Corpo e envolvimento (da representação)

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CORPO & ENVOLVIMENTO (DA REPRESENTAÇÃO)

P E D R O P O R T U G A L P E D R O P R O E N Ç A

EDIÇÕES ASA D’ICARUS


© PEDRO PORTUGAL & PEDRO PROENÇA © EDIÇÕES ASA D’ICARUS 2017


CORPO E ENVOLVIMENTO (DA REPRESENTAÇÃO)

P E D R P O R T U G A P E D R P R O E N Ç

O L O A

GEOGRAFIA

LIBERDADE; NATUREZA; TRINDADE; UNIDADE

BIOGRAFIA

PESSOA; REPRESENTANTE; CABEÇA, FRONTEIRA; COMIDA; FOGO

PROFILAXIA

FRACÇÃO; RESSURREIÇÃO; REALIZAÇÃO; JULGAMENTO E INDEPENDÊNCIA; NADA

E INTERLÚDIOS EDIÇÕES ASA D’ICARUS



DA REPRESENTAÇÃO The road of excess leads to the palace of wisdom (Blake) Introduzir é perverter – é um excesso. Uma luta. Metodológica? Pré-metodológica? – o que se quizer. Defenir um assunto, alinhavar opções, olear a máquina: preparar armas. Ambição? Não: uma rede de subjectividades – corpo e não-corpo. E o seu envolvimento. Emergindo como um campo de investigações. Ou de meditações. Duvidar das dúvidas, desde que a duvida se encrespou num limite. Estar para lá das dúvidas. Aventura? A identidade dilui-se na paródia da loucura. Torna-se imprescindível beber nas margens do não-identico, abolindo as fronteiras ou atravessandoas em imaginoso contrabando. Tentaremos recriar uma ética das coisas. Mas uma ética como acção e não como estrita enunciação, onde o não-optimo e o neutro têm cidadania. Uma ética só pode partir do que essencialmente a determina – o corpo e o envolvimento em acção. Uma ética só faz sentido enquanto algo vivo, realizado, e não como algália de intenções. O corpo, ao justificar as coisas autojustifica-se. Mas o corpo só se dá através da interrepresentatividade. Toda a comunicação é um choque ou empatia de representações. É o progresso da mimesis que nos interessa. O envolvimento abre-se como narrativa, como exodo mitologico. A dádiva é catástrofe que reverte como entusiasmo. Há também uma mitologia desmitologizante a que não somos insensíveis. Depois vem o essencial que não está expresso, mas que também não é inexprimivel, uma vez que é através de expressões e representações que o desfrutamos. Este será o texto de uma montagem quase aleatória que busca a intensidade lirica da festa – entrudo minimizado numa vrota de transgressões, de pluralização da consciência, de maximização de competências. Uma sintese que se quer total, caótica, excremental – uma opera na qual somos levados a participar. Nós e os que vierem.


GEOGRAFIA corrio depois de Eva & Adão, ergue-se do braço da praia até à curva da baía, traz-nos por uma commodius vicus de recirculação de novo a Howth Castelo Earredores

James Joyce


LIBERDADE


LIBERDADE Quando entrei na cidade fiquei sósinho no meio da multidão. Em redor as portas estavam abertas. A multidão entrava naturalmente pelas portas abertas. Por cima das portas havia tabolêtas onde estava collada aquella palavra que sóbe-Liberdade! Entrei por uma porta. Entrei como uma farpa! Era uma ratoeira, Mãe! era uma ratoeira! Se eu tivesse entrado como uma agulha podia ter sahido como uma agulha, mas entrei como uma farpa, fiz sangue verdadeiro, já não me esquece. Aconteceu exactamente. Dei um mau geito nos rins por causa da ratoeira! Ainda me lembro da palavra-Liberdade! Mãe! Vou contar-te como foi. Havia dois vazos iguaes. Um tinha um licor bonito. O outro parecia ter agua simples. Um tinha a felicidade, o outro não tinha a felicidade. Era á sorte. A casa estava cheia de gente. Ninguem queria ser o primeiro a começar. Depois, começaram a beber o licor. Diziam coisas tão felizes! Coisas quentes que enchem a cabeça toda e deixam os olhos escancarados! Eu vi-os, Mãe! estavam a augmentar a olhos vistos, juro-te! Os que beberam do outro vazo não divertiam ninguem. Iamse logo embora. E ninguem já se lembrava d’elles.


Só ficaram os que gostavam do licor. Eu fiquei com estes. Eu tambem bebi do licor. Não imaginas, Mãe! nunca subi tão alto! Ainda mais alto do que o verbo ganhar! Havia uma rã que tinha entrado comigo ao mesmo tempo. A rã tambem estava a augmentar. Depois, quando já estava quasi do tamanho de um boi, a rã estoirou. Coitada! Como antigamente, em latim. Então, puz-me logo a escorregar desde lá de cima, até aonde eu já tinha amarinhado; desde mais alto do que o verbo ganhar. A escorregar, a ser necessario escorregar, a querer por força escorregar, a custar immenso escorregar, a fazer doer escorregar, a escorregar. O verbo desinchar! O verbo desinchar dura muito tempo. No fim do verbo desinchar é outra vez a terra, cá em baixo.

A FRATERNIDADE NÃO É UM MITO


Liberdade — ó Liberdade! Quantos crimes se cometem em teu nome! Dispomos de todas as necessárias. Liberdade não é licença (frase de conservador).

Flaubert

Toda a liberdade depende das suas condições de formação e de desenvolvimento, e, uma vez emersa, permanece como liberdade retroagindo sobre as condições de que é serva

Morin

Liberdade significa igualdede entre irmãos (os filhos). Os iguais são rivais; e o amor querido dos camaradas é feito de invejas e de ódios reciprocos. A organização dual é a organização sexual. O seu príncipio estrutural é a união dos contrários. “O modelo contrários generalizado e a aplicação mais sistemática encontram-se provávelmente na china, na oposição de dois príncipios, o Yang e o Yin, macho e fêmea, dia e noite, verão e inverno, cuja união produz uma totalidade organizada (tao), idêntica ao casal, ou dia ou o ano.” A luta , o conflito entre o verão e o inverno, o dia e a noite, é um coito.


Divisão, dualidade, dois sexos; em certo sentido há sempre dois irmãos. “existe em todos os actos um dualismo sociológico; duas partes que trocam serviços e funções, cada uma vigiando de que modo e com que lealdade a outra preenche o seu papel”. Organização dual.


Delícia de juventude, vem cá, e vê o inaugurar da aurora, imagem da verdade nova. A tolice é um infindo labirinto repleto de percursos soterrados de raízes mistas. Quantos aí definaram! A cada noite se afincavam às ossadas dos mortos, eles são a presa da inquietude, e pretendem ser guias de outros quando eles é que deveriam ser guiados.

Defender a tese de uma liberdade original é tomar o partido das crianças, dos liberi, dos filhos, contra o despotismo paterno. Existe uma conexão entre o matriarcado e a fraternidade, tal como existe uma aliança entre a Terra-Mãe e a horda dos irmãos que, sob a batuta de Chronos, castraram o Céu-Pai.


A tomada de consciência da anterioridade cronológica, ontológica, organizacional, do fraternalismo sobre o paternalismo constitui um progresso que não é únicamente teórico. Traz-nos uma mensagem política. A “sagrada família” biológica mostra-nos que o príncipio do irmão precede o príncipio da mãe , que precede o príncipio do pai, contráriamente ao príncipio reaccionário que hierarquiza de modo dito natural paternidade/ maternidade/fraternidade.

Na sua base, liberdade e propriedade da sua pessoa são identicas, e identificam-se ao estatuto do filho. Mas simultaneamente — mesma contradição interna — a propriedade pertence essencialmente a um pai. A disputa é sobre a herança paterna. Mas essa herança é o corpo do pai. “Todos juntos partilharam o corpo”, escreve Freud. O corpo do mundo, assim aos bocados, é o corpo do deus; como dizem os cristãos: os outros transmitem os seus bens aos herdeiros mes ele, é ele mesmo, isto é a carne e o sangue do seu corpo, que ele nos transmitiu. A queda é a queda na Divisão do homem único universal. A guerra civil é desmembramento. Aí reside a contradição interna das noções de liberdade, igualdade e fraternidade. É contra o pai qwue se organizam os estatutos de filho e de irmão; mas sem um pai não seria possível existirem filhos ou irmãos.


Os filhos, ou os irmãos, libertos das suas ligações com o princípio paternal — os filhos tal como surgem segundo a ordem de Melquisedec, sem pai, sem mãe, sem genealogia, não conhecem na sua existência nem princípio nem fim, e são assim dados como semelhantes ao Filho de Deus — seriam libertos do princípio da propriedade privada.

O corpo está dívidido com equidade: ninguém abandona a cerimónia sem ter recebido a parte que lhe é atribuída legitimamente.

A organização fraterna no corpo político corresponde à organização do Ego no corpo físico.


Nas sociedades secretas primitivas, nos ritos da puberdade, a tendência constante é a de separar sexos e gerações; de constituir agrupamentos homossexuais, associações de membros das mesmas idades. Ao lado da união dos sexos na familia, de que fala Aristóteles, existe também uma hostilidade inconsciênte entre sexos, “uma reacção arcaica de ódio”; tabús que prescrevem a separação sexual, o evitar-se mutuamente, complexo da castração. Sem uma compreensão da face secreta da sexualidade não é possível compreender a política.


Na fraternidade totémica, o que liga e une os irmãos não é a relção familiar, nem a consanguinidade. O clã totémico é defeniddo por uma relação particular a um ser totémico determinado, animal, planta ou objecto; em virtude do qual os membros do clã, dotados de um antepassado totémico comum, só formam um corpo uno. O corpo é místico, e mítico o antepassado. Toda a fraternidade é fractícida.


Não há mais que dois irmãos: Romulus e Remos, Caím e Abel, Osíris e Set; e um deles mata o outro. A formação da fraternidade ou do Estado é em si um crime, ou melhor, é o crime originário. Os irmãos juntam-se em torno de uma conspiração criminosa: “a sociedade estava fundada na participação num crime comum.” Freud pensa que o sentimento de culpabilidade só pode ser apaziguado pela solidariedade que une os participantes. De facto, é o crime comum que cria a solidariedade. As associações políticas atenienses, que estavam organizadas em sociedades secretas, garantiam a sua solidariedade ao fazer participar os seus membros num sacrilégio religioso, como na paródia dos mistérios de Eleusis (uma missa negra), ou na mutilação de Hermes.

O fundamento da liberdade é o reconhecimento do inconsciente; a dimensão invisível, o ainda não realizado; espaço preparado para a emergência do novo.


“Jovens obcecados por mulheres e dispostos a lutar”, a política como delinquência juvenil. A horda dos irmãos sofre do tabu do incesto e precisa de mulheres estrangeiras, adoptando a organização militar para proceder ao rapto. A política como jogo do jorrar do sangue. Jogo juvenil, infantil; e mortalmente sério. Jogo do Eros e Thanatos; do sexo e da guerra. Para fazer de todos os homens iguais, Locke a todos recusa o estatuto de pai, e faz de todos filhos do Pai Celeste. O fantasma da paternidade é banido da terra e transportado ao céu.


