COLONO dez2015

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Dezembro 2015

entre parreiras e passeios


entre Parreiras e Passeios Brasil século XVII-XIX Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Disciplina: História da Arquitetura e Urbanismo no Brasil Colônia Império Orientadora: Maria Fernanda Derntl Autores: Amanda Farinati, Danillo Arantes, Giovanni Cristofaro, Julia Kanno e Pedro Ribeiro. Arte da revista: Pedro Ribeiro

Brasília, DF Dezembro de 2015


”Escravos serradores de tábuas” (DEBRET, 1971)


Editorial A Revista Colono, aqui apresentada em edição única, traz uma contribuição àqueles que se interessam pela cultura brasileira como um todo, possibilitando o entendimento de aspectos característicos da arquitetura, interiores, mobiliário e urbanização do Brasil Colônia. É necessário destacar que, apesar de tratar de assuntos tão diferentes entre si, cada artigo mostra o compromisso e abordagem de seu autor, no sentido de gerar opinião, relatar fatos pesquisados e também opinar a respeito dos achados em tais pesquisas – suas vertentes a respeito dos assuntos. Os artigos aqui reunidos acabam por tornar-se não só do interesse de pesquisadores mas também de todo aquele que queira interar-se um pouco mais sobre culturas locais, não só do país como um todo, mas de variados estudos a respeito de algumas regiões do país, cruciais para a composição desta edição. De início, Pedro Ribeiro, no artigo Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX, firma-se na análise do mobiliário brasileiro e o que seria ou não algo tratado como típico por meio da bibliografia de Tilde Canti, juntamente com artigos e teses apoiados nas pinturas de Jean Baptiste Debret a respeito do estudo do mobiliário no Brasil ao longo dos determinados séculos junto com sua relação tanto com o móvel europeu quanto com a tropicalidade da colônia. Como objeto de estudo mais detalhado, o autor escolheu a seção tipológica de móveis de assentos, reflexo de técnicas da época e do sistema socio-econômico do Brasil. Explorando então um aspecto mais local, especificamente no sul do país, Amanda Farinati, no artigo Das Cidades aos Parreirais: Urbanização Vinícola no Vale dos Vinhedos, RS, busca investigar as mudanças urbanas causadas pela introdução da indústria vinícola na região do Vale dos Vinhedos e seu gradativo processo de transformação, apontando as suas implicações na paisagem cultural e urbana Rio Grandense.

Tal estudo permite a análise de como a crescente urbanização resultou em uma grande perda de valores culturais e identidade local. A autora discute o percurso histórico das transformações paisagísticas, iniciando nas primeiras plantações de parreirais com a imigração italiana, culminando na criação dos primeiros núcleos urbanos que valorizaram o território. Mantendo-se nesta linhagem de entendimento da paisagem local, urbanização e reformas urbanas, Julia Kanno no artigo Reformas de um Passeio Público, faz uma análise das influências do Passeio Público do Rio de Janeiro e estudo de seus componentes, assim como a expressão de sua organização, levando-se em consideração o reconhecimento das técnicas e interferências que seu autor e seus reformadores tiveram como bagagem intelectual para seu desenvolvimento e modificações, além do modo como as alterações estilísticas vivenciadas pelo Passeio Público se relacionam com os aspectos socio-culturais da sociedade carioca da época, assim como o abandono corrente. A autora ainda trata ao fim de uma análise especulativa de como seria um passeio público que atendesse às novas necessidades da população atual, resolvendo os conflitos enfrentados nesse século. Também tratando do Rio de Janeiro colonial, porém não necessariamente real mas sim representado, assim como do Sertão Nordestino, Danillo Arantes no texto intitulado Ludicidade em 5 Atos: “Arretada” além dos “Olhos de Ressaca” – Representação do Nordeste pósimperial e visões do Rio de Janeiro ao fim do século XIX nas adaptações de Luiz Fernando Carvalho e Raimundo Rodriguez, trata a respeito de duas microsséries televisivas (Capitu e A Pedra do Reino) frutos da parceria entre o diretor de televisão Luiz Fernando Carvalho e o diretor de arte Raimundo Rodriguez e suas escolhas de representação da arquitetura da época nas duas regiões. O autor visa compreender as implicações destas escolhas estilísticas no processo de


adaptação da arquitetura, interiores e contexto urbano das regiões tratadas, compreender sua fidedignidade às realidades locais e questionar o quão livre são tais escolhas, se positivas ou negativas e se coniventes com a história arquitetônica e cultural brasileira. Na obra “Capitu”, tratada no artigo citado anteriormente, muito se faz um contraste entre o passado urbano e a cidade contemporâneo do Rio de Janeiro. Aqui, ao fim, também seguindo esta linhagem de contrestes temporais, Giovanni Cristofaro, no texto Duas Casas no Butantã, faz uma análise de duas residências localizadas no bairro do Butantã, em São Paulo, tendo como foco a relação estabelecida entre seu contexto histórico, projeto arquitetônico, sistemas construtivos e espacialidade interna. Relacionando as residências, uma do período Colonial Brasileiro construída pelos Bandeirantes, a outra do período Modernista planejada pelo arquiteto paulista Paulo Mendes da Rocha, o autor procurou identificar nelas a existência de uma identidade regional paulista no que tange a sua relevância arquitetônica e semelhanças/ diferenças em seu partido. A pesquisa se vale de referências textuais e imagens para mostrar as instâncias do projeto arquitetônico: desenho e espaço construído, e questiona se ambas possuem particularidades arquitetônicas que constituem um “estilo Paulista”, e se sim, quais são as atitudes espaciais/projetuais que o constituem. Deste modo, reafirma-se a diversidade de temas possivelmente tratados a respeito do Brasil Colônia, sua arquitetura e urbanização de modo geral – temas centrais da revista – evidenciandose assim que tais abordagens podem variar draticamente entre si mas ainda firmam-se num único interesse: compreender cada vez mais o que foi e é dito “Brasileiro”, sua identidade, história e compreensão.


