vivência que varia muitíssimo e dá para tudo. Faço exposições a partir de coisas que ainda não foram formuladas. Faço exposições de não-meditações em não-meditações de budas a desorquestrar nirvanas. Sou o buda que desorquestra as sinfonias do samsara. Sou o que deslargou o sucesso para se inacabar a comer restos de guisados dos pratos dos outros na 74
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cantina seguido de um figo colhido pela madrugada. Fui aquele que deslargou o sucesso ao inacabar os primeiros passos, esses terriveis primeiros passos, para se entalar num esquecimento dourado. É dourada a máscara mais infame. A máscara mais infame de Deus é o autocriticismo carnavalesco de Deus. O autocriticismo carnavalesco como método crítico superior, como método crítico para sacralizar, na boa e à borla, sem ter que pedir descontos ao divino. Boas e à borla são as cores. O divino são as cores projectadas pelo vitral da catedral. São as minhas cores favoritas. Como te sentes em frente às minhas cores favoritas? Sinto-me como quem infringe convicções. Ponho hipóteses como quem infringe convicções só para se espatifar num desastre alegórico. São hipóteses inconsistentes a fabricar teorias inconsistentes a fabricar verdades de que eu gosto. As verdades de que eu gosto podem-se resumir a seis, a nove e a zero, estes três números ao mesmo tempo, uns iguais aos outros. O zero é muito mais acessível porque é ao mesmo tempo nada e um enigma. O nove diz que o novo é o inacabado, e que é uma nave que serve para transportar teorias para outras terras, para outros corpos. Uma teoria é o que vai partir para o novo, para o desconhecido não muito longe daqui. Ou o 75
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que vai parir o novo de uma barriga oval. O seis é o sexo, pandémico, sem sublimações ou castrações. Esta igualdade é mais acessível do que qualquer famoso encantamento. Qualquer famoso encantamento leva à maravilha que leva ao desapego. O famoso balbucia mmmmm... Somos todos pelo desapego, dizem os budistas e os hinduístas a irem para ashrams ouvirem coisas parvas, enquanto o gúru de serviço balbucia mmmmm... já cá canta na conta... todos me podem colocar em tribunal. Todos me podem colocar na internet como se fosse para sempre. O narcisismo é extraordinário metido na internet, através de cada qual sou documentado e tudo. Estou a ser extraordinário na solidão, nesta solidão de ficar por casa o dia todo já que faz um frio dos diabos e não há ninguém na rua. Deslargo-me de mim na solidão e não sei muito bem o que fica, talvez uma espécie de não-mim com moscas à volta sentado numa cadeira dura. Deslargo-me de Delalande que é um gajo vazio e remisturo Delalande com uma tagarelice vazia. Remisturo as minhas multiplicidades para gerar outras multiplicidades. Gosto das minhas multiplicidades muito de sofista. Estou numa de sofista para desfrutar de enganos, da gratificação 76
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de se auto iludir pura e simplesmente. Mudo de personalidade para desfrutar dos enganos como espectador pouco atento de mim mesmo. Constato que somos a mesma múltiplicidade a desdobrar-se em padrões parecidos, a mesma múltiplicidade a fingir-se em pessoas, a fingir as pessoas. As minhas obras-primas não são as minhas obras-primas, pois não precisam de mim para nada. Desenrascam-se sózinhas. Fazem-se automaticamente. A coisa é entre elas e o leitor, e eu saio pela porta do cão, pela porta abaixo de cão. Às vezes dou uma ajudinha, mas tudo isso é óbvio. Não precisam de ser minhas nem apropriadas por autores oportunistas ou gabarolas de ocasião. Não são nem minhas nem apropriadas, nem andam numa de famas. Nem curtem anonimatos, nem só famas, nem namoram anonimatos com bicos dos pés em pseudonímias balofas. Estão numa só de afectos nada zen. Reencarnam nos afectos, sem serem sentimentalonas ou resvalarem para o kitsch. Bolas para as lobas sentimentalonas! Reencarnam num deus de afectos, passageiro, num deus de borla, sem sacrifícios ou negociatas. Os fundamentos dos fundamentos das matemáticas andam a aldrabar-nos. As matemáticas andam a enganar a 77
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ciência fazendo coisas marotas com os seus fundamentos. Uma filosofia que se justifica com as matemáticas anda a comer sopa pelo cu, e isso deve ser complicado. Não me lembro de onde vinha a aragem quando nasci, mas sei que havia aragem e um cheiro a tomilho e alecrim na casa dos meus pais. Havia uma aragem quando estava a nascer por aí, e era no alto, e estava fresco e alguém fechou as janelas e foi ferver águas. O sedentarismo tem a mania de estar sentado numa cadeira com uma mesa perto onde se acumulam objectos e papelada. É o sedentarismo que engorda o chefe. O sedentarismo é a arte de engordar enquanto se bebe café. É a arte de engordar na quietude. Ou a arte de emagrecer na quietude para não continuar a engordar. Emagrecer é excelente para poder engordar depois e tentar emagrecer uma vez mais. Fazer jogging para estar magro para seduzir uma amiga de que gosto muito porque não me lembra mais nada. Porque é que me havia de lembrar? Também se pode emagrecer pelo ascetismo. Passa-se fome, mas não damos conta de que o ascetismo é muitas coisas diferentes e perigosas. Pode ser um negócio. Pode ser miséria sexual. Pode ser também um grande não, muito quieto, ao nomadismo, ao andar pelos campos à cata de bichos e frutos. O ascetis78
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mo é uma quietude ainda mais sedentária, mas sem trabalho, parasitária. Tudo o que tentas dizer ao tentar dizer algo que se calhar nem sequer interessa ao menino jesus talvez seja a imperfeição a que tens direito. Porque a imperfeição vai aperfeiçoando as perguntas que te mordem, e também vai aperfeiçoando a pergunta que morde o seu rabo, o seu cada vez mais balofo rabo. As perguntas mordem os seus rabos como o ser de Parménides e os quadrados pretos badalhocos do Malevitch, e os quadrados pretos certinhos do Ad Reinhardt. Reinhardt acha que já tem as respostas todas, e que as respostas fumam ópio em Angkor, e que o Tao é uma bela tampa negra sobre o que não é arte. E os campésticos do Álvaro Lapa, o que é que são? Um campéstico do Lapa é um incêndio num museu para que se possa passear muito fora? Um incêndio num museu são saldos pomposos de futuristas a incendiarem-se nos museus, o que é uma tolice. Eu uso saldos pomposos? Eu uso uma linguagem pomposa? Uso uma linguagem que despediu os guarda-costas, mas foram os guarda-costas quem se despediu primeiro.
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As vedutas em Lisboa não são vedutas. Em Lisboa as
coisas são tão luminosas que ninguém dá por isso. É como no Paraíso em que a luz é tão forte que não consegues fitar a face de Deus. Lisboa é uma cidade sumamente apolínea, tem o deus Apolo inscrito nas suas cores. É preciso ter òculos escuros para esconder a luminosidade, para aguentar Apolo, para aguentar a luz excessivamente casta e limpa dos poemas da Sophia, como diz o Paulo José Miranda. Quero mais òculos escuros e quero mais imperfeições que iludam. Quero imperfeições que iludam num livro com evasões, num livro com evasões para outras formas de tempo. Expus mal-entendidos de tempo. Expus mal-entendidos ao tentar perceber-te a literatura, a ti e aos outros. Ao tentar perceber-te e à literatura encontrei-me no que desapercebi e logo desapareci. Não perceber é uma experiência de potência. É o que me potência graças a si. É neste assim-assim que me preferes? Desaponto-te como assim-assim? O que é que preferes? Desaponto-me como uma comédia nórdica? Preferias uma comédia italiana com gritalhada, gestos largos e objec80
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tos a serem atirados? Exploro os mal-entendidos de uma comédia. Exploro os talvezes para roubar imensos talvezes, para roubar o rigor ao rigor, para aprofundar a falta de rigor dos talvezes. O não-saber é tesão exponenciado as palavras. O não-saber é lubricidade exponenciada. As palavras refazem-te depressa, as larvas desfazem-te menos depressa. As oportunidades refazem-te a despachar. A oportunidade é o sentido que está pronto a ser provado. É o sentido dos milagres. O suspiro dos milagres degrada-se em devoção, em balbuciamento, em repetição de melopeias e mantras. O suspiro como pontuação é coisa perguiçosa? A pontuação perguiçosa do mundo deixa muito por dizer. Nomes que se põe a cavalgar o mundo. Nomes a cavalgar com o olhar aos pulos. Olhares que são suplementos de beleza. Imobilidades a arredar suplementos de beleza. Imobilidades que rolam do cimo da sua inércia. Tentativas apimentadas que rolam e dão em burlesco. Tentativas apimentadas de desconsiderações geometricas. Bebés sem considerações. Bebés a babarem-se em cima da filosofia. Bebés a babarem o informe e a folhearem muitos livros com mãos inábeis, das que rasgam sem querer. O informe a folhear muitos livros num só. Uma autobiografia num só silogismo a pretender condensar tudo 81
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e a deixar uma sensação de insatisfação e de supérfluo. Uma autobiografia em notas de rodapé ao nada. Mostra lá esse rodapé! Mostra lá os escalopes de nihil! Ao nada mostra-se o génio, como um repolho! O génio de cada um é inalienável mas anda alienado, mal alimentado, com varizes. Cada um está com o outro ao mesmo tempo a viver vidas separadas. Ao mesmo tempo e de muitas maneiras a influência entra para assombrar e separar ainda mais. São muitas as maneiras da influência se impor como empréstimo intransmissível. Que fazer com esse empréstimo intransmissível? És guardião de um sim duvidoso. Um sim duvidoso que se precipita e vai parar ao hospital. Precipitase na confiança absoluta e fica mumificado nela. O eu serve de confiança absoluta só para o seu eu. Serve para fazer colagens que o aumentem ou o diminuem. Serve para fazer colagens a partir de fragmentos de interpretações. Interpretações a partir de sons malucos. Um som maluco pode levar à elegância duma escrita. Há uma elegância nos escritos rasurados. Sublimei para dessublimar e sublinhei depois com alguma descrença no sublinhado. Deixei-te os egos rasurados em cima da cómoda da entrada ao lado do sítio das 82
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chaves. Sublimei para dessublimar uma civilização. Deixeite num abraço numa esquina qualquer em Praga. Anotei isso, esse abraço inesquecível, numa nota de rodapé raspada. Um rodapé raspado pelas unhas do cão balofo é a imagem que não adianta? As letras sugerem imagens. A imagem das letras é já uma forma de perguntar inequívoca. A tipografia e a caligrafia perguntam-nos coisas. Confundo a forma de perguntar com a curiosidade latente, cusca, a que contraria o tédio. Confundo político com políptico. Um político com polípticos cheira-me a esturro. O que é superior imita um caniche. O ladrar de um caniche é o ladrar de um caniche, confessou-me o primeiro-ministro numa festa de antigos colegas. Estou com um apetite sequencial. Apetece-me mais e mais a novidade acompanhada por formas serializadas. As séries são sérias? O sequencial acelera a novidade? A nossa paciência perde a paciência e encontra remisturas e reumatismo.
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A nossa impaciência é impertinente impaciência, é a
impertinência na mistura da mistura que nos é. Nada é tão pavoroso quanto a nossa impaciência, quanto a nossa mistura do que não-existe com o desejo de sermos mais do que somos. Pura combinatória de genes, influências, memórias, personalidades, fingimentos, acasos. É a condição que nos é à condição. A que nos impinge o pavor. A condição de parenteses entre parenteses nos abraços de reconciliação é o depois do depois do incompleto. Livros que se incompletam e cuja leitura predomina sobre os lugares em que se lê. Livros que têm subtilezas que não se encontram nem neles nem em nós. E depois chega o animal que desorquestra a culpa que já tínhamos sossegado. Todos os budas andam a desorquestrar as nossa certezas na carne e nos ossos. Uma caveira não é menos passageira do que a carne e as dores que nos cozinham o pensamento. Todos os mundos são impermanentes, assim como os deuses que se saciam neles, assim como todos os conceitos, como a impermanência. Não há nenhum conceito que não seja impermanente, e com isso 84
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está garantida e insubstancialidade de qualquer essência. Há sofistas que são sofistas e o ignoram, mas é raro, porque o sofista sabe perfeitamente o que está a fazer, mesmo quando improvisa. Somos todos sofistas a partir do momento em que nos assomamos conscientemente da linguagem e do modo artificioso como a linguagem se tenta fidelizar aos actos e às coisas. Nomear não é ser. E quando o nomear julga ser toda uma panóplia de traições surge, assim como a magia inerente da acção das palavras sobre as coisas, que não é outra coisa senão a magia, e, numa escala mais delirante, a teurgia. O pensador é alguém que despediu a sua fome e seguiu uma seta que o leva para o inominável. Os escritores gostam da fome e de bebidas alcoólicas. Conheci poucos pintores que se embebedassem enquanto pintavam. Um deles estava sempre sóbrio na sua bebedeira a amar a pintura e a desprezar o mundo, a encher a pança de mestres e a puxar o autoclismo com frequência. Os escritores não têm que escolher entre a anorexia e o alcoolismo, entre a escrita e o mundo. Inventei 9 calamidades combinadas com outras 9 calamidades e no total foram 81 calamidades de seguida. O terror dos exemplos rigorosos pede po85
PIERRE DELALANDE
esia à linguagem. O terror da tua retórica sobrepovoa estes meus livros revistos múltiplas vezes pelos meus olhos e as sombras. O esforço insinua-se entre as sombras com o fantasma do meu pai a parodiar o fantasma do pai de Hamlet. O esforço insinua-se neste mundo por causa dos bebés que se tentam pôr em pé vezes sem conta até atravessarem aos tombos a cozinha e abraçarem-nos as pernas. O que pode uma peregrinação às obras de arte? Ele quer uma peregrinação à arte, mas a arte não existe, só existem obras de arte cada uma a competir com as outras, a dar cotoveladas, a pregar rasteiras, a espetar facas. Ele torna a linguagem numa idioma para a morte e julga que a morte são os momentos de ignorância mas é só uma cessação, uma rejeição do tempo. Nos momentos de ignorância todo o riso reaparece estampando na cara dando um ar de idiota. Quando o riso reaparece surgem estranhas diferenças na repetição. Se as coisas falsas nos dão sensações não serão essas sensações verdadeiras? Sensações que são dadas ao quadrado ou ao cubo. Sensações que nos dão as sensações dos outros quando lhes aferimos o prazer ou a tristeza ou a solidão. É a empatia uma falsificação por conta própria? As multiplicidades das maneiras falsas podem tornar-se vivas, perfeitas e fazer86
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nos rir e chorar ao mesmo tempo? Multiplicidades de gosto a pedir mais gosto e a pedir extras. Preferimos números extras para voltarmos a fazer pateadas. Preferimos actos que deformam as indefinições da sorte. Reparamos nas linhas que se transformam na sorte. Linhas que cozem a sorte à roupa, linhas que cozem a roupa com verdades de flanela. Possibilidades arrumadas nas verdades quando vais para a cama e tens uma botija quente lá à espera e depois encostaste a uma nádega com a temperatura perfeita. Possibilidades que desapontam os super-exigentes. Suspiros pelos que se desapontam. Suspiro pela fé na animalização. Fé a facilitar a animalização na poesia.
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Exercitava-me em origens. Quem diz origens diz fa-
ces, sopros, abismos, abóbadas, germinações, bicharada. Exercitava-me desencardido de maleitas demiúrgicas. Expunha-me a namorar múltiplicidades. Trocava as coisas de lugar e apercebia-me que por trás há sempre pó. Julgava que era um sendo outros sobre os quais não tinha controle nenhum. Combinava letras de alfabetos diferentes. Espiava as antigas correspondências com amores que ficaram por acabar tendo acabado ou nem sequer começado. Expunha-me a namorar a elegância no seu vestido curto e justo. A carne é a elegância, dizem os tentadores a quem faltam dentes ao sol poente. Carne de aldrabão a fazer bem às mentes alheias, as que estão precisadas, as eleitas, as predestinadas. Sarcasmos de mentes alheias a desaparafusarem convicções. Sarcasmos de maldade, da mais pura e refinada maldade. As profetas abortavam por causa do custo de vida. Nem os que davam esmola podiam providenciar. Não se via nada à frente. Era neste tempo, neste antigo tempo em que o dinheiro não chega e não se ganha e não há nenhuma perspectiva da 88
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
coisa melhorar, quando tudo deveria estar melhor e as outras coisas estão cada vez melhores, todas menos as nossas, e nem sequer dá para ter inveja dos que estão bem. Os profetas abortavam a sua santidade na sombra e não o confessavam a ninguém. Livros que escarnecem de livros que escarnecem do Pierre Delalande, esse intratável canalha de Avignon, logo na capa. Ilude-se logo na capa nas referências a Avignon onde há uma ponte em que se dança e um famoso bordel a que alude um ainda mais famoso quadro pornográfico de um pintor. Iludir a invisibilidade contornável, aquela que te rodeia com as criaturazinhas inexistentes e a recordação dos mimos que te davam com um cão a pelar ao lado junto à lareira. Um involuntário superlativo permanente que se instala na tua fronte de cavaleiro andante, de quem busca a glória numa demanda feérica e boa dando cabo de néscios desconhecidos. No cabeleireiro a angústia resolve-se em permanentes depois de belas massagens a lavar o cabelo. No cabeleireiro a transformação procura a transformação que procura 89
PIERRE DELALANDE
a elegância, a referida elegância que nos avantaja um bocadinho dentro do ridículo a que fomos condenados. Pulga de sarcófagos, essa elegância. Exponenciando mal-entendidos continuei com exponenciados mal-entendidos.
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MONÓLOGO DAS SOMBRAS
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Estou a Shakespecular em borgonhês e a corrigir os
epitáfios à Arte Conceptual. Estou no rodapé do rodapé do suicídio em geral e da arte conceptual em particular. Os novos suicídios são notas digitais a imagens monocromáticas nas quais inscrevo frases pretenciosas sobre o estar aqui ou não estar aqui. Os novos manifestos são críticos dos manifestos que envelheceram no prestígio e são críticos de empréstimos de empréstimos. Os empréstimos são a tradição, isto é, a imperfeição como máscara a passar à máscara seguinte os débitos acumulados em máscaras anteriores. Tenho afilhados de empréstimos crónicos. Adoptei afilhados da imperfeição ao roubar roupas para pseudónimos e ao roubar a arte de repetir aos seus pioneiros. Penso em Stein, Beckett e Bernhard como pioneiros encartados de palermices que não são dignas de nenhuns deles. Vou enunciando o repetir, o redobrar da imperfeição, à martelada. Delalande, ou seja eu, enuncia a prolixidade inexperiente refutando-se. Deus ia refutando-se num ritual. Existe um Deus para a posteridade da insónia? Ou um anti-Deus que não seja o 91
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Diabo mas o que o sorve num buraco de hiper-ténebra. Tenta imitar a insónia ao meio-dia. Tenta imitar a desintegração da desintegração da Negação. Nagarjuna é o ventríloquo da Negação. Todo o Buda é o ventríloquo do intransmissível. A exuberância anda disfarçada de intransmissível. A exuberância saiu no último fim de semana disfarçada de submissão. Deram-me como quarto de hotel o Museu da Submissão em Tókio. O Ernesto de Sousa convidou-me para ser o director do Museu das Perguntas que Transcomunicam e eu aceitei-o no mais puro secretismo em 1984. O Robert Filliou ofereceu-me várias perguntas que também transcomunicam na sala ao lado das Perguntas que Transcomunicam. Tinham-no como sagrado entre os bananas, disse Johannes Baader ao atirar-se de pára-quedas num congresso de Jesus Cristos. Um satori substituído por uma tarde com o contabilista é infame, asseverou Ofélia. A telepatia infame pode suceder no meio da sesta. A telepatia dos afectos vem polindo o romanesco, este romanesco arrepiado que situa pouco as coisas e as encavalita à pressa. Encontrei afectos polindo edições romanescas com Shakespeare a dizer está aí alguém? how do you do? Plantei o satori em diversas edições críticas e nalguns paperbacks mas não digo de quem. 92
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
Desci as escadas e plantei o satori com sofistas às cavalitas no jardim do bairro que agora está em obras. Retratei alguns sofistas famosos a tirar do chapéu satoris para todos nós. Ao falar da solidão deslargo-me em títulos que podem ser de canções, de exposições, de filmes, de livros, de divórcios. Devido a súbitos desejos deslargo-me em títulos pomposos para chamar a atenção. Os desejos aceleram calamidades. A morte acelera calamidades e depois dá em tranquilidades sem ter que recorrer a sedativos. A morte re-equaliza a animalização. A morte é a imperfeição carnavalesca a atravessar o corredor que leva à Grande Pirâmide. Chega-se a uma grande sala e alguém exclama: por Hórus detém-te!