LIBERDADE. IGUALDADE. FRATERNIDADE. Este é o programa revolucionário, o único plano de ruptura efectivo: e como ruptura que é, é anti-kitsch. Formas novas, relações novas, comunicação nova. A fraternidade funciona aqui como segredo e conspiração: o objectivo é a tomada do poder, ou a abolição do mesmo. O que une os irmãos é uma ideologia, uma metodologia, uma técnica:

«O melhor sentido de técnico que encontramos foi o seguinte: secreto, pessoal» (Almada). «A tomada de consciência da anterioridade cronológica, ontológica, organizacional, do fraternalismo sobre o paternalismo constitui um progresso que não é únicamente teórico. Traz-nos uma mensagem política. A sagrada família biológica mostra-nos que o príncipio do irmão precede o príncipio da mãe, que precede o príncipio do pai, contrariamente ao paradigma reaccionário que hiertarquiza de modfo dito natural paternidade/maternidade/fraternidade.» (Morin) Fecha-se um primeiro circulo e nele contido ressurge o fantasma da liberdade. A liberdade é aquela que satisfaz todos os desejos, e por isso é aquela que em si não alimenta nenhum desejo: satisfazer os desejos é transformar o mundo, transformar as linguagens, actuar sobre tudo e todos. Como oferenda. Como presente. Não de um modo repressivo. Dar. Dar-se.


Organizar o mundo a partir do zero: «se há um principio organizador, ele nasce de encontros aleatórios, na copulação da desordem e da ordem, pela e na catástrofe, isto é, na modificação da forma.» A catástrofe tem dois sentidos; um de revogação, de retroacção, de irreversibilidade (embora a retroacção seja um movimento contrariante dentro do sentido do movimento); e um outro, de actualização genésica, revivendo a criação do universo, o seu príncipio-fim.

The fall: (bababadalgharagharakamminarronnkonnbronntonerronntuonnthunntrovarrhounawnskawnskawntoohoordenthurnuk!). A queda de Adão e de Babel (e o regresso ao Éden e à condição de culpa feliz do status babélico), a morte do pai (e a sua ressurreição fraterna!). Tendo em conta o projecto libertário (dar-se!) é forçoso evitar os erros que esse sacrifício possa ter: os erros de sentido e os erros de nãosentido. E convém ser o mais possível consciente do que se exprime. A consciência do que se exprime inclui na expressão as ambiguidades que desenvolve cada um e a que se oferece desse um o caminho, desencadeando assim o seu segredo, o pessoal. Poder-se-á chamar catharsis? Será que desencadeia a consciência do próprio corpo? Consciencializar o seu corpo é conscencializar todos os corpos. O enigma de cada é o enigma do Todo, porque as partes são morfológicamente muito semelhantes ao Todo. Existe aqui uma grande solidariedade e uma grande dessolidariedade. São as àguas do enigmático, do irrevelável, do inefável. A comunicação parece tomar uma forma telepática, invisível, mimética. Chamarlhe-ei espontaneidade. Ser espontaneo é comunicar, não idealmente mas completamente. As Utopias dependem apenas do seu uso . Usar é representar, é pôr à prova o conceito. O uso da Utopia é inevitávelmente auto-consciente.


Fraternidade é acção de grupo. O seu objectivo é a morte ou o derrube do Pai, tal como Zeus que escapou a Saturno libertando os seus irmãos. Liberdade é a passagem do estado contestatário, transgressivo, à maturidade, ao Estado Fraterno. É aqui que se podem incluyir os ritos de iniciação ou passagem. A Festa dolorosa. A luta fracticída (que pode incluir ou não a morte de irmãos). A passagem do profano ao sagrado. A morte para uma natureza meramente exterior e o renascimento para um mundo sem dicotomias interior/exterior. O meu corpo (a minha representação) é o Mundo. A dádiva faz-se na festa, dolorosamente, no confronto corpo a corpo. Na descida ao mais imundo. No reverso do tabú que preversamente leva à regeneração do mesmo tábu. A festa é a festa da igualdade. Tudo é permitido. Todos são iguais. Nenhum lugar é hierarquizado. O que os une é a circulariedade (e a circulação). O que os mantém é um centro invisível.


Fraternidade é Carnaval. É carne que vale. Cada um se mascara de si mesmo, não do rosto cultural (que repressivamente é o Pai). Depois vem a organização fraterna. O regresso à cultura. A uma cultura diferida feita de boas-intenções. Representar a liberdade/igualdade/fraternidade é representar na liberdade/igualdade/fraternidade. Irracionalmente e conscientemente. Quer se queira quer não está-se na arena política. Nada é inocente. As boas intenções podem devir paradísiacas ou infernais. Mas mais do que as intenções (o programa ensaiado das vontades) o que conta são os actos. Rubens, desta perspectiva, é muito mais revolucionário que muitos artistas engagés.

Connais-je encore la nature? Me connais-je? - plus de mots dans mon ventre. Cris, tambour, danse, danse, danse, danse! Je ne vois même l’heure où, les blancs dèbarquant, je tomberai au néant. Faim, soif, cris, danse, danse, danse, danse!» (Rimbaud)


NATUREZA


Natureza — Como é bela a Natureza! Fraze a proferir sempre que uma pessoa se passeia pelos campos.

Natureza — uma coisa pesada, muda, inodora, incolor; simples precepitação da matéria, sem fim, sem significação,


O crime original é também o crime de Chronos, o mais novo dos irmãos, que seccionou o membro que unia o Céu-Pai à Terra-Mãe. A fraternidade surge quando os filhos que foram expulsos da familia se constituem em grupo autónomo, longe do lar, longe das mulheres. A fraternidade é um substituto da familia, um substituto da mulher.


A fraternidade é a própria mãe. “A viagem de iniciação terminou. Vai das mães às mães. Mas o que se passa é que o jovem deve ser separado da mãe é simbólicamente levado a ela. O jovem é colocado num buraco, e renasce, mas agora sobre os auspícios das suas mães machas.” Mães machas ou pais vaginais — em certos rituais aborígenes quando os mais velhos, autores das iniciações, dizem aos rapazes “nós os dois somos amigos”, ieles mostram-lhes o seu pénis subinciso, vagina artificial, ou “matriz de pénis”. Os pais dizem aos filhos, “abandonem as vossas mães e amem-nos, porque nós também temos uma vagina.” Sem mãe. “Hoje, a Virgem dá ao mundo o criador do Universo, a Caverna dá nascimento ao Éden.” Adão acorda do seu sono, e já não há uma Eva separada. Nada de mãe Eva, nada de mãe Natureza. “O papa considera que a Natureza e a Virgem Maria são as mesmas personagens alegóricas, mas o protestante considera que a Natureza é incapaz de dar ao mundo um Menino.” Nada de natureza; nada de nascimento. Não nascido; ou nascimento virginal. Para lá da natureza; sobrenatural.


A tendência à regressão uterina — tendência à regressão thalassal de Ferenczi — é a mesma coisa que a organização genital. Para aqueles que ainda não nasceram, a sua pessoa, inteira, está no útero. Mas o que habita o útero é o pénis. A pessoa inteira é identificada com o pénis — é a equivalência fundamental entre o corpo e o falo. O ego que explora a sua caverna e penetra no seu segredo é um pénis. Esta identificação do todo da pessoa com o pénis é a organização genital. O incesto com a mãe é o primeiro acto realizado pelo indíviduo.

O mundo é a nossa mãe: o corpo extertior é “o corpo da mãe num sentido vasto”. “Se repararem a frequência com a qual as paisagens são utilizadas nos sonhos, hão-de aprender através dos mitólogos o papel considerável que a Terra-Mãe teve nas ideias e nos cultos de épocas distantes e como a concepção da agricultura foi determinada por esse simbolismo.” “A mitologia e a poesia revelam-nos que as cidades, as cidadelas, os castelos e as fortalezas são também símbolos da mulher.


É a geografia ou geometria, como no Finnegans Wake. Crescer consiste em descobrir novos jogos, novos equivalentes simbólicos, de forma a que em todas as nossas explorações não fazemos nada mais do que continuar a explorar o interior do corpo da nossa mãe. As cavernas comportam passagens labirínticas. As cavernas paleolíticas, que dissimulavam ou mostravam pinturas, são labirintos de corredores e galerias, estreitos, retorcidos, escorregadios, ao longo dos quais os intrusos deviam avançar às apalpadelas, muitas vezes sobre mãos e joelhos, antes de chegar à sala onde se encontravam as pinturas.

A mulher penetrada é um labirinto. Emerge-se num mundo novo no interior da mulher. O pénis é a ponte (é a ponta!), a passagem para um outro mundo, o coito; esse outro mundo é o útero-caverna. O homem das cavernas continua a arrastar a mulher das cavernas na sua caverna; todo o coito é uma fornicação (de fornix, uma abóbada em arco subterrânea). E a caverna onde se desenrola o coito é túmulo; rito ctoniano da fertilidade; Antígona queimada viva, com os seus antepassados; e o seu quarto nupcial é túmulo. A morte é coito e o coito morte. Genitalização da morte como regresso ao útero, coito incestuoso.


O túmulo é o protótipo arquitectónico do palácio ou da casa. Toda a casa é casa do Hades. E toda a cidade, cidade de Dis, marcada como a caverna paleolítica, pelo signo do labirinto. Os heróis errantes são heróis fálicos em estado permanente de erecção; vaga-bundando pelas planícies. O termo coito designa a sexualidade genital como uma caminhada, mas o recíproco é verdadeiro: toda a caminhada, toda a errância no labirinto constitui uma acção genital-sexual. Todo o movimento é fálico. Todo o comércio sexual. Hermes, o falo, é o deus dos caminhos, dos portais, de todas as entradas e saídas; de todos os movimentos. O herói fálico tal como o corpo de mulher são fabricados a parrtir do corpo do que dorme. É verdadeiro que Eva saíu da costela de Adão, que a separação dos sexos (uma duplicação, uma divisão) se produziu no sono de Adão, no seu sonho. A Eva que sai da costela de Adão não é só uma mulher, ela é a Emanação, o mundo enquanto mulher. “Tempo e Espaço são seres reais, uma Macho e uma Fêmea. O Tempo é um Homem. O Espaço é uma Mulher, cuja Parte Masculina é a Morte”.

Têr uma alma, herói das mil faces, equivale a ter uma organização genital, e tomar o pénis como representante narcísico da personalidade total.


Dormir; morrer. O Sono é o irmão gémeo da Morte. O sono é a morte perturbada por sonhos, a morte, um sono sem sonhos. O úturo é um túmulo. Nascer é morrer, e a vida é efectivamente morte-na-vida. A psicanálise é a redescoberta da visão órfica ou oriental da vida como sono perturbado pelos sonhos, e da vida como perturbação na morte. No último Freud a vida é catástrofe, queda, traumatismo. A forma do processo de reprodução repete o traumatismo do qual a vida surgiu, ao mesmo tempo que se esforça por se livrar dele. A tendência para a regressão uterina no acto sexual é um aspecto da finalidade universal de toda a vida orgânica — regressar a esse estado de inanimado em qie a vida surgiu. “ A finalidade de toda a vida é a morte”. Nessa filosofia, a vida e as etapas principais da evolução biológica (diferenciação sexual, adapatação à terra firme) são catástrofes provocadas por forças externas: essas catástrofes criam a tensão; e o sentido da vida (ou a adaptação resultante da evolução) é o de eliminar a tensão, consequentemente, de morrer. A vida é uma perturbação temporária (acidental) num universo sem vida (e assim pacífico).

Todo o movimento é fálico, todo o comércio é sexual. Hermes, o falo, é o deus dos caminhos, de todas as entradas e saídas, de todos os movimentos.


Nascimento, cópula, morte — equivalentes. A estrutura fundamental do sonho, do sonho de base, é uma reacção contra o facto de estar adormecido. E “podemos distinguir três fases nesse sonho de base; a) o sono como morte; b) o sono como regressão uterina; c) o sono como coito.”