Sumário Tropicamente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX........................................................................................6 Das Cidades aos Parreirais: Urbanização Vinícola do Vale dos Vinhedos, RS..............................................................................20 Reformas de Um Passeio Público..........................................................................................................28 Ludicidade em 5 Atos: “Arretada” além dos “Olhos de Ressaca”..............................................................................................36 Duas Casas no Butantã.............................................................................................................................46 Análise Mariana x Ouro Preto................................................................................................................54



Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Resumo A casa brasileira “nasceu de soluções sincréticas” (LEMOS, 2005), a união das culturas indígena e portuguesa e em menor grau, da cultura africana. Uma casa não é casa sem um móvel, este é a representação da dinâmica e do modo de vida de uma moradia (MELO, 2008). O mobiliário colonial brasileiro era inspirado no mobiliário português (CANTI, 1980). Iniciando com estas premissas, este artigo analisará através da bibliografia de Tilde Canti, artigos e teses apoiados nas pinturas de Jean Baptiste Debret o mobiliário no Brasil ao longo dos séculos XVIII e XIX e sua relação tanto com o móvel europeu quanto com a tropicalidade da colônia. Como objeto de estudo mais detalhado, escolhi a seção tipológica de móveis de assento. Cadeiras são o símbolo clássico do design de móveis, a partir delas é possível perceber quais os costumes do lar, a relação de coletividade ou não do ambiente e principalmente por ser um móvel relativamente simples, possibilita que diferentes estilos materializem seus ideais nestes móveis, portanto esta foi a tipologia adotada. Espera-se como resultado a apreensão das influências que a paisagem, recursos locais e miscigenação tiveram sobre o mobiliário vindo da Corte Portuguesa. Palavras-chave: mobiliário, Brasil Colônia-Império, cadeira, móveis de assento, Portugal, tropical, séculos XVIII e XIX


Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

O Móvel Lusitano no Novo Mundo

As primeiras embarcações a atracarem em terras brasileiras em 1500 praticamente não traziam nenhum móvel ou objeto de permanência, estes navios traziam apenas homens aptos a explorar as terras e extrair o vermelho e valoroso paubrasil, acompanhados de um grande baú - talvez o único utensílio dessas primeiras viagens (GAUDENCIO, 2009). Estes primeiros móveis procuravam a multifuncionalidade e o pragmatismo, deveriam ser resistentes o bastante contra as intempéries tropicais, durar longos períodos de viagens, como também considerar a facilidade de transporte (MELO, 2008). Posteriormente, com a introdução da cana de açúcar em terras brasileiras, mais precisamente no nordeste, Portugal inicia um processo de colonização mais estável e com isso surge a necessidade da casa. “A casa sem um móvel não é casa; é um abrigo, é um espaço enfermo para a vida, e efêmero, já que não é possível estabelecer um meio que vincule sua relação, a experiência pessoal, com o espaço. É um abrigo sem vida porque, na casa, se há uma única rede, por exemplo, já é possível supor uma relação entre a individualidade pessoal e o espaço construído, entre a dinâmica própria e a organização interna.” (Melo, Alexandre, 2008, p. 215) Alexandre de Melo explicita a relação intrínseca da casa com o móvel. O móvel é o principal agente de dinâmica de uma casa, sendo este a materialização da função em objeto. A partir de sua afirmação, podemos então entender o início da vinda de mobiliário

para o Brasil. Os colonos agora buscavam no mobiliário a criação do espaço “habitável”, não mais um mero abrigo temporário. No primeiro século do descobrimento nasceram na América Portuguesa as primeiras casas e com elas as primeiras peças de mobiliário apareceram, estas ou eram portuguesas ou eram feitas com madeira brasileira mas ainda produzidas em Portugal (MALUF, 2013). Até meados do século XVII, o mobiliário brasileiro ainda era muito escasso e sem expressividade. Nos séculos XVIII e XIX, com o ganho de importância das cidades no Sudeste, causado pela mudança da economia baseada na cana de açúcar para o café, e posteriormente com a vinda da família real o mobiliário brasileiro ganha maior notoriedade. As famílias desta região tem seu poder aquisitivo aumentado e passam a exigir móveis de melhor qualidade e cada vez mais luxuosos. Com este artigo pretende-se entender como foi a adaptação do mobiliário português no Brasil, mais especificamente os móveis de assento, sendo eles cadeiras, bancos e poltronas, tomando como eixo central a bibliografia de Tilde Canti apoiada nos relatos e pinturas de Jean Baptiste Debret, sendo esta a fonte primária. Toma-se como recorte temporal os séculos XVIII e XIX devido aos grandes acontecimentos ocorridos na troca de séculos como a vinda da família real ao Brasil e a abertura dos portos. Espera-se como resultado a compreensão da evolução dos móveis de assento no Brasil colonial e suas adaptações ao continente tropical, podendo assim elucidar entendimentos aos móveis modernos e contemporâneos brasileiros.

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Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Diferente das espécies de clima temperado, de madeira mole com fibras longas, conhecidas pelos europeus, as espécies vegetais encontradas no continente tropical costumam ser mais resistentes e suas fibras são curtas e duras. O explorador Jean Baptiste Debret durante sua passagem pelo Brasil deixa registrado a diferença da madeira encontrada na colônia e no Velho Mundo. A matéria prima era abundante, “a vegetação colossal do Brasil fornece peças de madeira de dimensões desconhecidas na Europa” (DEBRET, 1839). Com isso, entende-se que as diferentes características da matéria-prima acabam por impor diferentes condições práticas de trabalho, induzindo as técnicas importadas transmitidas pelos europeus a adequarem-se às características das espécies locais. Nos séculos XVI e XVII o mobiliário brasileiro era extremamente funcional, marcado por inteligentes soluções práticas, uma simples arca, por exemplo, poderia funcionar como mesa, cadeira e mala. “Estas peças eram desprovidas de maiores intenções estéticas” (BRANDÃO, 2009). No século XVIII as casas ainda eram espaços predominantemente vazios, porém, ao longo deste período, um acréscimo quantitativo e qualitativo de mobiliário começava a ocorrer lentamente. (BRANDÃO, 2009). Nem mesmo as igrejas, até o momento as maiores detentoras de mobiliário artístico, registravam um grande número de móveis. Em uma gravura de Jean Baptiste Debret, publicada em 1834, o interior de uma igreja no Rio de Janeiro é retratado durante a missa de Quarta-Feira Santa. Nesta gravura fica claro a falta de bancos para acomodar os fiéis, mulheres vestidas de preto com véus na cabeça são vistas sentadas diretamente no chão ou distribuídas pelo interior da igreja de pé.

