O ARTISTA META-CURADOR
The new art is the design of meta-curatorship {John Rindpest}
O meta-curador é o artista que faz arte sobre a curadoria e sobre as questões curatoriais (como os Sara e André). É uma meta-arte em segundo grau. Cria fluxos curatoriais como possibilidade de expandir conceitos, operações, modos de expor, formas de interacção com públicos, etc.
Para o artista, o pensamento é arte, assim como as narrativas de legi timação, as variações sobre filosofias, as reflexões sobre arte e todos os dispositivos de escrita existentes em arte. Esta é uma vantagem sobre o curador que tem de marcar uma linha entre ser curador e artista (não quer assumir o papel deste). É certo que a contextua lização, por exemplo, de “coisas” num museu, pode transformá-las imediaramente em arte. Nestes casos, o curador é um artista que finge que não é artista, porque em termos práticos a “instalação” é já “arte” (austellung ist kunst) à luz da “ideia” de arte actual (não o seria séculos atrás). Assim, a condição do curador, quer o queira quer não, não é nada mais que a dissimulação da sua prática de artista sobre outra designação, distinguindo-se claramente do crítico e do histo riador de arte. O primeiro produz discursos (por vezes poéticos) de
aferição, contextualização, ekphrasis, problematização, assim como juízos que funcionam como afectos (positivos ou negativos) e que recaem na percepção das obras. A tarefa do historiador é integrar o criticismo em diacronias, genealogias e visões da história, seja nas pequenas ou nas grandes narrativas. O criticismo visa sobretudo produzir efeitos. A história tem em conta os efeitos o seu critério dominante centra-se na produção de memórias/esquecimentos. O artista é, desde sempre, um produtor de criticismo e história de arte (veja-se, por exemplo o Da Pintura Antiga de Francisco de Holanda), e no Renascimento as suas funções curatoriais eram claras, seja em eventos efémeros, seja na criação e instalação de espaços (muitas vezes compreendendo a criação de arquitectura específica). É certo que, frequentemente, a encomenda era dada como um programa a cumprir (o humanista como curador).
O artista, se quer ser autónomo, tem que saber fazer uma série de coisas — criar obras, montá-las, divulgá-las (em media que lhe interessem jornais, televisão, redes sociais, mails, convites), registá-las (fotografia, vídeo, redes sociais), criar um discurso seu (aliciante) em textos e entrevistas.
Agrada-me a ideia do “curador” como um autor de teatro alguém que dá instruções para a teatralidade que é a montagem de exposições as peças sem texto de Beckett como curadorias, por exemplo.
Um Museu não é nada mais que um palco uma montagem de exposição é sempre uma cenografia.
O artista como detonador de projectos curatoriais — a catártica post-curadoria.
Como nos evadimos dos mapas? Criando espaços ficcionais.
Estamos interessados em Museus Ambulatórios como o AMAT (Ambulatory Museum of Art Theory). Há que criar colecções de Museus (meta)ficcionais e de histórias de arte ficcionais (que mis turam a verdadeira com a falsa, artistas existentes com inexistentes, que contenham as histórias meta-ficcionais).
A actividade crítica deve ser devolvida aos que sabem escrever (poe tas, romancistas, pensadores, artistas-escritores) e enxotar mercená rios que não saibam sequer usar os clichês da história de arte.
O estado do meu corpo, enquanto campo poético-performativointer-media é a outra revolução.
A arte, mais do que em espaços, deve centrar-se na reprodução do irreprodutível, do que são, ou podem ser, eventos expositivos.
Todo o poder aos criadores eu aceito o curador como um com pagnon de route criativo, uma espécie de artista com dificuldade em produzir objectos a partir do “nada”, um auxiliar, um adviser, um facilitador, um entusiasta.
A legitimidade como coisa que se “reproduz” toda a legitimidade é reprodução.
Com a opacidade das formas de legitimação e o obscurecimento do criticismo, o mundo da arte é hoje um mercado negro, uma zona obscura de transacções e especulações.
A meta-curadoria como exercitação poética, como ruído quanto aos aspectos pragmáticos, como materialização do pensamento sobre a curadoria em obras de arte.
A materialização do desmaterializar-se é a documentação como arte.
Precisamos de menos prudências curatoriais, de curadores-heteró nimos de curadores que põem em causa a sua função “autoral” entreautores trans-a-tópicos.
Ser autor é imaginar-se autor, é ficcionalizar-se enquanto perso nalidade autoral isto aplica-se quer a artistas, quer a curadores. Que tipo de curador sou? Como construo a minha autoria? Os meus “actos curatoriais” são a minha personalidade? Usar artistas ou obras de artistas é canibalizá-los? Usar os artistas como ficções que o curador cria em parte? O artista cria-se como personalidade reprodutível, e o curador molda e recria essa personalidade para reproduzir melhor? Há assim um artista “mais tosco”, desafinado, descontextualizado, pré-curatorial?