Aquilo que aquele que dorme fabrica a partir do seu corpo, é conjunto do falo e do útero; o sonho de base é o do movimento fálico num meio feminino (espaço).

Vida e morte: equivalentes. Todo o coito renova a queda; traz a morte, o nascimento, ao mundo. É o Céu descendo para se deitar com a Terra-Mãe, ejaculando as suas energias, sendo vítima da castração. O bastão que fende as àguas é o corpo do homem morto, o cadáver, a vara que ejacula a alma ou esperma é pénis. Pénis ou cadáver, rígidos como a pedra; erecção perpétua, monumento. Ser transformado em pedra não simbolisa apenas a erecção, mas também a castração. Ser transformado em pedra é fixar a cabeleira da medusa, as serpentes que hipnotisam.


Da mãe à mãe: e não chegamos a parte nenhuma.


Os ritos de iniciação das sociedades arcaicas ritualizavam e “normalizavam” a passagem ao estado adulto através de provas de corpo e espírito. Ora nós actualmente estamos em sociedades onde a desagregação da iniciação ritualizada colectiva cede lugar à iniciação individual aleatória. A partir daí, a perturbação aleatórea inscreve-se na lógica de um desenvolvimento que, por isso mesmo, se torna aleatório.


«Esta é a mãe animal caçada na floresta mitológica, a besta aluada sobre as redes e as flechas; paisagem que eu crio fora com o meu movimento, beleza acerba de um rosto já sem fronteiras.» Herberto Hélder

«Mater semper certa, pater incertus». A natureza é constância (apesar das erupções vulcânicas e dos tremores de terra). Nela viemos à luz e a ela regressaremos. O objectivo da fraternidade é compreender esta mãe para que possa organizar uma sociedade futura. A compreensão de algo permanente, não-agitado, do que dá origem. A tentativa de compreensão é fraternal (e fractícida) e egoísta: é Cain que mata Abel; Caín, o proprietário, Abel, o Nada. Existe uma dicotomia muito forte. A mãe está presente. Mas é alguém com a qual se está em dívida: deve-se-lhe a vida. Ela envolve-nos. Está presente em cada acto. Procuramos distingui-la de nós mesmos. A consequência é: separação e ângustia. A única maneira de superar essa ângustia e dívida é morrermos: regressar ao seu ventre.


É esse o sentido dos ritos de passagem. Voltar a Ela, unindo o Eu e o Isso:

«o meu corpo é o teu corpo, o teu corpo é o meu corpo» (Ernesto de Souza).

Supressão que coincide com a supressão da propriedade. Abolição temporária da propriedade. A terra não é de todos nem de ninguém. Todos são a terra: território, geografia, àrvores, rios, pedras. A natureza pertence ao corpo tal como este lhe pertence. Novo nascimento: não existe mais antropomorfismo na natureza nem fisiomorfismo no homem. Ambos se misturam e unem numa representação única, monstruosa.

O grande charme dos bosques e dos prados é a sugestão de que existe uma relação entre o homem e a vegetação. Eu não estou só e iosolado. Eles saúdam-me, e eu também os saúdo. (Emerson) Tudo tem um sentido simbólico. A ordem vísivel é substituída por uma invísivel. A relação entre os vários sistemas e os vários grupos cria uma atmosfera mágica de unidade. A ambiguidade dos signos faz cintilá-los. Há nisto algo de extraordinário.


Tudo se torna evidente. O passado e o futuro, o tempo da história e o tempo da profecia, tempos do incerto, dão lugar ao tempo presente:

«Quem olhou o tempo presente, olhou todas as coisas: as que aconteceram num insondável passado e as que acontecerãi num futuro» (Marco Aurélio). A representação da natureza, da mãe, é uma relação mega-edipiana, ou é por ela cortada, dilacerada. Sabemos que o corpo da mãe também é o nosso corpo. Representar a mãe sempre foi um programa artístico, desda as Vénus Megalíticas, os Tchringa Aranda, até às Madonas ou à famosa pintura de Courbet.


Paul Klee, referindo-se à representação da natureza dá-nos uma definição clara:

Ainda há pouco tempo, o estudo da Natureza procurava as imagens de superfície do objecto filtradas pelo ar. Uma arte de visão optica. (…) Por meio do nosso saber, o objecto dilata-se para além da sua aparência e mostra ser mais do que o seu aspecto exterior nos dá a conhecer. As experiêncvias assim realizadas tornam o Eu capaz de tirar instintivamente cfonclusões sobre o âmago das coisas… Estas experiências ficam, no entanto, aquém dos caminhos que conduzem a uma fusão do objecto e que establecem uma relação de ressonância entre o Eu e o objecto que ultrapassa as bases opticas: a) O caminho não-òptico com raízes comuns na terra, que a partir de baixo se eleva no Eu para conduzir ao Todo. b)

O caminho não-òptico com raízes cósmicas e que vem de cima

O artista aspira aqui a uma unidade que pressupõe um terceiro elemento. A esse elemento chamarei acaso. Contrapondo-se ao tempo linear da natureza ele aparece com intervenção histórica num dado instante encarnando a catástrofe como dado natural.


TRINDADE


As crianças são coladas entre céu e terra; não tocar na terra, não ver o sol — tabús impostos aos reis e às jovens púberes — significa estar no útero. O coito é uma batalha, e o prémio é o pénis. Objecto combinado: “O tchuringa, que simbolisa ao mesmo tempo o falo e a vagina, a cena original e o parente combinado.” O pénis que também é uma vagina, circulo quadrado, cruz gamada.


Erguem-se, à imagem das arquitecturas sem fundações do sonho, torres perdidas nas nuvens, palácios sumptuosos: “A casa ou cidade que a criança reconstrói com fervor nos seus jogos designa não só o corpo reconstituído e intacto da mãe, mas também o seu próprio corpo.” A vista da cabeça da Medusa petrifica o espectador (da cena originária) de terror, transformando-o em pedra. A rigidez é o cadáver, a erecção. O falo de pedra, símbolo de toda a realeza; objectivo ºultimo de toda a aspiração à monumentalidade; complexo de Estilista. Realização da castração e da erecção na genitalização da morte.


O falo de pedra — da magestade real; ou o calvário de colunas — existe para ser exibido. É o factor demonstrativo no sado-masoquismo. O exibicionismo é um desafio da castração que diz; tenho mesmo um pénis. O falo de pedra; uma erecção permanente. A Via Láctea é realmente uma mãe e o seu filho colados juntos para sempre no acto de copulação; um casal de cães ligados entre eles pelo pénis e pela cauda do macho enfiados para sempre no ânus da cadela. Mas estar colado é também castração.


Figuras do progenitor combinado: a mãe contendo o pénis do pai ou o pai na sua totalidade; o pai contendo a mama da mãe ou a mãe na totalidade; progenitores inseparávelmente confundidos no coito. Eles incorporam-se um ao outro. O pénis no interior da mãe representa uma combinação do pai e da mãe numa só pessoa. Tudo se passa como se o pai, penetrando sexualmente no corpo da mãe, já encontrasse aí os filhos. O filho existe na incapacidade total de se mexer, ele fica rígido, e essa rigidez apodera-se de qualquer um que assista súbitamente a qualquer coisa de aterrorizador. Mas a rigidez designa também a erecção do pénis. A criança fica petreficada. A petrificação como morte representa a erecção vista através do espelho da ângustia.


Este mestre Acaso é a rede das estranhas coincidências. Uma maximização da improbabilidade é impressa no Todo criando o sentido que faltava depois da unificação/fusão indivíduo-natureza. Exprime o mistério e o fascínio. É o determinismo hipercomplexo. Nada é explicito. Algo vem de não se sabe onde, fugindo à ordem simbólica. No seu manifestar-se há o peso da ética organizacional. A cultura da «mão direita» tenta defender-se da desagregação assimilando o menos possível as catástrofes, chamando-lhes Aviso, Mensagem, Revelação, etc. O Medo reprime e reduz o Acaso. Torna-se um incidente histórico, descontínuo, terrível, como o poder impiedoso que institui o sagrado, o proíbido! O Acaso é o verdadeiro pai de todos nós. As improbabilidades gritantes que somos tornam paradoxal o direito à existencia. O aleatório alcança o seu sentido máximo ao instituir a vida e ao regenerá-la. O aleatóreo é o alimento quer do progresso quer da auto-conservação. Este pai é etéreo e forte como um centro. A aceitação da centralidade, de um ponto de apoio, é o príncipio básico da organização simples, e encontra-se disseminado nos atractores da organização complexa (que pode comportar um número significativo de centros).


O centro é Taboo. Seja ele totém, montanha, àrvore, pedra, escada, etc. Ergue-se para o céu, fálico, erecto. A interdição é consequência da necessidade de preservação. Proibir para manter a identidade. Proibir para conservar. Ora esta interdição leva a uma ocultação (censura?) do momento fundador. A legitimidade, paradoxal, torna-se inquestionável. O pénis domina invisivel. Fascínio. Fascínio do interdito. Os rituais da «mão esquerda» tornam explícito, demasiado explícito, esse poder. Ritualmente o revelam. Autorizam-no e transgridem-no. O sagrado é a experiencia festiva-revolucionária e não a reverência institucional. O sagrado é a divindade, directamente, e não a intermediaridade das «igrejas». O poder que o acaso investe é a capacidade de dar expressão a formas de organização mais complexas e completas. A necessidade é apenas o sintoma de que o acaso já se instalou e que quer ser dito, exprimido, consciencializado. É o heroi que se sacrifica em nome dessa conflituosa expressão. À sua aventura não são insensíveis os herois e deuses antigos, que ora estão contra, ora a favor. Dos actos de heroismo depende o seu esquecimento ou a emergência de deuses mais fortes.


É este poder que torna viável o poder. São estes actos a que podemos chamar saída, o Êxodo, o caminho no vazio, a experiência nómada. A todo o Génesis se sucede um Êxodo. O deserto é a desabitação, a não-propriedade, a proletarização. A Lei surge como tentativa de regulação dos poderes invisíveis, como substituição dos deuses pela palavra. Logos versus iconofilia. A guerra é recorrente. O dadaísmo instituíu nas artes ocidentais o Acaso como Método. O ready-made desloca a atenção para a presença insuspeita do presente:

There is no thing as chance. A door may happen to fall shut, but this is not by chance. It is a consciencious expirience of the door, the door, the door. (Kurt Schwitters). O acaso é um instrumento pré-existente. Só há que MANIPULÁ-LO! Trabalho a três. O terceiro é o misterioso colaborador. Trabalho de unificação, salada de sagrado e profano. Trabalho de transformação:

São as coisas que não conheceis que mudarão a vossa vida! (Vostell)


O terceiro ente é não-ente:

Se, nas obras de arte, o não-ente pode emergir subitamente, elas não se apossam dele corporalmente com um golpe de magia. O não-ente é-lhes mediatizado a partir de fragmentos do ente, que eles congregam para a apparition. (…) As obras de arte possuem a sua autoridade por obrigarem à reflexão, a partir de onde elas poderiam, enquanto figuras do ente e incapaz de convocar o não-ente para o existente, tornar-se a sua imagem predominante, ainda mesmo que o não-ente não existisse em si. (Adorno). Ou como diz Mallarmé:

O essencial duma obra consiste exactamente naquilo que não está expresso! Esta capacidade de vislumbrar o não-explicito encontra um eco nas forças que concorrem sob a denominação da Unidade. O Todo não é tanto a consciencia do todo quanto a vontade de incluir e domesticar os restos.