Figura 1: ”Escravos serradores de tábuas”, demonstrando o esforço necessário para cortar as grandes peças. (DEBRET, 1971)


Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Figura 2: Retrato de uma Missa de Quarta-Feira Santa. (DEBRET, 1839)

Angela Brandão (2009) através de inventários das igrejas relata que de modo geral o mobiliário é mencionado pontualmente e de forma bastante descritiva nas igrejas mineiras. No entanto, era deixado bem clara a diferenciação do mobiliário mais nobre, como uma cadeira episcopal, uma mesa torneada e cadeiras estofadas, feitas geralmente em jacarandá dos móveis mais singelos como tamboretes, bancos e armários ditos “de pau branco”. No âmbito civil, o mobiliário demorou bastante tempo para ganhar maior qualidade na fabricação. O mobiliário produzido em terras brasileiras era produzido principalmente por “escravos serradores de tábuas” como aborda Debret (1839) em sua estada no Brasil. O trabalho manual não era bem visto na América, era associado diretamente ao afazer de um escravo e por isso as pessoas eram totalmente desmotivadas a trabalhar nesta área. Artesãos formados na Europa, na sua maioria portugueses, vinham ao Brasil para

realizar trabalhos em igrejas ou em órgãos públicos e acabavam por serem contratados por cidadãos mais abastados para fabricação de móveis. Os escravos destes cidadãos auxiliavam os mestres portugueses e acabavam por adquirir certas habilidades, para então produzirem mais móveis para seus senhores posteriormente (GAUDENCIO, 2009). Outra problemática foi também registrada por Debret (1839), os proprietários dos “serradores de tábuas” “se recusavam a instalar serrarias mecânicas em sua propriedade” para que não se perdesse mãode-obra barata e disponível. Com isso os móveis brasileiros eram “reproduzidos em madeira mais grossa, em maiores proporções e mais rústicos que seus modelos originais” (CANTI, 1989) portugueses. Os móveis foram ainda vistos por Debret (1839) como toscos diante da referência europeia que lhe era familiar.

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Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Brasileiro Setecentista e Oitocentista Na primeira metade do século XVIII, toda a produção moveleira colonial brasileira foi agrupada no denominado estilo Joanino ou D. João V, que teve seu reinado entre 1706 e 1759. Adotarei aqui a divisão proposta por Angela Brandão na Revista CPC de 2009. A primeira fase vem muito associada ao estilo do século anterior, o “nacional português”, neste momento foram produzidas peças bastante severas, sólidas e maciças. As cadeiras da primeira fase tem predominância de encostos inteiriços em couro. Em contraste, na segunda fase, as linhas barrocas passam a ter expressividade no mobiliário português, aparecem as pernas curvas para fora, chamadas cabriolet, por influência dos estilos Rainha Ana e Georgiano. A talha sobre o móvel passa a ser bem profunda com motivos de pássaros, folhas de acanto e conchas nos espaldares dos móveis de assento. Surgem elementos decorativos como os pés de garra e bola. A cadeira de sola, de couro, presente na primeira fase e principalmente nos séculos anteriores continua aparecendo no mobiliário luso- brasileiro porém adaptase ao barroco e posteriormente ao rococó (CANTI, 1980). Uma mudança considerável é a aparição de encostos vazados com tabela central.

A terceira fase do estilo Joanino marca a passagem do barroco ao rococó na esfera do móvel. A palhinha é introduzida e os encostos passam a ser vazados com tabela em forma de violão no centro e entalhes com motivos de pássaros, conchas e plumas no alto do espaldar (BRANDÃO, 2009). Nuno Madureira (1992) sugere que a redução do peso estrutural das cadeiras, pela aplicação de palhinha, aliado à curva das pernas, que dispensava o sistema de travação, tenha sido um fator decisivo na disseminação das cadeiras nas casas na primeira metade do século XIX. A cadeira deixa de ser um objeto estático e passa a ser flexível para danças, jogos e conversas nos ambientes internos (MADUREIRA, 1992).

Figura 4: Cadeira; pau-santo e palhinha. Último quartel do século XVIII. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. (CANTI, 1980).

De modo geral o estilo Joanino no Brasil foi uma cópia do que estava acontecendo em Portugal de forma mais simplificada. “As volutas e entalhes dos móveis de Portugal são profundos e tão bem recortados, que no Brasil vão sendo reduzidas a talhas rasas e às vezes pobres recortes” (GAUDENCIO, 2009). Este estilo termina no momento em que aparece o estilo D. José. Figura 3: Banco do Altar Mor da Capela do Padre Faria, primeira metade do século XVIII. Jacarandá e couro. Ouro Preto. (BRANDÃO, 2009).


Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Este último, influenciado pelo estilo inglês Chippendale, se caracteriza por formas mais leves, com estrutura de madeira finamente recortada, entalhes delicados e encostos vazados que desenham linhas sinuosas, proporcionando transparência (MALUF, 2013). A talha aparece menos profunda e em apenas alguns pontos do móvel, desaparece o “sistema de travação” (MADUREIRA, 1992) das pernas, agora mais esguias, e o cabriolet se suaviza. Neste período surgem diversos tipos de cadeiras, de espaldares mais baixos, mais largos, de assentos mais baixos e cadeiras de canto (CANTI, 1980). O final do século XVIII é marcado pela vinda do estilo D. Maria I, que foi chamado no Brasil de D. João VI. As variações ocorridas no mobiliário sugerem, de acordo com Angela Brandão (2009) a transição do rococó para o neoclassicismo. Os entalhes diminuem ou desaparecem completamente, sendo apenas um arremate, e o principal adorno passa a ser com incrustações de madeira, marchetaria, ou madrepérola (CANTI, 1980). As formas se tornam mais sóbrias, corpos retangulares, o cabriolet desaparece e é substituído por pernas cilíndricas. Embora no final do século XVIII o mobiliário de estilo rococó começasse a ser visto, pelo viés neoclássico, como extravagante e exagerado, ele permaneceu no gosto popular como sinônimo de luxo e beleza (RYBCZYNSKI, 1999). Contemporâneo ao estilo D. Maria I, logo no início do século XIX, “aparecem peças notavelmente mais leves e delgadas, assento feito em palhinha e encosto vazado”

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(MALUF, 2013). Este novo estilo influenciado pelo inglês Thomas Sheraton, teve grande difusão no Brasil, principalmente no contexto de Minas Gerais e passou a ser chamado de Sheraton brasileiro. As peças em jacarandá, madeira bem escura, funcionam como um contraponto visual em relação às incrustações em madeira clara (CANTI, 1980). Logo na primeira década do século XIX a família real portuguesa veio ao Brasil, foram assinados os tratados de comércio e com a abertura dos portos“o Brasil passou a importar de diversos países da Europa e dos Estados Unidos” (MALUF, 2013). Diversas peças mais complexas de outros países tiveram entrada no território nacional, aumentando assim a qualidade e tendo consequências futuras na produção nacional. De acordo com Maria Cecília Loschiavo dos Santos (1995), “a partir da segunda metade do século XIX, já havia um significativo número de marcenarias e fábricas que produziam móveis de todos os estilos”.

