NOTAS DO SENHOR OTTO

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© Waf Books, 2018 © Otto Von Steinbach, 1987

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NOTAS DO SENHOR OTTO ou melhor dito: KARL OTTO STEINBACH tradução e edição

PIERRE DELALANDE

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PREFÁCIO

Estas minhas investigações são-nas nocturnas. Fazem parte de uma polémica pessoal com um conhecido filósofo, são o meu protesto contra todo o desejo de simplificação, de levar a claridade onde ela nunca quis existir. Há na linguagem um desejo de recusa do mundo. Esse desejo é negro e absurdo, como as religiões ou o Universo. É através dele que sofremos e alimentamos todas as contradições, mas é também através dos erros e indistinções que origina que acedemos aos mais delicados sentimentos...

A minha falta de vocação para ser claro permite-me enamorar da linguagem como algo mais híbrido e conso5


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lável (casos eróticos de ocasião!). A filosofia é um vício negro que busca uma sensualidade num certo ambiente enevoado e denso que torna as palavras mais íntimas, palpáveis, mas de sentidos mais incertos. É essa incerteza que nos faz muitas vezes afastar olhos das coisas comuns. Tornamo-nos elitistas no olhar e desajeitados na relação funcional (eu diria ironicamente: comercial) com o que as pessoas chamam a mundaneidade. Mas também descemos ao mais baixo, nessa atracção antiga do aristocrata inconformado com a sua marginalidade a tentar salvar-se através de uma “degradante” descida ao lumpem (e Marx é um desses casos, tal como Gombrowicz ou Maozedong). Mas não nos ficamos aí – o que parece ser sombrio também é salutar, e há uma prole filha disto tudo, que parece sentir algo arejado e irrequieto que sabe entrar e sair das noites.

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S H A D OW S A N D M E A N I N G S

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1 — Há aqui uma invocação da Sombra que é cosmológica. A Sombra é a mãe da beleza, do sono, da morte e do amor. É o único elemento que é perpétuo e ao qual jamais poderemos escapar. É da Sombra, da vasta e opaca negrura que domina o “universo” (energia escura e matéria negra), que vegetam, como uma dispersa teia de luzes que sobra e “imensas”sombras, os astros, os cometas, e os astros mortos a que chamamos planetas. É nesta espécie de poeira cósmica, neste excesso (canibal) de luz extinta, neste reencaminhamento para a cortina nocturna, que co-habitamos. Nietzsche diria que somos a excepção – a obscuridade que guerrilha contra a mais negra morte. A condição de vida é menos a de uma normalidade e mais a de uma resistência quase mani-

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queísta, à omnipresença das trevas. Pode-se pedir mais luz... para que as sombras sejam mais nítidas.

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2 — O sentido da sombra é a sombra do sentido (“the meaning of shadow is the shadow of meaning”). As sombras do sentido desenrolam-se com os insonsos rolos de caligrafia chinesa. A sombra do sentido é como uma excepção glamourosa – oferece a sua espuma tilitante de demência da linguagem a uma vida que parece dispensála. É da combinatória linguística que nascem novas matizes psicológicas, como uma virose que se propaga no como os homens se constroem a si mesmos. Os personagens de Shakespeare, de Kaf ka ou de Dostoievsky, resultados de uma exploração ambígua e voraz da linguagem, abrem-se à replicação vivencial dos seus leitores, ou mesmo daqueles que não os leram, mas que espelham e absorvem nas entranhas o clima viral dos que já os leram.Z 11


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3 — Explorar proposições carentes de sentido, isto é, proposições das quais não se poderá dizer se são verdadeiras ou falsas, é o método que nos leva a uma zona onde a linguagem deixa de invocar

direitos sobre qual-

quer coisa e onde esta se abre levantando uma cortina sobre universos obscuros. São as coisas que estão sedentas da linguagem e dos equívocos habituais que a linguagem, bem comportada ou mal comportada, provoca. A ambiguidade latente na linguagem, e de que se queixam a maioria dos Filósofos, de Aristóteles a Wittegenstein, não é resolvida com uma limpeza “ética” da linguagem. Não é o bom trabalho de dona de casa, de pôr a linguagem arrumadinha e a designar de uma forma únivoca “coisas” ou “factos” que evita o mal-estar interpretativo, e a falta de consensos hermenêuticos. O mal-entendido, o 12


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desvio do sentido eventualmente pretendido, que torna qualquer interpretação susceptível de polémica, faz parte desse excesso sombrio, e dessa vontade de extravasar qualquer pura designação ou proposição numa certa indeterminação. Neste sentido a linguagem forte abre-se para uma espécie de condomínio de luxo guerrilheiro onde velhos sentidos parecem ser abatidos sem clemência por esse excesso que não foi pretendido. Brincadeiras de linguagens que compreendem a demência nos fundamentos das suas regras. Percebemos que a possibilidade de pensar depende de um estado de conflito presente nas agonizantes geometrias que latejam na formação dos “logoi”, como uma comichão selvática e “áspera e forte”.