TRINDADE


Quando digo Eu não me refiro apenas a mim, mas a todo aquele que couber dentro do jeito em que está empregado o verbo na primeira pessoa.

Almada

Não é estranho que não possamos compreender a unidade escondida da bondade e da crueldade?

Morin


Nada pode ser único ou inteiro sem que tenha sido despedaçado.

União e unificação dizem respeito ao corpo. O sentido erótico da realidade desmascara a alma, a personalidade, o ego, porque a alma, a personalidade, o ego são o que nos distingue e separa.

O verdadeiro príncipio da unificação é este: somos todos membros de um corpo único. Se somos membros de um corpo único, não há masculino nem feminino; ou antes, ambos são dados juntos: o corpo é andrógino e hermafrodita; ele encerra os dois sexos.


Só existe um problema no nosso mundo actual: a unificação da humanidade.


A uniĂŁo de todos devia repousar sobre a independĂŞncia de cada.

Em hebreu, adham significa ao mesmo tempo homem e humanidade; e designa o homem AdĂŁo


Assim os homem devem amar as mulheres como ao próprio corpo. Aquele que ama a sua mulher, ama-se. Pois nunca nimguém odiou a sua própria carne. Mas ele alimenta-a e cuida-a como Criste o fez pela Igreja. Pois somos membros do seu corpo, da sua carne, de seus ossos. Por essa razão, o homem abandonará seu pai e mãe, e afincar-seá à sua mulher, e ambos serão uma só carne. Eis um grande mistério; e digo-o em relação a Cristo e à Igreja.


O insconsciênte é esse oceano imortal que nos trouxe até aqui; alguns signos que nos chegam provocam um sentimento oceânico; oceano de energia, de instinto, abraçando toda a humanidade, sem distinção de raça, lingua ou civilização.

O conteúdo do inconsciênte é colectivo. É um património comum de toda a humanidade. Estamos todos no mesmo navio, no mesmo corpo. Somente no mundo podemos ser um.


Já o estatuto conceptual de todo o indivíduo físico é ambiguo, incerto. O individuo vivo comporta uma incerteza própria. É simultaneamente produto e produtor, gerado e gerador da auto-genofeno-eco-re-organização. Aparece-nos simultaneamente como emergência e principio paradigma. É uno, singular, único e ao mesmo tempo sincrético (sugcrasis: mistura), cambiado/cambiante entre genos e fenon, autos e oikos. É simultaneamente subjugado e autónomo, subjugado nesta e por esta autonomia (onde se exerce o determinismo genético e o determinismo ecológico), autonomo nesta e por esta subjugação. O Todo é mais e menos que a soma das partes.

(Morin)

Eros é o instinto que tende à união, à unificação; Thanatos o instinto que é de morte, que tende à separação, à divisão.


Chegamos à grande envolvência, a uma célula habiotacional onde o espaço se curva e descurva sobre si mesmo para repousar nas suas próprias contradicções.

«Os mitos, as grandes narrativas, explicam determinados estados humanos, apenas local e limitadamente. Não inventam, porque não inventam o desconhecido: a verdadeira diferença surge sempre de for a das regras do sistema.» (Ernesto de Sousa) Fabricar a Unidade é inventar o desconhecido. A Unidade enquanto facto não existe. «Nada é inteiro, tudo é Disperso» dizia Pessoa. A Natureza é Diáspora. Descobrir a Unidade é adoptar «um ponto fixo para julgar» (Lautréamon). «Dá-me um ponto fixo e moverei o mundo», dizia Arquimedes. A unidade fica dependente do não-ente, do não-expresso:

«a totalidade é a não-verdade» (Adorno).


A Unidade é uma ficção, uma fábula. Tem um poder mágico que é indispensável. É a tendência centripta: Eros. Possuir Eros ou deixar-se possuir por ele, eis a questão! A Unidade é o direito à habitação, à casa, ao templo, ao repouso, à veneração, à contemplação. Unir é inventar o dia-claro. O dia-claro une-se à noite-obscura. Os galos, como no provérbio zen, cantam ao meio-dia.

«O centro e os mandalas dizem respeito a uma fenomenologia do redondo, do ninho… do ventre materno, também da casa, do quadrado e de todos os elementos construtivos que fabricam espaços protegidos. Mas tudo entra em contradicção não evidente, por uma clivagem de método, não só com a realidade (que não tem centro, morte de Deus, decadência da familia burguesa) como com o seu entendimento» . (Ernesto de Sousa)


A Unidade é algo técnico: permite que nela se alicercem as técnicas do extase, quando o extase é precisamente o que sobra à Unidade.

«O uno, a sabedoria, quer e não quer ser invocado pelo nome de Zeus» (Heráclito) no entanto

«A lei continua a ser a de obedecer aos projectos do uno.» (idem). Ou de desobedecer fingindo obedecer.


Unir para transformar. Transformar para unir. «Movendo-se descansa (o fogo etéreo do corpo humano)» ( Heráclito). Transformar a representação. Representar a transformação. Representar o repouso. Repousar representando. Ser o actor da transformação. Orfeu. O ACTOR QUE ACENDE A BÔCA!

(Herberto Helder)


BIOGRAFIA

Morre-se de vêr a nossa cara no nosso espelho: a gárgula a arrancar-se à biografia do corpo e trazendo na hipérbole do horror o nosso sangue, o sexo, os pulmões, as tripas, o coração; ligando a noite ao dia, o oculto ao revelado, o pressentimento ao acontecimento,

— tudo no mundo, na história.

(herberto hélder)


PESSOA


— Diz-me o teu nome e o que fazes. — O meu nome é Alice, mas… — É um nome bastante estúpido! — interrompeu Humpty Dumpty impacientemente — que quer dizer? — Um nome tem que significar alguma coisa? — perguntou Alice, cheia de dúvidas. — Claro que tem, disse Humpty Dumpty com uma risada — o meu nome significa a forma que tenho. A palavra Pessoa é latina; e significa dissimulação, ou aparência exterior de um homem, simulada no Palco, e por vezes, e em particular, a parte que disfarça a face como a Máscara ou a Viseira. Do Palco a palavra foi transferida para todo o Representante de discursos e de acção, tanto nos Tribunai como nos Teatros. Assim uma Pessoa ºé como um Actor, ao mesmo tempo no Palco e nas Conversas correntes.

A personalidade não é inata, mas adquirida. Como a máscara, ela é uma coisa, um fétiche, um objecto ou uma mercadoria fétichista. Relativamente à personalidade queremos dizer que todo o individuo cresce levando uma máscara e imitando um dos seus progenitores.


O produto mais solicitado hoje em dia nĂŁo ĂŠ uma matĂŠria prima, mas uma personalidade


Personalidades fixas, máscaras imutáveis; o carácter é gravura. “Esculpe a tua máscara”. Toda a personalidade é rígida. “Eis como fazer as coisas, não há outra maneira”. Mecanização de um modo particular de reacção; uma compulsão de repetição.

Nomes e pessoas são determinadas por situações arquétipas. As vozes que exprimem nas máscaras são as dos antepassados.

Substância; em latim substantia é o que fica debaixo da máscara, o que é por si ou em si, e não uma outra substância. Uma pessoa é uma máscara que se tornou corpo, que se torna um só com o corpo, que se tornou permanente quando o drama foi interiorizado, se tornou invisível, indivisível com o corpo.


O actor é exibicionista. Mostrar, é mostrar as suas partes genitais; fascinar; fazer do espectador uma mulher. Tal como o olhar duro, o olho fálico do hipnotisador (erecção ciclópica) petrifica o seu sujeito.

A finalidade da psicanálise não é a psicologia do “ego”, mas a doutrina do “annata”, ou não-Si; o Ego é uma “fabricação do Si” (ahamkara), um fragmento de ilusão (Maya), que se desintégra no momento de iluminação: “o Si foi completamente compreendido, e então deixa de ser.” É a doutrina da não-acção: a acção só serve para as pessoas ignorantes, e não fazer nada é, conveniente compreendido, a acção suprema.


_ Pela madrugada — disse o poeta — despertei dizendo umas palavras que ao princípio não comprendi. Essas palavras são um poema. Senti que tinha cometido um pecado, talvez esse que o espírito não perdoa. — Esse que agora compartilhamos os dois — murmurou o Rei — o de têr conhecido a beleza, que é um dom vedado aos homens. Agora cabe-nos expiá-lo. Dei-te um espelho e uma máscara de ouro; tenho aqui a terceira oferenda que será a última.” (J.L. Borges)


A imagem que vem é revelação, apocalipse, catástrofe, julgamento. Se a Unidade é máscara ela procura estilhaçar-se violentamente para regressar à violência genésica. Hoje a representação sente-se atraída pelo vácuo ou pelo horror ao vácuo. Queima-se no mostrar algo sintético e brutal que não se compreende.


Regressemos ao actor. Ao actor depois do espelho. Actor que é «o talento da transformação» (Herberto). O actor situa o espaço, o palco. Exibe-se nessa unidade reduzida. O seu exibicionismo transforma a exiguidade do espaço num espaço fabuloso. O actor domestica as expectativas dos espectadores. É Orfeu unificando pela música. É a proletarização do espectador. O espectador é uma massa. É o povo unido na não-intencionalidade. É a massificação como hipnotismo. A diversificação e o progresso da mimesis sabem à partida que é impossivel igualar a realidade. Contrapõem-lhe um Outro, um seu rival, um Duplo. A arte passa a rivalizar e a servir simultaneamente Deus. È filha de um tempo profano, de um tempo excluído.


«Há dois impulsos que duas formas procuram apresentar e representar: a) Levar a linguagem à carnificina, liquidar-lhe as referências à realidade, acabar com ela - e repor então o silêncio. b) Fingir escolarmente que não aconteceu nada - e escrever poemas cheios de honestidades várias e pequenas digitações gramaticais com piscadelas de olho ao real quatidiano. » (Herberto Hélder) A obra é uma sombra, produzida, ou reproduzida, para perpétuar a singularidade de algo que vai morrer, que se vai ausentar do espaço definitivamente. A obra é o medo e o espelho das metamorfoses. A obra é a retracção da entropia, negação do que não pode ser negado.


REPRESENTANTE


O antropomorfismo da natureza (no qual consiste a religião) e o fisíomorfismo do Homem (pelo qual defenimos a magia) formam duas componentes sempre dadas, variando somente a dosagem. (Morin) O antropomorfismo é a maneira menos blasfema de imitar a Causa a criar a unidade sensível. (Almada)

A questão é, disse Humpty Dumpty, quem deve ser o mestre? (L. Carrol)


Imagens: representações espectrais no interior do sujeito e representando para este último a realidade exterior. O conhecimento, tal como a política, implica a mediação de instituições representativas. A correspondência consiste numa relação de similitude, uma cópia ou uma imitação, entre imagem interna e realidade externa; algo distinto da correspondência como simpatia, ou acção à distância, ou participação activa; methexis e não mimésis. O sumo da representação reside nessa relação misteriosa, “trazer a Pessoa de todos nós”. A função do orgão representativo é a de personificar, incaenar, incorporar no seu próprio corpo o corpo político. A incorporação é a instituição de um teatro (público); é a representação que assegura a existência do corpo dos espectadores como corpo único. O coro é verdadeiramente o autor. A acção dos membros do côro consiste em afastar a responsabilidade; isso faz parte do isco de ilusões nas quais encerram o herói, o seu touro, a sua vítima. O herói é um Ego colectivo, da mesma substância que o côro.