Figura 5: Cadeira do estilo Sheraton Brasileiro; madeira e palhinha; primeiro quarto do século XIX. (CANTI, 1980)


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Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Maria Aparecida Borrego (2010) através da análise de inventários de famílias abastadas da cidade de São Paulo, realiza um apanhado geral do mobiliário existente nas residências do século XVIII e XIX. Na virada destes séculos em questão, a habitação começa a ser dividida em ambientes mais sociáveis, onde se podia beber, jogar, e receber visitas (MADUREIRA, 1992). A partir do inventário do brigadeiro Manuel Rodrigues Jordão, essa interiorização é comprovada pela quantidade de móveis de assento e descanso existentes, sendo: “mochos, cadeiras, escabelo, bancos, canapés e sofás”. As duas últimas peças apareceram pela primeira vez em inventários somente no século XIX, e são destinados aso uso coletivo (BORREGO, 2010). Jean Baptiste Debret vem para o Novo Mundo em 1816 e faz o registro de diversas situações do cotidiano íntimo da época. Nestas pinturas dos interiores das casas podemos perceber a pequena quantidade de mobiliário retratado, em relação à tipologia de assento encontramos cadeiras, marquesas, bancos, tamboretes e poltronas. Por conta da época que Debret vem para o Brasil, o móvel já se mostra bem mais sóbrio, com feições bastante neoclássicas. Na pintura intitulada “Le Diner” percebemos que o casal de senhores se senta em cadeiras sem muita decoração, encosto vazado, pernas sem travamento e, interessantemente, as pernas traseiras estão levemente projetadas para trás, caracterizando um mobiliário já bastante influenciado pelo neoclassicismo e por estilos vindos de fora do país. As pinturas “Les délassements d’une après dîner” e “Une visite a la campagne” retratam marquesas com características bastante similares, sendo estas pouco ornamentadas, o entalhe não existe, muito menos as curvas e volutas características dos séculos anteriores. A segunda pintura ainda retrata no canto inferior direito uma cadeira dobradiça, com espaldar alto, o assento e o encosto aparentam ser de couro tensionado. O couro destas cadeiras eram fixados, por meio de pregarias de latão, nas bordas do assento e nas prumadas do encosto (CANTI, 1980).

Figura 6: Le Diner. (DEBRET, 1971).


Tropicalmente Europeu: Mobiliário Brasileiro nos Séculos XVIII e XIX.

Figura 7: Les délassements d’une après dîner. (DEBRET, 1971).

Figura 8: Une visite a la campagne. (DEBRET, 1971).

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As pinturas “Boutique de la rue du Val-Longo” e “Boutique de cordonnier” deixam claras as relações de poder econômico e o mobiliário a ser usado. Os escravos representados em ambas as telas sentam-se em móveis muito simples, sem nenhum tipo de detalhe. Na primeira pintura os negros sentam-se em bancos únicos, feitos com grandes pranchas de madeira, ou mesmo no chão. Dois homens brancos aparecem também nesta tela, um deles sentado em uma cadeira, claramente o móvel mais nobre da cena, com pernas torneadas, braços e encosto vazado com tabela central. Na segunda gravura o homem que aparece no centro com uma palmatória provavelmente senta-se em uma cadeira, devido a diferença de altura em relação aos tamboretes.

Figura 9: Boutique de la rue du Val-Longo. (DEBRET, 1971).

Figura 10: Boutique de cordonnier. (DEBRET, 1971).


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É na primeira metade do século XIX que o móvel neoclássico aparece no Brasil, os móveis deste estilo são associados à feminilidade, bastante delicados, quase frágeis se distanciam formalmente do que era produzido em períodos anteriores (GAUDENCIO, 2009). O neoclássico procurou a retomada de valores da antiguidade clássica, passando esta a ser vista como o ideal a ser seguido. A segunda metade do século XIX é marcada pelo contraste de dois estilos. Embora visualmente distintos, ambos os estilos foram produzidos com as novas técnicas industriais: são estes o estilo Thonet e o estilo Eclético (MALUF, 2013). O Thonet traz consigo o novo sistema de curvado de madeira e as transparências, produzindo formas leves e simples. Os mobiliário de estilo austríaco teve ampla aceitação no Brasil, e em diversos outros países, por sua facilidade de transporte, exportação e seus baixos custos (CANTI, 1980). Tilde Canti (1980) ainda relata que os móveis Thonet eram encontrados nos mais variados lugares do país, tanto em cidades do interior como em fazendas, igrejas e casas tradicionais. Diante do grande sucesso das importações, em 1890 é aberta no Rio de Janeiro a Companhia de Móveis Curvados, fabricando mobiliário do estilo Thonet e inserindo definitivamente este tipo de móvel no Brasil (MALUF, 2013). O estilo eclético (MALUF, 2013) ou metodologia eclética (GAUDENCIO, 2009) foi bastante utilizado em edifícios religiosos, institutos históricos, câmaras municipais e outras repartições públicas. Este tipo de móvel representa a união em uma única peça vários estilos, formando assim uma “obra singular” (GAUDENCIO, 2009). Nos edifícios públicos as “cadeiras tinham entalhes com cartelas ou elementos fitomorfos e emblemas, monogramas, ou apenas iniciais que caracterizavam a entidade a que pertenciam, de tal forma que podemos classificá-lo como estilo “oficial”’ (MALUF, 2013). Figura 11: Cadeiras estilo austríaco, Thonet. último terço do século XIX. (CANTI, 1980).

Figura 12: Poltrona estilo eclético; jacarandá e palhinha. Último terço do século XIX. pertenceu ao Senado federal; Museu da República, Rio de Janeiro, RJ (MALUF, 2013).

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Considerações Finais A partir da análise de Carlos Lemos (2005) sobre a casa como o resultado do encontro das culturas indígena e lusitana, assumindo a postura de Alexandre de Melo (2008) de que uma casa sem móvel não é casa e salientando também que Lemos afirma a não participação do africano no nascimento da casa, por sua chegada tardia , mas sim na concepção de objetos, era esperado como resultado deste artigo que o móvel colonial brasileiro fosse o choque entre estas três culturas. Contudo, averiguando a bibliografia de historiadores e estudiosos do mobiliário brasileiro somos levados a concluir que existe um consenso de que o móvel colonial brasileiro nada mais era do que uma reprodução, de qualidade inferior, do que era produzido na metrópole.