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4 — Compreender coisas é sair, ou passar ao lado, dos cercos do sentido. Compreender provoca o desaparecimento da realidade como algo estruturável, e ficamos com a sensação de quem arrebanha um tacho e saboreia os restos com fome levando o dedo com pedaços de comida à boca. Podemos manter a linguagem como herança ou veículo, mas não podemos confiar nela. Ou então entendemo-la como espelho, com a distância crítica (misericordiosa?) que paira sobre qualquer espelho. É impossível desembaraçarmo-nos do pseudos da linguagem, dessa coisa que mancha qualquer hipótese de autenticidade, e que faz jorrar emoções e gerar equívocos nas decisões judiciais. É na pretensão de que este pseudos não existe que formam os diversos prestigíos. E é por esse mesmo motivo que o prestígio é algo “maligno”. 14


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5 — Há fraudes orgânicas sempre que desejamos provar alguma coisa. Em todas as demonstrações o âmago é fraudulento. Só existiria honestidade onde esta fosse involuntária. Temos a tentação de um nominalismo radical, de devolver às coisas o seu carácter único, a sua singularidade fortuita, como o parecem fazer os budistas – mas as coisas estão demasiado ligadas a outras coisas através de redes visíveis e invisíveis, sejam estas simples ou deveras complicadas. O querer distanciar, na linguagem, as coisas dos conceitos, separando o que temos em mão do pretenso bluff, destrói os nexos que o bluff abre – a inclinação para outra coisa, para além da metamorfose evidente a que tudo está sempre condenado, é algo que se constitui, não só de pura natureza, mas na co-autoria das consciências que formam esses nexos com a criticável 15


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ciência projectiva e que valoriza a excepção, e a sua erupção, contra as previsíveis normalidades. É o carácter miraculoso de certos homens e sobretudo de certas obras de arte, que interferem, ainda que de um modo extremamente modesto, como o melhor que a “physis” tem para oferecer, para além de todo o fazer em que desperdiça.

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6 — Se é custoso, senão mesmo impossível, encontrar plausibilidade ou verdade, mesmo aparente, então só podemos lidar com palavras ou frases nas quais podemos confiar ou desconfiar mais ou menos, como alguém de quem somos amigos e se oferece numa conversa em que nem tudo é diálogo e proveito mas custoso discernimento ou nebuloso reconhecimento. Ao procurarmos formar expressões generalistas, como o fazemos aqui, sabemos da sua precariedade, mas também da sua eficácia. Estamos conscientes de que certas intuições teóricas que se expressão como um tímido balbuciamento têm por vezes um poder de acção extraordinário, chegando a introduzirse no domínio das opiniões mais corriqueiras de vários grupos. Muitas vezes, nessa expansão replicante, é o im-

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pensado que se papagueia na fรณrmula, no mote, na economia de uma propaganda voluntรกria ou involuntรกria.

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7 — Também podemos encontrar beleza no que se denomina “Verdade”, tal como o fez Platão, mas somente se a considerarmos do ponto de vista de uma maravilhosa farsa (ou sensível adequação) na qual ela tem direito a jogar o seu papel de prometedor bom-senso. A prudência pode acenar, como o fazem no mundo científico, com a ideia de uma certa plausibilidade, ou mesmo, de uma extraordinária dificuldade em forjar refutações. Ou então falamos, como os pitagóricos, e os que ao longo do tempo foram pitagorizando, de uma certa economia geométrica – a atração dourada pelas formas ditas perfeitas, começando pelas mais canónicas, até às proporções arrancadas a ferros.

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8 — Ter sentimentos “estéticos” é gozar o que não quer acontecer. É o acesso ao Inacontecimento. É aceitar algo que é mais forte que o sentido (a sombra do sentido). A sombra do sentido é essa vibração que continua como um duplo sem sono e se arrasta espectralmente como uma criatura sem socego. As sombras dos sentidos procuram cortinados e rastejam nas carpetes – há algo ameaçador nelas, como as negras Keres de Hesíodo e dos trágicos. Mas as sombras do sentido também são Euménides, benevolentes, e por vezes muito suaves. O lado epidérmico acaba por vir à superfície e desembaraçar-se da suspeita espectral.

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9 — O uso prostitui o sentido e fecunda-o. É certo que o sentido é sempre sexuado. Mas o uso torna-o mais disponível e “barato”, porque copula com toda a gente. As expressões em uso corrente, e que tornam a sociedade sólida, ou estão a ponto de a desfazer, são pela sua “vulgaridade”, obscenas. Sobretudo as mais “mediáticas”, as da burocracia jornalística que não passam de eufemismos da linguagem dos chulos. Mas o sentido que se recusa ao uso morre para si mesmo, como arcaica castidade. Poder ser devotamente rememorado por especialistas, mas não está prenhe de sentidos vindouros. O sentido gera assim filhos bastardos e clandestinos – os melhores, os mais cruéis, os mais ávidos.

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10 — Quando uso qualquer palavra ou frase torno-a algo intima, através da cópula que estabeleço com ela, outro vulgarizo-a

por

e abastardo-a entregando-a “abusada”

às massas. Um certo sentido de propaganda “negra” faz destiná-la como algo vertiginoso. Os futuristas perceberam que não é o “conteúdo” que excita nas vanguardas, mas que é o próprio “ruído” comunicacional que as torna tão promissoras. Neste domínio quer o ritmo, quer uma certa exuberância tipográfica (de preferência suja!) servem a causa, ou servem-se (à mesa) como causa. Esta desconteúdização aparente é um pseudo-retorno às origens que têm o condão de saber faltar, porque é esse o pressuposto vanguardista. A vanguarda nega as origens e nisso fica numa posição de vantagem provisória – mas também sabe que ela origina algo. Ignora porém os seus nexos 22