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Exercitava-se no subliminal contra a sublimação e a
solidão. Colava cores contra a sublimação. Cores enfaixadas no estudo? Um saber que alheia, que desvia do fazer coisas relevantes como saber estender a roupa com as molas de cores apropriadas, ou ainda passar a ferro, essa arte que consolida tantos escritores rabugentos. Produzo um não-saber que me alheia. Um não-saber tesão, um não-saber de alta tensão. Campéstico duvidoso a pairar na personalidade em falta ou em mutação. Comi cabeças com personalidades de escabeche. Comi cabeças de tigres, de rinoceronte e de elefantes. Comi-as saboreando a solidão dos tigres e da demais bicharada passeando raiada. Pela solidão deslargo-me do sonho e deslargo-me de qualquer sonho de poder a comer bifes com couves de Bruxelas num almoço no gabinete do primeiroministro sobre o Tejo. A compreensão do poder é fatal e é difícil perceber-lhes as ganas e toda a dimensão enfatuada com namoricos com secretárias ou subsecretárias de Estado 94
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com choffeur e tudo. A compreensão torna as guilhotinas mais afiadas. As mais afiadas têm enteadas, algumas com dotes culinários para lá de saber fazer saltar crepes ou desenrascar-se com panquecas. A melhor publicidade é sorrir de novo para o povo a cada esquina, em cada caixa do supermercado, em cada guichet de cinema. Sorrir um sorriso novo, sem cáries, sem maus-hálito, sem cor de tabaco. Editei a irregularidade. Editei a irregularidade das ideias como ideias autónomas da autobiografia do mundo. O mundo escreve-se, insiste em escrever-se, corrigir-se, reelaborar-se. Eu reciclo a autobiografia do mundo nas minhas tentativas de me autobiografar-me aos solavancos, às emendas, em renitente expansão. Eu sou a minha desigualidade preferida, a que deixa certas partes na maior e outras estilhaçadas à espera que alguém as ponha na reciclagem. Reinventou-se a desigualidade preferida. Preferida deferida. Reinventou-se graças à desdomesticação, à inversão deste processo de submissão animal que está na base da autosubmissão e de toda a submissão voluntária que vai por aí e que é pior que a vassalagem. Essa submissão que vemos nos artistas a dar graxa aqui e acolá o tempo todo. A carreira 95
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artística é todo um emaranhado de submissões para alcançar uma glória submissiva, assim como uma submissão ao poder do dinheiro essa inenarrável ficção. Sentia os condimentos do mundo graças à desdomesticação. Sentia a nossa história a desvairar num êxodo animal. Nas tripas a coisa resolve-se. As palavras gostam de revolver-se mas não nos resolvem, só nos iludem, e iludindo resolvem-nos, não no que queríamos resoluto, mas no paradoxo ao lado. As palavras de Deus são de algum Deus a jogar algum jogo que não é de dados? Um jogo de ciúme? De fúria? De carinho? De terror? Ele exercitava-se nesse jogo sem nome e sem ideias? Exercitava-se na lucidez revolucionária que é o levar para a frente a complexidade, a intensidade e a liberdade. Casei com a lucidez revolucionária e tivemos filhos pequeno-burgueses muito agarrados à propriedade privada e ao empregozinho, seja do porco capitalista, seja do Estado. Casei com aparato e divorciei-me pela calada. O meu aparato genético torna-me desejável, dizem, mesmo que não transpire saúde por todos os lados. Sou 96
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uma obra-prima genética como quase toda a gente, um sobrevivente a aperfeiçoamentos de milhões de anos. Sou uma obra-prima à custa de alguns falhanços alheios e de imensas derrotas pessoais. Sinto a excessiva maquilhagem de falhanços alheios, a excessiva maquilhagem da atenção sobre diversas humilhações. Sinto na pele a má-língua lambendome, e a má-língua neste caso é uma tribo de línguas bem ensopadas em venenos com estilo. Carrego talvezes da atenção. Talvezes a estacionar em parques de subúrbios teorias frescas em zonas enlameadas. Quero ter parques de teorias à minha disposição para poder estacionar à vontade. A personalidade de A anda a ser bombada pela personalidade de B e de C e de D e esta depois junta-se às outras e bombardeia a E, F, G, H. O sucesso melhora os maiores e põe-lhes uma porra de responsabilidade caricata em cima. O sucesso melhora com o esplendor das aparências. Ando a respigar o lixo da história para cultivar intrigas pessoais, pequenas narrativas. Primeiro deixo-o a fermentar. Com sorte faço como a Llansol e dou aos derrotados dos oprimidos algumas oportunidades ficcionais para regressarem às nossas vidas, esfregando a pomada do fulgor. 97
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Ando a respigar nas tragédias da história algo que não é nem a dor nem os heroísmos, nem os hábitos, mas recorrentes sentidos altos ou em saltos altos. Respigo na história o que se difere nas recorrências. Guardo a minha história num museu minúsculo. O deboche da história cabe num museu minúsculo?
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Livros que são pura posse, pela mania da posse, de
lhes ter o poder nas estantes? Livros debruçados no striptease da pseudonímia, a mostrarem quem não são, assim como o autor mise a nu. Sou a pseudonímia a livrar-se de uma boa parte da autoria para sempre com o efeito boomerang a bater na porta fechada. Sou uma comédia a inverter uma comédia que explora certos assuntos que revertem paródias. Aqui vão hipóteses que exploram económicamente assuntos mal-assumidos — hipóteses que são chantagens sobre as chantagens sobre os factos. As futuras regras têm encontro marcado com o vazio. As heteronímias de Deus geram as perguntas que geram as perguntas que levam à riqueza. O inferno é riqueza a ser explorada no submundo? O inferno é uma sub-empreitada às ordens de Deus e este poderia acabar com ele a qualquer momento. O paraíso é um condomínio fechado só para Deus e gente aborrecida que se vai empanturrando em orações e luz fortíssima. Quem cuida das plantas no Paraíso? 99
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Quais os nomes dos anjos jardineiros? Que actividades há por lá, além de rezar eternidade afora, para nos livrarem do tédio? O paraíso é um intermezzo poli-ateísta onde todos os prazeres fazem sentido? Vêem-se por aí 81 sentimentos à cata de intermezzos poli-ateístas, assim como mais 99 sentimentos à procura de subsídios para investigação. Xaropes para mais subsídios. Reordena a libertação como assunto prévio. Reordena o espaço num espaço acima dum rodapé. Arrumar transcomunica como rodapé. Arrumar transcomunica a arte pela arte do insulto, essa inusitada forma de canalizar o amor, esse grande canibal. A transformação pelo insulto, e sobretudo pelo auto-insulto com a vizinhança a pedir para te calares. Na arte de auto-insulto sou um mestre a tentar não a praticar. A transformação da auto-consciência desagua na auto-consciência que desagua em múltiplicidades e depois temos que limpar tudo com a esfregona. Se perguntamos podemos cair nas armadilhas das multiplicidades? Se perguntamos generalidades é porque há generalidades nas pergun100
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tas embuçadas, embora não saibamos se as há nas coisas. Se perguntamos generalidades é porque acreditamos na ubiquidade de certas palavras, no elas estarem de certo modo, como as telecomunicações, em toda a parte. Por exemplo: que coisa é a poesia? Ou se não é uma coisa onde é que está exactamente? Será que a palavra arte é indispensável para entender uma pintura, ou está lá só a mais para arranjar confusão da grossa? Acreditamos realmente na ubiquidade, em haver coisas que estão em muitos sítios ao mesmo tempo, como por exemplo a Arte em muitas obras ditas de arte? Acho que é muito difícil encarar isso de frente. Um sublime enamorado de si. Um sublime enamorado de factos, dos corriqueiros. Um Deus dos factos com roupa impecavelmente engomada e um enorme guarda-fatos. Deus atinge o satori num romance involuntário e olha com desdém e ironia a sua obra e a sua glória. Exuberância num romance involuntário. Exuberância de sucessivas aproximações. De sucessivas aproximações libertárias. O mundo reconcilia Deus com o culto de Deus pelo dourado. Também pode ser reconciliado pelo negro, pelos buracos negros. Uma rigorosa prostituição senta-se no sofá da escrita. Tor101
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na-se essência através da escrita. Depois despede o rigor. Faz-se maionese de essência com o azeite da imanência?
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Desfazia-se com a imanência acompanhado com ba-
tatas fritas. Desfazia-se da harmonia a fabricar abismos e comer mousse de chocolate. Ter que fabricar abismos, mas que maçada! Ter um satori a despachar... e despachar... e depois? Posso descrevê-lo como autobiografia instantânea depois? Descrevê-lo como autobiografia é semear malentendidos? Havia uma libertação em que se reconhecia para poder semear malentendidos. Dedicava-se a uma obra de arte que excita as hierarquias excitantes da Negação com abutres à volta. Complexidades substituídas na Negação e sinos ao longe. Complexidades substituídas que realizam o Vazio. Realizam o Vazio com tiques dionisíacos, címbalos e taças. Dinamite do romanesco muito fresco num mercado no Arzebeijão. Dinamite do romanesco para polir o inexacto. Na confusão tento aprimorar o inexacto. Na confusão do tigre está o jogo do rei. Persistente, o elefante entra no jogo. Persistente, porque impossível, porque tem presas e uma tromba lúdica. Faz de conta que é xadrez.
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Insisto em expressões que o são porque impossíveis. Expressões que masturbam símbolos antiquíssimos que acabam por se degradar em alegorias confusas à procura de lugar em iconologias extravagantes. Experimento várias coisas que masturbem símbolos. Como por exemplo? Mmmm... ainda não sei. Experimento palavras que desmoralizam a ordem simbólica, que a deixam de pantanas como um escaravelho aprisionado por uma multidão de formigas famintas. Mete-te em palavras que desmoralizem outras palavras. Tens demasiadas teorias do carnavalesco a carnavalar. Teorias do carnavalesco que mudam as fronteiras dos países nos mapas, assim como os nomes, as cores, etc. Tens teorias a possuir mapas que atiram serpentinas e desatas-te a rir. Eu sei que, mais uma vez, não me vais levar a sério nem um nico. Temo-nos como mundo a afundar-se e as perspectivas são convincentes, a coisa está mesmo a ficar preta demais. Temo-nos como mundo muito sozinhos e muito sozinhos com todos. E de vez em quando alguém nos apalpa ou nos abraça ou cruza um beijo e esta é a prova de que pode ser diferente. A preservação dá-nos a sensasão de que somos todos e indispensáveis, mas só somos alguns e a 104
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curto prazo para outros muito provisórios. A preservação é a manha de manter o jogo actualizado, mesmo que saibamos pessimamente as regras. O jogo actualizado é antigo e mutante. Jogamos com falta de jeito. Por vezes fazemos jogadas espectaculares nem sabemos como nem porquê. A invisibilidade liberta para alguma visibilidade. A invisibilidade liberta a Negação que vem do fundo da terra, das profundezas, daquelas que foram narradas na Viagem ao Centro da Terra. Há muitas maneiras da Negação insidiosas. Há maneiras mumificadas em perguntas mumificadas. Perguntas sob a forma de oráculos e números. A geometria faz entrançar números e por esse meio é oracular, como no I Ching. A geometria substituí melhor a oração e a meditação através das relações dinâmicas que nos dá. A lógica geométrica está a absorver as orações. A lógica transcomunica forças sexuais? O passado transcomunica forças sexuais? O que conversamos depois das conversas sem dizer uma palavra é o sexual, corpo a corpo, umbigo a umbigo? O passado é o mobiliário que nos protege do vazio do presente. Os móveis estão aí com partes 105
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restauradas e cera apropriada, com resquícios de terem sido de avós, como por exemplo, a poltrona onde o avô foi ficando até se tornar espectral como nos livros do Savinio. Depois sabemos que é para isto que cá estamos, que nos destinam outras poltronas e que o melhor é irmos exercitando a nossa futura função de fantasmas. O presente é uma casa desabitada que tentamos ocupar selváticamente. O desenraizamento da matemática mostra-se como vazio, este nosso vazio escaqueirado. O desenraizamento da matemática leva à decomposição, aos números soltos, desfigurados, espalhados no quarto entre peúgas fedorentas. A anarquia numérica leva à decomposição ou à perfeição? Ou às duas? Um poema é a imagem de uma paisagem inadiável na qual ainda não passeamos e na qual, certamente, nunca iremos passear. Qualquer sensação faz parte dessa paisagem inadiável que se desvia de nós e de quem a lê. Nunca se vê um poema, e se assim é, ainda menos se verá o poético. Qualquer sensação engorda nas preferências que se desatam dela contra coisas que renunciamos. A engorda nas preferências deixa-nos mais pesados e mais imóveis. A doxa é um sentimento concretizando certas emoções 106
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que estavam suspensas. Há quem diga que é um sentimento concretizando a beleza impossível. Sou plagiador dessa beleza impossível. Sou plagiador de conteúdos indeterminados.
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Exercitava-se em conteúdos indeterminados. Exerci-
tava-se em transcrever autobiografias de velhacos que são as que prendem a leitura. Usava respostas de recém-nascidos aos enigmas zen. Vagidos, murmúrios, choradeiras. Usava respostas disfarçando-as de escuríssimas marotices, encapotando-as de negras oportunidades. A matemática sobravalhe às oportunidades. A matemática sobrava-lhe aperfeiçoando os clássicos, os que iriam ficar depois de nós na prateleira que ninguém lê. A aperfeiçoar os clássicos perde-se a sua comichão. Há que repetir o strip-tease, dizia, embora não me aqueça nem arrefeça, e até me desagrade. Andas a repetir o strip-tease dos adjectivos importantes, dos adjectivos importantes muito dantes. Roubar subtilezas às contrariedades. Viver a gargalhada à gargalhada. Variedade no viver a gargalhada. A variedade dos temas deve-se a combinar temas com o indeterminado. Os museu servem para acumular padrões, variedades e excepções. Expus num museu de capitulações, de der108
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rotas, de humilhações. A ilusão das capitulações aliada aos detalhes das decapitações. A ilusão retorna à atenção, ao sensual deus original. Merecemos um museu das imperfeições inesquecíveis, daqueles que nem sequer foram falhanços. Pergunta-se pelos inesquecíveis, os excêntricos, os feios, os amedrontados, os desmesurados. Pergunta-se no baptismo: a água é mesmo o baptismo: a água é Deus? Qual é o truque? Exercita-se Deus sobre as aguas a passos largos? Exercitava-se em notas divinas ao intertexto divino? Escrever muitas notas para se ser santo nas margens e caminhar sobre aguas. Notas para ser santo para si mesmo, fora de todas as legitimações encartadas, das quais se deve sempre desconfiar. Ou vale mais a pena não ser santo para si, dado que se trata de uma vaidade e uma arrogância das quais devemos desconfiar? Triplicou-se a documentação do que invento como feito dentro de mim? Triplicou-se a documentação forjando escólios, imagens, textos, actos, fábulas, milagres. Arrumar temas forjando escolhos que dão aquele ar de curiosidade com o nariz a pingar. Arrumar mundos divinos nos mundos abismados na escuridão. 109
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Enunciava a escuridão magnetizando milhentas práticas, sobretudo literárias e o teológicas. Enunciava a dúzia como criticismo da unidade e como adulação da dezena, essa perfeição pitagórica levando os outros números ao colo. A dúzia é a conta perfeita sendo mais que os dedos. Penso na dúzia de ovos, e em cada ovo como possibilidade de um mundo sair dali com seus cânticos e textos. Enganos às dúzias. Desvarios das décadas. Enganos sucessivos como obras a dar que falar enquanto dura que falar. Sucessivos desenganos como obra de arte das quais os especialistas acham que não há nada a dizer coisíssima nenhuma para que fiquemos num mutismo profissional. Avanço do que chamamos obras de arte por outras coisas afora. Avanço do inexacto para o inexacto e logo para o múltiplo com infâmia. Uma infâmia miraculosa.
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Abreviaturas de milagres? Um milagre é uma abrevia-
tura no tempo da eternidade, um rigor parente da glória. Budas da glória encontram-me no desespero. Budas a desorquestrar a libertação reduzem-na à força da melodia e a uma só voz. Em tempos costumava desorquestrar a libertação para que esta ficasse mais solta, sem cordas. Usava factos. Sou bom a livrar-me de factos. Sou bom a namorar falhanços. Costumava namorar falhanços quando era muito novo. A experiência e a maturidade roubaram-me os falhanços. Antes usava a virtude enunciando a virtude e enunciando inexperiências e alguns desastres sentimentais. Nesse mobiliário de inexperiências amei raparigas com ar de terem muito menos anos (mas não tinham) e que bebiam garrafas de vodka. No fim da minha primeira relação a música de John Cage converteu momentos de desespero em alegria e serenidade. Refazer o amor no desapego. Refazer o amor revolucionário com opiniões revolucionárias ou com opiniões ma111
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ternais. Consegui deixar-me seduzir por mulheres einsteintâneas. Gosto de coisas einsteintâneas. Gosto de micropartículas para limpar micropartículas para limpar o satori. O importante não é o satori. O importante não é escrever, mas é saber escrever com intensidade e saber decapitar o saber e os estilos. A aparência dos estilos ilude-os. Fiz a instalação de uma vontade noutra vontade que se achava importante. O que vem a seguir desfaz o que agora é importante. O que é derradeiro desfaz o anónimato. Há muitos rabos a ficar de fora.
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Procurei o anónimato e encontrei a múltiplicidade.
Foi mais borbulhante, mais complexo, mais agitado e rico. Os pontos de vista substituíram a impostura da forma. Não há percepção completamente pura, minha querida, confesseilhe depois de me separar com cara de caso. Logo nos despedimos e nunca mais nos beijamos, sequer nas bochechas, muito menos nos lábios. A percepção pode ser bem mais fresca e inaugural, mas é apenas uma maneira de sentir as coisas muito diferente da telepatia que também sente. Encontrei na múltiplicidade as ambivalências do protagonismo. Procurava o extraordináriamente só no extraordinário acompanhado ou só no instantâneo? Fiz-me vestir e comi um pudim instantâneo? Fiz vestir hipóteses de não-meditação no Japão onde também fiz esculturas em papel de arroz que muitas vezes se transformaram em vestidos. Encontrei hipóteses em saldo no Japão num mercado em que também vendiam peixe e lascas de peixe seco para fazer sopas. Editei a Doxa para re113
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abilitar a Paradoxa e para tal recorri ao meu conhecimento em adolescente dos aforismos patuscos do Oscar Wilde. Editei a doxa através do rumor, do ruído captado através de diversas gravações nas minhas longas caminhadas pela Grécia de Ritsos no início dos anos 70. Eu aspirei a Doxa através do rumor a ser sintonizado. Memórias postiças de Memórias postiças em jogos de totalitarismo e democracia. Andei perdido em jogos de poder na confusão do totalitarismo durante o período dos coronéis e depois da restauração da democracia na Grécia vim para Portugal onde a revolução era bem mais efervescente como certas pastilhas medicinais. Então fui convidado para dar aulas pelo M.S. Lourenço que leccionava de costas voltadas para os alunos e para a revolução como se estivesse de roupão com o Wittgenstein às cavalitas. Desde então o meu lar foi Lisboa. Andei a roubar famas que roubavam famas intransmissíveis. Vivo entre linguagens intransmissíveis. É uma crise grega, porque a história da Grécia é a de sucessivas crises, e a crise, no fundo é essa imemorial urgência grega em dar respostas, essa irrequietude de quem está apavorado e quer uma solução a todo o custo, nem que seja através da 114
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impotência do pensamento. Até o Ser é uma resposta a turbulências e tiranias e Zenão, num momento que até pode nem ser dele (as doxografias são assim), mordeu, quiçá arrancou à dentada, a orelha de um tirano. Esta é uma crise que não se encosta ao Ser, esta minha crise insolvente que será tapada por outras crises e que conheceu no prazer da tradução de gregos antigos e modernos a resposta mais urgente às crises pessoais e políticas. Traduz-se para suportar a devassa das crises. Vivo as calamidades da calamidade da origem sem origem? Há por aí futuras palavras de uma origem por encontrar? Futuras palavras ruminam a minha heterobiografia, aquela em que os outros me vão inventando e escrevendo como se os fosse e eles fossem outros. O informe anda a folhear a minha heterobiografia para lhe aventar factos à fuça. O informe põe-se a folhear o sagrado sem se tornar um deus, um deus terrível do caótico, da ausência de limites, um deus cruel da Justiça sem face e do castigo pela dissolução.
