As perguntas apaixonam?

Page 1

A S P E R GU NTAS APAIXO N A M ? PIERRE

DELALANDE

WAF BOOKS


© Pierre Delalande, 2018 © Waf Books, 2018


A S P E R GU NTAS APAIXO N A M ?

PIERRE

DELALANDE

WAF BOOKS


Meu pai era médico em Avignon. Lembro-me das suas perguntas quando chegava tarde. Tinha dúvidas e atirava pedras a muros de tijolos vermelhos de fábricas dos anos trinta. Abria fissuras onde se vislumbravam jardins com pavões. O pai anotava-me nas suas obras clandestinas. Toda a sua personalidade me acariciava oferecendo-me mais selos e caramelos. Eu tinha um irmão falso e outro suplente. Tinha também uma enciclopédia que materializava coisas. O irmão mais velho fazia sempre batota nos rumores. Infiltra-se como cor na fraternidade. O meu pai detestava jogos. Folheava albuns do tintin sujos. Lembro-me de lajes com bocados de compota sêca. A mãe fazia tartes, engomava e dava côdeas aos pombos. O pai acariciavame e traduzia do espanhol coplas. Lembro-me do cheiro a naftalina quando me oferecia selos. Tinha um outro irmão que enchia de alecrim os assados. Apanhava o alecrim no parque de estacionamento. Andar à porrada era consequência de fazer sempre batota nos jogos.


Que perguntas apaixonam?


Folhear albuns era a minha brincadeira favorita. O meu pai queria ser pai do tintin e tio do haddock. Os tempos estavam sujos de conservas. A avĂł morreu numa viagem de comboio. Tinha a mĂŁe a comer-lhe as tartes. Engomava engonhando e envergonhando. Traduzia num carro cheio de legumes. Pouco depois foi-se deixando devorar pelo inglĂŞs.


A

quem me posso entregar?


Lembro-me do cheiro a gasolina quando a mãe se apaixonou pelo irlandês com bigodes formoso. Era num restaurante de assados. Andar à porrada fora a sua virtude de professor, de mau poeta aficcionado, de repressor das minhas brincadeiras favoritas. Lembro-me que o meu pai morrera como um bêbado à porta do hospital. Fomos viver para Dublin que cheirava a acidentes de viação. Tinhamos o carro cheio de gasolina e mijo de cão. Compravam-me chocolates que sabiam a legumes. Pouco depois a mãe apaixonou-se por outro tipo sujo e enjoado.


É o eu uma tradução?


Nessa altura o meu pai já estava morto enquanto jovem médico de província. Era na Irlanda, e um bom macho tinha o queixo para cima. O novo amante da mãe sendo também professor de liceu era mau, e fazia-se passar por condutor de autocarros. Não lhe batia, mas gritava convenientemente. Mudei algumas vezes de colégio por causa do seu comportamento desleal. Os colégios mudaram-me mudando-se e chumbei duas vezes. Nesses anos fui aspirante a poeta e um pouco estouvado. Fomos viver numa rua onde os carros eram belos e coloridos. Depois ganharam ferrugem e foram vendidos ou trocados por carros escuros e feios. Habituei-me a Dublin que cheirava a cocó de pombo.


interrogaçþes causam coisas?


Perdia-me nessa lingua rápida e nas mãos de míudas mijonas. Compravam-me tartes que me deixavam atordoado. Arranjei uma pronúncia nova a fazer compras. Havia demasiadas estantes de mercearias sujas. A cor dos autocarros era igual à dos livros e os bilhetes eram baratos. Faziam-se poupanças e estufavam-se cenouras. O meu gosto mudou vezes demais. Nesses anos ainda havia carros que atropelavam carneiros na periferia. Comecei a fumar, mas desisti sem dar por isso.


És seduzido por muitos ao mesmo tempo?


Nunca bebi cerveja para evitar gostar dela. Masturbei o irmão de uma namorada chamada Ema porque ela me o pediu de repente. Foi fácil e rápido. A poesia vinha em livros belos e escuros. Habituei-me à mania do Yeats tapando os ouvidos. O nacionalismo irritava-me. Traduzi poemas de uma das namoradas que eram quase bons. Eu condensava uma lingua rápida numa lingua pretenciosa e solarenga. Joyce acabava sempre por me dar vontade de lavar os dentes. Inventei uma pronúncia pomposa para ler filosofia. Havia demasiadas estantes de livros com antologias de contos. Prefiro epigramas e baratas a qualquer antologia de contos. Faziamse piqueniques nos gardens e forravam-se armários com papel autocolante.


Os estilos vivem-nos?


Jamais me embebedei diante de poemas curtos. Gosto do Oscar Wilde com tremoços ou bagaço. Não gosto de Joyce nem sequer com torradas. A poesia de Yeats é uma mentira da decadência irlandesa. Folheava-a para me irritar, mas traduzi-lhe 3 poemas por fastio. A raiva contra Joyce acabou por passar com os dias. E eles passavam. Surpreendi o namorado da minha mãe com várias amantes. Conheci uma delas numa retrosaria. Era empinada e loura. Não gosto de raparigas louras. Fazem-me pensar em feno e plástico.