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académicos com o passado, que existem sempre, com gregos e troianos à mistura. É a própria Ilíada que apresenta o espetáculo dilacerante das vanguardas como modelo de uma hybris considerável e de um hálito ousadamente combativo. O modelo teórico das vanguardas redescobre o seu tom na “cólera de Aquiles” e na demência de Ájax. Não se trata, como alguns filósofos podem fazer crer, numa pura máquina de fabricar intolerância. É a dimensão épica e desesperada que as excita, assim como a nobreza dos caracteres. E é também uma fatalidade extrema. Ao contrário das seitas fanáticas, não há uma esperança ilimitada em nada de especifico, e muito menos num além. O triunfo a que as vanguardas parecem retrospectivamente ou antecipadamente condenadas (tanto faz!) é sempre amargo – e os saques daí resultantes convidam à nostalgia, quer do que através dela perece, quer do faminto estado de guerra. 23


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11 — Em cada acto de abastardamento do sentido há um incitamento à plurificação de sintomas. A heteronomia (cada vez mais frequente!) explica-se assim por causa de uma ansiedade erística – a guerra a si mesmo, às suas convicções, com o seu quê de masoquista, multiplica os modos de comunicação e dá assim uma possibilidade de canalizar de diversos modos os sintomas que pareciam estagnar-se numa insonsa hamartia.

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12 - Os nós filiais que a Sombra estabelece propagam o seu halo gerador. Na Sombra, nestas circunstâncias, não há agonia. Mas há dúvidas, interessantes incertezas, atracções globalizantes, fragmentações erráticas com apetites cosmogónicos. O filósofo da sombra foi sem dúvida Heraclito quando somava, como numa espécie de cozinha impossível, os aspectos antagónicos. Hegel imitou-o como um Titã imita Urano. Mas em Hegel o carácter nocturno desvanece-se nos êxtases dialéticos e na máquina chicoteante da história. Hegel não percebeu que a história é a vontade do senhor inverter o papel com o escravo e deixar-se chicotear, por momentos, por ele, para depois voltar a ser senhor e chicotear de novo o escravo. Heraclito distância-se desse frenesim sado-masoquista. Provavelmen-

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te há nele uma deslexia. As palavras estão trocadas porque o seu fundo é só um.

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13 - A expressão de um movimento de dissimulação.... (o sombrio)! A dissimulação é uma prega que introduz a interioridade, ou se preferirem, modos de ir subjectivando, como quem rumina, como quem se distância das inclemências mundanas das aparências – não é uma estratégia para negar o carácter catastrófico do aparente – o jogo que é a dissimulação permite transformar a informação catastrófica em desvios poéticos.

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14 – O sombrio é a vanguarda como inclinação para o não-ser – recusa da plenitude encenada do ser, recuo para a mortalidade (Baudelaire – o terrível sabor a fel das descargas da vesícula!) e para o fragmentário. Há certamente uma demência nessa recusa de assumir naturalmente o êxtase e a simplicidade – é na condição de heroísmo maldito, que a vanguarda se consagra como algo aparentemente auto-destrutivo – o velho ímpeto “satânico”. Mas essa condição atrai rapidamente algumas mitologias perversas e doenças venéreas.

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15 – O sombrio é também a vanguarda com manifestação ruidosa do excesso de ser, uma certa propensão para o white-noise – excesso de informação, excesso de consciência, excesso de interiorização, excesso de interpretação, excesso de sabedoria, alguma demência, e o terrível perigo destes excessos.

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16 – O sombrio é a “complicação” da vanguarda e das suas resistências ao que parece deixar para trás (mas não deixa) – a vanguarda é a adaptação à complexidade progressivamente ruidosa do mundo – é uma adaptação do corpo-consciência a uma artephysis naturalmente excessiva, mistura dóxica do ser e do que nele se nega e lhe resiste às propensões de sossego e de auto-imolação. A “nossa” vanguarda distingue-se das antigas vanguardas como uma espécie de movimento refutativo vivo e algo “feliz” de quem tem vontade de se superar e de fazer com que o mundo se adapte a este superar-se continuo. A vanguarda é o que solicita (ou atrai) o upgrade de todas as outras coisas. A vanguarda é a abertura à obsolescência vertiginosa, mas sem clemência para os espectros do “kitsch”.

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17 – Desde há muito tempo que a vanguarda se encontra com a sua sombria entropia. As ruínas da vanguarda estão aí como algo pitoresco e sinistro – porque se degradam de uma forma muito política e urbana. A degradação rápida é a vontade de participar nas correntes vertiginosas da artephysis. Em certos casos as vanguardas já nascem com esse ruidoso suplemento de ruína, como se este enriquecesse ou vitaminasse a dinâmica estrepitosa dos fluxos vanguardistas.

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18 – Podemos pensar no “moderno” como adesão ansiosa ao fluxo do presente, e na vanguarda como o aspecto temível de uma milícia negra pronta a fazer explodir ou implodir as coisas no sentido “demente” do êxtase revolucionário – no entanto a “guerra”, se de guerra podemos falar é precisamente, é no sentido de um êxtase que nos desembarace para sempre dos clichés viciantes das antigas vanguardas – a haver algo de dispensável é a a comicheira auto-destrutiva no seu estado de máxima seriedade. A vanguarda é, em última instância, a persistência do riso num corpo aberto e em fecunda interacção com o desmedido environment ( que é cada vez mais uma mistura das inclemências ditas biológicas, ecológicas ou climatéricas, e as trepidação selvagens das ondas e microndas que nos atravessam em imperceptíveis dissonâncias e em busca de um indestinado apogeu).