O art world vive a narrativa do seu sucesso e espelha/espalha o cinis mo, quer do mercado, quer das pseudo-resistências ao mercado a arte que diz ser contra o mercado (e a ferocidade do capitalismo) não é uma verdadeira guerrilha é a impotência de pequenas en
cenações com retórica revolucionária e comédias para entreter a má consciência das elites do capital.
O lado domesticado da arte anti-sistema. O lado frustrado dos seus efeitos. E, no entanto, há um anarquismo subjacente em toda a criação. Quando a curadoria se faz num tom revolucionário o cinismo é gritante. As Documentas, e em especial as últimas, têm sido o es pelho experimental e espetacular da impotência e do desespero o último grito de legitimação e de pseudo-protesto. É um pouco como ir ver os bichos ao jardim zoológico.
Beuys ainda ocupava instituições e criava partidos políticos. As crí ticas às imposturas de Beuys fazem sentido, mas passam ao lado da sua eficácia como artista. Porém, comparado com os outros artistas, em especial os americanos, Beuys andou a fazer a revolução possí vel, falhada, qual palhaço-xamã. Os teóricos americanos marxistas podem denegri-lo no alto das suas cátedras, mas são incomparavelmente mais conformistas.
John Cage (no seu póstumo Rolywholyover A Circus), Duchamp (como “montador” da exposição surrealista), Beuys (como ocupador do Museu), Godard (no Pompidou) são meta-curadores. A expo sição ideal, como a de Cage, em que tudo está a mudar de sítio de acordo com as manipulações do acaso, pode-se juntar ao estaleiro de ideias, ao atelier perpétuo, à ocupação política, à “escola” da revolu ção. O artista pode fazer a sua revolução secreta, as suas curadorias íntimas, as suas revoluções em si, longe da balbúrdia ele pode ser o revolucionário contra si mesmo.
As instituições pagam a curadores para que as provoquem — esta é a excitante história da curadoria: “a sacralização da transgressão”, não muito diferente do carnavalesco como “sagrado da transgres são”. O que acontece não é profanação, é simulacro de profanação. A um certo nível tudo é sagrado, tudo é “arte”, com a sua aura. É sa grado degradado. É um mundo em que tudo é sagrado e irrelevante. É esse caracter sagradamente degradado que é aliciante e cómico.
O lado ensaístico de uma boa curadoria também pode ser contísti co: “Assim escrever contos cujo único enredo seja a exposição de um sistema filosófico, cuidadosamente pensado… E seriam contos certos livros de filosofia. Assim a Estranha Morte do Professor Antena, conto inédito de Mário de Sá-Carneiro, e a Nova Poesia Portuguesa sociologicamente considerada, conto de Fernando Pessoa…”, escreve o mesmo Pessoa. Em Borges, também os contos usam o modelo ensaístico e vice-versa. O Zaratrusta, de Nietszche, é claramente um romance (com o seu quê de Salammbô), como também são ro manescos Hume e Schopenhauer (Os Parerga e Paralipomena são uma bela antologia de contos). Os textos curatoriais melhoram na medida em que constroem bem as personagens participantes, ou que argumentam como se os pressupostos curatoriais fossem cria turas. Há curadores que escrevem sobre exposições como se fossem poemas (é o caso de algum Ernesto de Sousa).
O texto do meu alter-ego curatorial, João Gafeira, em O Riso dos Outros, delineia uma teoria dos personagens sobre os quais fala. É um texto meta-curatorial sobre o que são personagens e ficção, um texto mistificador e des-mistificador em simultâneo, um ensaio que deriva para o conto. A exposição tem dois catálogos: um, objecto,
com um bom lote de imagens prévias à exposição, e que deram origem a objectos concretos; e outro, gital, catálogo que é feito com fotos documentais, fragmentos e reflexões que foram ocor rendo durante a exposição. A exposição articula-se com a biblio teca dos inúmeros livros das “personagens” presentes no issuu. O livro paralelo de Pedro Eiras é meta-curatorial e é um ensaio-novela sobre o autor das obras, das personagens e o próprio curador, inscre vendo-se como problematização do sentido nas obras (assim como o seu ensaio inédito sobre as Cartas de Sandralexandra). É curioso o carácter libro giallo da introdução de João Gafeira (estamos numa demanda pirandéllica): “O Mundo é uma suspeita que faz suspeitar dele e de nós. Como forma policial que se revela, exige perso nagens, figuras, mesmo quando desconhecemos o crime e o local”. Considero o melhor conto policial de Pessoa a sua derradeira carta sobre os heterónimos. Trata-se de pura ficção ensaística. Cada vez mais me inscrevo, assim como ao Manuel Vieira, Pedro Portugal e Fernando Brito, nesta linha de comédia policial que é uma autometa-curadoria que irradia sobre o “sistema” (a que poderíamos jun tar Marcel Broodthaers ou Manganelli, ou Roberto Bolaño, como veneráveis heróis).
A O utrA HistóriA dA Arte COnCeptuAl s egundO O reCOnHeCidO
ArtistA COnCeptuAl
1917 (data provavelmente falsa) Expõe 3 garrafas de champanhe dentro de um balde no fundo de um poço com o título Mother.