É a representação e não a dominação que se torna a forma primeira da política. É a Unidade do Representado e não do Representante que torna a Persona Una.


Este é o meu corpo. Erro, ou magia, ou loucura, ou jogo infantil.

A fronteira que separa o actor do espectador é uma falsa fronteira que mascara a realidade mais profunda da colectividade como autor. Tudo é simbólico. Tudo é sagrado. Não há lugar particular, momento particular, pessoa particular que estejam habilitados a representar o resto. Então a democracia pode começar. A multidão torna-se uma, quando a totalidade se encontra em cada uma das partes. Quando algo se eleva, tudo se eleva; uma flor é a primavera. Está lá tudo o tempo todo. No antagonismo entre o actor e o público, a luta pelo reconhecimento consiste em castrar ou ser castrado, a ser mestre ou escravo, o macho ou a fêmea. O teatro é um ritual; a representação é uma forma de rito. As instituições representativas assentam na ilusão estética da distância.


As soon it is generally understood that an image need not to exist in its own right, that it may refer to something outside itself and therefore be the record of a visual experience than the creation of a substitute. The conceptual image might be identified with what we have called the minimum image – that minimum, that is, wich will make it fit into a psychological look.

(Gombrich)

A prática de representação tem girado constantemente numa operação de reconhecimento. Insisto como Morin no Re-. Re-conhecimento. Não se trata de uma re-visitação, uma nova visitação, mas num conhecer de novo, um «Começar», como no grande painel de Almada. Talvez um «a fingir que nunca se conheceu». Uma brincadeira.


Reconhecer é identificar: a operação parte do idêntico: dar individualidade e igualar. Ligar. Representar é ligar, unir, pôr um representante. A obra será assim o representante da representação. O representado é a experiência visual da representação. Ou corporal. A obra plástica reenvia constantemente para a relação perceptiva que lhe deu vida, para a «maneira» de perceber do artista.A «imagem mínima» é a representante de uma imagem pré-existente: o cavalo de pau representa um cavalo na sua totalidade. O que fica omitido nos sinais mínimos da representação é de ordem descritiva, porque o conceito «cavalo» como um todo está presente, ainda que invisível, e é revivido pelo «cavaleiro» através de toda uma «mimesis». A situação é ainda mais complexa: o conceito «cavalo» adquire um poder – possui ou é possuído pelo representador, como um espirito nas práticas xamânicas. A aparência de algo auto-lúdico, de um fazer sem interesses utilitários, mesmo sem intençõrs auto-cognitivas ou regenerativas arrastam-nos outra vez para a ideia de «poesis» como passagemm do não-ser (desordem) para o sêr – o espaço conceptual que envolve o cavalo de pau é um espaço cheio de energias. Os sinais de representação tornam-se símbolos.


A imagem mínima, ou representação simbólica, corresponde aos gestos mínimos. Existe uma economia de meios que se identifica a um património máximo. Ela levanta toda uma memória e põe-na em movimento. Não recria um passado nem antepassado mítico, mas apropria-se de uma imagem anterior e dá-lhe movimento. Passa-se de seguida a gestos cada vez mais mínimos: deixa-se de reconhecer uma caixa em que se empilham memórias, totémicas, a-totémicas, políticas, etc, para se entrar no mundo da relação plena em que a ambiguidade dois sinais mínimos constrói relações espacio-temporais que sendo de âmbito universal adquirem funções totalmente distintas de acordo com o meio e o tempo. São, como Orfeu, elementos unificadores. Mas o tempo tem neles uma importancia frequentemente menosprezada. Os arquétipos visuais persistem nas possibilidades perceptivas vulgares e menos vulgares. Os sinais mínimos agem sobre ambas as possibilidades como foco estruturador.


Ao gesto mínimo corresponde uma atitude máxima. A minimal e a conceptual art esforçaram-se por provar isto e levar esta atitude até às últimas consequências. Mas para lá deste levantamento exaustivo, o que é importante é a ideia de POESIS porque sem ela não há progresso para a MIMESIS. Mesmo partindo da suposição de que vivemos num universo fechado que se autoconhece o paradoxo de Zenão continua a ser válido – nunca saímos do mesmo sítio: AQUI-INFINITO. Ou: entre dois momentos descontinuos existe um momento continuo. A multiplicidade dos pontos de vista vai-se fazendo consciente. Entre a informação (que é descontinua) e o conhecimento (que é concentrativo) existem sempre transições inconscientes. O Desconhecido existe sempre quer nos alicerces, quer para lá dos alicerces do conhecimento.

Este deve ser um dos pressupostos da representação. Os gestos mínimos são elipticos, mas as referências elididas são sobredescritivas. Só o acto mental pode viabilizar uma nãotirania dos sinais hipermínimos sobre os mínimos, e dos mínimos sobre os descritivos. Há que evitar uma hierarquia fixa de sinais.


CABEÇA


O pénis é a cabeça do corpo, a horda dos irmãos; o resto do corpo está para o pénis como o coro para o herói trágico, ambos, corpo e côro, fremindo de assistir, hipócritamente e mantendo-se numa distância confortável, à sua própria execução. O orgão representativo é um asilo para a alma ou o esperma do corpo; um banco de depósitos garantidos.


Pudemos crer que a consciência humana era a sede do sujeito. De facto, a consciência humana, que produz a ideia de sujeito, é a forma derradeira e não a primeira do sujeito. Mesmo no homem a qulidade do sujeito não começa por estar ligada à consciência. É anterior a toda a consciência, a todo o psiquismo cerebral, inerente ao ser total e, por isso mesmo, inseparável do corpo, como o “animus.”


A organização sexual do corpo físico é uma organização política; o corpo é um corpo político. “Não é da visão de um reino ou de uma cidade que ficará para sempre como coisa externa, que surgirá o verdadeiro apocalipse, mas da identificação da cidade e do reino com o corpo do homem.” Recta é a forma do corpo genitalmente organizada; do corpo crucificado, do corpo morto ou adormecido, do cadáver. A forma do corpo desperto, a forma do corpo ressuscitado, não é vertical, mas perversa e poliumórfica; não uma linha recta, mas curvas.


O orgão representativo age em nome do organismo inteiro: “Não há nenhuma parte do organismo que não esteja representada no orgão genital, de forma que este último, no seu papel director, assegura por conta do organismo inteiro a descarga da tensão sexual.” O resto do corpo chega “a uma completa identificação com o orgão executivo, através de esfregadelas”, obetendo assim uma satisfação vicária, uma redenção vicária (descarga, libertação).

Em toda a parte, o Um vem antes do múltiplo… Toda a Ordem consiste na subordinação da Pluralidade à Unidade, e jamais e em parte nenhuma o objectivo comum a que o Multiplo se propõe não pode ser dirigido para o objectivo. A organização genital no corpo físico é uma inificação de uma multidão de pulsões parciais; o que faz do corpo uma unidade conatituída, uma universidade ou corpo constituído (corpração); para uma subordinação do Múltiplo ao Um; um Governante ou Parte Principal (pars principans), o Motor Supremo ou Primeiro Motor (summum movens ou primum mobile); a cabeça do corpo.


O novo é uma mancha cega e vazia como o Isso. (Adorno)

Encarar o Novo como director, como cabeça, como Capital. Reduzir o Novo a «revivalismo» é fácil. A transposição de uma atitude antiga para uma época diferente acaba por ser uma transformação e adquire significados diferentes que não passam necessáriamente pelas malhas do mau-gosto (embora, como em tudo, isso possa acontecer). Se o revival se reduzisse a kitsch o renascimento não teria passado de um revivalismo mal informado da arte greco-romana adaptado a novos mediuns, a novas geografias, a novas políticas. Se invertermos a ordem paternalista do tempo e considerarmos o Novo sob um ponto de vista fraterno, precedendo o «revivido» teremos uma dimensão mais exacta das coisas: é que o «revivido» serviu afinal para alguma coisa – os genes dos antepassados estão em boa parte presentes nos dos descendentes, as potêncialidades dos pais são actualizadas nos actos dos filhos. O novo é a atitude que entre eles marca a diferênça.


O Novo é primeiro que o Velho. As duas cabeças: a hierarquica (gestos mínimos) e a contestatária (transgressora). No meio vislumbram-se cabeça sexuais, superinformações, texturas não padronisadas, esboços descritivos.


O Novo é o Zero – o horror e fascínio do Zero, o aqui-infinito.

«O primeiro passo na Novidade foi o homem ter visto que existia o Caos. O segundo passo foi ter aberto o caminho para opor-se ao Caos.» (Almada) Olhar o horror, o Caos, o excremento. Refazer a partir desse Zero. O Caos anterior a qualquer coisa. O caos origem de todas as coisas torna-se necessáriamente origem do Novo.

«A permanência da Origem é a garantia para que possa cada idade tomar confiadamente a sua vez de criação sem se medir pelas outras». (Almada) O Caos é o Não-Ser, o Isso, e, nas suas metáforas mais correntes, o Nirvana, o Eterno, o Inconsciente.

«Je finis par trouver sacré le desordre de mon esprit» (Rimbaud)


«Para fazer o novo é preciso regressarmos à humanidade na infância» (Gauguin) – romper os circulos neuróticos. O horror do novo – o novo é frequentemente classificado de monstruosidade ou de degenerescência – é o sexual, o contestatário. O Velho seria a Ordem establecida ou a decadência. A predesposição para apropriação do novo exige novos métodos: dialética entre a potência e o acto que a reduz. Revisitar os antepassados míticos ou malditos = masturbação retórica. A masturbação retórica abre-nos ao Novo, deitando fora o Velho porque compreendido, absorvido, digerido. Depois do espelho e da máscara: a Beleza, o Vazio – e já estamos do outro lado do espelho e da máscara.


FRONTEIRA


No passo seguinte Alice estava no outro lado do espelho e, dando um pequeno salto, desceu para a Casa-Espelho. (L. Carrol) Ir ao outro lado do espelho é mais que uma simetria, ou tékné – é passar da dimensão aparente do corpo à sua essência, é ser conduzido ao interior onde toda a lógica se desfaz ante o entrevisto que se torna evidente.

O ego é incapaz de clivar o objecto— interno e externo — sem que uma clivagem correspondente se produza no interior dele mesmo. A identificação é participação; o ego e o não-ego identificados; uma ligação extrasensorial estabelecida entre o mim e o não-mim. Temos tendêndencia a considerar cada individuo como uma realidade isolada; eis uma ficção cómoda. Não existe ser humano isolado, puro e simples, retirado de qualquer ligação com os outros homens. cada personalidade é por si própria um mundo, uma sociedade de muitos seres. O ego é uma estrutura compósita, que foi continuamente formada e edificada desde o dia em que nascemos pelas influências e as trocas, inúmeras e incessantes, entre nós e os outros. Os outros são partes de nós mesmos. E nós, reciprocamente, exercemos efeitos e influências, voluntáriamente ou não, sobre os que interagem em relações afectivas, que nos amaram e odiaram. Nós somos membros uns dos outros.


Paródia significa união de posições opostas inconciliáveis. A discords concordia é a forma de estruturar e formalizar tal situação. Paródia significa não só que se nega o que já se havia afirmado, mas que o principio de verdade tem duas faces, e a realidade dois extractos. Se se quizer ser vero e fiel à realidade há que evitar a todo o custo a simplificação e apreender as coisas na sua complexidade.

Indivisos, e ainda que fossem dois, neles o amor matava o número.

Ultrapassar o dualismo seria despertar-se, saír do sono, levantar-se de entre os mortos.