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O

SENTIDO

COMO

DISSIMULAÇÃO

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O sentido é a «representação de um discurso». Entramos num discurso como numa peça de teatro de que somos os intermitentes/omniscentes co-autores (com a restante plateia) e os manipuladores de inconscientes citações. As linguagens não falam por si mesmas – deixam-se tagarelar, vão-se falando – e a consciência vai-se afinando através destes borburinhos. Com muito “eu” à mistura, e a co-responsabilidade hiper-heteronímica de o(s) manter.

Como representação o “sentido” apresenta a relação entre um coro de representantes e “algo representável” como reacção à atmosfera que surge (e na qual nos banqueteamos) e uma incerta sensação de ausência eminente.

Como discurso é algo que recusa obstinadamente a representação enquanto coisa estável, obrigando-a a fluir, e alterando deste modo, quer os representantes, quer o re35


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presentável, em virtude da tensão entre os auratos aperaltados da presença e os rumores fugitivos da ausência.

O sentido como representação não coincide com a tensão entre atmosfera de presentificação e a resistência do que escapa, e como tal depende dos elementos que guerrilham, assaltam, se disfarçam, isto é, dos traços que o articulam como linguagem, dos cenários estruturantes que o sentido usa e dos sucessivos planos cenográficos que o recusam ou ignoram.

O ensaio do sentido é de uma hierarquia distinta da relação entre presenças pertinentes) e ausências (“de repentes”).

Os elementos disponíveis para se articularem como linguagem são a priori traços de uma presentificação. Mas a 36


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partir do momento em que estão disponíveis como sentido (disseminado ou compacto) ascendem a outros graus nos seus elevadores distintos que dependem da forma como as linguagens estão hierarquizadas (“gramatizadas”, “logicamente tipificadas”).

A tensão entre presença coral e ausência (grotesca?) não só mantém o sentido (sendo a sua origem e sustento) como dissimula o sentido. A dramaturgia e o festim sentem-se bem na clivagem entre o aspecto coral, harmonioso, pitagórico, empático e belo, por um lado, e por outro a vertigem espectral, báquica, caótica, grotesca, monstruosa e selvagem (no seu cariz romântico, pejorativo!). Porém o entretecer do sentir e do “sentido” só se torna claro através da dimensão cómica e furtiva do deus Hermes, no que alguns teimam em chamar hermenêutica, que é o atentar ao sentido nas suas transições, no seu 37


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arrebatado estado de roubo, na suas vontade de rir desabridamente.

Entre o sentido e a sua dissimulação persiste o fluxo ainda ambíguo da significância, isto é, um rumor relativamente à condução do sentido (dedutiva, indutiva, abdutiva). Esse rumor é a sedução? É um significante que flutua abanado por uma aragem ou um leque? É uma recusa em significar? - sob a capa de uma incursão (passeata!) a algo que nega as interpretações ou que as suspende durante algum tempo?

A dissimulação do sentido é o sentido da dissimulação. (quiasmo 1) – o sentido não se deixa entregue na boca do lobo, mas também não se impõe como um enigma a dissimulação é a prática diplomática e envolve de algo que se vai dando lentamente, para ser saboreado moro38


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samente, como quem ensaia ao piano uma interpretação refinada.

A partir do momento em que o sentido é instaurado passa logo a ser confrontado com a sua aniquilação. Porque o sentido é o que se sujeita a deixar de ser sentido. A passagem do close-up (“sentido”), a um segundo plano, e de seguida a desfocado fundo é uma trivialidade que não podíamos deixar de assinalar. O sentido, no momento em que se põe em bicos dos pés, prepara-se para ser moribundo.

Essa situação tende a reforçar o sentido como campactificação, com a constituição de defesas perante um eminente desaparecimento ou supressão. Sabemos que as neuroses são esta defesa – a betonização de um estado – o bunker ideal, como os museus ou as mesquitas. 39


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A dissimulação do sentido é frequentemente confundida com a «neantização» do sentido. Mas o nada, a vacuidade, a estranha sensação de uma combinatória extraordinária e aleatória de partículas e micro-particulas, é uma ideia demasiado sofisticada e distante da dissimulação, que é recorrenteno comportamento animal.

As consequências desta situação são: a) Uma dramatização pitoresca do sentido (barroca, desbocada, pitoresca como os anões que surgem pintados por Agostino Carracci ou Caravaggio); b) Uma confusão das posições hierárquicas da linguagem (graças à liquidação operada pela doxa na paradoxa e a paradoxa na doxa).

A dramatização do sentido tenta e não tenta suprimir o sentido como dissimulação. Cria consequentemente o es40


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pectro bifronte do sentido hipercompactificado e do sentido hiperneantizado. Aliás, este estado é fruto de montagens involuntárias – a colagem deixou de ser uma característica das vanguardas para passar a ser uma comodidade burguesa, de que o zapping ou os hiperlinks são os mais vulgares sintomas. Estamos envolvidos num mau hipertexto (a “sociedade e seus arredores tecnodigitais”). A dissimulação, idealmente, seria a passagem do hipertexto medíocre e involuntário, a uma programação (também hipertextual) “boazinha” – no sentido de uma epicultura (uma cultura da excelência!).