1955 Secret Abstractions in the Dark Cobre 100 reproduções de obras de arte de diferentes tons de preto em estilo new york school lyrical abstraction.
1956 Sixteen almost white squares telas quadradas de 2 x 2 metros com 16 quadrados brancos.
1957 exposição de cópias caligráficas de textos de Julio Verne e de Raymond Roussel dentro de baús do século XIX.
1958 — Publica a Introdução a uma Estética Transfinita [arte iletrista]
1962 Atravessa num balão vermelho a cordilheira dos Andes e chama a essa obra Variations in Red. Meses depois, caminha e dança sobre brasas num quadrado de 3 x 3 metros numa galeria de arte em Antuérpia, e vai parar ao hospital chamuscado.
1963 Emoldura com moldura dourada barroca a porta de entrada de uma galeria. Lá dentro emoldura janelas e portas.
1964 — Cria um evento em que um quarteto de cordas tenta destruír um piano com muita frustração. O evento chama-se Frustration Four One.
1964 Anda com uma cadeira de baloiço pela cidade e senta-se de vez em quando a ler obras de Walt Whitman. Alguém o fotografa.
1965 Expõe várias cópias de um livro sobre os seus não-eus chamado pas moi, plus jamais. Declara na contracapa que se tenta reproduzir como autor rodeado de órbitas que são não-eus dos quais se tem tentado em vão desem baraçar.
1965 Data as suas obras com menos um século. Começa a datar mais obras de arte com ainda datas mais antigas.
1962 Envia 81 postais onde escreve “nunca confies a alguém que és uma obra de arte dele és apenas a minha tua obra de arte”.
1963 Recolhe num frasco suor de 99 artistas com o rótulo O Verdadeiro Corpo da Arte.
1964 Expõe, sem que ninguém saiba, em 6 galerias com identidades dife rentes ao mesmo tempo. As exposições inauguraram à mesma hora. O artista não esteve presente em nenhuma.
1965 Exposição, Cinco ou seis átomos que vão mudar o mundo.
1965 Faz uma exposição chamada Génio, a Tradição Anti-Pop, onde aparece fotografado com auréola, apresenta a sua hagiografia e sumários de evangelhos artísticos. Declara que o artista é um santo e uma criatura de excepção.
1966 Antologia de Paralogias Exposição de paralogias. O conceito como seu negativo, a obra como equívoco quanto ao que enuncia.
1967 Modos de evadir-se do Mundo da Arte exposição com mapas, kits, cartões de agências de viagem e livros de antropologia.
1967 Convoca uma Manifestação contra os Caminhos que a Arte está a Tomar. Pede a alguns críticos importantes que subscrevam a convocatória. A exposição tem pouca gente, cartazes de protesto humorísticos e boa tipografia.
1967— More Dictionaries than you can bare expõe um grande número de dicionários abertos nas entradas Love e Hate.
1968 Exposição de textos de artistas convidados numa cave sem nenhuma luz (Theory in the Dark).
1968 Poemas que Combinam Conceitos Perpétuos (Poems that Combine Perpe tual Concepts) — livro de poemas publicado na Great Bear.
1968 Utiliza a noção cageana de non-intencionality no sentido de desvio “Eu nunca tive intenções claras. Tudo o que se possa dizer sobre o que fiz ou vou fazer é o que não é. A minha actividade como artista é a de desviar inten ções dando um pouco de atenção.”
1969 Publica o artigo Art after Sex & Patalinguistics.
1970 Expõe as horas e durações da actividade sexual de algumas pessoas (“Eu fui para a cama às 10.37 de 18 de Julho de 1967 com a Blenda. Acabei de fazer amor às 12.42h)
1970 Adapta trechos barrocos de ópera a textos de arte contemporânea (frases de Picasso e Ad Reinhardt) para 3 cantores, cravo e viola da gamba a que chama Rake’s Report.
1971-1985 Dedica-se à meditação zen e ao dikhr sufi ao mesmo tempo, suspendendo a actividade artística durante 14 anos.
1986 Transforma o Turner Prize numa marca de Pizza (The Turner Prize Pi zza). As embalagens oferecem um suposto cheque-brinde de milhões de libras.
1989 Expõe na trienal de Biarritz (que ele mesmo inventa) 100 Political Art Slogans for a New Era of Disaster.
1991 Faz publicar em revistas pornográficas anúncios de curadores que su postamente se prostituem.
1993 Cria o Festival de Rituais Antropológicos na Green Gallery. Convida vários povos a realizar aí seus rituais.
1994 Organiza um grupo de artistas feministas que se especializa em seguir ostensivamente (e fotografar), sem lhes fazer nada, responsáveis machistas por instituições artísticas.
1995 Cria o pseudónimo machista Tom Fuck que se especializa em ser um apropriacionista de obras feministas. Faz um desfile de moda com homens barbudos com lingerie e saltos altos, uma paródia de Vanessa Beecroft.
1996 Abandona definitivamente a arte para se dedicar a ensaios filosóficos um pouco na linha de John Austin e John Searle, em tiras de banda desenha da.