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Qual é o motivo que leva um deus a ser deus? Uma função? Um destino? Um desleixe? Uma força? Qual é a forma da animalização que subitamente se eleva à condição de um deus no qual nos reconhecemos em parte, ou na totalidade, animalescos? O autocriticismo reinventa a animalização? O autocriticismo reinventa o terror dos sacrifícios? Para quê louvar o terror dos sacrifícios quando a própria religião tratou de se desembaraçar dele? Louvar já é comercializar? Falar de mim (do Eu) já é comercializar? A subjectividade tem propensão a ser comercializada se for suficientemente pitoresca. Basta um bigode ridículo ou uns óculos. Os óculos já os tenho eu. Eu ando numa bicha para melhoramentos? A vida segue por causa dos melhoramentos? A vida interior ficou no interior do guarda-fato, perto do anonimato a precisar de ser bem escovada. A guerrilha do anonimato não é muito bem sucedida contra os prestígios da autoria? De qualquer modo a autoria é sempre mais afectiva que o anonimato, e preferimos ver um rosto a nada, e apaixonarmo-nos por alguém, com os inevitáveis defeitos, do que ficarmos em branco. A guerrilha como metafísica? A Fome como metafí116
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sica? A Fome de polissemia é a minha mania. Quero mais polissemia. Prefiro os equívocos da polissemia, de longe, aos discursos unívocos, ao sentido bem alinhadinho, sem pruridos. Quero mais indisciplina sem deslargar o método. Aliás, é o método que me permite variedade na indisciplina, caprichar a partir de uma exercitação, galgar em gana o desconhecido. Qualquer coisa é preferível ao nada? Nem sequer precisa ser o Ser, pode até ser a negação ou um universo medíocre. A Negação é uma espécie que se afeiçoa ao espaço existente para tentar a sua sorte num espaço não-existente ou vagamente existente. Esse espaço é a teoria, o que é um enguiço que não se separa nunca completamente do que nega, tal como o não-ser nunca se desenrasca do fantasma justiceiro do ser. Esse espaço é a interiorização do sacrifício que se aperfeiçoa em algo parecido com o Vazio, que não é nada mais do que a transparência do espaço destituído de objectos, como se fosse um mundo ao qual tirássemos o mundo e só ficasse ar, a mais clara atmosfera e mais nada.
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O Nomadismo é des-vegetarianização, pensem bem. O Nomadismo é a predação de novos espaços, é uma voracidade carnívora a apoderar-se da carne dos espaços. Sai-se para caçar e para apanhar fruta. Sai-se para encontrar presas em forma de corpos. Sai-se para seduzir animais e pessoas como se fosse um sacrifício ao grande animal, ao caçador que nos caçará. O Nomadismo é cruel, não gosta de ficar em casa, não tem uma horta e não confunde o Ser com uma casa ou com o construir. Saímos com as nossas pernas, com as nossas pernas que continuam num corpo erecto em que os braços não são para caminhar, mas para arremessar e matar e fender. Há uma demiurgia que é feita pela pontuação. Precisamos de pausas, de unidades rítmicas, por isso pontuamos. Faço perguntas que virgulam a pontuação. Perguntas que vírgulam a verdade, que lhe introduzem o ritmo do coração, ou das passadas, ou da respiração. Agora deu-me para a tagarelice da verdade. Tagarelice em mangas de camisa sob a capa do anonimato. De que côr é a capa do anonimato? Negra? Branca? Cinzenta? Transparente?
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Uma relação de uma relação que prepara uma disseminação. Um ritmo que prepara a disseminação. Involuntário animal rugindo em verde numa iluminura alquímica do século XVI. Involuntário animal rugindo nas notas às notas ao estilo? Quero uma observação de estilo com uma bela alegoria por cima? Quero uma obra-prima à sombra de uma obra-prima à sombra da mediocridade? Mascaro-me de mediocridade para esconder a minha sensibilidade? Mascarome de casos a passar por casos a passar por símbolos a passar as calças a ferro. Sou imperfeito por causa dos símbolos, mas prefiro a imperfeição fragmentária ao totalitarismo do simbólico. Sou imperfeito graças à insónia do Tao ou graças à minha insónia e à complexidade com paisagens enevoadas com montanhas ao longe? Sento-me na complexidade? Sento-me na elisão da elisão de Deus para que no lugar de Deus desapareça do mundo. Aparece, ó mundo, sobretudo aparece! Escrevi para refutar depressa e bem. Preferi que fosse depressa e bem porque não se sabe o dia de amanhã. Preferimos auto-consciências que assumam auto-consciências que assumam o seu mundo, mesmo que seja um engodo privado com seus fu119
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rúnculos. O seu mundo é um assunto pessoal de todos? Gostaria de oferecer um clima que propiciasse pluriversos. O Ser propicia pluriversos? Então em vez de ser uma esfera seriam inúmeras bolinhas como aquelas douradas que se punham nos bolos e que estão na capa do Manhã da Adília Lopes. O Ser num sim putrefacto. Confundo o sim com algo putrefacto, como uma facilidade, um deixa andar. Confundo as heteronímias do profano com as heteronímias do sagrado, se é que o sagrado não é só o pressentimento do terror que pode atacar a qualquer momento. O sagrado são as más notícias, os ruídos pânicos, a catástrofe pendurada em cima da cabeça (e não num cabide). Um deus que ama, de boas notícias, já é, sem o saber, um compincha profano. Há aí uns talvezes mascarando-me o sagrado. Talvezes mascarando-me de profanador, de herege, de satânico. Sou a fera de involuntários academismos. Fera de involuntários clássicos que teimo em ler a partir de qualquer parte em pequenas partes. Nunca leio o todo aos clássicos, e dificilmente entendo o prazer do todo nos clássicos, porque o 120
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todo nos clássicos é enfadonho, e é como eles eram, como toda a gente, no fundo, clássica como as normas sociais. O que interessa nos clássicos é o entusiasmo derramado a partir do fragmentário, ou o ritmo que contamina os tempos presentes. Torna-te os entusiasmos clássicos. Torna-te os entusiasmos imberbes que se irão, não tarda, tornar-se clássicos. Uma complexidade que se nutre de calamidades. Fiz das calamidades um puré abatatado. Fiz do mundo a minha indisciplina, um puré indisciplinado onde continuo a esmigalhar ideias, nesta tarefa infantil e sem fim de misturar a molhanga das ideias, assim como os seus pedaços sólidos, com o puro puré de batata, a mais vibrante imagem do materialismo que se pode meter na boca.
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Anotei 99 parábolas para dissimular parábolas para
dissimular estados de graça. Queres estados de graça? Quero! Queres subsídios para apanhares mais subsídios ou para aprimorares o abismo? Acho que é outra coisa. Haverá de novo um novo abismo? Haverá o novo sem eus? E apetite sem eus? Ah, as respostas precisam de tempo e agora vou comer o meu sagrado pastel de nata. O apetite pelo mundo adquire-se pelo mundo, adquire-se nas citações, sejam verdadeiras ou falsas, sejam montadas ou surgidas dos becos da memória. Vou arranjar outras finalidades nas citações. Vou montar citações autênticas com invenções camufladas. Vou empurrar as finalidades para os outros, sobretudo as finalidades carreiristas. Sou afilhado de perguntas — afilhado de perguntas indiscretas. Modos de estacionar modos de estacionar no vazio. Não me apoio no vazio mas apoio-me nas pequenas coisas que me apoiam. Ando a co-autorar no vazio o vazio que me 122
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apoia. Fragmento o meu ego em expansões que se dissolvem no não-ego que é o resto. A remistura do anonimato com entre-autorias e autorias alheias acaba por ser deliciosa. A remistura do anonimato com a pluri-autoria divulga a consciência interstícial aos videntes por vir. Livremos a interrogação de qualquer epitáfio. O que é que é interstícial? Que adjectivos é que ajudam nas interrogações? Os adjectivos fazem anos e propiciam os belos acasos. A grande deusa anda a fazer anos e não a temos festejado com a tal pompa telúrica. A religião da melancolia serve-se da melancolia e serve a convicção. A melhor convicção é acreditar em Mim com um granus salis de desconfiança, é acreditar nas ilimitadas possibilidades deste desdobrável Mim ligeiramente salgado. A nossa condição tornou-se assim a condição de sobrepovoar a vacuidade dos espaços com as miragens das subjectividades. Caminho nos vazios desertos neste meu camelo roubado a uma enciclopédia. Amo o vazio com cada vez mais vazios e também com palmeiras e bebo a mais fresca das águas de um cantil perfumado de hortelã. A moda que pas123
PIERRE DELALANDE
sou apunhalou a que a ia substituir e surgiu uma moda ainda melhor (ou pior) para a colmatar. Qualquer perfeição tem defeitos e trejeitos. Qualquer pergunta com um Depois serve para o Depois ficar muito contente, e serve para desembaraçar de uma sequência que parecia destinada a ser expectável e fracassada. O desconhecido continua-nos nos sentidos a desembaraçarem-se do que se acautelava só em pensamento. Sentidos induzem a memórias, induzem a coisas malucas que guardamos nas mangas de magos. À perfeita publicidade não se deve dar crédito nem graças. À perfeita publicidade chama-se culto e é uma sobrinha tosca do terrível oculto. Irmos por aí a proclamar ídolos chama-se culto. Iremos em estado de Graça apanhar bebedeiras com Doxa enquanto os barcos descarregam mercadorias vindas dos quatro cantos do mundo. Iremos com Doxa a dessublimar pelos campos, a dessublimar pelos campésticos das questões. O que são campésticos de questões? Perguntem ao Álvaro Lapa! Mas está morto! Tenho de continuar em mim o Álvaro Lapa e o James Lee Byars. Tenho de tentar continuar em mim todos aqueles que admiro tanto, sejam ou não 124
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influências. Podia dar-vos uma lista de gente que quero tentar ser e continuar. Eu já publiquei a lista. Eu vou ampliar a lista. Eu vou continuar ou outros (e o corpo dos outros) em estado de graça se eu quiser. A Graça é consequência da animalização e da ligeireza e de uma força imponderável que se expande suavemente. A Graça é a justa medida da naturalidade. Prefiro de longe a estética feminina da Graça à estética machista da Força e da Violência. Exercito-me na animalização mas não na brutalidade. Exercito-me fotografando, pintando, acumulando palavras sobre palavras, colando, reenviando a autobiografias canalhas ou a abstracções marotas. Não considero uma abstracção, a partir do momento em que se diz, escreve ou pinta, menos concreta do que outra coisa qualquer. Quando vivo números, palavras e ideias elas são reais, mas não são mais reais que as outras coisas. Caçava felicidades alheias com cães de peluche. Caçava felicidades alheias para decorar a obra.
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Exuberâncias a exagerarem em obra. Exuberâncias a
exagerarem o múltiplo. 99 é um bom múltiplo de 9. 99 mentiras como hipóteses de mentiras são 9x11 hipóteses a documentar ficções em gente. 99 é o número ideal de heterónimos a que devemos juntar um anónimo providencial, um verdadeiro anónimo em puro ready-made. Tenho milhentas ideias carnavalescas para documentar realizando-as. Ideias carnavalescas rodeiam-nos e são opulentas com plantas carnívoras. O carrascão proporciona-nos coisas opulentas. O carrascão tem-se misturado com o rumor e chama-se Anunciação. A Anunciação dá boas pinturas, venha ou não de motoreta. Ao lado das outras autobiografias de Delalande, que hão-de de ser e muitas, este monólogo condensa o tal Delalande inicial, juvenil, exaltado com as suas possibilidades de expandir mundos potenciais. Esta autobiografia repete-o, desvia-o, redobra-o, é outra vez o mesmo continuado no mesmo, continuado no idêntico por alguém idêntico, ligei126
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ramente desfasado, por alguém a procurar construir-se entre o acaso e a repetição e a desfazer-se em renovações. Não sei se me sou projectivo através da actividade de projectar uma possibilidade de vivência e atitude condensada, ou expandida, numa escrita que tem algo de cru. É uma reiterada coisa parecida com teorias, com pimenta alegórica e facadinhas de narrativa. É uma reiterada pseudo-anti-projectividade com esse pretenciosismo que as pessoas não gostam. Também me faço a mim mesmo a partir do avesso, muito arreepiado. Devemos sublimar aquilo da pseudo-anti-projectividade em literatura quando não fazemos a minima ideia se presta? Devemos sublimar aquilo que desconhecemos no raro conhecimento que cremos ter? Cabemos nos livros que desconhecemos como vagos figurantes? Os livros dispersam-me e desaprendem-me. Dispersa-me e desaprende-me a linguagem, esta mesmo que uso e lhe desconheço o fundo do tacho. É como um sedativo, isto da linguagem, para fazer dormir o corpo no soçobrar da linguagem. É o sedativo da confissão como complot. A confissão como complot a conspirar contra os processos de auto-identificação, com os espelhos movediços que nos devoram em ima127
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gens. É a sobrevivência como suplemento a multiplicar suicídios fictícios. Sou um suplemento a multiplicar convicções divergentes e agora acabo de abrir uma janela para refrescar a casa. As convicções divergentes desfazem-nos em parte mas fica sempre a sensação de que há um núcleo que reorganiza tudo, muito sensível, na ponta das unhas. Para desfazer as propensões estúpidas há o sexo que é uma coisa que afeiçoa de uma forma directa, sem sequer precisar de palavras. Sim, o sexo afeiçoa, mesmo que pareça equívoco, aquilo que vai directo ao corpo, com ou sem preliminares, com baba na boca. O que é preliminar aperfeiçoa uma vinda. O preliminar como uma sem-origem sem filosofias. Uma sem-origem sem filosofias ou cosmogonias é mais honesta do que andar a justificar o estarmos aqui com causas trapalhonas ou únicas e o incómodo da roupa. Sou um semlar e um sem-cosmogonias e deito-me na cama para dormir alguns minutos. Dormir como quem faz a revolução e o nirvana privadamente. Desconfio do big bang e da astrofísica da mesma maneira que desconfio de qualquer demiurgia ou da publicidade. Ponho um letreiro a dizer que não quero 128
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nada disso na caixa do correio. Sou um sem-lar com demasiadas origens a afeiçoar-se ao que se lhe segue. Sou um tipo com demasiadas origens obscuras a imprimir a diáspora no seu sedentarismo, diferindo-se pela diáspora, diferindo a pouco e pouco de qualquer perfeição, com as aparas da diáspora na mão. Desencontro-me na imperfeição que corrige a perfeição. Desencontro-me na imperfeição de um estilo específico e reencontro-me em particular nas autobiografias avulsas que me acompanham a cada refeição. Corrijo-me nas autobiografias que me heteronimizam e o carteiro toca à campainha e é só com cartas para os vizinhos. Desfaço-me dos truques que me heteronimizam preferindo esta vida comezinha sempre a fazer refogados. Desfaço-me dos talvezes para que os talvezes falem sobre ti, sobre o que eu e tu podíamos fazer juntos um dia destes. Quero que falem sobre ti porque me centram a atenção numa imagem concreta. Passo a ver os teus pormenores e são pormenores de formosura. Não sei se és a soma dos teus pormenores ou se és uma coisa inteira.
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A arte de olhar precisa de pormenores. A arte de olhar devagar deve substituir argumentações que estão normalmente cheias de pressupostos patetas. Ser devagar deve substituir as regras rapaces? Eu gosto de apanhar as coisas depressa. Ainda me falta muito para aprender o vagaroso, o deixar a poeira assentar. As regras rapaces da lógica tornam-nos predadores e argumentistas com aquele olhar de quem vai atacar um coelho em voo picado. Há uma excitação nisso. Há uma intolerância também. Somos vitímas dessa vontade de rapina, de raptar, de querer impor algo de que não nos damos conta. Não digo não à lógica, mas sinto esta coisa esquisita de uma coisa implicar outra e de implicar com as outras. Não digo não antes de me perguntarem as coisas. Gosto de perguntar, de argumentar e de ceder. Às vezes é muito tarde para cedências mas faço-as na mesma. Mais vale tarde do que nunca mesmo que seja inútil. O espelho torna-me visível, assim, como quem dá um mergulho de chapão. O espelho torna-me a minha obraprima instantânea, igual a todas essas obras-primas que são os outros quando se vêem ao espelho e até ficam admirados com uma ruga que se escavou no centro da testa. A minha 130
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obra-prima é quando fecho os olhos e não vejo nada e depois abro e aqui está tudo. Re-misturo-me no intervalo em que estou de olhos fechados. Re-misturo-me no intervalo das falsas decepções. As falsas decepções vão-se num suspiro, caramba! Que bom é suspirar de vez em quando! E eu fico menos artificial e mais despido, é como um strip-tease em sopro, e vê-se o cansaço e as fragilidades. É como um strip-tease instantâneo que cega com a sua evidência. Desvio o olhar do instantâneo e como mais um quadrado de chocolate preto. Desvio o olhar e o pensamento do que quer que seja. Afasto o pensamento perante qualquer unidade. Diante da unidade a perfeição é como um alter-ego. A perfeição é o mumificar do alter-ego? Quero mumificar a matemática em teoremas diferentes dos que há. A perfeição é algo mais temível que qualquer Deus desconhecido que se abisma em perguntas sobre si mesmo. Quando as perguntas de Deus se abatem vêm acompanhadas de metáforas assombrosas e de um ateísmo enxuto. Quando as perguntas se apagam ficamos abanados numa serena obscuridade? Somos numa serena obscuridade? Somos aperitivos para canibais? Somos aperitivos de um cani131
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balismo vindouro que a civilização tem vindo a adiar, mas que chegará quando não houver muito mais para comer? É na antecipação de um canibalismo vindouro que me vou disciplinando na edição das notícias mais recentes. Nesta edição vou refazendo as notas, vou refazendo as notas refeitas e vou riscando os disparates semelhantes a estes. A múltiplicidade consiste em acrescentar mais e mais pormenores às coisas refeitas. A múltiplicidade consiste em repor o rigor da imperfeição no fluxo em indeterminação. Acima da pretensa perfeição, para a qual estava e não estava vocacionado, escrevia demasiadas autobiografias que se desfaziam mentalmente. Era um autobiografismo náufrago de não-vivências. Era contra a perfeição que escrevia demasiadas autobiografias? Eu estava-me a passar nas coisas que se estavam a passar-se. Queria-me passar por um falso anónimo, de preferência com patine. Tornei-me famoso aprimorando a evasão do meu no nome e do meu anonimato, dando-me um estilo seco e directo, como um murro na mesa ou um soco de boxe, para usar comparações corriqueiras. Tornei-me famoso aprimorando asceses. Com gula li132
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vrei-me das antigas gorduras e encerrei-me em asceses. Com gula desestudei-me para me reconhecer no estilo seco que está debaixo do estilo gorduroso que está debaixo da roupa apertada. Demasiadas máscaras para tão fraca personalidade. Vestidos demasiado espalhafatosos para máscaras tão simples. Atrás de uma barba podemos ser mais medonhos. Ocultome em nenhuma barba, através de barbarismos, de um falar que denota falta de educação e sofisticação. Ser indirecto prolonga o prazer. O prazer da matemática é também um prazer do corpo a usar e a pensar a matemática e a matematizar-se em sensações de matemática, porque a matemática também é uma sensação que nos habita a carne. A matemática é o disfarce das sensações concretas de vazio porque parece uma coisa rigorosa e sólida na qual podemos confiar. As minhas leituras sobre o vazio deixam-me mais baralhado do que antes porque o vazio é uma palavra com muitas ramificações e cheia de manhas. As minhas leituras desfazemme das posses e deixam-me plumas. Fico mais vazio e fotogênico!