É melhor ser abreviado ou extendido?


Tenho escrito (maus) romances mas prefiro aforismos e poemas curtos. Tive amores aforísticos. Gostei de uma namorada morena aos 15 que decorava frases cínicas do Oscar Wilde e me humilhava. Havia uma sensação de que a mentira tinha ressuscitado nela. Afagava a sua carne fofa com perguiça. O meu interesse perdia-se no cheiro a perfume barato e champô. A mãe dela era muito forreta. Tinha quintas, lá mais para o sul. Coleccionava caixas de aspirinas vazias. Ela era engomada e astuta. Conheci também muitas raparigas ruivas que rapavam os pêlos púbicos incipientes. Fiz desajeitadamente amor com elas a pensar em leite com chocolate e torradas com mel. Tive uma namorada que gostava de mim porque não gostava de irlandeses. Era chinesa e descriminada. Guardei intacta no coração as recordações da tal morena de 15 anos que me humilhava.


Porque cantamos no banho?


Havia a minha razão, a elegância e uma sensação de que a carne é simplificação e coragem. Cheguei muito tarde às coisas fofas, apanágio dos insulares. O meu interesse primeiro foi pelo Egipto, tal como o de todos os herméticos nascidos para esse enfado. Foi no mais bicudo da infância. Aprendi a gostar de estar ali tempos e tempos, em graça. Eram as primeiras leituras, as que demoram e ficam, as que se mastigam nas outras leituras. Mantive a minha memória de um livro de Marguerite Divin que depois emprestei, muito mais tarde, a uma namorada que me traíu com os melhores amigos. Nunca me o devolveu. Foi assim que se desenvolveu a razão, a elegância e a simplificação. Chamava-se Contes et Légendes de L’Égypte. Era uma maneira de chegar cedo chegando muito tarde ao Egipto.


Que perguntas maravilham?


Seguiu-se, em imagens, a versão colonial e operática do Mistério da Grande Pirâmide. O Egipto foi a minha infância, com o desejo por fórmulas mágicas e papiros. Vivi ali tempos e tempos por mão e obra de E. P. Jacobs: “por Hórus, detém-te!”. Eram os tempos da graça, de Hermes, de Toth. O Livro é o Egipto e o livro Egipto é o perfeito do perfeito. Aquele era escrito por Marguerite Divin que era divina no nome. Ela adivinhava-me o futuro como ser destinado a livros. Só depois é que descobri o livro sensual e para o instante nos contos do Japão. O perfeito é uma lenda simples instalada no suplício da eternidade. Depois chega o imperfeito, o pormenor, a devastação, o não pertencer a nada, a impermanência, o sabor da pele. O Japão é um grande abandono amoroso. Culto solar como no Egipto. O Egipto é morte? Partir, partir, partir — para onde o perfeito engole o perfeito. Como vamos? De avião? Para outro aeroporto?


Somos apanhados por comparaçþes?


Há três perfeições: o Japão é o perfeito do imperfeito. O delalandismo é o perfeito do quase perfeito. O Egipto é o perfeito oculto numa camera secreta, cheio de passagens secretas e perigos. A perfeição é o pesadelo para Byars encenar a sua morte? Partir, partir, ó caminhante! Cada instante é um legado dourado a partir — para onde vamos? Aos instantes coleccionados chamamos memória. Eu coleccionei muita, mas está toda misturada e confusa. Há , repito, três perfeições: a esférica, para onde vai a nossa memória, a cúbica, que afina a intiligência, e a piramidal, que conserva a configuração dos mortos. A perfeição da morte?


Os relâmpagos dão ideias?


Delalande é “quase” um paradoxo fértil. No lalandismo os palíndromos silábicos desempenham um papel estruturador. O meu nome é um caso imperfeito disso. Modéstia honesta perante a prudência, a doçura e a intiligência prática na desmesura do mundo. Delalande é um melodismo pleno. Humildade cônscia diante da desmesura da natura. A música é sobretudo o mundo em concorrência com o mundo. Eu não concorro, aquiesço. Há que acrescentar apropriadamente a este canto bíblico um ruído muito profano.


A santidade vem da alegria?


Depressa achei o mundo feito num 8. O século XVII e o XVIII, como um polvo, iam chegar ao XIX, sem cabeça nem tentáculos. O Cabeça de courgette, o mais honrável dos meus antepassados, era feio, feliz, com meias justas e folhos no peito. Sorria para as estrelas. A sua careca reluzia na noite. Tentava digerir o infinito sem franjas. Anotava os vocalismos das constelações e as insistências dos cometas. O mundo astronómico é o sublime no telescópio. Uma lição negra que nos pergunta: como?


O leviano alivia?


Teorizou a doçura como ética mas não era doce. Achava que os astros se riem de nós. Escreveu sobre os diversos modos de nomear uma estrela. Referiu que a escrita durante muito tempo se inculcara em peles de animais que lhe foram sacrificados. Dissertou sobre a arte de fabricar papel. Alojou o seu nome numa cratera lunar. Imprimiu curtos aforismos em pequenos cartões que ele mesmo fabricava. Fez publicar uma volumosa dissertação a louvar os seus inimigos. Criava polémicas privadas de que ninguém, além dele, sabia. Achava que cada país exigia ao viajante uma estratégia diferente.