O mobiliário dos século XVIII se apresenta como um móvel português simplificado e às vezes com uma pequena influência tropical, geralmente na decoração com motivos naturais do Novo Mundo. Esta situação só começa a ser mudada a partir da abertura comercial com o exterior no início do século XIX, quando móveis mais desenvolvidos dos Estados Unidos e Europa começam a circular no Brasil. Contrastando com a visão positiva de Lilian Gaudencio (2009) de que o negro transmitiu para o mobiliário sua “irreverência” já que ele era quem produzia, talvez a imprecisão apresentada no mobiliário como afirma Angela Brandão (2009) seja a falta de técnica e precisão com detalhes do escravo.


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Bibliografia BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. Laços familiares e aspectos materiais da dinâmica mercantil na cidade de São Paulo (séculos XVIII e XIX). Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 11-14, jun. 2010. Disponível em: <http:// www.revistas. usp.br/anaismp/article/view/5525/7055>. Acesso em: 30 out. 2015. BRANDÃO, Angela. Anotações para uma história do mobiliário brasileiro do século XVIII. Revista CPC, São Paulo, n. 9, p. 42-64, nov. 2009. CANTI, Tilde. O Móvel no Brasil: origens, evolução e características. Rio de Janeiro: Candido Guinle de Paula Machado, 1980. DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. 3 v. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/ handle/ 1918/00624530>. Acesso em: 27 out. 2015. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil 1816-1831. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1971.

GAUDENCIO, Lilian Filgueiras. A brasilidade do Mobiliário Português no século XIX. 2009. 81 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Engenharia, Desenho Industrial, Universidade do Porto-FEUP, Porto, 2009. LEMOS, Carlos A.C. A evolução da casa brasileira. Transcrição curso. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2005. MADUREIRA, Nuno Luís. Cidade: espaço e quotidiano (Lisboa 1740-1830). Lisboa: Horizonte, 1992. MELO, Alexandre Penedo Barbosa de. Design do mobiliário moderno brasileiro: aspectos da forma e sua relação com a paisagem. 2008. 331 f. Tese (Doutorado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro: Record, 1999. SANTOS, Maria Cecilia Loschiavo dos. Móvel Moderno no Brasil. São Paulo: Studio Nobel / FAPESP / Editora da Universidade de São Paulo, 1995.


Das Cidades aos Parreirais: Urbanização Vinícola no Vale dos Vinhedos, RS

Resumo A paisagem vinícola é a expressão do trabalho do homem sobre o território, no qual imprime sua identidade cultural e marca a fixação de sua história ao longo do tempo. O artigo visa investigar as mudanças urbanas causadas pela introdução da indústria vinícola na região do Vale dos Vinhedos e seu gradativo processo de transformação, apontando as suas implicações na paisagem cultural e urbana Rio Grandense. O que permite a analise de como a crescente urbanização resultou em uma grande perda de valores culturais e de sua identidade do território. Para isso serão analisados mapas urbanísticos e paesagisticos, livros de cultura do Rio Grande do Sul e teses teóricas. O percurso histórico das transformações paisagísticas é discutido, iniciando nas primeiras plantações de parreirais com a imigração italiana, culminando na criação dos primeiros núcleos urbanos que valorizaram o território.

Palavras-chave: Urbanização. Modificações da Paisagem. Herança Cultural. Vinícolas. Rio Grande do Sul. Vale dos Vinhedos.


Das Cidades aos Parreirais

Introdução A região do Vale dos Vinhedos está localizada na chamada Serra Gaúcha, parte Nordeste do estado do Rio Grande do Sul. Esta é uma das maiores regiões produtoras de vinho do Brasil, e grande parte desta culpa está relacionado a forte imigração italiana ocasionada no estado. Não é possível falar de vinícolas gaúchas sem falar da imigração ocorrida a mais de 130 anos. Onde, em 1876, os primeiros imigrantes se instalaram na chamada Linha Leopoldina (Bento Gonçalves) e formaram o primeiro núcleo do Vale dos Vinhedos, com apenas 13 casais italianos. Suas vindas implicaram não apenas em um aumento da população, mas também um acréscimo de cultura, com suas práticas de produção vinícolas. Estas compreendem a uma das mais renomadas na Itália, da região de Vila Laggarina, na Província de Trento, com seu sistema de plantio tradicional das videiras, chamado pérgola trentina. Onde são vencidos

irregularidades territoriais, como montanhas, que definem a paisagem da região. Com as suas chegadas já pode-se verificar um inicio de urbanização da região, como retrata Rovilio Costa1 , em “Imigração italiana no Rio Grande do Sul”: “Nos relatos de 13 casais, que se estabeleceram nos lotes 27 (7) e 33 (6) em Dona Isabel, ano de 1876, [...] Lazaro Giordani acompanhado dos seus parentes e irmãos encararam esportivamente a situação de privação ao chegar ao Rio Grande do Sul. O primeiro problema enfrentado foi o da moradia e das estradas. Com apenas um facão, abriram em 12 horas cinco quilômetros de estrada, até chegar aos lotes 27 e 33. [...] o problema estava na moradia [...] tábuas e madeiras, como obtê-las? Alguém teve a feliz ideia de utilizar os lençóis de algodão e cobertas que trouxeram e transformá-las em telhado provisório.” 1 LAZZAROTO apud COSTA, Rovilio et al. A imigração italiana no Rio Grande do Sul: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: EST/Suliani, 1974

Figura 1. Imigração italiana. Fonte: Secretária de Agricultura do Rio Grande do Sul