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Certos museus confundem-se com negócios sujos
que por sua vez se confundem com as minhas envergonhadas autobiografias. As minhas autobiografias afinam-se com os detalhes de outras autobiografias nebulosas, como algumas notas matutinas do Paul Valéry quando tomava o café antes do sol nascer em Sétes. Com demasiadas contra-indicações fui eu mesmo e sobrevivi a esta identidade e malícia. Com demasiadas contra-indicações fui o anti-estilo? Torno divertidos os anti-estilos? Torno divertidos os meus infortúnios no sótão junto aos respectivos macacos? Sou o reverso dos meus infortúnios a barrar a torrada com manteiga e mel? Sou o emigrante francês com sotaque irlandês que fala português mal e com medo de regressar à sua Avignon natal? Alguém colecciona paisagens manchegas e cascas de queijo da serra? Alguém colecciona o tempo gasto da minha vida? Tiro as camisas da vida e atiro-as pela janela e caiem num vizinho que estava a fumar um cigarrinho? Tiro as camisas para sentir o paradisíaco e sinto-o. Impuseram-me uma fama paradisíaca e aceitei-a de bom grado. Impuseram134
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me uma fama para satisfazer a curiosidade dos ociosos mas ninguém lhes pôs os olhos em cima. A curiosidade de um felino pode devorar bibliotecas. Tenho um gato que mija regularmente na minha bela edição bilingue da Física do Aristóteles. Será felina a biblioteca perfeita? Quando é que serão livros os livros que soubemos adiar escrever? Há uma sabedoria em saber adiar escrever com método? As frases abandonam-nos cada vez que consumam o seu sentido ou o abandonam por uma amante ressentida? As frases abandonam-nos cada vez mais depressa. Mais depressa se despedem de nós sem sequer deixarem um bilhete na mesa da cozinha. O divórcio tem sido a minha obra de arte mais secreta e a minha meditação mais espalhafatosa. O meu divórcio contagia os divórcios dos outros como obras de arte contemporâneas (mesmo tratando-se de um clássico). Perder pedidos, gastar gostos. Pedir perdidos e gostar de gastos. Preparar os pormenores dos pormenores dos adiamentos. Vivo segundo adiamentos inconvenientes. Vivo segundo as geografias de países esquecidos e derrotados assim como da 135
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sua história submarina e outros anexos navais com muitas galeras afundadas. O pensamento da inconsistência é um pensamento que dá mais consistência ao pensamento? Tive que disparar sobre o pensamento com uma bazuca e falhei no alvo. Tive que me exilar da matemática para me tornar sensível, como um camaleão a condensar os ares das coisas. Dou a palmatória às aparências da geometria, ao oculto das aparências, à geometria do dissimulado, às exposições dos porcos dos fenómenos. Procuro exposições para me inspirar depressa e procuro meter-me o mais possível em alheias conversas. Perco-me ao encontrar-me. Ao calar-me também me perco para me encontrar numa tagarelice de preferência com mulheres divertidas. A pressa do público apressa o obscurecimento. O público aperfeiçoa a minha arte de desaparecer numa estação de metro com gente molhada por causa da tempestade com chapéus de chuva a pingar no povo ao lado. Vomitei muita arte de desaparecer numa inauguração repleta de embaixadores. Vomitei reproduções de obras em frente dos originais. Reproduções de reproduções de obras de arte famosas. As obras de arte famosas soltam as 136
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minhas gargalhadas intimidantes. Aplico-me nas minhas gargalhadas com todas as forças. As minhas gargalhadas intimidam-me através do eco, do eco do eco do eco e assim sucessivamente. Aplico-me em perguntas que se encavalitam em perguntas que desfazem o vazio acantonando-se em detalhes e singularidades, como cascas de ovos cozidos ou boinas bascas desbotadas. Publicito-me a desfazer o vazio com um sorriso em néon na noite adiantada. Publicito-me dispersando-me. O parecido anula dispersando. O parecido anula as analogias e eu digo isto em cima de um camelo no Jardim Zoológico com a minha família preocupada e admirada, já que me está a confundir com um camelo, e já me vê como camelo, e já vê um camelo a montar-me. O uso das analogias é um capricho do verbo com a alegoria a ficar com dores de cotovelo. As analogias da libertação são cínicas. À sobremesa peço frases cínicas com chantilli. À sobremesa peço sempre uma bananalidade que é sempre uma bananalidade.
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Somos todos sombras, meu granda bronco, a ser pro-
jectadas sobre outras sombras num filme a preto e branco que não guarda saudades. Somos todos peritos na arte de ser peritos na arte da não sobrevivência a longo prazo. A não sobrevivência vai-se evaporando nos noticiários. Estás entalado na vaidade do desaparecimento da vaidade do desaparecimento da autoria e de outras coisas do género... O orgulho da fusão do orgulho com o anonimato numa casinha fria de província à beira rio... A comédia catita a parodiar comédias catitas e a valer-se da entreautoria… Segredos que existem para engraxarem a entreautoria e depois a ficarem a brilhar a cada passo… Segredos que existem para disfarçar factos enganadores. O disfarçar factos enganadores engorda. O acaso é a gramática da regularidade a falhar com sucesso. Do ponto de vista divino este mundo (que é divino) é uma utopia, mas uma utopia fascinante que funciona a várias velocidades. É o fascinante a funcionar, apesar de tudo, com idas a uma floresta numa ilha tropical onde não há nada de especial... Se não sabes onde estás tenta sabê-lo 138
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nem que seja às apalpadelas. Se me procurares estou aqui, vestido com uma camisola a ler o meu Borges. Estamos todos aqui, em mais 2 anos de férias. Eu cá estou aqui, neste sítio e estou a tentar perceber que raio de sítio é este que não vejo ninguém, só letras e folhas. Também, por cautela, sondo todos os caminhos para poder sair daqui. Ter uma saída daqui sem ser pela morte ou um S.O.S.? E daí? Ter uma vista sobre a vista sobre a situação. Ver os modos da situação cultivando o meu jardim escocês com alegorias à Revolução Francesa. Tirar o roupão e deixá-lo no chão junto às pegadas molhadas? Há modos menos convencionais, diz a vizinha com esfregona na mão. Revela esses modos menos convencionais, segreda-mos, aproxima os teus lábios dos meus lóbulos. Revelas frequentemente esses teus problemas na bicha da farmácia para que todos queiram saber mais. Há aí problemas que ignorávamos e que dão indícios de mitomania e paranóia. «Aqui» é o que ignorávamos, para já. «Aqui» é o lugar onde eu estou e o lugar onde eu nunca mais voltarei a estar. Nem sequer sei se é um lugar, se um cantinho subjectivo parecido com uma ratoeira. Deus não está só por estar aqui? Deus não está no detalhe, mas absolve e absorve os detalhes e tira-nos as medidas. A essência do 139
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detalhe, só no talho! O detalhe é um atalho no talho de Deus para que a Carne deste seja ressurrecta. O conto está nos descontos da conta. Escrever descontos de contas. Escrever é ilusão com elisão seguida de sobreposição. A escrita é descontinuidade de letras, palavras, parágrafos. É uma descontinuidade que imita a continuidade na língua. A minha escrita é descontinuidade continuada, elisão no descontínuo a tentar continuar. Se ainda insistes na elisão é porque queres desaparecer nela levando contigo os teus hetero-auto-retratos. Se continuas a insistir no acaso terás a chatice de aguentar demasiada ordem para que te dês conta do impossível. Eu aguento demasiada ordem, mas não por muito tempo. A ordem e a desordem são interlúdios uma da outra. Eu não sei usar a minha imaginação mas sei-me deixar usar por ela. A minha imaginação não se usa sem ter erecções simbólicas. Fazer bluff é não ter erecções. No princípio da minha infância o Julio Verne e o Emílio Salgari já eram modos antiquados de armazenar imaginação masculina, e eu gostava disso, e das capas velhas e duras que tinham sido coleccionadas por tios-avós. Certas coisas consolam-nos de outras coisas 140
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que nos consolam da ausência de natureza virgem a que poderíamos chamar natureza violada pela consciência. A natureza da ausência faz a presença. O mundo é o aborto dum sonho que persiste com sonhos imberbes dentro. Este mundo é o aborto dos sonhos mais perfeitos e algumas dejecções que provam que o corpo existe. As especiarias perfeitas da paixão condimentam-me. As especiarias são a imaginação através da comida. Regresso através da comida à consciência da crueldade, ao facto de teres de matar, arrancar, triturar, desfazer, cozer, fritar, grelhar e outras provas de fogo. Só digo o que digo, e não sei se digo o que não vejo. Se o não vejo será que o posso dizer fazendo-o ver no íntimo? Se o vejo, não o vejo bem visto nem o significo plenamente. No final, a significação é um processo que já estava em curso antes de a ver, uma grande boca a querer comer nas metáforas as coisas que pela devoração desaparecem. No final, (o grande «final») não ficará a palavra fim por cima de nós, nem sequer pendurada com molas de roupa a secar para a eternidade sonsa. Nem ficarão palavras nossas, nem sequer teremos acesso à nossa posterização, entronização, esquecimento.
O esquecimento dos 141
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que morreram está entre nós na calada das coisas, na salada das ausências. Nem sequer sobra o nosso silêncio ao seu esquecimento. Acumula-se muito mais esquecimento do que presença. Há só o silêncio denso, às carradas, às camadas, e os lamentos a esvaírem-se dos vivos. Só a confusão desse sentimento de sobrar e não saber quanto tempo vamos durar sabendo que é sempre pouco. Isso é uma confusão que se mistura com ecos muito distantes dos que já acabaram. Fico a ver ecos muito distantes nas nuvens que passam. As outras coisas passam a ser coisas diferentes, ecoantes. Então, vamos lá ver TV. Só olho para a TV para me estupidificar um pouco, para descansar a minha consciência na edulcorante tirania das imagens. Às vezes preciso desse simulacro de afecto, dessa atenção num rectângulo, desse rectângulo de atenção. Só olho para as coisas para me perder, para dissolver fluxos da consciência na consciência da consciência, ou na quase inconsciência quando o corpo cai sobre si como os corpos quase mortos caiem. «O que vês é o que vês é o que que vês», dizia ele. Diz lá Frank, o que é que vês? Estou a falar do Frank Stella. Consegues ver alguma coisa, ó Stella? Mas o que vejo não é o que vejo (nem o que vi) nem é o que vês. É uma intermitência da predação do olhar e do 142
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caos da consciência. O que vês é essa falta de literalidade das formas mais as ressonâncias malucas que as tuas ganas põem a vibrar. O amor chega por e-mails. É uma forma rápida isso de chegarem os afectos por e-mails quando o que estamos a precisar é mesmo de afectos directos, palpáveis. Também as tuas mãos me chegam por e-mail porque são os dedos que escreveram as coisas que deslizam na face dentro do meu olhar interno. Cada ponto de vista tem as suas vistas estreitas ou largas, as suas esplanadas melancólicas e o sol caindo a pique quando limpas o suor apoiado na enxada achada. Cada ponto de vista tem as suas oportunidades periódicas de achar e de perder. Eu tenho quase oportunidades periódicas sem que me ache ou perda. As minhas oportunidades acabam quase sempre perdidas. É tão chato perdê-las. Deveria haver uma ciência da oportunidade, de encontrar e agarrar a oportunidade, de suscitar com naturalidade o oportuno. Há certas oportunidades que temos que inventar, que nem sequer são dadas pela natureza ou pelas circunstâncias e para isso há uma arte, e essa arte também tem que ser amatória. É tão esquisito haver montes de oportunidades 143
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por inventar ainda. Vou inclinar oportunidades para que caiam sobre nós. É esquisito haver montes de gente que julga não ter um pentelho de originalidade ou imaginação. A realidade é uma ilusão que não pode ser ser agarrada só com o bom senso. O bom senso com boa salsa é melhor.
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A percepção tornou-se numa voracidade inteligente,
que por sua vez se tornou numa obra de arte por excelência. A arte por excelência é o que interessa. A arte sem excelência é um erro da natureza, dos artistas e da arte. A arte é surpreendida pela arrogância da realidade. A arrogância da realidade roga-se e rega-se. Algumas vezes bate-nos e temos que descer à terra e aguentar e sarar feridas com pomadas e remédios. A ficção faz entrever a treva ilimitada assim como a luz mais serena. Quanto a treva ilimitada estamos quites. E da luz não a queremos nem excessiva nem fatal. Quanto mais a descortinamos, mais cegos e obscuros ficamos. O mundo é mundo porque é o lixo da imaginação. Cada lixo da imaginação é precioso porque pode ser reciclado numa order from noise. Cada objecto se conjuga com outros corpos e objectos para muito mais usos do que os comuns. Mas que usos são os comuns? Não é uma perda de tempo usá-los todos quando só alguns é que valem mesmo a pena? O sen145
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tido de todos os sentidos dos objectos não é bem um sentido, mas uma imersão num clima, numa atmosfera, numa Stimmung, numa sentimentalidade, num environment. O sentido de uma obra de arte é tornar-se essa coisa indefinida e tantas vezes parva que é a arte, apesar de ser uma mera designação de um fazer ardiloso. O sentido de uma obra de arte é a vontade de se tornar mais um clichê no art world. Um clichê que não está a mais, embora ocupe mais espaço do que o que devia ocupar. O acaso desordena tudo o que o acaso desordenou antes e que entretanto se instalou mais arrumado, como aqui a secretária infusa em papelada. A possibilidade transtorna as quietudes, a inércia, o deixa-me ficar no quentinho da cama. Esta é a possibilidade de todos os transtornos? A Geometria é a negação dos transtornos? A Geometria é a rival da rival de Deus, disso não temos dúvidas. As palavras são escrita contra Deus mas alguém tem que as dizer com semblante divino. A Geometria não precisa de palavras para dizer o mundo, e é bem mais inefável e directa do que um deus. As palavras são o revivalismo dos deuses 146
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mortos. Nós, ao falá-las atiramo-nos ao seu revivalismo, mesmo quando somos visceralmente ateus agarrados à nossa pele e aos nossos órgãos sexuais. Nós não queremos formas, não queremos a Forma, a Grande Forma, nem sequer o Informe. Nós queremos é ficções, mais e mais ficções. Nós agarramos na forma e fazemo-la desviar-se da ficção. Para onde vai? Ignoro. A forma segue-me. A função segue-te como um detective contratado por mim. Talvez seja eu que te siga com ciúmes do que ainda não sei do quê mas não tardarei em sabê-lo. O Não segue-me com a sua sombra grandiloquente. A função perdeu-se nas investigações detectivescas. Não a vês? Alguém tem que a investigar, mesmo que seja um amador coxo. Os romances começam a ler-nos, a arrombar as portas e o vento a entrar com as folhas outonais. Estão aqui onde as outras coisas não podem penetrar.
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A Forma é onde se começa a arrebentar, a expandir, a
querer mais que os limites dados. A Forma é onde perdeste o conteúdo, onde tu te perdeste agarrado ao conteúdo, ao teu falso e pretensioso conteúdo. Porque perdeste o conteúdo? Porque foi passear para as bandas de outras formas, entre outras formas a crescer ou a definhar. A desarmonia entra entre a desarmonia do pensamento e a realidade, que por sua vez é uma coisa projectiva, uma coisa que achamos que é a realidade com espinhas e tudo. A desarmonia também é consequência da (im)precisão da gramática? A mente é a gramática? A mente é o meu estado do corpo a estrear o espírito que é outra parte do estado do corpo mais agitada. A mente desmancha o espírito. A mente é o intervalo nu do espírito no estado do corpo a ir para aqui e acolá sem sair do mesmo sítio. A mente é o é do intervalo, o é sem é do intervalo. O intervalo são os meios. O meio é a mensagem, uma mensagem inteira partida ou dobrada em dois. A mensagem 148
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a abolir mensagens. A mensagem é uma treta, diz um dos três porquinhos com um ar de construtor civil preocupado com a metafísica. Perdi uma treta, diz outro. Perdi a meada?, acrescenta o terceiro. Perdi o fio, esse indispensável fio, não só à meada, como a todas as tramas que se ocupam de mim, de me fiar e desconfiar e que no fundo saem da boca do Minotauro tricotadas por mães que ainda acreditam que os filhos vão sobreviver imenso. Sou um artista a braços com uma meada? Um artista escreve: a primeira palavra de um artista é contra um artista que é contra os artistas, contra todos os artistas melhores do que ele, não só os artistas que já cá estavam a roubar-nos espaço, como os novos artistas que já nos estão a roubar o espaço que conquistamos, que nos querem relegar para um espaço sem espaço, o do esquecimento com efeitos imediatos. Na verdade um artista escreve contra os de antes e os de depois, e deveria fazê-lo enquanto está vivo, porque quando deixar de estar vivo ficará rapidamente caramelisado, arredado para um museu onde se ouvem aquelas inanidades das visitas guiadas, aquelas simplificações nojentas que não têm nada a ver com os artistas e que os historiadores de arte inventaram só para tudo ficar arrumado, legitimado e fácil de perorar. Logo, a minha primeira palavra é 149
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uma palavra contra as primeiras palavras, sejam de Deus, sejam dos artistas, que são palavras que são contra os artistas, mas também contra a história fácil dos historiadores que dão pontapés de desprezo na carne dos artistas, nas angústias dos artistas, nas gargalhadas provocadoras e erótica dos artistas. As minhas primeiras palavras são contra as minhas palavras que se seguem e as que olham para trás. Por isso tenho que estar sempre as minhas primeiras palavras como se fosse um outro, como se tivesse que começar na cauda visceral de inúmeros inacabados, contra todo o acabamento, contra o estado degradado dos inacabamentos, dos cada vez mais inacabamentos que cada começo provoca com a sua boca macerada do estar cheia de estar contra. Os contras dos artistas são necessários, mesmo quando são irritantes, ainda que ser contra seja a mais infantil das formas de manifestação e que diz estúpidamente: afasta-te que preciso de mais espaço para me desenvolver sem a tua gordura ao lado. Os limites dos limites da minha linguagem são apenas mais linguagem, são apenas os limites dos limites da 150
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minha linguagem que afinal quer fazer das suas e dar-nos a ideia incoerente que se pode pôr mais mundo no mundo através de truques de linguagem. E quem sabe? A minha linguagem é como o mundo mas não é o mundo. O mundo não é o mundo, não é um jogo jogado pelos caprichos das palavras. Podemos jogar jogos sem linguagem? Sim. E assim livrar-nos de todas as ilusões de que precisamos sempre da linguagem para fazer assim uma espécie de mundo, de que controlamos com a linguagem o mundo, e de que resolvemos os problemas do mundo com as petas da linguagem, coisa da qual duvido, senão a linguagem, repito, seria pura magia. A linguagem pode, porém, a ajudar a resolver alguns problemas através da sua eficácia ou simplesmente por estar um pouco mais bem arrumada, nas suas gavetinhas, na órbita electrónica do cérebro. Eu prefiro as palavras que servem para nos relacionarmos mas que não são coisas nem querem substituir as coisas. Eu prefiro a propaganda secreta à falsa intimidade do público. A intimidade do público expropriou-se quando aplaudiu na última vez.
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A poesia adora misturar-se com poesia e adora misturar-se com a publicidade. Chegamos a confundir publicidade (essa besta!) com poesia, e em muitos casos a publicidade cumpre essa função da poesia que é não só o de jogar com as palavras e efeitos das palavras, mas também o de nos iludirmos voluntariamente pelo prazer de nos iludirmos com a grande ajuda (esse empurrãozinho) das palavras. O caos é melhor por si só, sem design? Que design? O design é amigo dos inimigos de complexidade. O inimigo de complexidade palita os dentes com um palito sensacional. A arquitectura, mais do que arquitectura, mais do que o que resta, deve ser o resto da civilização, deve ser considerada lixo tridimensional mais do que conforto, mais do que o túmulo que ambiciona ser. As casas são os túmulos do ser, sendo que o ser deveria ser o anti-túmulo, essa coisa esférica inabitável. Uma casa é uma máquina de habitar que te lixassem dares por isso. Um carro também te lixa. Um carro é um cavalo com armadura em que se vive bocados de vida entre casas que são túmulos. Será que se vive a favor ou se vive contra. O automobilismo é a guerra mais violenta quase sem se dar por isso. 152
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A simplicidade é a obscenidade disfarçada de pouco, de míngua, é a liberdade da obscenidade disfarçada de menor esforço. A liberdade de expressão leva a expressão a urinar num canteiro. A liberdade leva quase sempre à expressão de irrelevâncias, a criar e criar expressões de irrelevâncias? E porque não?
