ABYSMO FLORIDO DE AZULEJARIA CANALHA
Pedro Proenรงa
WAF BOOKS
© Pedro Proença, 2018 © Waf Books, 2018 Fotos de Tiago Montepegado Cortesia Galeria Ratton
Nesta autobiografia o artista dá-se conta de que é atravessado pela dança dos pleonasmos, e pelos demais aspectos que neste painel se agita. Entre a profecia e o jocoso a vida é obscenidade, pensamento. Sai-se de uma tragédia maluca para tomar banhos no mar. A pujança da ângustia sofre de ironia poética. Algazarras barrocas no meio de Arcádias. A fermusora frique e a chique. Os desenganos levam-nos a outros paraísos. G’anda gaita. Nunca é tarde para continuar a amar, pesem embora os crispados oxímoros que se estendem sob a forma de aforismos ou oráculos. No fundo de Édipo há um pai desviante e a noite, que convida à escrita e à suposição do invisível, com suas harmonias estridentes e sujas. De resto t’ássebem!
Bem sabeis que a tradição de pensamento anti-filosófica se estende desde sempre sobre vós. A Sofística antecipa a Filosofia, desmascára-a, diz que esta é um género literário, e que, antes de mais, é um efeito palavroso, uma ficção a fingir que o não é. A Patafísica é a paródia ubuesca das suas pretenções. “Dá à pata, como os outros animais”. Há algo de anal na ontologia, diz a tia patafísica. A psicanálise traz o libidinal para o Carnaval, assim como a tagarelice e o silêncio. E sempre dá lucro.
Budonga é e foi uma fábula, e uma mitologia — entre a Eternidade Vaca e as Orquidias Atópicas. Pantanos aérios, Chupetas Gigantes, Caracois (e a Dame aux Escargot’s). As fábulas desmamam-nos. Os ogres escrevem num estilo melancólico. Há muito para beber e coelhos a surgirem de cartolas.
A Anedota é um comentário que busca outros comentários. E o Velho Mestre é um comentador desastrado da sua sabedoria incipiente. No entanto insiste em ser um pioneiro, em inaugurar a temporada. A vontade de o director ser o Museu explica porque é que a museologia é sempre ad-hoc.
Escreveu Emilio Villa sobre a Diaconia do Imaginário. Não sei se Hermes Dançarino a pode dar a beber…
A bulimia amorosa procura textos que a engordem
A gentileza encontra-nos desprevenidos e bate bem.
A ângustia instala-se apropriadamente no pincel com tinta. Sentes-lhe o peso felino. São sempre pelos que roçam papéis — feitos a partir de àrvores ou de arroz. O papel exige um actor. Um actor para apaparicar petas.
Um último esforço de insistência decorativa? Podia ser um frontespício farmacéutico, já que conhecemos as ambivalências dos fármacos e da cor. Temei este ambiênte escorradio, húmedecido, cheio de musgo!
Ó amada & amada Sandralexandra
Eu sou do tempo em que os nossos pais assim pró intelectuais liam os fragmentos do discurso amoroso do Barthes meio aparvalhados à cata de reconhecerem as suas sensações e frustrações legitimadas por colagens e comentários. Escrevo-te de Azeitão, ou algo parecido, perto de Setúbal a azulejar, ou a fazer tentativas disso em ambiente campestre, arcádico, com ego e mortalidade a cavalo. Dizem que o poeta dos Mambos anda nos arredores, com maracas na mão e ancas marotas, mas que perdeu a Musa que lhe punha os poemas na boca. Acrescentam que ainda faz babar as moças com rimas boas para louças falantes. O Vitor também veio cá jantar, mas eu estava por Lisboa a cheirar maresias de tejo e ver tuk-tuks passar. Esta vista que me invade os olhos agora parece a de um paraíso romano ou de ilha grega, sem ter que invocar purezas, nudezas, dias límpidos. Chega-me polvilhada de ciprestes e vistas sobre praias alentejanas onde apetece mergulhar já, sem tirar nem pôr. Lembra-me a minha infância com o João Benard da Costa, o Nuno de Bragança por aqui, a arrabidarem lá para as praias do Portinho e adjacentes, no final dos anos 60 e antes do 25 de Abril.