Os deveres do representante tradicional para com o sentido que representa (na sua evitável “coerência”)tornam o representante escravo de uma representatividade. É a literalidade técnica, sem rubatos ou diversidade expressiva.

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O excesso na representatividade destrói a actividade das bases das hierarquias e anarquiza as relações hierárquicas. Não sei se é possível falar de democracia ao nível das conexões entre signos – mas há oportunidades que estão à espera há muito tempo – esse potencial foi reivindicado pelas vanguardas – o Zaoum dos russos (“transracional”?), por exemplo, e outros sucedâneos redutores – mas continuamos a gostar de abanar (e a colaborar com) a velha sintaxe porque a sua supressão seria também a supressão de brejeiras possibilidades e de caminhos empolgantes.

Aceite-se o dom do sentido como unidades de significação a partir das quais podemos firmar laços de representação.

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Dispomos assim de :

a) Os sentidos dados (unidades, todos, ou partes que possam produzir significados e que nos chegam num burburinho feito de palimpsestos e camadas arqueológicas);

b) Formas de conectar esses sentidos “dados” a partir do uso de vários segmentos (sintaxe – mas num sentido mais vasto – modos/esquemas de organização).

c) neologismos – sentidos que se formam por adaptação de outros sentidos ou para a adequação a determinadas experiências, ou ainda como hipóteses de fusão entre termos diferentes. 43


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Os esquemas de ligação reproduzem figuras onde há diferenças e semelhanças, e posteriormente onde haverá homologias e analogias.A sintaxe segue um esquema, mas podem conectar-se coisas de uma forma não-verbal (puramente “nominal”), com setas, esquemas, pontuações, símbolos matemáticos, etc.

A intersecção, o contacto, a união (e a reunião), o nó, o encaixe, o laço, a circularidade, o confronto, a colagem, a fragmentação e o arranque, são formas de ligação e desligação.

O quiasmo, por exemplo é um bom método de dissimulação do sentido, isto é, uma eficaz forma de produção e averiguação (canina?) do sentido, uma vez que devolve a acção de um termo sobre o outro como ricochete. 44


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O sentido vem de um fundo destituído de sentido? De um fluxo de coisas “nocturnas” de onde emerge como uma raridade? Da sopa insonsa e insensível de astros, poeiras, cometas, anti-matérias e outras formas devorando-se avassaladoramente? Pode dizer-se que há uma resistência em nomear esse fundo nocturno que supostamente nada significa, mas tudo parece ser aspirado por ele e todo o sentido encontra em si vestígios tremendos (por vezes angustiantes) do dilacerante negro. Mesmo o sentido, quando brilha na claridade mais assertiva, é portador, na sua aparente nudez, no seu interior de uma gemebunda não-luminosidade. O interior, o cerne do sentido, onde estão os órgãos e as vísceras, é invisível e imaginadamente escuro. A “harmonia que se esconde” pode não ser superior às coisas que se vão dando ao ver, e até pode nem ser harmonia, mas está lá como caixinha de 45


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surpresas à espera de sair da noite e encontrar-se em encruzilhadas com as consciências.

Em última análise o sentido esconde o mal-estar de ser um filho bastardo das sombras e dissimula-as tentando ser excessivo, como na arte barroca, vai-vem entre a obscuridade e a talha dourada, ignorando, sem o querer o legado da “claridade” que é a cor vibrando como um estandarte que procura o sangue dos que o seguem.

A linguagem e as fórmulas são insuficientes para compreender aquilo que designamos como mundo – no entanto formam parte desse mundo e têm casos (eróticos) com aspectos do mundo.

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Os aspectos ditos “místicos” do mundo, aqueles que convidam ao silêncio, são precisamente aqueles de que mais apetece falar. Não me parece que o falar do místico, que é precisamente esta zona de sombra, que como de um poço, levamos a agua, seja mais equívoco do que falar de outras coisas, porque as coisas apoiam-se no “místico” – nesse paradoxo que promete indicibilidade.

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BUDISMO E SOMBRA

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Os budistas mascaram artificiosamente, através do termo Shûniatâ, uma apetência pelo esplendor das sombras. O Mâhâprajnâ-pâramita enumera, com alguma perversidade e vontade de discernir diferenças formais, 18 casos de Shûniatâ (vacuidade):

Adhyâmata – vazio do interno Bahirdâ – vazio do que externa Adhyâmatâbhairdâ – vazio do interno/externo Shuniâtâ – vazio do vazio Mahashuniâtâ – grande vazio Paramârtha – vazio do incontestável Samskrita – vazio do composto Asamskrita – vazio do informe Atyanta – vazio supremo Anavarâgra – vazio do não-limite Anavakâra - vazio da dispersão 51


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Prakrita – vazio dos elementos (vazio da matéria) Svalakshana – vazio das subjectivações Sarvadharma – vazio de todas as leis Anupalambha – vazio do não-acessível Abhâva – vazio do não-ser Svabhâva – vazio do ser-se Abhâva-svabhâva – vazio do não-ser/ser-se

No budismo há uma tendência para negar a teatralidade como motor das diversidades da vacuidade, assim como uma tendência para esconder a emergência, nestes estados, da consciência (citta), como a flor da vacuidade que desvaloriza, ainda que localmente, o transitório do transitório. No entanto o apego dos budista a citta é inegável, porque ela é a única oportunidade de tomar consciência

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da própria vacuidade (sem citta a vacuidade nem sequer é vislumbrável).