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Criar pode ser a arte de manipular clichés. Criar é
livrares-te dos clichés, desses clichés que são mentiras sobre mentiras. Criar é manipular o que combate os clichés. Livrate dessa cangalha toda! E caga no negócio pelo negócio por uns tempos! Fixa-te na qualidade dos tempos, na tua qualidade de vida! A qualidade de vida é a melhor filosofia. E a qualidade de vida começa no teu corpo, no modo como ele apanha sol ou se move, ou nada ou dança e não nos biliões que podes ganhar esgatanhando-te que nem um louco. A qualidade é o dormires bem, comeres maravilhosamente, fazeres amor a sério e teres um espaço porreiro onde caibam as tuas coisas, o resto são clichés da qualidade. Faz-me aflição aferir-se a qualidade pelos clichés patéticos do chic, quando podemos nós próprios fazer as melhores comidas da avózinha por quase nada. O ritmo é a segunda melhor filosofia.Um ritmo agradável é uma excelente filosofia. O não ter muitas coisas é uma filosofia que ajuda a não perder tempo a tratar dessas 154
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coisas, a arrumar essas coisas, a limpar o pó dessas coisas, dessas minúsculas coisas nas quais o pó se entranha e que dão imenso trabalho a limpar. Saber perder tempo com o prazer é a filosofia no seu esplendor. Perder tempo é o meu capital, o meu capital temporário, e eu estou a perdê-lo da melhor maneira possível ao apanhar sol na cara e a dormir umas belas sestas. Não há nenhum bem que não seja perdêlo. Nenhum bem se mantém mesmo tendo-o. Nada se mantém eternamente na sua suspensão. Não há riqueza sem vida, nem há riqueza no deter muitas coisas. A acumulação a partir de certa altura é um empobrecimento a muitos níveis. Uma riqueza encontrou uma vida. Um político que não é político e que não engana um bocadinho é um enganado de si mesmo que é um mau político. Eu não quero ser político. Eu só quero enganar naquilo que voluntariamente engana, e que é toda a arte, toda a ficção, toda essa engrenagem de enganos que são dados como enganos. As frases do mau político roçam na estupidez permanente, descem à mais baixa retórica, ao tacanho, ao vulgar, ao insípido, ao insuportável. As frases a sério não são sérias. O coração cai 155
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em coisas sérias, em sentimentalismos baratuchos e bons. Muitas vezes a maravilha, o excepcional, dá uma incrível vontade de chorar. O coração do espelho é baço ofuscado pelo lado principesco dos brilhos. O futuro anda estúpido, e cada vez apetece menos, e mais valia correr os cortinados. O futuro anda a correr cada vez mais para trás! Quanto mais desprezamos mais andamos para trás, e andar para trás não é fácil porque acabamos por embater numa data de coisas por mais precavidos que sejamos! Quanto mais desprezamos o ornamento mais temos «cultura» e estética. Devemos culpar o termo «cultura», essa palavra que à partida cheira a actividades elitistas para gente esquisita que tem uma relação de amor-ódio com a mesma? Quando me falam de nomes atrás de nomes temos a sensação que esta acumulação de nomes para exibição tem algo de fedorento e exibicionista que se torna ainda mais irritante. Podemos escapar desta forma de ostentação que no fundo até provoca algum prazer mnemónico?
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O ornamento é a natureza como repetição? O ornamento é o coração da reflexão. Desinterpretações de desinterpretações em reflexão. Desinterpretações de desinterpretações desinterpretadas, é o que me parece que é. Desinterpretações criativas a comer carapaus em felicidade e em fidelidade e em filetes. Prefiro uma visita de questões desinterpretantes. Prefiro uma vista com uma vista magnífica, ainda que a desinterpretar as cenas sobre o rio e as pessoas a fumar nos terraços. Não consigo deixar de imaginar coisas magníficas diante dos meus olhos. Não consigo, por exemplo, imaginar uma alegoria sem lingerie. Veste a minha lingerie, ó alegoria, veste-a alegóricamente. Empluma os conceitos, a alma, o amor, depressa! Neófito, não há alma! Continua a andar depressa com a alegoria às cavalitas, com essa infrafina alegoria cheia de panejamentos e máscaras! Não há exactidão sem ambiguidades. A exactidão é as ambiguidades. As coisas estão à sombra da medida do homem, da soberba medida de mais que todas as coisas. A música do homem é a medida de quase todas as coisas. A música é o prazer do ruído repetido e recombinado. O ruído repetido é um padrão que se torna um ambiente onde 157
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nos habituamos a habitar. Se não consegues guiar dois carros ao mesmo tempo então não podes ser político. Styling é roubar politicamente através do design. Styling é roubar mal o que podia ser dado bem quer ao rico quer ao miserável. Os provérbios são o mal quando mal usados. Os provérbios são baseados em experiências que foram baseadas em experiências erradas que assim de soslaio parecem coisas certas. Fazer obras de arte é acertar nas coisas erradas, adiando a perfeição dentro de um certo grau de acerto. Fazer obras de arte é voltar a roubar os roubos dos outros. Consiste em oferecer para sempre os roubos dos outros a terceiros, e esses terceiros voltam a oferecê-los a quartos e por aí adiante. Fazer obras de arte consiste em copiar disfarçadamente sem se dar conta cópias de cópias de cópias de cópias de alguns imprevistos. A pintura dá em imprevistos, em casos mal combinados, em coincidências. A pintura dá conta da físicalidade da nossa imaginação e conta a físicalidade obscurecida dos nossos corpos falidos. As obras de arte saem dos nossos corpos. A fotografia elide a carne oferecendo certos detalhes. As obras de arte 158
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são prolongamentos da carne. As obras de arte é o que podes atirar para fora dos seus meios, para fora desse circuito de empertigados, diletantes, comerciantes e vigaristas que constituem o art world. As obras de arte ajudam a fazer um meio, uma coisa sem princípio nem fim, onde a mediação é fundamental, onde os materiais, os media, os manhosos comerciantes, os honestos marchands e o amável público se divertem a asseverar, traficar, vender ou esconder coisas bizarras. As obras de arte é onde a sensibilidade é deformada pelo estilo a piscar o olho ao canónico. A arte, como estilo, não chega a compensar. A arte, como a imoralidade, consiste em deslargar o seu memorando, em livrar-se do seu conceito, e ficar no fim como obra, provocando ou não gratificações, disputas, e outras excitantes comicheiras.
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O humor é um memorando: nunca te esqueças de
usá-lo! O humor é a forma menos formal e mais subtil de autoridade. Uma subtil dose de autoridade marota é um remédio contra o excesso de autoridade, contra esse pesadelo constante que é a autoridade a aproveitar-se da sua força com a mão na cintura ou o cinto na mão disposto a vergarnos e a vergastar-nos. Para seguires o filão do riso dá conta das coisas retardadas. Deixa que as gargalhadas dos outros ecoem à tua passagem. Regressa. Vê como te evitam onde dizem que mais te amam. Vê como evitas ver que te evitam. Para seguires a felicidade põe todas as culpas no prego e assume com ligeireza os teus deveres (ou a falta deles) para contigo. A filosofia consiste nisso — desembaraçares-te da culpa que os outros tentam inventar para as tuas autobiografias como quem cai na felicidade. Felix desculpa. A filosofia consiste em rescrever extravagantemente coisas que 160
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recusam ser narrativas como se fosse só assim e o tempo não passasse. A filosofia esforça-se por rescrever extravagantemente algumas velhas notas a muitos mortos. A nossa tarefa parece ser a de desentranhar dos esforços da filosofia a vida que a filosofia acanha na sua maneira manhosa de dizer e de escrever. Tive que me fazer quase filósofo para me livrar do que os outros queriam de mim e agora livrei-me dos constrangimentos da filosofia e da santidade para poder vir a ser o que muito bem me apetecer. De que mais constrangimentos me tenho que livrar? Insolência saturnina de algumas velhas notas que se incorporam nos calcanhares, atrás das orelhas, ou junto ao cotão que dorme no umbigo. A insolência educada é um aprofundamento. É um aprofundamento que à medida que se dobra para dentro regressa como exterioridade e pulverização. A tudo isto tenho que regressar para me diferir e a voltar a diferir para tudo ficar um bocado menos na mesma. Antes de comprar, come com esses olhos — é grátis! Eu sou para mim completamente grátis! Às vezes também sou de borla para os outros mas eles estão com os olhos pos161
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tos não se sabe onde, e preferem coisas caras a coisas gratuitas só porque o que é mais caro parece melhor. Eu prefiro colher este mundo arrastado pelo demónio da intensidade do que só pensar em pensar em comprar cheio de remorsos! Rápido, antes que percas a tua fortuna noutra estupidez qualquer! Andas a comprar para seres rápido e para desviares as angústias! Já tens a mochila cheia e dois sacos aviados nas mãos. Se o não podes provar, experimenta fazê-lo por ti, e melhora a o caso, mesmo que te desconheças! As coisas feias melhoram as belas nem que seja por comparação! Há sempre uma cosmética de que não vale a pena desdenhar. Porque é que o ponto de vista natural é o melhor? A cosmética adiciona muito mais beleza ao mundo do que o mundo parecia capaz. Mesmo que o feio continue naturalmente feio este consegue competir com, e por vezes ultrapassar, o belo em beleza e fascínio. O que é feio permanecerá feio, mas ao menos competiu, nem se deu por derrotado. A beleza pode ser uma surpreendente disposição de coisas feias que se dissimularam muito bem num momento oportuno! A beleza é a felicidade, mesmo que a rejeites e milites contra isso. 162
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A felicidade é feliz? Ou é uma intuição de algo que é mais do que uma promessa, como dizia (ou não) Henri Beyle a desenhar as plantas da casa de infância e a recordar amores frustrados. A felicidade é a beleza depois da sobremesa. Beija-me o cú ó lindeza. Ou beija-me o cú e chamame Tirésias! O sublime chama-me Tirésias, o que conheceu todos os recantos da sexualidade e da beleza extrema que é os grandes planos do sexo! O sublime em arte é inferior ao sublime daquilo que convencionamos que é a natureza? É um sublime pouco, prêt-a-porter, mental, confortável na sua subjectividade a imaginar-se a dessubjectivar-se. O sublime fisiológico, ao contrário do que diz Kant, é muito superior ao sublime conceptual porque não há transcendência possível, só a violência expropriadora da imanência, essa agressividade sobre o corpo a dissolver pela dor a dor. O sublime conceptual macaqueia somente a experiência terrível e dilacerante do corpo perante tudo o que o sobrepassa e fere e desagrega, e a ideia de sublime não é sequer necessária para a experiência do sublime, pode-se muito bem deitar logo o conceito para o lixo porque no sublime a sério toda a construção desmorona. O sublime em arte não é a porta do su-
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blime da natureza, é somente uma portinhola em que se espreita a hybris, essa assustadora desmesura dos gregos. A certa altura julgas que não há diferença entre o sublime da arte e o da natureza porque a natureza e a arte são a mesma coisa, mesmo quando não dás por isso. Porém todos os esforços de fazer equivaler a arte à natureza são o bluff de que a arte é alguma coisa empolgante, o que só anedoticamente e para embevecidos é, e de que a natureza é um mero conceito, quando é precisamente aquilo que é refractário a todos os conceitos. A arte é uma coisa profundamente infantil e auto-centrada e confunde a sua miopia com uma acção verdadeira. O facto de assinares uma coisa e a enquadrares não quer dizer que te tenhas apoderado das suas forças, da sua acção e da sua autonomia. A arte é incapaz, hoje, de controlar um enorme número de coisas a que chama arte, e é isso que é interessante. Quero mais beleza a babar a natureza! Mais beleza na arte a comichar a beleza na natureza! A beleza é a ilusão que intensifica. A beleza é a tesão da ilusão a ser assustadiça, a horrorizar pela sua força, pelo seu caracter táctil, anal164
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fabeto. Se matas a ilusão vai-se a beleza e a tesão! A beleza é uma farsa com um desfinal feliz a coçar o nariz. Ou uma felicidade a desfinalizar. A beleza é a congregação das superficialidades. A congregação de superficialidades não é nada ecuménica. Para ter ideias próprias basta editar (ou colher) as ideias que crescem selváticamente à nossa volta. Aqui estou, em beleza, maravilhas, dores, glória digital e soberba. Nos desastres da beleza salvamo-nos consecutivamente. E sobra tanta coisa a isso caramba!
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Sexo com ideias à volta, com ideias amorosas a aper-
tar. Ideias com um acento a acentuá-las mais. O sexo também pode ser um avanço intelectual na carne. Um avanço intelectual como morfologia genital... para quê? Antes de ... para quê? Antes de começares a falar, lava as tuas falas, lava a tua mente com a tua mente porca, mas com jeitinho! Dizem que és desajeitado e no entanto esfregas-te nas tuas amantes para amando-as as ires amando menos e menos! A conduta não pode revelar-te só uma alma destituída de segredos. Hás-de encontrar os segredos debaixo do que te dê horror e prazer, no que desalma. Entretanto esmifra-te e salva-te! Bebe segredos com água das pedras. Esmifra-os e desenrasca-te se puderes! Então procuras a rodopiar esses momentos de exaltação que achas interessantes, que consideras que do ponto de vista de qualquer pessoa podem ser interessantes. Mas não é assim, e a tua cabeça roda mais e mais.
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Nada é mais chato do que um chato a falar sobre nada, sobre a sua especialidade tagarela em nada, como é o caso. Nunca falar sobre nada ou dizer que te apoias em nada para encenares uma miséria de poder, de impotência, de autonomia, de interdependências. Oscilas entre Thoreau e Stirner (que renegas), entre o asceta que vai para a cabana e o bebedor de cerveja que não precisa mais nada senão da sua cerveja, que é o seu poder, o seu domínio absoluto sobre o eu, o desdém triunfal sobre os outros que o querem aniquilar. Nunca esperes por nada de especial, mas continua a esperar pelo inesperado. Não esperes por nada fora de ti, mesmo que venha por aí, e te apareça e te sacie as expectativas e te faça a tal surpreendente mudança que nunca te passaria pela cabeça. De certeza, certezinha que te enganaste! A sombra do tempo é a luz da época filtrada pelo abat-jour da história. Os católicos tiveram a sua época e comeram muitas tapas. Os católicos concebem Deus como um ménage à trois para sempre. São os três mosqueteiros da santíssima trindade. E agora que te distâncias dos teus anos obscuros do catolicismo, mesmo que ele se mova, só vês deus na perspecti167
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va do Concílio de Niceia como três mosqueteiros ou os tipos daquilo filme parvo, os Ghostbusters. Para seres um pintor tens que ter muito cuidado a surfar as ondas de cor. Surfa a cor meu granda malandro, caso contrário ainda te afogas! Afogas-te em ideias que não garantem o lucro que te dá a subsistência, o tal ignóbil carcanhol com que pagas a renda, as terapias dos filhos, as escolas particulares e toda uma panóplia de pequenas coisas por onde se esvai o dinheirinho. Ideias soltas não garantem responsabilidades. Espalham-se pelos canteiros e de vez em quando há uma ou outra onde tropeças e quase cais. A arte como arte regressou depois da arte andar a fazer curvas, regressou depois da arte como ideia como ideia que veio logo a seguir à arte como o que se vê como o que se vê, como forma, nada mais que forma, puritana, descascada das histórinhas. A arte como mal-estar de ser arte culmina este processo da arte se ir limpando de tudo para perceber que debaixo da pele, do corpinho peludo, estão órgãos, e que não se livra desses órgãos, da viscosidade materialista das biografias. Como também 168
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não se livra do que vê, das séries, dos pelos, das formas, dos conceitos que ramificam nos conceitos, nas antigas representações, no hálito a enxofre dos antigos mestres. A ideia mais comum pode fazer um brilharete graças a um simples toque. É o toque especial! É o que dizem as catatuas das decoradoras! Decora o que nunca quererás esquecer, retém-no enquanto a tua cabeça ainda é capaz de guardar memórias, essas partes da querida deusa Mnémosyne. Os que não aprenderam e os que esqueceram estão condenados a ser os papagaios dos papagaios da moda e a repetir mal o passado, as milhentas e opressivas modas passadas. O passado da moda é o futuro da reciclagem pela moda. O passado é o pasto onde a criatividade cresce. Às vezes esse pasto são só ervas daninhas que eu aparo ao fim de semana com os meus filhos e daqui pouco com os meus netos. O que todos sabem eu ignoro e isso é causa de malestar. O que eu sei é ignorado por quase todos, incluindo uma boa parte de mim. Qualquer coisa é a mãe da mãe do que quer que seja. E logo surge a música, a belíssima melodia, que acha no fundo de nós a inquietação devorante, a
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extraordinária carência que nos empurra para as carências dos outros. A exuberância é algo a mais que é imprescindível. A exuberância é uma alegria que te alegra um longo bocadinho e que contrapões a já não teres nenhum medo de a perderes, porque ela regressa contigo, ela nunca te abandona no fundo! O estilo com estilo é a melhor mentira do pensamento, é a melhor dentada a seco no bocadillo do pensamento. Não há estilo sem as curvas do pensamento. A moda é a melhor falsificação que podes ir falsificando para a poderes comprar depois em saldos. Status é aquilo de que te queres livrar. Status é o que não pretendo, que não pretendo mesmo ter... embora tenha! A arte sem diletantismo apanhou-me, mas consegui fugir depois! Tiro assim fotografias à minha vaidade, ao meu amor-próprio, esse mesmo que alimenta (e de que maneira) os ciúmes, esse grande motor (já o dizia Capellanus bem antes de Proust) do amor. A fotografia é o nenhum jeito para focar e carregar no botão. A fotografia é uma forma de dizer o que não sabes sequer dizer, o que não sentes sobre o 170
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que gostarias de sentir e aquilo que não vês no que está à tua frente.