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Urbanismo x Paisagem Cultural Após esta inicial formação territorial já era possível observar a construção da paisagem vinícola, própria do lugar, configurada a partir da cultura dos seus produtores. Paisagem que é descrita como uma junção de características sinérgicas físicas e culturais que dão caráter e variedade ao território e dão forma a um ambiente vivido e concebido (FARINETTI2, 2012). A relação entre homem e paisagem foi trazida pelos imigrantes, criando esse vínculo cultural dos produtores com as vinícolas na região e que foi solidificada com a criação do Projeto de Lei n° 44/2012, pela Assembléia Legistlativa do Estado do Rio Grande do Sul, que declara o Vale dos Vinhedos Patrimônio Histórico e Cultural do estado. O qual cria um compromisso de preservação histórico cultural do Vale. O enfoque cultural nos territórios vinícolas é alto por estar relacionado a um a uma herança familiar em seu modo de cultivo, seu entorno construído, sua paisagem e em todos as suas etapas de produção. Isso se evidencia na cultura vinícola mundial, onde por mais que existam modernidades em suas produções, ainda é possível ver tradições e heranças familiares de dezenas de gerações. Heranças, essas, que depois de anos presentes na Itália foram trazidas para serem utilizadas e aperfeiçoadas na Região Sul do Brasil. Nos anos de 1884 e 1885 já estava evidente na área urbana o crescimento econômico da região, com uma população de cerca de 850 habitantes3 e comércios que atendiam as suas demandas. Mas a medida que ocorriam aumentos populacionais e produtivos eram necessários modernizações para o aumento do mercado do vinho. Em consequência disso, em 1907, o enólogo italiano, Lourenço Mônaco, chegou ao Rio Grande do Sul para introdução de novos maquinários e o aumento da produção de Bento Gonçalves. 2 FARINETTI, Emeri. I paesaggi in archeologia: analisi e interpretazione. Roma: Carocci, 2012, p.9 3 CAPRARA, Bernardete Schiavo; LUCHESTE, Terciane A. Da Da Colônia Dona Isabel ao Município de Bento Gonçalves: 1875 a 1930. Porto Alegre: CORAG, 2005, p.190.

Com o melhoramento do plantio e produção vinícola, em 1912, o vinho começava a ter visibilidade econômica no Brasil. Fato que se consolidou em 1928, onde o vinho se configurava como um dos principais produtos exportados. E junto com seu escoamento a partir da estrada de ferro, começavam a aparecer mais profissões e centros comerciais. A formação urbanística da sua zona rural estava se consolidando na região com a criação de estradas e acessos, pontes para vencer as grandes declividades territoriais. O que se evidenciou mais com a grande obra da Ponte do Rio das Antas, que ligava Bento Gonçalves com a sua Região Norte, que foi um marco de desenvolvimento nacional. O crescimento econômico em 1970, onde a produção vinícola apresentava grandes excedentes, implicou na criação de uma festa em que se celebrasse o vinho, a chamada Fenavinho. Festa que movimentou toda a comunidade urbana e rural. E junto com isso, impulsionou uma verticalização e expansão urbana. O inicial núcleo urbano, no ano de 1900, sofreu uma significativa expansão urbana que configurou novos limites para a sua área, como

Figura 2. Processo urbanístico de 1900 a 1976. Fonte: Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Bento Gonçalves.


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Figura 3. Aproximação das plantações a zona urbana. Fonte: Museu do Vinho de Bento Gonçalves

pode ser verificado na figura 2. Bento Gonçalves, que inicialmente era apenas um centro regular a pequeno, foi se expandindo de forma descentralizada a medida que os anos se passavam, para atender seu crescimento industrial. Consequentemente a área urbana começou a se aproximar da área rural. E em 1975, 100 anos após a imigração, já era evidente um processo de urbanização irreversível, o que configurou, nos anos subsequentes, um decréscimo da população rural e um aumento da população urbana. Esta criação de industrias próximas a zona rural criam danos ao território e prejudicam a preservação da história e do patrimônio local. Segundo Delphim4: “Ao se implantar uma fábrica em uma zona rural, destrói- se inicialmente o testemunho da atividade agrícola original do terreno. Em seguida, dos terrenos contíguos, cujos plantios, formados, 4 DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves, RS: impacto cultural e proposta de gestão. Brasília: IPHAN, Coord. de Patrimônio Natural, Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, 2013, p.156.

sobretudo por pomares e vinhedos, vão dando lugar a novas indústrias.” A urbanização do Vale dos Vinhedos criou uma contradição entre dois polos, de uma lado a paisagem vinícola, e do outro uma rede urbana crescente. Esta paisagem foi formada a partir do trabalho do homem, refletindo seus ideiais e sua identidade. Já urbanização cresce sobre esse território, ameaça e modifica a paisagem, colocando em risco os valores culturais mantidos por mais de um século. A paisagem é um fator de agregação do valor do território vinícola, já a urbanização progressiva tem dado lugar a especulação imobiliária e uma modificação do território em sua essência, de sua arquitetura e de sua cultura. As modificações territoriais, em consequência da urbanização, alteram os valores culturais expressos em diversos pontos da sociedade, como na arquitetura, no artesanato, na gastronomia e assim por diante. Fatores esses relacionados diretamente com a cultura da produção do vinho, que define a identidade do território em questão. Acrescidos a isso, o Vale dos


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Vinhedos, necessita de áreas para suas plantações, onde não houve expansão urbana, pois ela coloca em risco o legado cultural construído e produtivo. Para Roger Chartier5: “A História Cultural [...] tal como entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supõe vário s caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real [...]. As representações do mundo social assim construídas [...] são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam.” A urbanização não ocorreu apenas para atender o mercado industrial, ela se complementou com o aumento prédios que procuravam atender o turismo local. Esta comprometeu a linha do horizonte na região, com seus prédios de mais de 4 pavimentos. Acrescido a esses fatores, têm-se um urbanismo não apenas nas cidades onde há vinícolas, mas também nas cidades dos seus entornos. Em consequência dessa mudança do uso do território no Vale dos Vinhedos, houve um abandono da terra e da produção, devido principalmente ao aumento do turismo que criou barulhos excessivos e multidões em zonas que um dia eram mais calmas. Alguns moradores saíram por conta própria e já outros foram obrigados, para abrir lotes para os prédios e indústrias maiores. É nítido uma transformação nos usos do solo, com teor imobiliário, para explorar a paisagem cultural. Essa que é determinante para as vendas, devido a sua beleza e formação do solo, e que atraiu as criações de condomínios. Criando assim um aumento de densidade populacional local, agravando os problemas na região. 5 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.16

A criação dos condomínios na região interferem diretamente na paisagem local, pois urbanizam as zonas rurais, locais que deveriam ser unicamente de plantio. Essa mudança implica em desequilíbrios, que não deveriam acontecer, como no solo, na população, na arquitetura. A valorização econômica dos lotes da região tornou inviável a compra para pequenos produtores devido aos altos custos. Graças a isso, esses produtores levam sua herança cultural para outras regiões do Rio Grande do Sul, deixando apenas as grandes indústrias tomarem conta do monopólio comercial da região. O abandono desses vinicultores implica a abertura de lotes para hotéis, restaurantes, lojas, que inferem na paisagem. A falta de valorização da identidade do local pode exterminar a história ali vivida, o que implica, no futuro, uma falta de identidade em seus produtos, vendidos tanto nas propriedades quanto nas vinícolas. Exaltar a história de modo de plantio e de produção de famílias tradicionais é de extrema importância, para que a herança familiar continue. A criação dessa paisagem cultural foi graças aos imigrantes italianos que levaram o plantio vinícola ao seu máximo no Brasil, tornando-se referencia nacional. Para esses imigrantes, o vinho foi o centro cultural de seus cotidianos, trazendo esperança para um futuro na nova terra em que se instalaram. Esperança não só de instabilidade e comodidade, mas também econômica, em um dos produtos que criou maior visibilidade regional e nacional para a Serra Gaúcha. A paisagem cultural do Vale dos Vinhedos tem grande importância por ser o único território vinícola do Brasil a possuir a Denominação de Origem reconhecida por seus vinhos, fornecida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O que define que o território deve ter como base o uso do solo para cultivo vinícola por excelência.