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F R AG M E N T O S C O M P E R N A S

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O caminho que se nomeia é o nome que se caminha, o caminho que não se deixa nomear fica na caminha. Na caminha é que é bom.

Trata-se de forjar a ideia de que somos mestres antigos e de que qualquer hipótese de vida nova é a de falsas confissões alheias.

A heteronomia abre para outra vida muito antes da morte - como se sinceridade fosse um empecilho. Fazer bluff com o pensamento abre mais possibilidades que a hipotética sinceridade.

Participo nas discussões na clandestinidade. Continuo a dar pontapés nos pensamentos dos mortos porque a novidade é uma forma de adolescer. E há uma estupidez nessa vontade equívoca de ser novo. E essa estupidez garan57


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te-nos mais velocidade para chegar ao estatuto de velhos mestres. Já não precisamos ir ao ringue para lutar - vão os discipulos que papagueiam. E os mártires são sempre as vitimas dessa estupidez da coragem.

Os ruídos são mais factos que a linguagem. Vivemos num estado de vanguarda absoluto e não nos damos conta disso. Mas continuamos a necessitar de uma boa polémica para nos darmos conta disso, como quem vai ao ginásio fazer ginástica de manutenção.

Sou um mau contador de anedotas. O meu pensamento, se pensamento tenho, consiste em anedotas muito malcontadas, ou em parábolas absurdas que procuram desnessessários ornamentos.

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Uma palavra nova é mais um equívoco a acrescentar a todas as outras palavras novas que já envelheceram. Sempre que incorremos no uso de uma palavra há um hálito fedorento a citação.

A morte é a única coisa que experimentamos, e que predomina na filosofia e na vanguarda como certeza acutilante. Trata-se de matar o outro para tentar adiar o que em nós é destino sombrio e morte emergindo. Trata-se de impor o novo como generalização da morte de tudo quanto é velho. Abordamos a Musa nas encruzilhadas, porque sabemos que as musas são venéras, ninfas tenebrosas, ou sereias dispostas a tráficos clandestinos. A musa, filha da memória, é escura, e o que tem para mostrar é a sua nocturnidade sexual. A modernidade suprime a necessidade de uma autobiografia exemplar e prefere o desespero a qualquer fatia de sabedoria. É nesse 59


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caminho que nos situamos. O desespero é a nossa religião. Não precisamos de consolo nem de pornografia, porque a pornografia é a imagem religiosa suprema, e a religião domestica o desespero que lhe subjaz.

Enegrecemos as revelações para permanecermos incompletos.

O passo em frente, o da parvoíce, é o que já há muito deixamos de temer. O hábito de repetirmos parvoíces dá-nos um aspecto pomposo. Uma pessoa simples ao entrar num sítio onde se debate filosofia fica mais do que preplexa. Por isso os bárbaros perferem as metáforas tontas da poesia à falta de metáforas da filosofia. Mesmo a metáfora é equívoca. É nessa linha de pseudo-demiurgia que iremos largar metáforas confusas, ou, se preferirem um termo cómico, estrambóticas. 60


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Não é o entendimento que gera pensamento, mas a vontade de perpétuar uma demência, um sofisticado desentendimento, que com o tempo se vai tornando um imprescindível ambiente com o qual temos uma relação afectiva. No fundo a tarefa do pensador é muito semelhante à da decoradora.

Toda a linguagem se refaz na pulsão profética. A defenição que Deus dá de si mesmo no Exodo (3, 14), como "farei o que farei" parece marxista - e é da ordem da praxis. Por isso a inclinação profética é recorrente no Antigo Testamento, como uma propensão natural de provocar. Termo vanguardista por excelência. E o divino, ou o ser, não é a imagem esférica de um ser contemplável. Mas tendo em atenção que o fazer é um refazer, a defenição de Deus deveria ser "refarei o que refarei" - versão 61


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mais burguesa e mais conformista. Versão mais de acordo com os sucessivos estados do mundo, garantido a presença de uma renovadora recursividade.

O obscuro — um modo de pensar muito camionista.

Não há nada mais humano do que enganarmo-nos a nós próprios. E no caso de sermos conscientes desse engano, o melhor é enganarmo-nos a valer.

O que nos é dado é o compreensível, a clareza, e uma certa dose de ambiguidade que torna a linguagem mais prazenteira. Mas há um desejo latente de levar a ambiguidade a zonas mais terríveis. Procuramos o incompreensível, o confuso, o complicado, o abstracto como um sofrimento desejado, ou um prazer que se aproxima do

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absoluto. É o lado tóxico e desviado da linguagem que triunfa sobre os aspectos práticos e prosaicos.

A lógica é mais uma ferramenta para persuadir do que para garantir a verdade. No dia a dia não precisamos de raciocínios e silogismos para nos orientarmos. A lógica introduz o pseudos através do seu oposto. Consegue, através da sua máquina, chegar sem dificuldade a conclusões opostas às do senso comum. Como escreveu o pintor Soll Lewitt, se seguirmos implacávelmente a lógica dada por certas tautologias chegamos a determinadas experências irracionais. É necessário coragem. Mas vale pena!