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Um trabalho chique a valer nestes tempos tramados
é reabilitar os refugiados transformando-os em exilados, em tipos que sentem a nostalgia de onde vieram com cuidado literário, mas que não querem lá voltar porque no fundo aquilo é horrível, triste e catastrófico. A possibilidade de verdadeiro exílio está-se a tornar numa impossibilidade com a democratização global, com esta sensação que nos exilaram não só do Paraíso, como desse terrível lugar para onde nos expulsaram mas que ainda assim ainda era nosso, afectivamente nosso. Fomos expurgados do mundo porque já não constamos nele há bastante tempo. Nas cidades a linha do horizonte foi exilada. Os nossos horizontes ampliam o exílio e o seu horizonte. Ampliam o exílio a partir da banheira que é onde regressamos um pouco à mãe, às águas originais. Quando faz calor no Verão apetece estar numa banheira fria, num retorno ao fresco. Quando no Verão as aves se põe a chilrear nós ficamos a reflectir, mesmo que incomodados pelo barulho, 172
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como se recordássemos o nosso choro de criança. Não sei reflectir sobre o povo porque não sei generalizar, mas sinto uma energia vinda do povo nas minhas reflexões canibais. A noite mata o jardineiro interior? Partes de mim querem suprimir partes de mim, as nocturnas, moles, lânguidas, tal como os outros me querem suprimir utilizando tudo, incluindo a difamação, a moral e a intriga? Dentro de mim é possível continuar a expansão, ampliar a gargalhada? Sim, canibalizando os outros, metendo-os na carne da minha consciência. O jardineiro interior insinua ideias de guerra ou de violação? Não, ele está diametralmente contra, ele só quer continuar a tratar do seu jardim, cuidando de que as coisas cresçam para o alto. A industrialização do pensamento desenraizou as metáforas. As metáforas sem raízes levam-nos para guerrilhas metafóricas. Para Diógenes o exílio é a cidadania. Para Diógenes, a cidade, a cultura, os hábitos, as vestes e o sexo às ocultas são um exílio das vestes da nossa naturalidade, tal como as exigências morais, qualquer moral, é um suplemento cruel, retorcido e hipócrita. Desconfio da cidadania como se fosse 173
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um mero conformismo a regras que não precisamos para nada, como um modo de cozinhar que destrói o sabor revigorante dos alimentos. A cidadania e a participação política são regulações de conflitos resultantes do expansionismo de certos cidadãos. Todo o cidadão se quer naturalmente expandir e a expansão de cada um sobre os outros é a estranha guerrilha da cidadania. Onde não há ninguém nem sequer há expansão porque a expansão vive do reconhecimento do outro. A inveja é o principal motor da expansão das subjectividades. É o Agora que nos instala no Aqui. Nem o Aqui nem o Agora são exílios, mas pelo contrário, são o que des-exila. A Odisseia mostra que a aventura é sempre um exílio que é perseguido pela memória burguesa de um lar, de uma cama, de um cão, de uma retorno ao materno mais forte que a imortalidade. Calypso é o exílio no sexo, é o encapotamento na imortalidade sexual, que é parente do esquecimento. Calypso é o exílio na pornografia, na monotonia das mil e uma variantes da transgressão. Porém a morte é uma circunferência onde não há exílio, porque é a terra dos mortos que cozinha e instaura as pátrias, abrigando todos os espectros 174
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sem corpo, sejas os que podemos recordar, seja aqueles de quem já ninguém se lembra. A pátria é a celebração dos que morreram para nela. Comportamentos circulares exilam. Morrer fora da sua cidade é a tragédia de não poder ser recordado pelos seus. Comportamentos nómadas fazem desaparecer a pátria e o sentimento de exílio. Os homens antes de serem homens eram exilados. Antes do sedentarismo o exílio ainda não se sabia exílio. O exilado precede o patriota e aumenta-lhe a sombra. O exílio é a nostalgia da infância dissimulada de infortúnio político. Há países onde todos se sentem exilados, onde a humilhação se dá como tradição. As andorinhas fazem ninhos pitagóricos. São exiladas que fabricam a sua pátria num círculo primaveril. O Além é propriedade dos pitagóricos e dos cristãos? O Além é o Outono onde se exilou o Éden, onde se extinguiu o primaveril, o ninho. O Outono no exílio ainda não prepara primaveras. A palavra Outono dá-me a sensação de Retorno, do regresso inevitável da mortalidade, da doçura sem afazeres da morte. Parece que a alma é uma circunferência 175
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que se alheia às quadraturas do político. A politização procede por quadraturas, por expropriações e apropriações de terras. O povo é uma pulsão sexual que vem da terra. O despotismo do povo é uma contra-pulsão sexual. É a inveja da contemplação do céu contra a propriedade da terra. Uma revolução, por mais prestigiante que seja, costuma ser um acto de vandalismo generalizado, com as cenas mais cobardes à mistura. Quem faz justiça às vítimas inocentes das revoluções? Porque é que os oportunistas, os mais vingativos, surgem no seio das revoluções prontos a destruir pelo simples prazer de destruir e a tornar as revoluções em empreendimentos privados? O despotismo é o exílio da população. Nesse exílio a população é a espectadora da sua própria miséria, rumina a miséria, enegrece-se ainda mais na auto-destruição. Pessoas vulgares emigram, não se exilam. Os que podem exilar-se são elites caídas em desgraça, hipotéticos heróis do devir cônscios de que o são. Os que podem suportar o exílio rememoram um Éden falso, um Éden caído em desgraça, sombrio, sob o qual pesa ainda alguma esperança. 176
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Há quem encha a terra de estátuas. Quem é que não se exila no chamado dia a dia? A filosofia adia o confronto com a singularidade cada momento? A filosofia é um autoimposto à vida através de abstracções? Temos pago auto-impostos à vida. Temos que fugir do mundo para voltar a ser exilados? Encontramo-nos connosco no ser exilados? Tantas interrogações que também nos exilam. Encontramo-nos nos recessos do abandono e desespero com outros que se sentem exilados e sentimos um estranho afecto: um perfume de infância, um sabor da pátria, uma voz que foi doce, um rosto divino que recrutou rugas. Jardinamos para compensar o exílio, para procurarmos a sensação de pertencermos ao povo e à terra. Ou pertencemos apenas às elites e ao céu? O que é o silvestre? É o que sobra ao nomadismo e que invade a horta. Flores do mal ou plantas bravas? A jardinagem também pode integrar o silvestre. Podem ser silvestres aqueles que se fecham em jardinagens? Pinhas de exílio sem jardinagens. Pinhas e maçãs de exílio chilreiam
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sobre os feriados. Os feriados também já estão a ser exilados. Os domingos e os feriados são o exílio da semana.
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A Grécia foi-se exilando na Grécia mais antiga do
que a Grécia, no meio das Cíclades com os seus ídolos que são erecções de mortos, um exibicionismo para os vivos sentirem a falsa sexualidade dos mortos. A morte é o assexual. A morte foi-se exilando do pensamento para ser um mito do pensamento e para ser falsamente repensada. Dias húmidos falsamente repensados de mão dada. Dias húmidos reabilitam os bosques onde passeavamos. Empédocles reabilita os bosques atirando-se para o fundo do Etna deixando as sandálias à beira (ou não foi assim?). Empedócles transformou-se numa estátua que se transformou noutra estátua que se quis exilar num vulcão dourado. Os ciprestes lançam um cão no vulcão e palram sobre tequilla e Malcolm Lowry. Os ciprestes sexualizam o exílio dos deuses e sexualizam o exílio dos mortos, muito ponteagudos. As nuvens dos mortos afagam o seu exílio nos bicos dos ciprestes e nos bicos das mamas de prostitutas sinistras. As nuvens não conseguem restaurar as imagens exiladas 179
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porque ficou tudo desfocado nas fotografias. As imagens exiladas voltam nos ventos de Outono com ar despenteado e olheiras de ter estado a fazer amor a noite inteira. O despotismo deixa marcas dentro de todos nós. O despotismo deixa marcas de exílios consecutivos. Nos exílios os deuses são as estátuas que acabaram como decorativas junto ao jarrão das plantas. O oráculo é acolhido pelas estátuas. O oráculo é uma maneira de fazer o destino com gritos que a terra insufla em certos corpos muito frescos e vulneráveis. É uma maneira de fazer o destino sair do exílio e iniciar o grande regresso a casa, à tal casa onde a Memória brilha. É uma maneira de sair do exílio e de provocar um novo exílio a quem é revelado. Apolo é quem é revelado. Apolo aproveita o seu exílio e aproveita o exílio dos outros para fazer turismo em terras escuras. Fazer turismo é uma coisa apolínea, solar, com máquinas fotográficas a dar conta dos estados da luz. Tudo o que fica é subliminal, com o psicanalista a fumar três cachimbos ao mesmo tempo. Os que dizem o subliminal nem passam lá muito mal porque têm as entranhas na lábia. O
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que dizem os livros é uma atenção específica e uma curiosidade pelo ilimitado. As balas da linguagem precisam de alvos linguísticos. O bem não consegue encontrar a completude. Talvezes é a completude, a tal completude que à primeira vista é vaga e duvidosa e depois enche totalmente a alma. Talvezes é o que prefiro. Vou repetir porque é importante: talvezes é o que prefiro. O beijo que prefiro é o de talvezes arrebatadores. O beijo aperfeiçoa a boca. O boche aperfeiçoa a boca no broche aos seus mais directos superiores. Qualquer língua provoca a ilusão que nela se agita a origem, com o veneno serpentino das origens. Expus-me estilizado na origem que era o ventre de uma deusa inominável. Expus-me estilizado para encontrar a preciosa atenção. Talvezes é a tentação da atenção. Talvezes é o que me dizes sobre ti para que eu te faça humilhantes confissões. Não deduzo nada sobre ti, nem sequer se me amas ou tens vontade de me pôr fora de casa a esta hora. Em lógica as regras desviam o olhar das regras e dos fundamentos das regras. Eu paro para olhá-las com um ar infantil, entre o 181
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curioso e o amedrontado. Eu é o que diz sim antes do sim, e antes do suspiro que indaga timidamente perdão. Eu gosto de suspirar a perguntar. Eu gosto de misturar misturas que não desapontam e que nem sempre dão certo. Suspiros que não desapontam ou que te afastam de mim porque não tens uma ponta de compaixão e carradas de razão. Suspiro em bicos dos pés a pedinchar um nadinha de compaixão. Tudo fica com bicos de papagaio. Tudo fica a mostrar sintomas que passam pelo corpo e que crescem nas zonas dos ossos mais incómodas. O pó acumula-se no rodapé quando ninguém o limpa, mesmo quando se aspira o chão ou se mudam regularmente os lençóis da cama. Soprava no rodapé da página uma aragem dourada no fim da tarde. Chegava-me uma nota escuríssima na aragem dourada. Uma nota de Deus vestida de deusa vestida de matemática. Quando te esquecer como saberei se te esqueci? Pensarei ainda em ti, inconscientemente, se te esqueci? Pensarei nisso com a pergunta acesa e o isqueiro à mão.
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Somos todos perguntas acesas. Somos todos bolos da
sorte no Japão. Editei receitas de bolos no Japão que distribui em bolinhos da sorte. Editei a extraordinária revista do extraordinário onde publiquei traduções do Emilio Villa e do Picasso e poemas inéditos do Rindpest. Políptico significa a perfeição do múltiplo dividida em partes. Uma singular perfeição do múltiplo que junta vários quadros numa só obra. Uma autobiografia anónima como outra autobiografia anónima mise en abyme como se chama? Queres ser uma chama num quarto escuro num quadro francês do século XVII? Queres ser mesmo grande no vasto domínio do anonimato, secção século XX/XXI? Ser perfeito é pastar no anonimato? Inventei vários anónimos de séculos antigos e não disse nada a ninguém (digo-te a ti, agora). Ser perfeito é estar cheio de estar cheio de algo imperfeito muito bem disfarçado. Ter estilo é algo imperfeito e caricatural, e não uma necessidade absoluta de transferir a violência. Tenho estilo 183
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no género romanesco a dar conta de como se esvazia numa noite uma garrafa de brandy. Tenho o meu mal para esvaziar com mel. Ter estilo é estar bem preparado para estar bem vestido? Sou o estudo e não alcanço o estilo, só a tentativa de ter mais estilo. Sou o estudo vestido? A minha barba tem 99 pelos brancos. Fui adorado 0,099 anos. Fui 99 máscaras jubilantes de antepassados assustadores. Qual é a centésima máscara? É aquela que põe um acento circunflexo em deus. Qual é a coisa mais directa, a fome ou o sexo? Ou será o sono e a morte? A matemática é a coisa mais directa quando se está de pijama? Matemática disfarçada de fome, de osso, de coisa a roer caninamente. Ando disfarçado de fome matemática. A tua leitura é a tua leitura do que é uma posse que se apodera com unhas das minhas costas. Inventei outra posse, mas só a sinto embaciada. Inventei o Museu da Fome mas troquei-o depressa por Museus de Gula. Um exemplo em 5 bananas. Sou as 5 bananas e os 5 bananas. Sou o estilo, o que foi perdido várias vezes, juntamente com todo o tipo de documentos indispensáveis 184
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
para viver. Quero ser divertido? Sou o estalo que não te quis dar na cara no dia em que nos separamos? Sou o estudante chinês de Halifax nas escadas traseiras do Museu de Arte Moderna em Nova Iorque num dia esbranquiçado com ratazanas esmagadas no asfalto. Estou numa autobiografia pálida à espera de autocarro e faz um calor de morte. Estou numa autobiografia em 99 minutos a descontar cada um dos 99 minutos perdidos a relê-la além dos muito mais que perdi ao escrevê-la. Abotoo os meus botões de emergência. Abotoo as minhas camisas e a braguilha das calças para não ficar com um ar descomposto na inauguração desta minha exposição. Estou estilisticamente noutros, em generosidade, altruísmo, heterologia. A minha indisciplina é estar noutros a sugarlhes o estilo e o vocabulário. A fama é estar na exposição com muita gente na inauguração a conversar sobre as coisas mais desinteressantes. A fama é melhor com esferográfica quando se dá autógrafos. Qualquer melhoria é boa com esferográfica, mesmo se os poemas que escrevo mostram a brutalidade e o desânimo da vida. Qualquer frase é posse? A frase é posse de quê? De quem? A biblioteca é já os livros 185
PIERRE DELALANDE
que hão de vir. Que hão de vir, mas devagar. Fiz muitas leituras, mas devagar. Fiz muitas hipótese chamadas "uma hipótese onde já não caibo” ou "uma obra a divulgar só aos meus heterónimos".
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MONÓLOGO DAS SOMBRAS
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Numa exposição, talvez na minha primeira exposi-
ção, ainda no final dos anos 60, pela primeira vez, casei por muitos anos, com uma mulher que valia por uma dúzia. Fiz isso e fiquei assim muitos anos. Depois lancei uma bomba atómica ao namorar 12 mulheres e dar um pontapé num cão. Gosto de namorar 12 mulheres e não sei se gosto de cães (era só para ter piada!). É muito amor ao mesmo tempo, recíproco. Gosto de pedidos de casamento sem ter que casar outra vez. Andam-me a fazer desses pedidos aos montes e eu odiaria casar outra vez. Odeio bodas, casórios, essa falsa excitação, a família inflamada, os amigos desconfiados, a trabalheira da organização, o dinheiro gastado em vão e a imoralidade dos contratos matrimoniais, tudo dado num stress de alegria a imitar alegria, de cansaço e de atenções a quem não queremos dar. Andam a Shakespecular sobre mim, o gajo do divórcio perfeito. Gosto de Shakespecular sobre mim. Gosto de chupar mangas, de ler mangas e de estar em mangas de camisa en187
PIERRE DELALANDE
quanto trabalho ou cozinho. Não tenho nada nas mangas, agora, porque estou de T-shirt. Não faço mangalhos, mas nem sequer acho feio. Tenho um Japão nas mangas. Tenho um Japão bonsai. Estou cheio de bonsais especulativos. Estou cheio de rude consistência no pensamento? A consistência no pensamento é o quê, pá? A matemática numa frase matemática não se satisfaz a si mesma. Uma frase pode ser uma convidada para uma festa num capítulo muito bem engendrado. Uma frase pode querer ou não querer entrar para onde a convidaram. Expus-me ao ridículo ao dizer amo-te a várias criaturas na mesma manhã? Amo-te quando te fazes convidada para vires comigo à praça comprar peixe e fruta e legumes e compotas. Expus-me ao dizer? O quê? Expus em 1999. O quê? Expus 99 lugares da minha cidade preferida e nenhum deles era muito conhecido. Expus lugares onde me perdi várias vezes: becos, travessas, pracetas, zonas amuradas dando para descampados e ruínas. Expus o que foi perdido. Expus 99 linhas de poesia sobre 77 linhas de autocarro. Costumo correr para um autocarro com ar apressado e às vezes aconteceme embater em certas pessoas que vêm esbaforidas na direc188
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
ção contrária. É uma coisa violenta como um choque entre automóveis, mas com muito menos consequências. A ideia de público apressado invadiu a arte e a literatura. A ideia de mostrar é o tema do meu trabalho. A minha flor preferida é a orquídea, essa flor obscena e pirosa, se bem que haja tantas orquídeas que eu já não sei qual delas é a minha preferida. Comi a obra preferida de um artista meu amigo. Comi uma obra por divulgar. Soltei a gargalhada por divulgar. Soltei a gargalhada da intimidade instantânea? Criei a partir da intimidade instantânea? Criei uma pergunta que se acaba como o Verão e que regressa no Verão seguinte. Juntarei toda a mania de perguntar no próximo Verão. Juntarei toda a publicidade instantânea num ar muito discreto. Qual é a melhor publicidade instantânea? Vivo neste assim meio assado. Vivo num chapéu muito grande. Um chapéu por vezes de capitalista, negro. Outras vezes um chapéu de feiticeiro, rosa. Chapéus para fazer magia. Comi uma enorme pirâmide de chocolate. Comi o meu fato de cerimónias. Tinha um fato de cerimónias branco. Este exemplo escolhi-o a partir do branco. Este exemplo escolhi-o para uma pessoa especial. Sou uma pessoa múltipla para uma pessoa só. Estás pronto? Conheço 9 ilhas para estares só. 9 ilhas onde se descobrem 189
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coisas a fingir que se lê Wittgenstein. Tenho um lado Wittgenstein por sublimar. Tenho um lado que facilita o acesso ao impossível. Um interior impossível com muitos hieróglifos e paredes pintadas de azul celeste. Também tenho um interior de um cor-de-rosa exemplar. Gosto de um cor-de-rosa exemplar. Gosto de mobiliário fantasma. O que é quero dizer com mobiliário fantasma? O que ignoro torna-me disponível. O que não ignoro também me torna disponível. A primeira intimidade com uma coisa desconhecida é instantânea? Fiz disciplinas. Deram em insensatez instantânea? Fiz mais disciplinas. Deram num livro. Uma exposição num livro é uma coisa vulgar de que gosto. Uma exposição a meias aumenta as amizades. Escrevi a meias 99 argumentos para 99 realizadores falhados. Só para me livrar de me livrar de Deus? Vivo numa visão de Deus? Vivo numa visão de Wittgenstein? Sou o Jonathan Swift do Wittgenstein? Jonathan Swift lembrava-se de Lisboa num poema, tal como Voltaire insistia no terramoto de Lisboa, esse caso de sublime. Avanço descrevendo uma irregularidade que descreve a irregularidade dos nomes. Vivo num dos nomes. Vivo 190
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num vestido que é vestido e que é o mundo. Uso alguma coisa como mundo. Uso alguma minúcia. As frases dirigemse para a minúcia. As frases num intelectual são maiores com núcleos de menoridade no meio. As frases no poeta intelectual ainda são mais sublimes e incompreensíveis. O poeta tem uma resposta que é uma resposta para a noção de engodo. A resposta é um oráculo. Eis Deus: outro engodo. Eis Deus: dá-me um animal em sacrifício. Dá-me um animal!, ordena ele. Na pergunta por formular pergunta ao mundo se a quer formular. Antes dessa pergunta o mundo ainda é nada. Eu vírgulo-me, e isso é nada. Eu vírgulo as hipóteses, antes das hipóteses. Eu virgulo ao volante, antes de estacionar.
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Em que pergunta devo estacionar? Que pergunta é
uma agravante de uma agravante para a qual existem 99 livros escritos ao ano? Exalto esses livros todo o ano. Exalto (ou exulto) a memória com a memória infiltrada no estudo? Pus a eloquência a manchar o estudo? A eloquência de fingir raiva? Satie, ficava quietinho, a fingir raiva. Satie, não estás rico depois de morto? Eu não estou rico? Eu posso repetir-me como anti-ambiente. Eu posso repetir no meu o teu sorriso? Sou o quando que catapulta o sorriso? Sou o quando de outro equívoco. Experimenta-te como outro equívoco e antes de sorrires palita os dentes. Experimenta este mundo outra vez com a sensação de lhe seres diagonal ou paralelo. Tal como os sonhos o cosmos tem uma personalidade duvidosa. As hipóteses têm personalidades como os outros animais. As hipóteses ainda não estão tão leves quanto a verdade. Os críticos subornam a verdade. Os críticos japoneses socorrem-se do satori como critério de aferição. Andamos a comprar satoris. Andamos a comprar coisas para encher casas que não queremos que fiquem cheias. O 192
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
gosto pensa-te para encher-te de preconceitos. O gosto pensa-te como um santuário. Nós somos santuários. Os números não pagam números nem pagam dívidas. As palavras são dívidas, hipotecas, falências. As palavras são distâncias simultâneas. Uma frase de distâncias simultâneas é difícil de se aproximar. Uma frase que dá cabo do cadáver putrefacto é uma cena de magia. Escrever com o cadáver putrefacto, diz o mago. Escrever para não parar de me repetir. O juízo para ter efeito tem que se repetir. O juízo é a minha autobiografia enfaixada. A minha autobiografia foi enfaixada de azul. Tenho estado a medir a Obscuridade. Quis medir o comprimento do lugar da atenção. Achei o cor-de-rosa ideal para vestir a atenção. Um cor-de-rosa de berrantes ideias. Ter berrantes ideias, ter ideias que berram com cores. A volta ao mundo revolta-se em 12 notas de rodapé. Há que arrumar os rabiscos dos rodapés. Fiz muitos extras. 99 poemas extras para mostrar a perfeição. Mais 99 poemas que dinamitam a perfeição. E ainda outros que dinamitam a perfeição com um sorriso malandro. O sorriso cristaliza a disponibilidade. A disponibilidade do teu corpo para sentir um não-corpo é uma atitude esquisita. Para sen193
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tir não precisas dizer o como ou o quanto é bom. Em ti tudo transcomunica a desigualidade. Tudo o que transcomunica a desigualidade reordena e re-equaliza. Reordena e re-equaliza o rumor. Rumina os rumores. Rumina os pluriversos. Eu sou os pluriversos. Sou o uno, o dual, o múltiplo e o trans-múltiplo. Estou entalado entre a soma excessiva das minhas partes e a subtracção que as partes fazem umas às outras. O eu constitui-se na subtracção da sua multiplicidade menos um. O eu constitui-se através de heteronímias por vir, através de heteronímias selvagens, através de falhanços selvagens. Através de falhanços vou polindo a minha ignorância assim como todas as ignorâncias de que tenho conhecimento. Afinal esses falhanços são tudo menos falhanços. Todas as simultaneidades reinventam as medidas. Ando a tentar vestir o mundo com a sua própria roupa. O meu mundo fica mais elegante quando escolhe a roupa mais indicada.