Na origem todas as coisas eram um corpo, un corpo Ăşnico (Novalis)


«O pensamento está intimamente misturado com a descrição: se pinto orelhas penso no ruído, se pinto lábios penso na palavra, pintando os dentes penso nos alimentos.» (Picasso)

Há que abater os muros, suprimir as fronteiras. Acabe-se com os mecanismos de defesa, a couraça do caracter: desarmemos!


Achas que gostarias de viver na Casa-Espelho, Kitty? (L. Carrol)

Casa-Espelho – o interior como espelho do exterior. O saber aceitar plenamente os objectos. Todos os objectos são iguais, irmãos. Fim das tiranias do Ego. Livre circulação interior/exterior. Qual o estado juridico de tal situação transfronteiriça? Contrabando? Ou supressão do sistema alfandegário? Que os objectos não sejam afins de juízos. Apenas valerá o silêncio como legitimização das incertezas ou como critica de uma incerteza e os correspondentes cepticismos. A eticidade aceitável é a da elucidação dos laços e da sua activação através vivência erótica dos nucleos conceptuais das incertezas. «A mentira que diz a verdade» ilustra bem este tipo de nexos e de frontalidade. Contra a ética que não sabe senão julgar, há a ética da produtividade, a ética como actividade po-ética.


Casa-Espelho: espaço de indeterminações, de flutuações. Concavo-cônvexo. Labirinto. Mundo dos Possiveis. Possibilidade de vários mundos como em Giordano Bruno. Casa-Espelho: olhamos com o nosso olhar virado-parao-exterior: dizemos fronteira. A epiderme do Outro, do Duplo, avança. Os 3 duplos do representador: 1. a sombra, 2. o mundo. 3. a obra. Memória. Consciência. Possibilidade. Fenomenologia do alfandegário – adivinhar os Duplos.

a feita Uma cas

inhei p e d s o com ram

ro? O

obran s m o c o olh

celha.

(enigma az

eteca)

Tirésias não Vê porque trans cendeu o dominio do visível, o dominio do olho, do Ego, da identidade. Tirésias é o antecessor do seu antepassado mítico Homero. Tirésias vê o passado/presente/futuro. Ho mero só consegue olhar para o passado – unifica-o e dá-lhe sentido. Ao reencontrar esse passado faz-nos cada vez mais antigos.


Fronteira – consciência do finito. Onde o tacto toca. Saber encontrar o fim. Nitidez. A dissolução do tacto no tocado e do tocado no tacto: o íntimo tocado. Encontrar o fim desde o princípio – desestudar, desaprender. Estas são as permissas duma arte que tem como percusoras as «antropofagias» do Herberto Helder:

«Agora ocupamo-nos nos apocalipses, e principia a perversa alegria de escrever mal, o gosto de coçar (...). Não é bem saír do silêncio, encontrar-se a «escrever», não é bem o desejo de mau gosto e desorganização. Será já um pouco «outro lado»?Também não se vai tornar «novo», evidentemente. Mas, de qualquer modo fez-se um percurso que cabia fazer. Chama-se apenas a atenção para uma certa festividade destrutiva. Abunda em tudo isso alguma alegria antropofágica.»


E depois está tão explícito esse «outro lado» impossível e inimaginável — a autoridade canibalistica de atravessar espelhos, do desfazer festivamente, do afastar o luto, o «nojo», a repugnância pelo já instituído: rito de passagem ou sucessão de ritos de passagem. A Morte Imaginada do PaiAnalítico.

A perplexidade é sempre a mesma – das auto implicações-afirmações-negações da(s) teologia(s) negativa(s) aos pontos cruciais das ciências analíticas (cosmologias negativas?). Dilaceração do Negativo : ser o ser-e-não-ser. Representação que para ser se representa e não representa – o teatro bruto-sagrado de Peter Brook com a presença do visivel/invisivel. Teatro para todos, para as massas. Teatro da consciencia a trabalhar com a inconsciencia. Atravessamos as Casas-Espelho e começamos a desaparecer, a comermo-nos uns aos outros.


COMIDA


A questão, “o que é um corpo?”, é a mesma que: “o que é que é comido?”: Tomai e comei, isto é o meu corpo. O pão nosso de cada dia; uma incarnação quotidiana. É sempre o seu corpo que comemos. Ele morre quotidianamente. A realidade do corpo está no pão, comido. A presença real; culto do pão. Pão e vinho; ou ar. O ar que respiramos. A Virgem Santa comparada ao Ar que respiramos.


O nosso corpo é um corpo incorpóreo; nós somos o que comemos. Nós somos o pai (a mãe) comida. A espécie humana é canibal. “Eu sou Saturno, o que devorou seus filhos, pois foi predito que caso contrário eles me devorariam. Comer ou ser comido, eis a questão. ” Mas quem é o meu pai e a minha mãe? É a Virgem Santa; o ar que respiramos, o ar que alimenta o mundo:

Esse elemento nutritivo Necessário e inesgotável; Mais que o pão e a àgua para mim, O meu alimento é cada segundo.


O corpo real. Para ser real deve ser corporal; e ser um corpo é ser devorado. A humilhação na encarnação: tornar-se pão. Ser comido, ser devorado pelo sofrimento, a doença e a morte. O verdadeiro sacrifício é um sacrifício humano. O sacrifício animal é enganador, pálida imitação, sombra. Abraão renuncia ao sacríficio humano, e Cristo regressa a ele. Da sombra dos substitutos à realidade do corpo humano.

Identificação, introjecção, incorporação — é sempre ums manducação, é sempre comer. A linguagem mais velha e verdadeira é a da boca: o fundamento oral do ego. A transubsiação é unificação, e dá-se no comer

Incorporação parcial e incorporação tal. A incorporação parcial é devoração duma parte representativa (simbólica, que não é parcislmente (simbólicamente) comida; tal como a possessão é uma devoração atenuada.


A sua crucificação, o último dos antigos sacrifícios, o primeiro dos novos. A ceia, e não a cruz é a derradeira coisa: escatologia da manducação. Comunhão. O corpo individual (pessoal, histórico); o corpo eucarístico; o corpo constituído (místico). Ver estes como um só corpo. “Nós somos alimentados pela cruz do Senhor, porque comemos o seu corpo.” É somente enquanto somos comidos que nós somos unificados pela incorporação no seu corpo.


O homem Faz-se a si; o seu próprio corpo; a imagem do seu corpo; o Corpo Eterno do Homem é a Imaginação.

Acendei o fogo do sacrifício. O fogo sacrificisl, o alimento sacrificial; a comida é um combustível. Todas as coisas são comida, são chamas. A verdadeira oração é vêr o mundo pôr-se em chamas.


O grande sofrimento da vida humana que começa na infância e continua até à morte, é que ver e comer são duas operações distintas.

Identicamo-nos com o que matamos. A verdade de onde surge a paz; identidade do que mata e da vítima. Matar é um acto canibal, para incorporar o inimigo. Comer é a forma da guerra.

Hostilidades: o nosso inimigo é o nosso hoste (host) que nos alimenta; matar é comer. Todo o assassinato é sacrificial; e todo o sacrifício manducação. Este mundo como comida nutre-se a si mesmo. O corpo místico alimenta-se de si. Autofagia.

A vida humana é vida e comida sofisticada para o guerreiro. Se não comeis a carne do Filho do Homem, se não bebeis o seu sangue, não tereis vidaentre vós.


Vamos jogar aos comedores – comer para inverter o tempo. «este é o meu corpo, tomai e bebei». Amai-vos uns aos outros = comei-vos uns aos outros. Amar é comer, oferecer-se em sacrificio. Interpenetração. Jogo sexual. Mistura de casas. Comer para renovar o corpo. Morrer é ser comido para integrar outros corpos.


Comida: sacrifício simbólico. Na pintura: oferecer aos olhos o corpo do próprio artista, do artista rival do demiurgo. Toda a imagem é para ser devorada/apreciada – pintura lambida, pintura condimentada, receitas pictóricas, pequenos & grandes cozinhados. Fazer boa cozinha com alimentos simples. Carnes tenras. Carnes duras. Carnes frescas. Carnes podres. Na arte é como na cozinha. Há pratos inexcedíveis. Dentro do género, pois claro. E o vinho para lá do milagre dos pães. A magnifica embriaguês segundo Khayyam:

O vinho me embriaga. Que se ria o sufi santo de tão louca orgia. Talvez se forje em vil metal a chave da porta que ele uivou e não se abria. Representar é amar e dar-se a comer. E aqui não há sentimentalismos nem boas ou más visões:

«da sugestão à digestão, do centro à periferia, o neo-canibalismo converte e inicia»


FOGO


Fogo — purifica tudo. Ao ouvir gritar-se “fogo” deve começar-se por perder a cabeça.


O amor é todo fogo; e assim o céu e o inferno são um só lugar. Como em santo Agostinho, os tormentos dos danados fazem parte da felicidade dos eleitos. Duas cidades que são uma só cidade. O Éden é uma cidade de fogo, tal como o Inferno.


A conflagração final ou apocalipse. A unidade da vida e da morte é fogo. “ Pois a Natureza é um Fogo Heraclitiano e o reconforto da da Ressurreição.” A guerra é a guerra prevertida. O problema não é o da guerra, mas o da perversão. E a perversão é uma sublimação; a guerra é o sexo prevertido, desnaturado. “A guerra é a Energia Submissa.”


Descubram o verdadeiro fogo; a partir do qual as chamas da guerra são só uma paródia satanica. Combatam o fogo com o fogo.

Uma devoração pelas chamas. Nenhuma quebra, mas o prazer levado a seu termo; nada de sacrifício parcial (castração), mas um holocausto total. É enquanto fogo que o sexo e a guerra e a manducação e o sacrifício são um.


Les signes me disent quelque chose. J’en ferai bien, mais un signe est aussi un sinal d’arret. Or en ce temps je garde un autre désir, un pardessus les autres. Je voudrais un continuum. Um continuum comme un murmure, qui ne finit pas, semblable a la vie, quie est ce qui nous continue, plus important que toute qualité. (Michaux)


Pois criado em mim tendes um engenho ardente (Camões) Aqui, no centro da transformação, no fogo/jogo genésico –

«Este mundo, o mesmo para todos, não foi criado nem pelos deuses, nem pelos homens; é como sempre foi e será, um fogo vivente, com moderação se extinguindo e com moderação se acendendo.» (Herácito) «Chama de amor vivo» (S. João da Cruz) O grande sacrilégio, a grande heresia, o roubo do fogo por Prometeu, constitui o mito fundador da humanidade. O fogo e a maçã – o acesso ao conhecer, o acesso ao transformar. Quem domina o fogo pode dominar o mundo. Quem se mete dentro do fogo sem se queimar é da sua mesma substância. As práticas de magia (no chamanismo em especial) atribuem grande importância ao dominio do fogo: dominar o fogo é dominar-se, é utilizá-lo sem se queimar. O fogo traduz-se no quente, no cozido, no queimado. As pessoas agrupam-se à sua volta. Ele é centro, unidade de tudo. Dele vem tanto o bem quanto o mal. O fogo acende os contrários. Lança o homem para a cultura. Separa-o da natureza, e ao fazêlo o fogo separa-se do fogo. A descoberta do fogo = pecado original. Oceanos de chamas. Juízos finais.


Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo da àgua ou da terra, o fogo único consumido em ar. Eis o lugar onde o centro se abre ou a lisa permanência clara, abandono igual ao puro ombro, em que nada se diz e no silêncio se une a boca ao espaço. Pedra harmoniosa do abrigo simples, lúcido, unido, silêncioso umbigo do ar. Aí o teu corpo renasce à flor da terra. Tudo principia. (Ramos Rosa) Fogo de alquimistas, prima materia: AQUA NOSTRA EST IGNIS. «La source represente non seulement le cours de la vie, mais aussi sa chaleur, son ardeur, le secret de loa passion don’t les synonimes ont toujours raport au feu» (Jung) O fogo é o elemento que repõem o continuum, queimando até se extinguir – é engenho ardente, dando fôlego para que o livro se escreva de uma ponta à outra entrega a uma força que lhe dá vida.


FRACÇÃO


O aforismo é a forma da morte e da ressurreição: a “forma da eternidade”.

Comer e ser comido. O grão deve ser moído, e o vinho espremido; o pão deve ser quebrado. O verdadeiro corpo é o corpo partido.

Nada pode ser único ou inteiro sem que antes tenha sido despedaçado.

Até ao ponto de rotura. Levar o pensamento a seu termo; experiências cruciais. Extremismo. A verdade não habita na segurança, ou no meio. “As obras de arte nascem sempre do que fez frente ao perigo, daquilo que foi até ao limite duma experiência.”


Bonito, já vi muitos gatos sem sorriso, mas um sorriso sem gato é a coisa mais curiosa que já vi em toda a minha vida! (Lewis Carrol)

O aforismo é exagero ou grotesco, nada é verdadeiro, a excepção dos exageros, da linguagem extravagante. E na poesia “esse extremismo é o próprio fenómeno do élan poético.” O caminho dos excessos conduz ao palácio da sabedoria.


Discurso quebrado; discurso quebrado pelo silêncio. Deixar entrar o silêncio, é o simbolismo. “No símbolo há dissimulação mas também revelação; e a partir daí, do Silêncio e Discurso a misturar a sua presença, surge uma dupla significação.”


As significações literais são icones que se tornaram idolos de pedra; o sepulcro de pedra, as tábuas de pedra da lei. O Novo Testamento continua escondido no Antigo, como a àgua na rocha; até que a cruz de Cristo quebre a rocha e a force a abrir-se. Iconoclasma, a palavra qual martelo quebrando o rochedo em pedaços.

O que é contraditório no reino das coisas mortas não o é no reino da vida. Forma quebrada. Contra a beleza como tal. Nem forma nem complacência. Brusca; irregular; contraditória. Os aforismos, que representam o saber quebrado, convidam os homem a prosseguir a busca; enquanto os Métodos, levando o a visão de uma totalidade, imobilisam os homens, como se tivessem atingido o ponto extremo.


Ruptura! – prelúdio para o novo. Turbilhões, movimentos descontinuos, copulações aleatórias, variedade de actos, diversidade de formas. Chega-se ao problema crucial da multiplicidade e do desenvolvimento. A construção de centros, como necessidade topológica, apela ao establecimento de relações crescentes cada vez mais complexas, fazendo com que os objectos joguem intensas relações, desenvolvendo, caso seja possivel as potencialidades que preexistiam e as que vão surgindo.


É o princípio da construção do mundo, do reconhecimento do próprio corpo, como cadeias borbulhantes de percepções e construções. Mais do que a comunicação, como evidência retórica dos materias, mensagens (que incluem piscadelas irónicas e algumas salutares ambiguidades), pense-se antes em transcomunicação, desfrute, diálogo séries entre complexas, modos de produção em que o corpo e o logos estão envolvidos. Não se pretende comunicar algo mas fazer passar redes de possibilidades, como uma discussão que não se fecha nunca. Visão como vontade de participação critica num diálogo a várias vozes.


É o princípio da construção do mundo, do reconhecimento do próprio corpo, como cadeias borbulhantes de percepções e construções. Mais do que a comunicação, como evidência retórica dos materias, mensagens (que incluem piscadelas irónicas e algumas salutares ambiguidades), pense-se antes em transcomunicação, desfrute, diálogo entre séries complexas, modos de produção em que o Corpo e o Logos estão envolvidos. Não se pretende comunicar algo mas fazer passar redes de possibilidades, como uma discussão que não se fecha nunca. Visão como vontade de participação crítica num diálogo a várias vozes.


O desenvolvimento da mimesis coincide com a maximisação das capacidades biológicas:

«A descoberta de derivações genéticas (genetic drifts) não selectivas, o reconhecimento de caracteres neutros no seio das espécies, a plausibilidade matemática de que certos traços desfavoráveis poderiam ser conservados no pool genético, tudo isso produziu brechas na aparente racionalidade da selecção. Já não é o optimo que é seleccionado, é o péssimo que é eleminado. Já não é o útil que é sempre conservado, mas, eventualmente, o supérfluo.» (Morin) O progresso da mimesis (ou da representação artistica) passa também pela reconsideração do supérfluo e o eleminar do péssimo. O importante será (para além da variedade/variação das novas conexões a serem establecidas) detectar as invariantes, isto é, os caracteres neutros. Os caracteres neutros serão os chamados basic scribles?


REALIZAÇÃO


O corpo que é idêntico ao meio. Nos sonhos, da mesma forma, a paisagem é completamente construida com o próprio corpo do sonhador; e de igual modo, no totemismo, a essência humans é projectada num animal ou numa planta — é o próprio acto da formação inconsciênte do símbolo. No simbolismo consciênte, o espirito alienado regressa ao seu criador humano: “todos os deuses estão no nosso corpo.”

A realização das profecias é o fim do mundo. As figuras são sempre figuras de coisas derradeiras; a tipologia (simbolismo) é escatologia. Véu rasgado, selo quebrado; é o fim do mundo; a história realiza-se na sua própria abolição.


O sonhador não se desperta de um corpo, mas desperta para um corpo. Não ascensão de um corpo para o espírito, mas descida do espírito num corpo: encarnação e não sublimação. Desde então, descobrir o verdadeiro sentido da história é descobrir o seu sentido corporal. Cristo, a realização, não é uma ideia abstracta, mas um corpo humano. Toda a realização é carnal.

Realização: sombras da realidade. Agora pela primeira vez real: a lei não possuindo senão as sombras dos bens vindouros, e não a representação exacta das coisas. Sombras da realidade, símbolos da realidade; da figura à verdade. O eixo sobre o qual a história do mundo é simbolismo.


A concretização dos símbolos está no simbolismo do corpo. Na experiência corporal, na incarnação dos símbolos, o simbolismo, pela pºrimeira vez, faz-se real: e como pela primeira vez real talvez seja a derradeira.

Uma fenda, de ombras para a realidade: aurora. O dia levanta-se, e as ombras sumem. Súbita aurora: nós não adormeceremos, mas seremos transformados, num instante, num piscar de olhos.


A última coisa a realizar é a incarnação. O último mistério a desvelar é a união da humanidade e da divindade num só corpo.


Na esfera estética, o impulso mimético afecta antes a mediação, o conceito, o não-presente. O elemento conceptual, enquanto entremeado, é inalienável na linguagem e também em toda a arte, e transforma-se assim em algo de qualitativamente outro em relação aos conceitos enquanto elementos distintivos de objectos empiricos. A introdução de conceitos não é identica à conceptualidade da arte; a arte não é conceito nem intuição — eis porque protesta contra a separação. A arte é intuição de algo não-intuitivo, é semelhante ao conceito sem conceito. Nos conceitos, porém, liberta o seu estrato mimético, inconceptual. (Adorno)


É a conceptualidade e a inconceptualidade do gesto assim como a consciência ingénua/ culta do mesmo, que pode servir como aposta. A exploração do gesto tem sido feita maioritáriamente de uma forma esvaziada de criticismo, ocultando a «conceptualidade» quer do gesto quer do ornamento. As poucas tentativas consistentes nesse sentido foram levadas a cabo por Henri Michaux:

«ce sale flot noir, qui se vautre, demolissant la page et son horizon, qu’il travesse aveuglment, insupportablement, m’oblige à intervenir.» «Dans l’ecriture, certains jambages s’elançaient démésurés, faussant le mot, sortant du mot, leur graphie emportée à part par leur èlan propre, et aussi par l’appel pressant à la represantation et à la figuration de ce dont il etait question et dont, maldroites et insuffisantes, perçaient les soudaines, rapides tentations, les ébauches trot tôt interrompues». Se a presença do Corpo no Gesto nunca foi negada, também ninguém como Michaux teve a necessidade da apresentar como «antropomorfica», «fálica». A ocultação desta evidência foi saudada como progresso, como emancipação. Enquanto isto se passa Michaux é claro:


«Peinture par oubli de soi, de ce qu’on voit e qu’on pourrait voir. Peinture de ce qu’on sait, expression de sa place d’ans le monde.» Insiste também nos mandalas e na desagregação do ego em alternativa ao seu massacre, como em boa parte nos artistas ditos expressionistas abstractos:

«Le massacre peremptoire, ou delicieux de l’ego et de ces unités construtives, c’est du passé». A aceitação experimental do mundo, não uma luta infernal contra ele.


Toda a história de arte está imersa em gestos, em ideias-gestos, em programas-gestos, em conceitos-gestos. Não é o gesto a expressão no actual dos inevitáveis equivocos «miméticos»? Substituição continua de gestos, substituição mimética. A conceptualização é a convenção, o òbvio, o dizível.O inconceptualizável é o que fica. A realização artistica toca as arestas das regras, regras que se querem não-definitivas, mas desprobabilizadoras. Regras do não-determinante. Para um improvavel Possível.


JULGAMENTO & INDEPENDÊNCIA


O homem realizar-se-á suprimindo as fronteiras que paralisam a sua actividade conceptual e que o conduzem a classificar tudo reduzir tudo. (Morin)

Ir para lá do princípio da realidade, através do espelho da reversão dialética, para chegar à absurda verdade. Triunfar neste mundo por uma redução ao absurdo, pelo creio porque é absurdo. Da sombra da tipologia à noite do paradoxo. A revolução permanente, a perpétua revolta é visão, é espontaneidade, perpétuamente renovada: cada dia é o último dia, cada dia primeiro dia, cada dia começo e fim. Palavras regressando novas, como no primeiro dia da criação; aurora da eternidade. Palavras para mudar o mundo, não para o interpretar; palavras para descobrir um outro mundo, não para fazer a propaganda deste. Passar deste mundo ao seguinte, da língua vulgar à extraordinária. Trevas ao meio-dia. Progressivo obscurecimento do mundo quotidiano do senso comum. Finnegans Wake. A segunda vista é noite obscurecida. A noite dá luz à noite. O duplo obscurecimento, ou negação da negação. Admirável é a coisa que sendo tenebrosa a noite alumia.


Júri - fazer tudo para não tomar parte em nenhum deles. (Flaubert)

Triunfar da oposição entre luz e ténebras, limpeza e conspurcação, ordem e caos; casamento do céu e do inferno. Submeter o mundo à sedução da loucura. Cristo está detrás dos muros do paraíso, dos muros da lei da contradição; e a destruição da lei da contradição é o objectivo supremo duma lógica superior. Nunca deixamos a nossa vida. O conhecimento é conhecimento carnal, copulação do sujeito e o objecto, transformando os dois num. O sentido erótico da realidade é um retorno ao saber animista, à participação mística, mas agora, pela primeira vez, em lugar da religião, a poesia. Um enorme quebra-cabeças, livre jogo, de substituições ilimitadas. Um símbolo nunca é um símbolo, mas algo polissimbólico, sobredeterminado, polimórfico. A liberdade é fecundidade; uma proliferação de imagens, excessivas.