Certos factos, e certas vivências, surgem graças a experiências desviantes da linguagem. O exemplo mais comum na história das religiões é a de passar de uma relação 63


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com deuses egoístas, interesseiros, com os quais podiamos negociar, para deuses que nos amam incondionalmente e com os quais podemos ter uma relação íntima, afectiva, etc. Ou então para uma indentificação da nossa pobre existência com a do Absoluto. O verdadeiro ateísmo priva-nos destas experiências, e parece que ainda não encontrou um substituto ficcional que dê resposta à nossa ansia de equívoco.

Ás vezes parece que há uma vontade de resolover os problemas filosóficos à porrada - toda a cautela é uma maçada.

A filosofia é uma arte que recusa enamorar-se da sua dissolução. Na verdade não tem fim. Mas tem remorsos que a levam a pensar que as outras coisas têm fins. A filosofia é mais dispensável do que a arte, que já é uma 64


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palhaçada, e como palhaçada não precisa de uma pseudopalhaçada a tentar fazer-lhe sombra. Por mais que procure calar-se, e fazer do silêncio o seu festim místico, a filosofia não pára de tagarelar, de impingir jogos demasiado sofisticados, que ao mesmo tempo são bastante infantis.

A "vontade" é um termo inventado para dar ideia de que o mundo é manipulável. E de facto a linguagem proporciona-nos jogos que tanto nos podem atirar para a acção como para a inacção. Quando o jogo que nos atira para a acção é muito viciante chamamos-lhe vontade. Quando nos atira para a inacção, tanto pode ser perguiça, como contemplação. A meditação já é um cocktail muito dificíl e paradoxal de vontade de inacção.

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O que a linguagem pode mostrar em certos casos é o que o resto do mundo não consegue fazer de outra maneira.

O estado do corpo é o melhor espelho da consciência.

Credo quiam absurdum - não sou estúpido a ponto de seguir este preceito, mas estimula-me

porque parece

uma forma de canibalismo. Há uma vontade contrainductiva de fundo, uma vontade de se subtraír às agonias do mundo através de substitutos messiânicos. A alegria antropofagica instala-se como estilo. O que Jesus ofereceu como devoração da provocação (do "farei o que farei"), contamina como vontade de manducação repetida de Deus, o que acontece na eucaristia. O cristão comunga nocturnamente, com os olhos fechados.

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O que a noite incentiva é a experiências ritmícas. A linguagem e a música tornam-se exuberantes na nocturnidade. Escrever é proporcionar escolhas. A noite torna as escolhas menos visíveis e mais carnais.

A experiência dactilográfica é ritmíca e bastante sonora. Seja numa velha máquina de esrever seja num computador. Há algo ritual no tictac da escrita e uma exuberância melómana distinta da da pena, do lápiz ou da caneta. Há algo mais invisível. Antes a mão pretendia ferir uma superfície imaculada. Agora é uma fúria menos burguesa. Não sentes a delicadeza da ponta da pena, mas reparas quão pianísticos são os teus dedos.

Nos últimos tempos só escrevo com a minha mão esquerda, isto é, com a minha impureza, a minha imperfeição. Não consigo deixar de sentir que isto me muda. Sou 67


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premeditadamente nocturno na maneira de pensar. É uma arrogância? Pois é!

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T É N E B R A S

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Praedicando igitur in eo quod dictum est Tenebrae erant super faciem abyssi res constituía est quam ab esse nulla negatio separat aùt diuidit. Item tenebrae subiectum est érant declàratiuum déclarai enim praedicando tenebras quódam modo èsse. Fredegisus de Tours,

De substantia nihil et tenebrarum

"ad darcknesse was vpon the depe",

traduz Tyndale, e

Wycliffe, muito antes escreve "and derknessis weren on the face of depthe" - antes e depois da luz, antes e depois da fábula que é Deus, é esta imagem de uma escuridão envernizada, de uma confusão sem adornos ou coisas, que nos surge. Mesmo o monstruoso, o titânico, nos surgem afectivos - o tom, que hoje nos parece arcaico, 71


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dos tradutores bíblicos, dá um certo esplendor à linguagem para descrever o informe.

Chegamos depois da destruição e das iconoclastias e encontramos pedaços de coisas, restos de uma falsa violência. Foi o idealismo iconoclasta nas artes que pretendeu destruir coisas? Mas será que a alegria destrutiva destruíu de facto, comparada com a voracidade destrutiva das guerras, ou com o processo de aceleração da obsolescência, de que o futurismo foi um sintoma muito atrasado — o futurismo apenas inverteu, celebrando, o que era ódio às máquinas. Os anarquistas destruíam fábricas e resolviam a coisa à bomba, com violência. O futurismo percebeu que são as fábricas que produzem a vontade de explosão e implosão. Explodir de todas as maneiras, ou sentir explosivamente. A interiorização da violência como formação da subjectividade, e como possibilidade desta se 72