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O meu nome faz-me andar. O nome faz-me andar
em algo longe de mim. Pierre Delalande é-me a mim, o meu burlesco, o meu sério, o meu espantalho, ou meu ironicamente enfatuado. Pierre Delalande são palavras amestradas. Precisamente duas palavras. Essas são as palavras que me estão a atravessar. São sons que me estão atravessados na garganta. Pessoa foi um tipo com garganta. Pessoa foi um masturbador de almas a masturbar as nossas almas e a modernidade, toda a modernidade possível, acima da modernidade, a obscura meta-modernidade. A modernidade também é leveza porque sabemos que quer passar depressa como o vento, e nem sequer vem com guarda chuva e apanha a chuva oblíqua. Confunde-se também a leveza com o desapego. Não dá.
Confunde-se com os teus passos pesa-
dos, martelados, que não se justificam num corpo assim. Exagera, exclui, aproveita. Não enjeites, não amargues. Cospe. Limpa.
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Gosto de passos que exageram, excluem e aproveitam. Gosto de dar pontapés contundentes num caixote do lixo na rua quando estou chateado. Perco pressupostos sempre calorosos sempre que me vejo num charco num belíssimo dia de primavera. Perco pressupostos sempre que agradeço a uma dúvida inútil, sempre que agradeço a uma dúvida fecunda que se fecunda a si mesma com novas dúvidas, que se manifesta como amor, que se manifesta como amor cada vez mais avassalador. Ponho títulos para parecer avassalador, intenso, com conteúdos que limpam e fintam os conteúdos prévios asseverados. Ponho títulos que ficam frenéticos a fazer pingpong contra as paredes do cérebro. E nos títulos arrasto parênteses apertadinhos, parênteses que lhes são parentes a abraçá-los com força, parênteses traiçoeiros que são sobretítulos que desconversam. E sempre fiz isso, esse estilo desconversacional que provoca um efeito cómico de quem escova as axilas com a escova de dentes. Ando a arranjar parentes antigos, mesmo quando são tios como o Jerôme Delalande ou o Michel-Richard Delalande ou primos cretinos como o toureiro Marcial Lalanda. Sinto que há um paren196
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tesco entre Delalande e Dowland, e é sempre a mesma melancolia musical, o mesmo ele enrolado no dê, e esse quase palíndromo próprio dos delalandes. Ando a responder como quem esconde perguntas novas nos bolsos das respostas velhas. Escondo perguntas novas antes de saber o que vai nelas às cavalitas. O antes e o depois com o agora debruçadinho sobre si mesmo quase a ser defenestrado. O depois com o tempo debruçado sobre o tempo que falta a contar ao contrário para dar mais medo já que o tempo acaba na nossa morte, não prossegue, nem sequer nos outros ou no relógio desmesurado do universo. Como conciliar o tempo descontínuo e findo da consciência de cada um com o tempo sem sensação que supostamente existe? O tempo debruçado para os dois lados. Para o lado em que nem sequer começa e para o que acaba. Ser obcecado com a origem do mundo implica o haver qualquer fim? Vai tudo continuar infindo e interminável, espalhado, frio, ainda mais inútil, descontraído? O enigma do fim ou da sua falta ainda é maior do que o dos supostos inícios.
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As questões podem reaparecer com mais clareza quando repito as perguntas, essas perguntas do Byars que eu perdi ao olhar-lhe os vestidos, os chapéus, os livros perfeitos, as metades das autobiografias. Ando a reaparecer no que repito, com pontos de interrogação a pressionar-me o topo da tola. A pergunta outra vez da mesma maneira torna-se outra coisa a perguntar outras coisas, como na música minimalista. Quanto mais repito mais a pergunta é uma arte que ramifica as suas palavras até ao paleolítico. Todas as perguntas são espaciais. Repito as perguntas para as tornar mais obscuras. Apaixono-me pelas possibilidades mais obscuras. Apaixono-me por tantos talvezes que tenho logo que sair de casa para ver se se passa alguma coisa, se acontece o que nem sequer esperava. Mascaro-me de tantos talvezes, e é quase sempre numa disposição amorosa. Dou-me conta de que a conjugação das micropartículas me mascara. E então são muitos os que me acham intolerável. Ai o Sr. Delalande, o intolerável o Sr. Delalande que tem personalidade de quem tem personalidade de pulga sempre a saltitar dentro da sua despersonalização. Ele é um sarcófago com sarcasmos! Ele é a 198
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pulga nos sarcófagos com sarcasmos mumificados! Ele está cheio de sonhos mumificados! Ele é como um sonho no sonho a sonhar a sombra de uma sombra! Sombra de sombra de um louco que se acha louco e que se acha deus! E nós achamos que somos deuses que acham que são humanos.
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Preferimos os gracejos da filosofia sobre a filosofia e
as trapalhices romanescas à chantagem permanente da verdade. As memórias da verdade são mais verdadeiras que as verdades de um ponto de vista absoluto. O ponto de vista absoluto é uma bela de uma mentira e a causa de muitos males e deformações. As memórias deformam o passado deformando inevitavelmente o passado mais remoto e tornam evidentes os seus entrelaçantes temas. Esses temas andam à nossa caça. Os diários registam temas com monotonia. Os diários disfarçam o mal-estar, o cansaço, as insónias, a acidez no estômago, a pulga no colchão, o cão que temos que passear de logo de madrugada, faça sol ou faça chuva. Os diários disfarçam o mal-estar de um presente que não se pode agarrar e não nos larga. Sabemos que não se pode agarrar sentindo-lhe as unhas mal cortadas. Sabemos que o passado foi mau, rude, violento, humilhante, com um balanço pouco famoso e no qual não nos podemos apoiar, sequer com uma 200
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bengala ou chapéu-de-chuva. Mas as memórias dão-lhe laivos de glória, com os quais podemos lavar a cara para poder enfrentar de novo as coisas. Lavar a cara na alegoria a derivar para melancolia. Melancolia cobrindo as coisas, turva teorba. Melancolia e beleza necessárias para dissimular a dor decisiva. Cultivo uma beleza necessária assim como os brilhos adjacentes. Livro-me dos brilhos kitsch de inventadas felicidades. A morte talvez dê brilho a certas felicidades, mas nessa altura estou-me nas tintas. A morte talvez seja uma ilusão, mas a posteridade é uma certeza de que não estaremos lá e de que a não viveremos. Orgulho-me dessa inútil certeza. Orgulho-me de ser parecido com um autor, com um actor a fazer de autor, mesmo quando me dou ao trabalho de celebrar o anonimato, ou ao trabalho de forjar pseudonímias inconsistentes com bigode postiço. Preciso de forjar pseudonímias para mergulhar no pseudo-anonimato, o que me garante uma experiência interior mais concreta e variada. Achamos no anonimato coisas importantes que os outros não conseguem ver, como por exemplo, o modo como as submáscaras dos outros tapam mal o informe, o 201
PIERRE DELALANDE
feio e o sexo da deusa das รกrvores de frutos proibidos. Achamos em nรณs, por mero acaso, um deus nulo melhor que o deus que se acha humilhado no humano.
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As distinções cruciais confundem-se com capitula-
ções. Ou confundem-se com decapitulações? A persistência faz a necessidade do carrasco. Ele prefere expressões rascas de carrasco a efectivamentes de ministro. Ele prefere expressões que hesitam em ir por caminhos claros a ir por caminhos obscuros. Anda por caminhos alheios, mas ainda gosta menos dos que ficam em casa. O assunto casa-se. O assunto ao fim de algum tempo acaba por ser um tempo que ele teve para viver e matar curiosidades e alimentar famílias. O assunto acaba por rolar no chão e sujar-se de estrume. Corta-se o assunto para rolar no chão e vai mais uma rodela de chouriço. Ele corta cabeças para refutar as cabeças que andam a refutar a sua. Escreve para a sua satisfação e curiosidade. Escreve para que a intimidade alheia seja excessiva. O alheio é excessivo e problemático. Mete-se numa escrita que se julga problemática, coitado! Uma escrita «aberta» acaba por causar muitas feridas. Essa coisa de ser «aberta» acaba por fechar muitas 203
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portas e descartar afectos, comunicação, plausibilidade. A fechar muitas portas morreu um boi. A complexidade monta a cavalo na complexidade. Tu montas em frases fáceis e pões-te a saltar barreiras todo contente. Usas frases fáceis para andar mais depressa... andar mais depressa... e ao contrário. As pessoas demasiado subtis tornam a comunicabilidade perra e depois chegam os broncos e dizem-no bem melhor para pasmo de todos. Uma comunicabilidade impraticável pode ter muitos adeptos. Ele tem algumas auto-consciências impraticáveis que lhe dificultam a gestão da vida. Tem algumas auto-consciências postiças para dissimular confortáveis ignorâncias, o que nem sequer é mau. Tem cabeleiras postiças para dissimular a parte da cabeça que foi decapitada. Escreve notas porque decapita partes de livros que depois remonta para a sua Autobiografia Canalha. Escreve notas porque evita o livro. Evita o livro porque os livros já não assustam nem dão murros no estômago. Até o vazio se tornou confortável, tendo inclusive contratado um designer competente para isso. Há um livro que tenho medo de continuar a ler porque o autor, que entretanto morreu me o pediu para não ler. No dia em que parei de ler esse livro a vida passou-me a correr muito mal. Mas isso já foi 204
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
há muitos anos. Os livros ainda nos podem livrar do medo? Como me vou livrar do medo de ler esse livro que está aqui na prateleira à espera de que alguém leia a sua maldição, o arranque ao seu poder egípcio de ensombrar vidas?
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Publica livros para se fazer desaparecer ou para fazer
desaparecer as notas. Publica livros para escrever mais notas para esses livros ou para outros livros. Começa por anotar coisas e depois combina e recombina as anotações. É dessas recombinações que a vida emerge como possibilidade de ser vivida escrevendo-se. A interrogação é uma condensação das notas que acaba por ignorar o que é anotado e parte para qualquer sítio, on the road, e assim é a aventura. A interrogação como elisão da elisão do seu objecto. As cores não são objectos e nem sequer estão num só sítio mas contaminam tudo à volta se a luz a bater for forte. As cores não estão só nos seus sítios, mas nas reflexões e nas reflexões que reflectem As cores não ignoram as circunstâncias, são, se houver luz, as circunstâncias. Haverá uma arte de ignorar as circunstâncias, de tapar os olhos e os ouvidos tão bem que não se oiça nem se veja nada? O potencial esgota-se no potencial que se esgota na propensão para a propensão de certos acontecimentos florirem inevitavelmente 206
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quando ia ser outra coisa. Os acontecimentos desviam-se da sua propensão. Os acontecimentos não se esgotam no se esgotarem neles e ainda ficam com um fundo onde há um sabor que tu hás de provar. O carrascão elucida-os nos acontecimentos com esse sabor acre, raramente bom. O carrascão elucida mais a lucidez do que um bom borgonhês. Apesar de nos elucidar, o sabor do carrascão nunca é bom, nem sequer chega aos calcanhares de um borgonhês. Apesar de se declarar inexperiente ele tornou-se um expert na arte da inexperiência. Só se sabe na inexperiência. Só se consegue lembrar daquilo e aqueloutro, jamais do ponto de vista do especialista ou do autoritário. Só se consegue lembrar, na maior parte dos casos, daquilo a que não prestou quase nenhuma atenção. Ele é o curioso, o aficcionado, o intuitivo, o palerma que fala do que não leu com mais intensidade do que o que se esmifrou a sacar o sumo do livro. Ele triplicou-se no prestar atenção e continuou distraído. Quanto mais atenção lhe pediam, mais se distraía, mais era disparatado, aéreo, desconexo.
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Triplicou-se no indescritível. Faz caminhadas entre o indescritível. Faz caminhadas para se limpar de ideias sujas, bafientas, malucas. Ajudava as pessoas a habitarem as ideias mesmo com as casas num caos. Ajudava as pessoas a não pensar em si ou a não pensar só nelas, nem só nelas, nem só nos outros. Tentava estar só com os outros, só com eles ou só consigo entre eles. Tentava comercializar o anonimato, o não lhe ligarem nenhuma, o ser aquele que estando lá a uma data de tempo já ninguém se recordava. Tentava comercializar o anonimato sem lucro. Ele escreve, mas sem lucro, e até chega a pagar para publicar. Escreve, meu querido, mas não fales demais. Ele falava para si na físicalidade de escrever com os dedos a concentrarem em si a energia física de muito desespero acumulado. Desconfio de quem escreve com moleza física, de quem segura com flacidez um objecto, de quem afaga um cão só à superfície. Em inúmeros os casos opta-se pelo silêncio. Ele opta pelo silêncio contra o silêncio. Reforça-se contra o silêncio, contra esse conformismo em não responder, em estar-se a 208
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cagar, em ser indiferente, completamente indiferente. Reforça-se refutando-se. A objectividade é dada refutando-se, sendo esta a prova dos nove de que outro ponto de vista nos pode encostar à parede para constatar que andamos a desperdiçar as sensações de outros pontos de vista e que essa perda é enorme. A objectividade é uma alucinação. Ele é uma alucinação que se viciou numa personalidade alucinada. Ele temse por inexacto, mas é meticuloso às vezes e é bom a parecer extremamente metódico. O mundo nunca abandonou o inexacto, acrescenta. É o inexacto, dizem os cientistas especialistas em mudanças, que mudará as teorias do mundo que mudarão o mundo. O mundo nunca poderá escrever a sua atribulada história sem ser por fragmentos, por detalhes, por ciladas narrativas, por desvios caóticos. Ou pelas coisas mais inexactas, mais transitórias, mais vagas. A sua atribulada história chinesa encontra bons plagiadores fora da china. As palavras acabam por ser palavras que acabam por descrevê-lo exactamente como não é. Isto não é isso, as mi209
PIERRE DELALANDE
nhas cicatrizes não são as cicatrizes de fulano e sicrano. O meu rosto não sofreu essa plástica. Isso fá-lo sorrir com vigorosa dentadura. A distância fá-lo sorrir. A distância encena as aproximações e as identidades simbólicas. Eu sou isso, e no entanto, ó dualidade, não me revejo nada nisso. O teu corpo é o meu corpo, mas a parte autobiográfica é que foi dar outras curvas, conheceu outros traumas, plagiou outro género de infâncias. A presença leva as aproximações à cena. Do outro lado aplaudem só porque lhes apetece aplaudir. A maior parte das questões gostaria de se tornar carnívora, de abrir a bocarra e ferrar os dentes num naco de chicha. Praticar sexo é uma coisa carnívora mesmo que não se dêem dentadas. Sexo sem sexo?
Foi o que me sugeriu o guru afagando a
mais dilecta seguidora. Ou o sem, sózinho, coitado, sem sexo? Ou o deboche como ascese? A ascese condimentada com deboches? As expressões que usa, expressam usos. Essas expressões apesar de fraca aparência, acabam por fracassar nas coisas fracas e triunfar nas coisas fortes. 210
São expressões que
MONÓLOGO DAS SOMBRAS
induzem muita gente molengona a coisas fortes. Não sei ao certo o que são coisas fortes. Serão as que nos doem mais? O mundo é maquilhagem. A maquilhagem mundana-nos. Porquê limpá-la? Há interrogações que são como a lixívia, limpam mesmo sem as respostas. Vai-se ao fundo para testá-las que o algodão não engana. Ele é a prosa mesquinha das línguas maternas com pernas para andar. O lirismo chegará mais tarde, cada vez mais tarde, só para chatear, desarmado, sem paráfrases, a dizer não se sabe bem o quê, o que é diferente de nada. Porque a poesia, e a lírica em particular, não diz o nada, mas um não sei quê em busca de intensidade no dizer esse balbuciamento confuso com muita força, essa indeterminação que parece caçar qualquer coisa, completamente estonteante, quase até ao esgotamento. A prosa é directa só para chatear. A prosa torna as coisas rudes mais contornáveis e confrontáveis. Mesmo quando a prosa tem aliterações e ritmos e até pode estar perdida diz coisas, não se perde no branco da página, está arrumada numa espécie de rectângulo que a torna certinha , 211
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confortável e confiável. Mesmo a prosa mais feroz prefere ficar na rectangularidade da página do que se dispersar em linhas que acabam subitamente, que desarrumam de alguma maneira o olhar e evitam a continuidade, e fazem da página uma coisa irritante em que se perde tempo. Há tipos rudes difíceis de contornar. Há respostas a mais para perguntas medíocres mas não há nenhuma para as interessantes. Há tipos medíocres que se convencem que são excepcionais e inteligentíssimos e tipos geniais com complexos de inferioridade mas que quando eram adolescentes bateram meia dúzia de vezes não só nos irmãos mais novos, mas na própria mãe. Como é que uma pessoa excepcional consegue saber que, pelo menos, não é medíocre? Não faço a mínima ideia. Os romances são interessantes se forem inquietantes e violentos. Os romances são escritos ao lado das interrogações como uma espécie de contra-interrogação que adia a resposta através de acontecimentos bizarros que têm um interesse especial em ser descritos, como se qualquer coisa fosse re-
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almente descritível, como uma bala que se cravou na estrela do sheriff. O desaparecimento abrupto das interrogações... espero bem que não. O desaparecimento das perguntas tornou-se num romance policial sem policias ou inquéritos. As coisas ordinárias são as que realizam as pessoas extraordinárias no dia a dia. Ninguém realiza coisas extraordinárias? São as coisas que se auto-organizam para que as coisas extraordinárias sucedam? Antes de o lerem já o acham um imbecil de primeira água. Não me importo que me achem um imbecil. Depois de o lerem acabam por por achá-lo um poltrão. Quem vê nele um poltrão? Por outro lado, quem é que tem paciência para viver mais de 200 anos? 150 já seriam de mais com esta memória de galinha que temos.