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Para aumentar a excelência do local não se pode perder essência do vinho, esta que se exprime em uma produção de um vinho que expresse a identidade de seus produtores e do lugar onde foi produzido. O que pode ser verificado em um união entre o saber fazer e o Patrimônio Imaterial que deve ser inserido em cada garrafa. Esse poder expresso em seus vinhos tem-se perdido, apenas devido a procura por produção em massa e pela igualização a vinhos de outros países, perdendo sua identidade verdadeiramente brasileira. Todas as modificações realizadas em um paisagem vinícola criam consequências, algumas irreversíveis. A grande urbanização põe em risco valores culturais acumulados durantes anos, e pode por fim a uma história de formação paisagística fundamental na história nacional. Para conter essa urbanização é preciso que ocorra uma conscientização em relação ao tema, através de estudos e conhecimento da região, para ser assim possível manter a tão preciosa paisagem vinícola do Vale dos Vinhedos. Desta forma, os valores culturais ali aglomerados seriam mantidos, e não perdidos, conservando a memória e identidade do local. O Brasil já pôs em enfoque a paisagem cultural desde 1 de julho de 2012, onde a cidade do Rio de Janeiro foi declarada Patrimônio Cultural daHumanidade pela UNESCO6, devido a sua paisagem. Pela primeira vez no mundo uma cidade é declarada patrimônio por sua paisagem cultural urbana, onde ocorre uma mistura entre natureza, arquitetura e urbanismo. Esta declaração abre precedentes para a conscientização e preservação da paisagem cultural, como comenta Chuva7: “Originariamente lançada pela UNESCO, a categoria de paisagem cultural talvez seja hoje um dos principais passos dados no sentido da superação da falsa dicotomia entre patrimônio material e imaterial, pela ênfase na relação entre o homem e o meio, especialmente se associado à noção de lugar.“ 6 BRASIL. Ministério da Cultura. IPHAN. UNESCO aprova título de Patrimônio Mundial para a Paisagem Cultural do Rio de Janeiro. Julho de 2012. 7 CHUVA, Márcia. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, IPHAN, n.34, p.147, 2012.

Figura 4. Processo de extração das uvas em 1960. Fonte: Museu do Vinho de Bento Gonçalves

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Conclusões “A paisagem é a expressão formal dos numerosos relacionamentos existentes em determinado período entre o indivíduo ou uma sociedade e um território topograficamente definido, cuja aparência é resultante de ação ou cuidados especiais, de fatores naturais e humanos e de uma combinação de ambos.” Carlos Fernando de Moura Delphim A cultura dá sentido, valor e significado ao território, e o que difere a paisagem natural da cultural é a ação humana. Nesse sentido, o vinho para obter sua melhor qualidade deve englobar as tecnologias sem esquecer de sua cultura local. O Brasil deve seguir como modelo outras vinícolas mundiais, não copiando seus vinhos e sim valorizando a sua identidade nacional. Em sentido disso, o embate entre paisagem cultural e território vinícola deve ser acalmado, e é preciso que ocorram decisões para a preservação da cultura. Dessa forma a paisagem cultural não irá ser destruída juntamente com a história de todo esse território. É necessário atenção nacional paisagística para um dos polos econômicos brasileiro.

Bibliografia SOUZA, Célia Ferraz de. Contrastes regionais e formações urbanas.Porto Alegre: Ed.UFRGS, 2000. LAZZAROTO apud COSTA, Rovilio et al. A imigração italiana no RioGrande do Sul: vida, costumes e tradições. Porto Alegre: EST/Suliani, 1974 FARINETTI, Emeri. I paesaggi in archeologia: analisi e interpretazione.Roma: Carocci, 2012, p.9 CAPRARA, Bernardete Schiavo; LUCHESE, Terciane A. Da Colônia Dona Isabel ao Município de Bento Gonçalves: 1875 a 1930. Porto Alegre: CORAG, 2005, p.190. DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Análise da paisagem cultural da região de Bento Gonçalves, RS: impacto cultural e proposta de gestão. Brasília: IPHAN, Coord. de Patrimônio Natural, Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, 2013, p.156. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.16 BRASIL. Ministério da Cultura. IPHAN. UNESCO aprova título de Patrimônio Mundial para a Paisagem Cultural do Rio de Janeiro. Julho de 2012.

BERQUE, Augustin. Paisagem-Marca, Paisagem - Matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 1998. p.84-91. BRAGHIROLLI, Ângelo C. S. (Org.). Paisagens do Sul: Pareceres de Carlos Fernando de Moura Delphim sobre Bens Patrimoniais do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro; IPHAN: IPHAE, 2009. DE BONI, Luis Alberto. A Itália e o Rio Grande do Sul IV. Relatório de autoridades italianas sobre a colonização em terras gaúchas. Caxias do Sul: UCS, 1983. POSENATO, Júlio. A Arquitetura da imigração italiana. Porto Alegre: EST/EDUCS,1983. CHUVA, Márcia. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, IPHAN, n.34, p.147, 2012.