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multiplicar estéticamente. Veja-se Pessoa e Álvaro Campos. A pulsão faústica de querer saber é feita de etapas de auto-destruição, com ou sem misticismo. Campos invoca frequentemente a noite como apaziguadora dessa violência e desconsolo. A noite é sempre órfica e maternal. As artes apenas fingiram acompanhar o ritmo, porque é de uma mudança ritmica que se trata, da destruição maquínica, parente dos ritmos de destruição natural. Parece que o ritmo é mais visível. O "Isso" nocturno de onde se desentranha a novidade, sobra no meio de um ritmo sujo. É isso a poesia. A evidência do princípio "order from noise". Quanto mais ruído, quanto mais ânsia destrutiva, mais a "ordem" nasce do ruído, e mais essa ordem é algo ruídosa e desordenada. Ainda se pensou num reordenamento e numa claridade, mas percebemos que a desordem antecede e acompanha a ordem, como Gadda ou Joyce, o mais nocturno dos escritores. O dese73


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jo de ordem está contido no esfriamento das desordens sabemos que a desordem é insuportável, mas a ordem é algo anda mais monstruoso, e o conforto que proporciona é pior que a morte. Ezra Pound, Confúcio e Wittgenstein procuraram pôr ordem na desordem da linguagem - acreditaram na possibilidade poética da claridade se instalar na política, na poesia e no pensamento - mas algo perturbará sempre os jogos da linguagem, a relação das palavras com as coisas e a evidência supostamente paradisiaca das imagens. Nós, os nocturnos, sabemos que há que esfriar as desordens com uma consciência que ama as ambiguidades e que arrisca lidar com equívocos. Fazemos bricolage, porque esta parodia qualquer demiurgia. Somos a consciência possível dos estados da matéria. E havendo algo parecido com

absoluto, só o podemos vi-

ver neste fluir metamorfico, registando-o escrupulosamente. 74


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INQUÉRITO (fragmento)

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Pergunta — Algures, refere-se a a si próprio como alguém que sufoca no campo, e para quem o pensamento é um povoamento autobiográfico. Também diz que escreve para que a biografia se cumpra, porque não escrever é deixar em suspenso os acontecimentos. Cada palavra arrasta o mundo, mesmo, que muito pouco?

K —São os pontos de vista autobiográficos que nos adoptam para a vida. Vivi num século em que se pediu para calar a biografia, em que a intimidade só se tornou possível disfarçada de citação. Não sendo própriamente alguém que reivindica um extremo lirismo, sinto no entanto que cresci num ambiente expressionista, com o seu 77


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quê de doentio, soturno, provinciano à sua maneira. Não posso corrigir o passado. Nasci em Innsbruck em 1915 a 15 de Janeiro. Do lado da minha mãe tenho ascendência judaica, e ouvi tios e tias a cantar em ladino. Tinhamos inclusivé, por heranças, uma edição em lingua ladina da Biblia de Ferrara, que ficou destruida durante a guerra. O meu pai era protestante numa zona maioritáriamente católica. Construía intrumentos musicais. Eu cresci entre aparas, martelos, serras, bandolins, violoncelos, etc. Somos de Innsbruck, uma cidade fria e de passagem entre a Europa dita do Norte e a peninsula Ítalica. queixei-me do provincianismo, mas Innsbruck era cosmopolita no sentido de que era um entreposto frio onde as pessoas repousavam, bebiam cervejas junto da lareira, sentiam o conforto da lareira enquanto lá fora a neve parece encurralar-nos. Mas esta sensação de isolamento é falsa. Destinaram-me a ser violoncelista, e eu cresci a ajudar, a co78


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lar, a envernizar e a tocar o repertório violoncelistico, em pequenos agrupamentos de camara. O cenário em casa era muito parecido com os quadros de Baschenis, e também um opuco como as pinturas de De Chirico. A minha mãe era costureira e fazia umas bolachas deliciosas. Tinhamos hábitos conservadores de típicos tiroleses. Liamos a bíblia luterana, cantavamos, rezavamos, comiamos sopas. Tinha mais três irmãs, todas mais velhas que casaram com comeciantes e militares. Os maridos morreram na guerra em difrentes frentes, um no Volga, outro na Bélgica e outro na Argélia. Há em Innsbruck um excesso de oxigenação que estupidifica, que faz de nós conservadores natos. Lembro-me lá de uma pintura algo naif do século XVII chamada o Pássaro do Autoconhecimento (Vogel Selbsterkenntis) , uma coisa curiosa e algo surrealista, do género que agradaria ao arquiduque Ferdinando II, para guardar no seu gabinete de aberrações no Caste79


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lo de Ambras, em que uma figura monstruosa come com o bico de pássaro o nariz de uma face que faz parte do corpo do animal — é uma pseudo alegoria contendo um falso enigma, na minha opinião, mas foi para mim um motto, no sentido de entender todo o conhecimento como autoconhecimento. A anatomia do autoconhecimento é monstruosa, mas também propiciadora. Não sei se foram as imagens que levaram ao meu interesse no pensamento, se foi o ambiente "metafísico" da minha escura casa, com o seu fedor a cola, couve e verniz. Sempre que saía de casa tinha a sensção de mais ar e de mais luz. Quando fui para Viena com 17 anos, levado de amores por uma cantora, uma década mais velha do que eu, é que senti o frenesim ao mesmo tempo decadente e futurista das cidades. Eram anos difíceis. O Canetti tinha acabado de publicar Die Blendung, o Hermann Broch, Die Schlafwandler, e sobreviviamos de trabalhos temporá80


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rios, querelas, pequenos furtos, mendicidade, emprĂŠstimos, amizades ..................................................................................... ........................................................................

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Esta compilação foi colhida dos arquivos Zuturistas por Pierre Delalanda e paginada para os Waf Books em Fevereiro de 2018

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