Je ne suis pas dans l’espace et dans le temps, je ne pense pas l’espace et le temps. Je suis à l’espace et au temps, mon corps s’applique à eux et les embrasse. Je ne suis pas devant mon corps. Je suis dans mon corps, ou plutôt, je suis mon corps. (Merleau-Ponty)

Uma fruição moral não é necessáriamente uma fruição judicial, e pode ser uma fruição profilática – as exigências estéticas passam por aí. Marinetti proclamava a guerra como única higiene do mundo – apelo futurista e heraclitiano à catástrofe. Apocalipses simétricos – toda a decadência é contemporânea da eternidade. A obra não se explica como um corpo ideal, mas como corpo utópico. Tornar a obra post-apocaliptica e metacatastrófica é dar ao corpo a visibilidade das suas invisibilidades. Se existem elementos corpusculares constitutivos na obra eles apenas interessam como desejo e alegoria descritiva, como fachada, muro, de uma cosmogonia outra que se inscreve nas células vazias do elemento actuante – o corpo.


A organização dos espaços busca na incerteza, na consciência do incerto, nas complexidades alargadas – destalibilização das instabilidades que se equilibram, mutuamente. Não a economia que simula a imediaticidade espetacular. O minimalismo é o ascetismo de consumo, a evidência pseudo-moral. A «boa-forma» é uma impostura moral que tenta desviar a evidência do corpo, e a politica como transmutação de corpos. Queremos uma politica transcomunicacional, sexualizada, aceitando o espaço, fazendo desabroxar o envolvimento. A arte é uma necessidade luxuosa, um reequilibrio feito de desiquilibrios – isso é homeostética. A história das convenções passadas torna a nossa actualidade mais futurista – é o passado que faz a profilaxia que garante a generosidade do futuro através deste presente.


A necessidade é sempre para tempos simétricos como equilíbrio: em arte é homeostética. A história das convenções passadas é a história duma possibilidade de futuro para agora. Ou impossibilidade. Torna a nossa actualidade mais futurista – é o passado que faz a profilaxia que garante a generosidade do futuro através deste presente. Escrevemos - «contar ou não contar com as utopias, mera questão de táctica». – e a táctica aqui é contra o cepticismo (a pesar de um salutar cepticismo) através de um dogmatismo metamórfico. Substituição constante de convenções. Experimentar para desocultar o erro. E mais do que nunca o perpétuo encontro com o desconhecido que se dissimula no conhecido. Nada é suficientemente conhecido. Contra o mêdo! Não há limites para os universos. Os universos são sempre insuficientes, um work in progress. Avançar. pelo vago, pelo indefenido, desdramatizando os pavores, nascendo para novas necessidades.


RESSURREIÇÃO


O literalismo e a antecipação só nos visam afastar da realidade do presente.

A novidade é renovação. Reforma ou renascimento. Vida nova. A vida é como a Fénix, renascendo perpétuamente da sua morte.

Elevar-se da morte ao mistério é fazer a experiência da ressurreição do corpo agora.

Um paradoxo resolve-se quando situamos as duas proposições antagónicas num sistema de referências enriquecido onde aparece a sua complementaridade lógica.


A novidade não é a oferenda de uma tabula rasa mas uma ressurreição; ou gravidez miraculosa. Uma virgem engravidará velha, como Sarah ou o império romano. Foi tarde que aprendi a te amar, ó beleza tão antiga quanto nova, foi tarde que te aprendi a amar. A verdadeira vida é ressurreição; uma vida distanta daquela cuja finalidade é a morte e da qual o modelo é a compulsaão e repetição.


«as lovers will contrast their emotions in times of crises so am I dealing with my environment»

Existem dois aspectos que roçam constantemente o conceito corpo e o conceito envolvimento: o gesto e o ornamento. Ambos ora se afastando, ora se aproximando. Se o gesto teve um papel priveligiado dentro do teatro do «modernismo», já o ornamento constitui uma espécie de tábu, por não tocar as àreas da funcionalidade. O ornamento foi esquecido e afastado para longe da civilização do trabalho e da acção, continuamente condenado pelos teóricos e assimilado frequentemente ao kitsch. O aspecto decorativo era encarado pela sua imediaticidade visual, pela sua concorrência para um objectivo, pela sua harmonia formal, pela sua agradabilidade aos olhos. Esqueceu-se a plaisanterie, a brincadeira luxuosa, e, fundamentalmente, a grande presença do envolvimento. A pattern painting constitui uma tentativa frustrada no sentido de fazer reviver tal envolvimento – mais globalizante do que se julga. O ornamento, no entanto, não pode viver uma aventura isolada do corpo, como mera continuidade em relação aos projectos minimais. Não basta escrever figura. Não basta ornamentar – é necessário, através desse acto lúdico, avançar para uma àrea em que um projecto de vivência esteja incluído.


O ornamento revolucionário. O ornamento de uma sociedade futura. O ornamento para o desconhecido. A arte das sociedades ditas primitivas é pródiga nisso. O ornamento é o sinal da indissolubilidade entre corpo e envolvimento – é do domínio da «relação», da «abertura», da investigação progressiva do espaço. Neste tipo de investigações o ornamento é contraposto à logica da proporção (que implica unidades fechadas, íntimos, duplos, uma lógica ancorada na mortalidade) de que a tradição renascentista viveu e que se encontra em agonia. A pattern viveu dissociada do envolvimento porque este envolvimento era agressivo. Há que fundar novos envolvimentos – regressar à matriz, utópicamente e romanticamente, viver a aventura de uma nova civilização. A confusão (a realidade existente) entre efeitos, produção de efeitos e ornamento levou à ruptura com um público, deixando imensas lacunas por preencher. Este é arrastado por medias que o fascinam, mas que não compreende.


Ora o gesto, pai do arabesco, é a reacção irracional a situações de crise: o gesto aproxima pelo agir, correspondendo a uma necessidade afirmativa do sujeito, implantando a sua presença através de marcas ou rastos. O gesto é uma emergência narcísica que visa a liberdade, mesmo que se trate de uma aparente sublimação – expulsão de energias reprimidas com a passagem a um envolvimento maior, na qual a presença do sujeito se vai dilatando: presenca sexual e presença social. A presença politica e a religiosa, filhas da moral e do controle, só vêm mais tarde. Com a dilatação já não há um imperativo egoísta porque a necessidade de marcação dissolve-se e abre-se na consciência de que tudo devem exterior, chegando a uma humanidade sem «rosto». Esta torna-se numa acção para o envolvimento, numa transformação do mundo.


A permanência do gesto nestas situações é moderada e menos violenta, pois já não serve a esconjuração imediata de espíritos, nem uma transcendência primária, mas é útil para a devir de uma sociedade menos injusta graças à prática de uma desconstrução permanente. As consequências do alargamento do gesto levam a enfrentar as «grandes escalas». O gesto torna-se um hino planetário: paisagens flutuantes. Pode ser um motor do progresso da mimésis, mas nunca será o único motor desse progresso (o único que verdadeiramente interessa ao homem): torna reconhecíveis os basic scribbles, desfigura os códigos para os transformar, mas não completa a operação. É um acto, ainda assim, irresponsável, infantil - «les enfants qui naissent ne conaissent rien de la vie, pas même la grandeur». Este ser-se infantil é como a espontaneidade das doutrinas taoístas, uma experiência mais do que um conhecimento, uma intuição desprovida de moral.

Mas, e insisto, é na vontade do gesto (por mais que este crie um ambiente ingénuo, festivo, irresponsável ou até egoísta) que deve radicar o motor de uma sociedade nova, entre o marasmo magnífico, explêndido, do devir louco das convenções.


INTERLÚDIO

A insistência, comumente exaltada de que o progressivo é um lento movimento de ruptura com os seus pequenos regressismos com as suas orgânica sistémicas, não nos obriga às unidades isoladas mas antes excita as suas mecânicas de ligação-corte com os exteriores: novas unidades sistémicas nas quais como parte se é actor. Mimesis interior e mimesis exterior: acreditar numa complexidade-limite não-atingida e num processo revolucionário em curso.

Somos agora forçados às linguagens desejantes, e nas linguagens amaremos as liberdades mais do que possiveis – explora-las-emos intereligando-as desfazendo-as, dispersando-as e reunindo-as.

A consciência de um Disperso é ela mesma factor de Unidade – conjunção maneirista de contrários, através do riso, da catástrofe, em òpera disfarçada de opereta – o tragicamente risível.


A mudança existe para repousar, é gesto, diluição no híbrido – e se o esquecimento deforma também a memória transforma regenerando e iluminando mundos. “work in progress” sempre!


NADA


A significação informulada é sempre sexual. A ideia de harmonia, de solução, de eliminação das desordens, de superação de toda a contradição, do acabamento político é, como agora sabemos, uma ideia massacrante. Começamos a ver todo o mal que existe na ideia de boa sociedade, todo o horror que o mito de felicidade pode impor. O futuro radioso deve morrer. Está aberta a via do devir. (Morin) Como manter-se silêncioso? Numa perspectiva dialética: silêncio e discurso são ambos um só. Apolónio de Tiana dizia que o Silêncio também é um Logos. E para quem é capaz de entender o informulado, as palavras não perturbam o silêncio. Um vazio grávido. A perda de objecto, a perda do mundo, é a condição prévia de toda a criação. A criação dá-se a partir do vazio; ex nihilo. Quando o silêncio floresce na casa, todos os problemas da nossa existência se desfazem dos berloques do valor e tornam-se emblemas heráldicos. Restituir às palavras o seu completo sentido, como nos sonhos, como em Finnegans Wake, é reduzi-los ao non-sense,é introduzir o non-sense, o nada, ou o silêncio, nas palavras; ultrapassar a antinomia entre sentido e non-sense, entre silêncio e discurso. É uma destruição da linguagem vulgar, uma vitória sobre o princípio da realidade, uma vitória do deus Dionisio; jogar com o fogo, ou loucura; ou falar em linguas; o dialecto de Deus é solecismo. Na sexualidade, não podemos ter um conhecimento simbólico, porque o sexual é o carnal. A morte e o amor são ambos carnais; daí a sus grande magia e o seu grande terror. O amor que nunca falou está aí. É o louco do rei Lear que questiona as filhas quanto o amam e a única que o ama nada diz. O tao que pode ser dito não é o tao para sempre; o nome que pode ser nomeado não é um nome durável.


Agora o final. Ou a convenção do final. FAY CE QUE VOULDRAS. Abertura para um próximo. Para um próximo que ainda é nenhum, para o que se quizer. As nossas oficinas buscam uma academia. Essa academia acolhe-nos numa entrerrecusa ou num transpretexto.


Um nada. Uma liberdade. Um simpósio quase romântico e místico. Ou meteórico, apaixonado e tedioso. Acedemos ao esquecimento. E no esquecimento à perpetuidade. A perpetuidade cristaliza-se num zero grávido. Quem conhecerá os frutos fartos desse zero?

There, where the powerhouse of all time and space call it brain or heart of creation activates every function, who is the artist who would not dwell there? In the womb of nature, at the source of creation, where the secret key of all lies guarded (Klee)



Este livro foi feito em 1983 para a disciplina de Introdução à Estética na então ESBAL, pelos autores. O texto em itálico corresponde a citações, a maioria retirada do livro Body’s Love de Norman O. Brown, já por si uma compilação de citações colhidas nos campos freudiano, antropológico e poético e agora traduzidas para esta edição. Este livro testemunha o clima teórico do nascimento do Movimento Homeostético & foi paginado com o tipo homeostético Secretariado em Maio de 2017


É fugindo que nos encontramos!

EDIÇÕES ASA D’ICARUS


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