Museu ad hoc

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UM MU S E U A D H O C

Pierre Delalande


© Inês Pereira, Contemporary Art, Lisboa © Pierre Delalande

© Bernardete Bettencourt


UM MUS E U A D H O C

uma exposição de

Pierre Delalande INÊS PEREIRA CONTEMPORARY ART



The sooner they are burnt up The better for the roles we have to play

John Ashbery




Há sempre umas últimas pinturas que não são últimas. No caso de P.D. as relações entre pintura e livro são permanentes. As pinturas remetem para universos excessivamente intítulados e (sobre)subtítulados, um pouco como nas obras de Kitaj ou de Batarda, em que a ficção, ou a “pseudo-ficção” (e aqui tratar-se-ia de uma categoria em que o “pseudos” (no sentido grego) é mais e menos “pseudos” ao mesmo tempo) novelizando as obras de arte, assim como os discursos teóricos destas.



Títulos, subtítulos, aspas, notas de rodapé, “sotto voce”, onamatopeias, comentários, e acima de tudo um certo tagarelismo desconversante, são coisas que Delalande continua, ao mesmo tempo que se atrave e dissimula num discurso sério a fingir que não é sério.



Mas ele está ali, não só na imagem (e aqui as citações parecem ser bem concretas, como adiante explicitaremos), mas em todo este programa de “desprogramação”.



Esta série é uma reflexão sobre museologia, ou de como a museologia pre-existe na obra, e deve o seu título a uma das últimas obras de Álvaro Lapa — “Museu Ad Hoc”, uma espécie de testamento desse artista, e uma forma pessoal de encenar numa pintura os momentos da sua obra, juntando uma série de imagens icónicas suas (ah, o tal “mise en abime”).



Mas as referências mais explícitas a Lapa vão para a série de 1974 “Que horas são que horas”, um conjunto de referências “presidiárias” e ao mesmo tempo aludindo (e vivendo?) uma liberdade literária.



Essas obras consistem em composições com uma faixa central contendo palavras e, em muitas delas, uma grelha, como se fosse uma janela (“de prisão”) que dá para um fora (o “passear”?).



São pinturas que disparam para a problematização da arte e da libertação como uma espécie de montagem de textos que parecem falas, pois estão soltos.



Remetem para uma encenação teórica que os aproxima de muita arte conceptual (mas descartando o pretenciosismo ou didactismo desta) ao mesmo tempo que mantém um fundo pulsional e existêncial que está presente quer no texto quer no “estilo” algo “expressionista abstracto” (sobretudo de Motherwell) em que Lapa voluntáriamente se filia.



A associação do caracter presidário de Lapa ao Museu Ad Hoc juntamente com a prisão e o passar do tempo leva a uma tomada de consciência do aspecto presidiário do museu, em que a vigilância, tal como na prisão é constante.



Lapa, num texto sobre a Vanguarda, do final dos anos 70, afirma que a Vanguarda é um Conceito de Museu. Vale a pena citar os dois últimos parágrafos…



Parecia-nos, serenamente, que o sobressalto da proposta era fingir. Que de todo em todo a vanguarda que se apregoa Ê falsa, para o presente e para o passado, mesmo que alguma erudição se metesse a provar fosse o que fosse.



Porque, e vinha-nos à evidência do monólogo, qualquer conceito de vanguarda é resolutamente parasitário, e cada vez mais quanto mais a carne do que vivo apodrece, por assim dizer.



Pois se a vanguarda exprime por intenção do seu termo o que é tão vivamente interveniente que mal chega a reter-se, explosão da autenticidade do reprimido (como propõem, parece, os seus autores) e desafio à autoridade das classificações ambientes tanto quanto a eficácia dos vanguardistas vá permitindo identificáIas e surpreendê-las, então uma vanguarda que se comunique classificando-se à partida (“atenção à secção de vanguarda!” ou “deixem passar a vanguarda! Auxiliem-na!”) ou é vigarista (= falsa, consciente de falsificação) ou é trouxa (= mal informada).



A veemência do concluído alertava-nos porém: a indignação é uma perigosa droga. E assim, já mesmo à beira do sono, equilibrávamos a paciência. É que “A Vanguarda é mesmo um conceito de Museu».



Nas Pinturas de Delalande surgem grelhas, como em Lapa. As grelhas são quer uma “representação” do tempo, quer janelas (vistas).



Aqui é chamado à baila Barnett Newman com os seus zips, as suas linhas verticais, que são o “Now”, a percepção do instante e do espaço como sublime.



Mas em Delalande e Lapa os zips chegam horizontalizados na composição.



O sublime não é apenas o presente mas um continuo, tal como na contagem do tempo presidiário. Não há diferença entre o tempo presidiário e o tempo da libertação, entre o “Samsara e o Moksha”, parecem dizer Lapa e Delalande.



Aliás, não há outro tempo. A falsificação da excepção é a não-espontaneidade (embora a nãoespontaneidade seja ela mesma espontanea).



Os quadros de Delalande têm ditos que oscilam entre o statement e a conversa. No primeiro quadro desta série diz-se: “a autobiografia que o artista enxerta para o museu ad hoc vem apinhada de heterografias badalhocas”.



Também surgem serigrafadas várias a imagem do “artista” enquanto outro Pierre Delalande (um heterónimo que é um seu homónimo), um autor de aforismos e cuja principal característica é o facto de se remisturar com outros autores.



Esse eu de Delalande, cujo estilo é seco, aticista, e inspirado inicialmente em Ian Hamilton Finlay e James Lee Byars (ou nos aforismos provocadores de Picabia) acaba por se ir misturando com outros autores como Gertrude Stein ou John Cage num texto chamado “How I have remixed myself with Cage”.



A imagem por baixo ĂŠ uma espĂŠcie de bricolage de grelhas, de tempos, de museologismos.



No fundo o artista fala do modo como integra o museu no seu corpo, na sua biografia, na sua obra, e vice-versa; e de como as criações biograficas produzem narrativas que se introduzem nos processos de museologização, sendo elas ficções de biografos competentes (historiadores, críticos, etc.) ou do artista ele-mesmo, criando pelas suas mãos esse acto de “legitimação” que é a auto-biografia.



Ora neste caso as autobiografias “vêm enxertadas de heterobiografias badalhocas” (um dos livros de Delalande chama-se Heterobiografias). Por outro lado o auto-museu de Lapa, que era um museu ad hoc para si mesmo, é adoptada por Delalande (o verdadeiro) como critério em expansão de um processo operático.



Noutras pinturas Delalande parece mesmo sugerir que todo o Museu é Ad Hoc, isto é, todo o museu, que parece ser encenado para a eternidade, é uma improvisação, uma adaptação.



Os critérios dos museus são critérios que vão surgindo como que “ao calhas”, dependendo de intuições, conjunturas, interesses, “políticas”. Um auto-museu, como tal, só pode seguir esses critérios, e aqui ele emerge como uma deliberação livre, provocadora e como uma farsa que se autodesmascara.



Assim Ê afirmada ao mesmo tempo a importância e a irrelevância do Museu.

Bernardete Bettencourt, Julho 2017



INÊS PEREIRA CONTEMPORARY ART


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