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A todo o momento se desconcentrava? A nenhum
momento se desconcentrava? Não podia regressar ao ponto de partida de onde os pontos de partida partem. Sentia o esqueleto, o peso real do esqueleto a ser segurado por uns músculos titubeantes. Alguém tinha roubado os pontos de partida, o preâmbulo do processo revolucionário. Não conseguia pensar sem ser roubado pelos pensamentos. Não conseguia pensar nisso embora já começasse a esquecê-lo. Não que começasse a esquecê-lo a sério... Só não lhe vinha à memória e procurava a palavra que estava na ponta da língua num sítio que não se sabe onde fica. Onde guardamos as palavras? Dové sta la memoria? Não se conseguia reconciliar com a essa busca neuronal. E depois lá vinha a palavra, súbita, a que se afastara por momentos da sua vida, a que temia nunca mais recuperar. A cada linha riscava o burocrático que queria habitálo. Cada linha que escrevia sobrava-lhe à escrita que sobrava à retórica do terror. Admitia a retórica do terror como uma 214
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ameaça da gramática. Admitia o riso como riso e como dispositivo de tradução. Traduzimos para recuperar o riso dos outros que ficou debaixo dos texto, mesmo que só tenham rido uma vez por causa de uma parvoíce qualquer. Criei um dispositivo de tradução na escuridão. Na escuridão vemos melhor o que as palavras dos outros nos querem mostrar, entramos num estado de leitura-metempsicose. Os que lemos são nossos antepassados. Enunciava a escuridão às gargalhadas. A escuridade, ai, ui! A ténebra. Ui! Que doce! Enunciava o que desconhecia como se o que desconhecesse fosse a coisa mais importante, mas na verdade tudo o que temos diante dos olhos é suficientemente desconhecido. Só que era a ainda-não-coisa mais importante para um dia ser mais uma dessas coisas banais diante dos olhos. Só colocava hipóteses numa linguagem hipotética. Sentia a linguagem hipotética como uma linguagem mais maleável que servia para acrescentar termos ao dicionário. Sentia a novidade como clima de novidade, como clima propício para o propício e para a futura banalidade. Futurava banalidades com estrépito abafado. Quando um tigre de papel rugia pensava no inconsolável hábito dos chineses se 215
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deixarem condicionar por metáforas. Aqui tinham-lhe cortado as pistas para o acolá. Tinham-lhe cortado a língua para que a língua interior pudesse falar pelos cotovelos. Era a tagarelice alheia a discursar pelos cotovelos. A tagarelice alheia provocava-lhe a sensação de que falar era preciso. Provocava-lhe também a sensação de que era ventríloquo. O que é que ocorre antes do nome que nomeia as coisas? Usava os adjectivos para encontrar coisas? Usava os adjectivos como uma forma de animalização. Exercitava-se na animalização para sentir o essencial. Exercitava-se num rigoroso strip-tease verbal. O rigor do strip-tease na indeterminação verbal. O que é que está nu dentro das palavras? Há algo para ver dentro das palavras? À falta de citações adequadas tinha que forjar adequações para pseudo-citações. Podia não forjar falsas citações. Podia não ter graça, mas dava-lhe vontade de rir despejadamente. O quê? Poder rir despejadamente fora das citações. O quê? Pode ser um tipo que se faz passar por fácil, mas acabará facilmente por enredar em complicações e intrigas que lhe vão pôr em causa a santidade e a melhor das éticas. E acabará por rondar as suas ideias como uma fera 216
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faminta. E verá que os intriguistas existem aos montes, por razões várias, porque eles fazem o que tu nunca farias no seu programa consciente de dar cabo das vidas dos outros. As questões abortavam porque não encontravam assuntos. Mesmo no tempo em que era proibido abortar.
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A vontade de ter vontade de ser animal coexistia
com o animal, coexistia com o ser planta, com o ser desenraizada planta, o mais desenraizada possível. E de preferência com asas. Se fosse com asas daria para voar? Se fosse Deus não seria Deus nem seria tão agarrado aos destinos do mundo. Procurava oportunidades para mudar de sítio ao mundo. Procurava oportunidades para concretizar falhanços de uma forma perfeita. Xaropes a tomar para concretizar falhanços com amor e tudo. Xaropes de ideias brilhantes, e no fundo amorosas. Pedais para pedalar ideias brilhantes. Pedais para acelerar o entusiasmo. Ah, essa mania de acelerar o entusiasmo quando descemos a rua! O sucesso como recusa de sucesso, como recusa quase deliberada de triunfar. Meto percentagens de coisas nada deliberadas nos meus actos a ver no que dá. Meto algumas percentagens de ideias contaminadas e muita mania de Vazio a render no banco. Ah, esta mania de avacalhar o Vazio, só porque sim. Quan218
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do Deus se inventou a si mesmo, inventou o Diabo como contrapartida de um negócio hipotético em que ambos lucram e o partido também. O Diabo existe para tornar esta peça mais interessante? Qual peça? A dele? A de Deus? A minha? A tua? Os deuses conseguem sobreviver às narrativas? É possível viver sem nenhuma narrativa encostado à sombra da bananeira do mundo? Em vez de um mundo cada vez melhor, um mundo mais remendado, um mundo mais remediado? Andam a fazer diabólicos melhoramentos que nos garantirão a infiel felicidade? Ser o maior só para satisfazer as ilusões do ego? Ou ser objectivamente o pior, o malicioso, o que dá cabo de tudo? O objectivo paradoxal da massificação é tornar tudo incorpóreo, banal, repetitivo e casto. Os mortos acham que tudo é incorpóreo e esse é o seu drama. Os platónicos prefeririam que tudo fosse incorpóreo, e esse é o seu drama, o que é o mesmo que dizer que os platónicos preferiam não ter nascido ou já estar mortos. Os mortos meditam na carne. Meditam na carne e têm fome.
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Ele não se lembra de nenhuma especificidade curricular excepto o não se lembrar de especificidades curriculares. Folheia as excepções por desprezar as normas, essas mesmas normas que tanto contribuem para o seu bem-estar. Folheia os livros para os ler nas ordens erradas e nas desordens certas. Há mais possibilidades nas coisas erradas do que nas certas. Há mais variedade em seguir um livro segundo várias desordens do que lê-lo sempre na mesma e correcta ordem para que foi predestinado. Há alguma possibilidade que ainda seja impossível? Sim! Viver tornou-se-lhe uma impossibilidade catita a que se acostumou. Viver tornou-se-lhe uma tarefa fácil, apesar de ao princípio parecer uma tarefa difícil, apesar da indisciplina e das chatices do costume. Escrevia sobre a indisciplina com disciplina, mas muitas vezes mudava quase tudo, ou acrescentava comparações só por acrescentar, ou para infundir imagens de vida, adequadas ou cómicas. Escrevia a sua autobiografia como se tivesse numerosos inimigos para ajustar contas. Inimigos que eram Iagos balofos, não para ele, mas para outros mais relevantes. Os actuais antigos inimigos já o ignoravam. Ter, nem que fosse, numerosos 220
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inimigos como papel de parede para se dar no lar uma importância decorativa e fora de moda. Ter respostas chatas como pulgas a saltar na consciência. Antes de aldrabarem os outros os místicos aldrabam-se a si mesmos com experiências de que ficamos invejosos. Será que são assim tão boas? Ele estava metido com uma cambada de escarafunchosos num onanismo mental em grupo. Ele autoproclamava-se aldrabão profissional mas não sabia sê-lo por causa de uma honestidade visceral. Ele era a pessoa com a identidade errada no sítio certo. Os números de circo na identidade errada batiam a bota com a perdigota. Os números precisam de mais dedos para serem contados ou descontados. Os mais belos desejos aumentam os desejos e aumentam o esplendor ocasional das criaturas. Há alturas do ano em que os mais belos desejos estão em saldos. Estava entalado no esplendor das criaturas. Estava possesso embora sem sentido de posse. Estava possesso num sábio sentido de posse quanto a objectos de que se usa muito, como o pincel, o garfo e o canivete suíço.
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O alívio justifica-se, alivia outras justificações e dispensa filosofias alheias. A dispensa da filosofia está cheia de bolachas (numa lata), de ideias inúteis e de coisas insolúveis. A fúria do mundo deixava-o ainda mais apaixonado.
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Quando nascemos já por cá andam os apaixonados,
geralmente aos pares, com as mãos e a boca à procura de mais voracidade e tacto. Quando nascemos as palavras que aprendemos a aprender vêm hipotecadas por significados dominantes que substituíram significados tiritantes à paixão infantil pelo mundo e a mãe. Uma autobiografia vêm hipotecada no seu vocabulário que vem de um mundo muito antigo, de um balbuciamento encardido, feito de pó e lenha queimada. Uma autobiografia em duas linhas pode-se cruzar num ponto se não for paralela e o espaço for bidimensional. Duas linhas não justificam uma vida plena mas transmitem muitas vezes a energia, as transpirações e a primavera louca. Fazia publicidade à vida plena. Fazia publicidade ao exibir-se em exposições de frequentes erros. Sentia-se tão bem em frequentes erros. Sentia-se tão estúpido por estar estúpido ou por estar a enriquecer sem enriquecer e sem ter 223
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riqueza. Preferia ser enxuto a ter riqueza e no entanto seria justo que da riqueza algo gozasse, ao menos um quinhão, uma rica parte a saborear, uma maliciosa iguaria. Preferia a exuberância do vazio e arredores a qualquer essência que não fora fragrância. Desfazia-se da argumentação e da essência constantemente para se confinar à exercitação das artes e letras. Desfazia-se da argumentação embora desconfiasse da intuição. Aumentava o conhecimento da intuição mergulhando com todo o aparato da carne num não-sei-quê. Aumentava o conhecimento para o tornar ainda mais incompleto, porque a completude é finitude e redundância, e um passo em frente alarga o desconhecido até aos próprios pés calçados por botas robustas. Quanto mais teimava em dizer, mais incompleto ficava, com essa sensação de se faltar e sobrar ao mesmo tempo. Quando dizia o que tinha para dizer, o que ficava por dizer era invisível, e talvez nada ficasse por dizer como intenção, só como propensão que paira. Por cada palavra invisível não sabemos quantas palavras visíveis são necessárias para a compensar. Por cada pa224
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lavra riscada acrescentava uma amizade riscada e acrescentava uma dúzia de conhecimentos, muitas vezes com soberba e irritação. A glória era às dúzias, pródiga, exagerada. A glória ou o inesquecível sob o manto malicioso do imemorável ou ainda sob a capa amarrotada do anonimato. O sublime como anonimato em nula acção. O sublime como uma rasteira que se prega às boas intenções, as que os tristes necessitam, o remédio que adia a agonia, o comezinho de um pequeno desejo a satisfazer depressa. Seria mais uma rasteira foleira para relativizar espectacularmente. Seria mais correcto pedir explicações aos guardiões do acaso, esses, cujas cabeças são estranhas e provocam uma súbita azia quando os fitas. Tudo no acaso quer vir à rede, embora não seja peixe. Tudo no testamento era mentira, porque nada se herda senão a consciência própria assombrando-se a si. Tinha estima no testamento porque era mentira das boas. Gestos simbólicos para sobrarem espectrais. Tinha um nariz implantado entre as pernas para cheirar mais abaixo, como os cães que procuram o sentido rente ao solo. O entre 225
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as pernas era muito nasal. O equívoco era persistente, vocacionalmente persistente, mesmo antes e depois do mundo se preparar para deixar-se acabar. O epitáfio: foi do mundo, como aliás todos. Outro epitáfio: cuidado! Ainda não estou farto de renascer! Ele cresce obliquamente no que renasce. Cresce obliquamente na ubiquidade que o singulariza. Umbilical ubiquidade de quem se liga ao materno pulverizando-se. As parábolas exageram a ubiquidade, o serem para todos o exemplo, quando as palavras são de cada vez para cada sequência de actos. As parábolas exageram nas palavras mas as palavras não enxergam os factos, não levam com eles nas trombas, não os recolhem num saco. Daí que negação contamine a percepção dos factos.
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Aqui vem a inércia, como se o dia claro entrasse
noutro dia claro ou entrasse na noite obscura e a noite obscura, por sua vez, entrasse no dia claro deixando a camisa de fora e o cinto por apertar. Nem mais um passo em frente a dar depois vários passos reaccionários para trás. São mais frequentes os passos para trás a bater com a parte detrás da cabeça num busto de Lenine, a fazer danos na consciência retrógrada. Mais do que a progressão quiçá desejável, pratico a progressão talvez indesejável, por desporto, por luxo, por provocação. Sou vítima da complexidade da percepção. Sempre achei isso improvável, tal como eu sou o improvável que insiste em ser e provar-se. As perguntas da complexidade improvável ficam-me curtas nas linhas como certas calças que deixam as partes de pernas ao léu. As perguntas dizem-se indiferentemente de se dizerem indiferentemente ou de serem uma interrogação da interrogação sem grande enunciação, estafa ou intenção. 227
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Gosto de caldeiradas sem enunciação, sem sequer nomear todos os peixes que para ela morreram. Todas as frases têm qualquer coisa de biografia a recoser uma biografia incompleta, essa que nenhum biógrafo definitivo completará. A biografia dos biógrafos deveria incluir os biografados em quem eles tanto viveram. O biógrafo vive muito mais vidas do que as que lhe foram dadas. A minha principal autobiografia continuará incompleta porque a escrevo para viver nela o que vou escrevendo. Invento a minha vida a partir de vidas dos outros, ou de ficções dos outros, ou de lendas em que não acredito. A minha principal preocupação é a preocupação de que o vírus da refutação só me afecte ligeiramente. O vírus da refutação penetra em todas as explicações forjadas, mas isso não me assusta... as explicações forjadas... incluindo as minhas... derretem-se como queijo, mas é preciso muito fogo. O jejum ao jejum é a minha refeição favorita... Desde que possa beber agua a vida sabe-me bem, sabe-me a claro, sabe-me a líquido. É claro que depende do sabor de cada água. Quero permanecer por aqui a beber muita agua, exce228
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lente, sumptuosa, como escreveu o poeta. Quero permanecer 200 anos vezes 200 anos em samadhi. A arte é o samadhi, e nem sequer é preciso cruzar as pernas. Pode até ser numa ribanceira numa feia periferia. Há algo melhor que uma arte que seja samadhi? Não sabiam? A arte é saber dar respostas em imagens aditivas a respostas subtractivas embora atractivas. Ser subtractivo maquilhado de atractivo. Ser indirecto como o indirecto que destina. Não perder um destino pelo tino. Não perder um segundo com perguntas secundárias. Sou autoritário nas perguntas exactas. De seguida desfaço-me em mimos. Sou autoritário nas minhas obras, nas minhas obras de que me desfaço, em que me deslaço, mas não o suficiente para as disciplinar. A arte não sabe disciplinar o que a ciência deixa indisciplinado. A arte é o ascetismo a livrar-se do baptismo. A arte é um sagrado enxuto antes da impureza dos sacramentos. A diversão da arte destrói o processo de destruição dos significados preestabelecidos. Os significados preestabelecidos duram pouco, mesmo em Platão. As essências, parece que nos diz, costumam ter
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pernas, geralmente aos pares. Os sólidos regulares não têm pernas. A diversão furta-se ao sentido. O estilo do sentido pode ser para uns uma culpa, mas nunca é a minha (livrem-me quer da culpa quer da felix culpa). Ler com estilo. O estilo de leitura torna o sentido dos textos mais determinante do que ter um estilo especifico de escrita. Leio como escrita, anotação continuada, praga de ter ideias à margem. Para ler tenho que ir escrevendo, por cima, ao lado, em qualquer sítio. Sublinho, contraponho, invento, reinvento-me, despersonalizo-me. Ler ou escutar são deformações que mudam o que tínhamos como estanque persona. Escuto deformações obsessivas e deliciosas. Há uma vontade inextricável de auto-deformação, de revolução na persona. Tenho a impressão que na origem de tudo está um Eco Primordial. Um Eco que antecede o segundo som, esse límpido vocábulo de onde tudo se desentranha aos poucos e poucos. Um Eco de outros mundos falidos, dispersos na plenitude do cansaço, na negatividade de que é feito o espaço. Há pessoas que participam na minha 230
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obra como quem vai à casa-de-banho urinar nelas ou lavar as mãos. A minha obra são questões curtas que se mascaram de monólogos longos (como este) com tiritantes questões. Doei uma grande questão ao dentista para que me arranjasse os dentes e acabei por pagar uma conta elevada.
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Doei boa parte do que fiz a uma instituição anónima
que persiste em ocultar o seu anonimato através de um falso anonimato encapotado sobre variadíssimos nomes. O teclado obriga-me a tentar o anonimato, por cautela digital. O teclado obriga-me a escrever melhor, fisicamente, embora a ortografia me traia sempre com gozo. Despido escrevo melhor. Em pijama não escrevo porque não tenho pijama. E quanto a cuecas, estão na gaveta. Há que despir o sentido ao sentido das coisas. Quero despir a inexistência das coisas. A inexistência das coisas não são coisas que não existem, são coisas que são às ocultas, no rabo das ténebras. O que existe é mais plausível do que a existência das existências que insistem. A multiplicidade da cegueira confunde a cegueira pura e confunde a diversidade e a bio-diversidade dos modos de ver. Gostava de ter mais modos de ver. Gostava de não ser míope, nem de ter teias nos olhos e a vista cansada, tudo ao mesmo tempo. Gostava de aprender a aprender a pensar devagar, a escrever devagar, a ler um bocadinho mais devagar. Adquiri o hábito de ler depressa a 232
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fazer concursos com outros putos a ver quem lia um álbum do tintin mais depressa. Fiquei com essa doença da pressa em ler depressa e bem e por aqui continuo com a mania errada de tentar escrever depressa e melhor. O pudor pensa devagar e teme sair de casa porque tudo pode acontecer. O pudor ou o exibicionismo no exibicionismo não nos safam de sermos condenados a variantes de variantes da fama, da má fama, da ensossa fama. A fama do anonimato não paga contas, não recolhe afectos e não dá tantas chatices. A velocidade dos anonimatos é variável. A velocidade das ideias consuma-se em ideias velozes, em ideias ferozes, e encarna na inércia da percepção. A inércia da percepção do mundo contribui para que o mundo seja mais ou menos um mais mundo bastante carente de si mesmo. As situações do mundo condimentam a contemplação. A barafunda do mundo exige meditação. As situações apoderam-se de mim antes do meu corpo delinear a mínima estratégia. Ups, cá está a tentação da mínima estratégia versus a tentação de uma grande estratégia, a tentação pulando quieta em lugar do lugar da tentati233
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va avançando sobre o mundo. As minhas obras são tentativas de tentativas. As minhas obras mais recentes são cada vez mais recentes quanto ao serem muito velhas, quanto ao serem velhíssimas tentativas a armar ao pingarelho. Pus nelas demasiadas coisas muito velhas que querem renascer. Estão a crescer num vaso na varanda ao lado de flores de plástico.
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Pus demasiada desordem na desordem da minha
vida, e acabei por pastar erraticamente nesta parvoíce, e acabei por ter a ordem às ordens, como um incómodo nas gengivas, uma boca para alimentar, um bebé a solicitar. A ordem às ordens anda apinhada nas costas e pesa. A intimidade comigo (esta mesma intimidade comigo mesmo maravilhosamente maliciosa) é e era decepcionante, irritante, expansiva. Vai continuar assim, a persistir, metida na sua casca de caracol cheia de coisas babosas. Tive uma era decepcionante em que até fui bom, e logo logo a minha namorada sem perder tempo tratou de me trair com os meus melhores amigos, com todos os meus melhores amigos, com todos os amigos que eram falsos e os únicos que tinha, e depois deu-me para começar tudo de novo. Tive que inventar outros que inventassem outros para que a minha presença desaparecesse e não fosse alvo de comentários jocosos como lá vai o cometa cornudo. Nisso fui um pouco parecido com o Rindpest, mas depois estabilizei 235
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na namorada perfeita até ver o que se vai passar. Preferi que a minha presença desaparecesse na arte de desaparecer a reaparecer subitamente. Preferi a devoção ao acaso à sensação do nada, à desistência, à auto-publicidade, bem arquivada e mal classificada. Se bem que a auto-publicidade saiba bem ao esfregar as costas ou ao massajar com uma pomada os dedos dos pés cheios de pé de atleta. Há um tipo de devoção à devoção que não tem nenhum objecto. Podemos fazer alguma coisa com nenhum objecto de devoção específico? Cultivo a devoção aos acasos dos acasos. Colho a devoção nos acasos no mundo. Rejeitei todas as rejeições do mundo. Rejeitei todas as hipóteses de hipóteses de doutoramento. E quanto aos doutoramentos que me ofereceram, mesmo quando me ofereceram um doutoramento honoris causa, estive-me a cagar, literalmente a cagar. Guardei-o na gaveta onde guardo contas há muito tempo pagas. Escrevi grandiosas teses em prol das coisas minúsculas. Escrevi demasiadas teses sobre teses desse género, por diletantismo. Fiz listas, índices, bibliografias, agradecimentos e todo o género de pantomimas. Ando a mudar de géne236
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ro por diletantismo. Não é que me apeteça. A coisa vai nessa direcção ao que parece. A gargalhada do mundo está a começar a ter influência no que influencia o comportamento dos deuses, garanto-vos. É uma teurgia benéfica, indirecta, visceral. Não sei nada dos deuses. Não sei se os homens a fazerem-se homens já deram pelo seu agora, ou se já se deram por isso. Qualquer que seja o isso. Ora, ora. Um isso que se deixa como herança. Sempre a continuar, a descontinuar, a arrastar, a arrasar.
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Este Livro foi acabado de rescrever e colocado on-line a 15 de Fevereiro de 2019 por Pierre Delalande e os Waf Books
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