Esta autobiografia ĂŠ filosofia?


Construíu passagens labirínticas para iníciados. Divulgou fábulas sobre zonas de África desconhecidas dos Europeus que lhe transmitiram alguns negociantes turcos. Considerava os números dinâmicos, sujeitos a fluxos e refluxos. Foi autor da Enciclopédica Pitagórica. Achava que viajar por mar era inovar em terra. Comia aranhas para escandalizar a sociedade e gozar com os supersticiosos. Foi autor de mais de 250 artigos sobre a pintura e a arte de navegar. Nunca casou, mas foi pródigo em amantes, quase todas velhas. Diz-se, mas não há provas, que teve um filho. Não gostava dos poemas de Voltaire. Preferia a brevidade com caracter matemático. Nos seus tratados evitava usar verbos. Protegeu e apoiou financeiramente algumas mulheres livres. É-lhe atribuído incorrectamente o dito de que “as mulheres são a desigualdade nos homens”.


Somos pessoas diferentes a cada tempo?


Outros dizem que escreveu a Arte Razoável de Criar e Desmistificar Mitos. Ou que cuspiu no busto de Rousseau. Consta que deu à estampa o opúsculo Hipótese Calosa sobre Lesmas e Aranhas. É o continuador de uma novela, no estilo de Cyrano Bérgerac, chamada a Estrela Tenebrosa, uma espécie de ficção ciêntifica galante. Prefaciou a tradução francesa da Arte de Prudência, de Grácian, e traduziu do latim a totalidade dos epigramas de Marcial. Toda a autobiografia é risco, é sacrifício. Dizia que valia a pena viver nem que seja para para desfrutar da literatura, da música e das artes.



A memória dos antigos é escorreita. És Teseu ou Astérion? És reaccionário mas refinado. Ou brutalmente revolucionário? O incómodo de ser contemporâneo leva a que lhe vistas a pele. Desaprender e ser culto também é artifícial. Teatralidade? O que é ser novo de novo num tempo muito velho? Vergonha oficinal? O que é que não é teatro em sociedade? Toda a autobiografia é pictórica. Ou fotográfica. Entrego-me a monólogos em barulheiras de adufe. O bife tenta encavalitar-se na memória dos antigos, escorreita, e foge-me do prato. O bife dá-se ao incómodo de cavalgar o ovo (mudando de posição).



O museu refugiou-se no livro, debaixo da almofada. Há que respigá-lo num Museu de Respigos. O bife tenta cavalgar as minhas co-autorias. O espelho, ao lado, incita ao empinamento do nariz. Gamam-nos sempre, sobretudo quando estamos prevenidos. As minhas teorias são uma iniciativa frique a alourar na frigideira. O artista colecciona ângustias alheias que se tornam suas autoras. Invento escritores para os baralhar, mas são eles que são meus autores e me baralham. O meu ego é o meta-narrativo a fazer-se narrativo. Depois coloco salsa picadinha sobre tudo.



Quis garantir que o espelho incitava à cegueira. Roubam-nos o presente desviando-nos da posteridade. De seguida embalam-na e enviam-na a um destino obscuro. Somos co-autores de teorias, estreitas, a que temos de nos habituar como a uma roupa apertada que encolheu na máquina de lavar. Caminhamos com uma bengala edipiana (mamuda) que nos sirvirá de apoio na posteridade. A fuga ao museu continua a ser uma iniciativa de dar cabeçadas. Estive muitas vezes à beira de ficar com a cabeça esmagada.



Tenho coleccionado escritores para oferecer a não-artistas. Vou ao lado de mim só para me baralhar. Garanto o presente desviando-me das antevisões. Trabalho para aguentar em vida o paraíso desconcertante da posteridade. Uma teoria como um jardim que é um museu é o meu quotidiano. Ando com uma bengala para distribuir bengaladas a visitantes de museus. Prefiro ciceronear livros a exposições. Costumo marrar em conceitos. Tenho uma biblioteca de livros interditos a escritores e outra de livros interditos a não-escritores. Concebo a política como uma extensão da curadoria. Vou à frente de teorias de artistas montado num burro.





O co-abuso curatorial torna as àguas demasiado claras e explícitas. Sou director de um museu para nos beijarmos. Beija-me, meu amor, no tal jardim que é museu. Livra-te da amargura para saborear nos beijos o sabor dos outros. As balelas curatoriais fazem-me fazer-me à estrada. Pratico cadernos com cadernos com cadernos e outras coisas mais. Vejo a política como extensão de teorias do deslumbramento ou como acidente à vista. As minhas preferências artísticas vão para redes clandestinas de divulgação. Fiz uma homenagem para venerar o deus do lógica meditando. A brasa busca-nos no fundo do buda.




Este Livro é dedicado à Rita Taborda Duarte & foi inventado no mês de Março de 2018 e paginado em caracteres Secretário por Pierre Delalande



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.