Ando acá a pintar letras com bonecadas e tenho companhia que me instrui nas técnicas em que estou longe de ser especialista. Dou-me conta do quão ignorante sou sobre a história daquilo a que me entrego. Não sei se a Porta de Ishtar, na Babilónia, com os seus baixos relevos e tijolos vidrados, seria azulejaria, mas que essas paredes são predominantemente azuis é coisa certa. Deusa da fecundidade, do amor, da guerra, do sexo, é mesmo a nossa deusa, babélica, a puxar às palavras doces, à persuasão, aos cochichos e às intrigas. É Ishtar que me faz escrever, e é o Amor que me faz entranhar os pensamentos e as imagens nos azulejos que tão pouco premedito no indo fazê-los. Penso, sentadinha, com a mão aparando a bochecha, nos azulejos cheios de palavras que muito para aí andam, desde nomes da ruas, poéticos, indiferentes, ou invocando mártires revolucionários, ou rimas (quase sempre quadras!) que se colocam quer no interior quer no exterior das casas, ou ainda legendados ciclos narrativos, em mosteiros ou igrejas, com citações biblicas, alusões a santos, etc. Penso também em fontes, não sei porquê. O azulejo refresca, ou dá sensação que refresca, porque o seu azul é cor refrescante (mas também lhe pode dar para outras frescuras). E neste calor estival bem me apetece beber água fresquinha directamente de uma fonte com frases em latim ou moralidade dispensável a apaparicar a sensação prazenteira e tão ao alcance dos nossos lábios. De algum modo o azulejo, minha querida, pede palavras amorosas, enigmas, arrebitadas alegorias, facécias. O azulejo não é um livro. O livro é coisa variada, suporte nómada que se leva como companheiro para sítio diverso, para se desfrutar como
objecto que nos hipnotiza e nos tira das correntezas corriqueiras da vidinha. Pelo contrário, é próprio do azulejo o ficar quieto, metido se possível em suporte arquitectónico, dizendo o seu aí, ou o “eu estou cá”. É coisa que fica e que parece ser para ficar, pese embora o azulejo avulso, filho maroto, que quase se leva no bolso, e de uso diverso e que nos pergunta provocatório, “o que queres fazer comigo, amiga”? Pensei, minha doce amada, em falar-te de coisas que parecem desmodadas, mas que são incontornáveis, quer na história das letras, quer na das artes. Tagarelar sobre poesia concreta, poesia visual, letrismo, e todos os casos afins de antes e depois (dos caligramas gregos ao futurismo, assim como aos usos recorrentes das palavras nas artes mais recentes). Ou ainda de como o azulejo mergulha a sua história na prática da alegoria, nos maravilhosos livros de Emblemas de Alciato, traduzidos, traficados, adaptados; com seus versículos a rimarem. E também sobre o modo como derivam em boa parte das múltiplas versões, sábias, da Iconologia de Cesare Ripa, em que o conteúdo parece estar lá, e ao mesmo tempo também se quer fazer ausentar (por contigencia ou necessidade) a sabedoria e a erudição a que essas imagens foram pespegadas. As imagens propagam-se e pedem outras palavras e uma nova inocência, gaiteira ou pobre apenas. Também pedem outras imagens, mais doidas e de sentidos incertos.
A mim, minha amada, dá-me para a malandrice e o humor que desconchava. Gosto de Letras, desde as sopinhas que me davam em pequenina em casa de meus avós e que agora me vieram à mona à laia em remeniscência. E a Letra, pese embora a sua inextricável estabilidade que garante que a reconheçamos, exige que a variemos, em imitação de tipografia, clássica, ou excêntrica, ou em caligrafias rebuscadas q.b., o que em parte torna dificultosa a legibilidade, como se a visibilidade da letra puxasse mais a brasa à sua sardinha do que o texto. Ao meu lado um artista desmultiplica palavras, re-articula-as, fá-las mergulhar na tinta, fazendo flirtar o azulejo com a palavra azulejo. Dizme que vai usar “expressões que colam”, e logo me dou conta que toda a linguagem é colagem de palavras, de expressões, de textos, e de letras — complexa remontagem de algo prenhe de conteúdos múltiplos que buscam caçar outros conteúdos, ou que aí estão á cata de apanhar quem as acolha para serem amanhadas pelas erráticas ondulações da mente. O azulejo é extrovertido e abre-se ao mundo, tornando-o luminoso, porque nos devolve a luz sem que nos demos conta? Eu julgo que esta exposição é para mim apenas o começo de um caminho em que o azulejo, a palavra e a letra poderão levar a alegria às criaturas de uma forma natural. Optimismo a mais? Logo se verá!
P.S. Soube agora que o Vitor, o Editor com um E grande, morreu. A minha homenagem pouca e impura ficará por aqui. Era dos que escrevia melhor do que muitos que editava. Não sei onde estás Vitinho, mas se esta carta te chegar de alguma misteriosa maneira, dir-te-ei que me marcaste no que aqui escrevi, e que tenho uma pena imensa de não ter almoçarado nem jantarado contigo neste verão que te foi fatal. Morrem, também velhos, os editores que tantas alegrias nos deram e que nos fazem conhecer o amor de forma muito mais variada.
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