Reformas de um Passeio Público

Resumo O Passeio Público do Rio de Janeiro constitui uma notável expressão do espaço público criado no Brasil, como também foi o primeiro dessa natureza, sendo reformado posteriormente. A análise de suas influências e o estudo de seus componentes, tanto quanto a expressão de sua organização serão abordados mediante o reconhecimento das técnicas e interferências que seu autor e seus reformadores tiveram como bagagem intelectual e o modo como as alterações estilísticas vivenciadas pelo Passeio Público se relacionam diretamente com os aspectos socioculturais da sociedade carioca da época, assim como o abandono corrente. Na parte final, este enfoque é desdobrado na análise especulativa de como seria o passeio público que atendesse às novas necessidades da população atual, resolvendo os conflitos enfrentados nesse século de maneira análoga a “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro” de Joaquim Manuel de Macedo. Autor este que faz uma arguta e minuciosa investigação da cena brasileira, narrando um passear, acabando em especulações de como esse passeio deveria ser para atender as novas necessidades das pessoas que ali viviam. Palavras-chave: agradáveis.

espaço

público,

reforma,

espaços


Reformas de um Passeio Público

Introdução

Quem se defronta com os elementos paisagísticos e escultóricos do Passeio Público do Rio de Janeiro logo se impressiona com a vegetação exuberante que a compõe. Mas logo sobrevém certa desolação ao verificar estar isolada na paisagem, cercada por edifícios corporativos e desprovidas de cuidados necessários. Dificilmente o observador será capaz de fazer ideia do movimento e da atividade que ali existiram, como festas, comemorações ou um simples passeio tranquilo no final da tarde. Uma sucessão contínua de desgastes e descuidados por parte da população e do governo revela o pouco zelo com um dos recintos urbanos de maior densidade histórica no Brasil e um dos mais importantes remanescentes no mundo em seu gênero. O Passeio Público do Rio de Janeiro, exemplo de como influências europeias se enraizaram no cenário brasileiro, foi projetado inicialmente por Mestre Valentim da Fonseca e Silva em 1779, e reformulação por Auguste François Glaziou em 1862. Foi composto por formas retilíneas, pavilhões quadrangulares e estátuas, criado por Mestre Valentim, artista barroco colonial brasileiro de grande importância. Depois com a reforma de Glaziou, desprezou-se as linhas geométricas próprias do estilo francês, adotadas por Mestre Valentim e introduziu no Passeio o estilo inglês, mais romântico, com caminhos sinuosos. Como uma espécie de repetição que segue o mesmo padrão, explicado por um raciocínio lógico ou simplesmente

uma relação de causa e consequência, observa-se que desde a criação do Passeio Público havia um vínculo com o contexto de região degradada e a necessidade de melhoria da qualidade de vida das pessoas que ali moravam. Concretizando a linha de raciocínio, o Rio de Janeiro de 1779, mais especificamente na região do Passeio Público existia uma lagoa chamada Boqueirão da Ajuda, única que desaguava no mar, exalava um cheiro desagradável e era um foco de peste1. Assim, decidiu-se aterrar esse local, criando um jardim sobre ele, promovendo qualidade de vida. De mesmo modo foi na reforma realizada por Glaziou, quando o Passeio já estava muito deteriorado, determinou-se uma reformulação que valorizasse o espaço e as pessoas que habitavam. Seguindo uma mesma linha de raciocínio, hoje o Passeio Público passa por certo desolamento, as pessoas já não sentem prazer e segurança em passar muito tempo nesse local. E como uma forma de intervir nessa situação, deveriam utilizar a mesma solução que se tomou nos séculos anteriores, uma reforma que atendesse as necessidades da população que utilizaria a área.

1 No século XVIII um grave surto de gripe espalhou pelo Rio de Janeiro, chamada Zamperini, nome popular que faz referência a uma cantora italiana homônima que morreu dessa mesma doença. Com o tempo a difusão dessa moléstia pela cidade foi atribuída às condições degradantes da lagoa do Boqueirão.

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Passeio Público de Mestre Valentim Contexto geral em que a obra está inserida

A arquitetura desenvolvida na Europa no fim do século XVIII e início do XIX assistiu um relevante processo de desenvolvimento em razão dos avanços tecnológicos provenientes da Revolução Industrial juntamente com as mudanças da sociedade fruto da alteração da concepção de passagem do tempo, além dos crescentes ideais iluministas. Dentro da alteração das concepções sociais e culturais temos que o pensamento Iluminista europeu repercutiu na arquitetura europeia e, consequentemente, na de algumas colônias espalhadas pelo mundo, como é o caso do Brasil. Neste período, passou-se a rejeitar aspectos barrocos como a intensa relação com a religiosidade, a qual era representada pelo exagero. Estas foram abandonadas em prol da síntese espacial e pelas formas mais racionais e objetivas do neoclassicismo. É neste contexto que o Passeio Público do Rio de Janeiro foi construído em fins do século XVIII (1779 - 1783), conhecido como “Século das Luzes” em razão do crescimento e desenvolvimento do pensamento Iluminista. Neste período, sob influência da filosofia iluminista difundiu-se na arquitetura a ideia da criação de jardins públicos, os quais eram tidos como “símbolos do pensamento iluminista a invocar formas de sociabilidade das quais a aristocracia e a burguesia encontravam um lugar comum” (SEGAWA, 1996, p. 108).

Contexto brasileiro D. Luís de Vasconcelos, vice-rei do Estado do Brasil, um autêntico déspota esclarecido, trouxe um espaço urbano nos moldes europeus, o Passeio Público do Rio de Janeiro em 1779, logo no início do seu governo. A cidade do Rio de Janeiro sofria com a carência de água, devido ao rompimento dos aquedutos das fontes públicas causado por um intenso período de chuvas que teve na época e também a região sofria com moléstias epidêmicas. A cidade do Rio de Janeiro estava, pois, em uma situação duplamente dolorosa. Mas, se alguém então desanimou não foi por certo Luiz de Vasconcelos, que deu prontas e enérgicas providências para o abastecimento d’água, assim como tomou medidas higiênicas para combater a zamperini” (Macedo, 2009: p. 92). A cidade possuía uma lagoa chamada Boqueirão da Ajuda, que logo foi considerada um foco de transmissão de doenças e devido também ao mau cheiro, o vice-rei ordenou que fosse aterrado esse charco e construído sobre ele um jardim público. Foi designado ao Mestre Valentim o projeto desse espaço urbano, mas não apenas isso, pois atuou como artista/ escultor por proporcionar a esse espaço algumas obras que compuseram esse Passeio. Esse jardim foi descrito por diversos pesquisadores, entre eles Joaquim Manuel de Macedo:


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O Passeio Público, no espaço que compreendia, representava um hexágono de lados irregulares. Tinha, porém, de frente, na rua do seu mesmo nome, cerca de oitenta e seis braças, e de fundo, do portão da entrada até o gradil do terraço, dano sobre o mar, setenta e quatro braças e sete palmos. Ficavalhe a um lado, que era o da mão direita de quem entrava pelo portão, o largo da Lapa, e ao outro o largo da Ajuda, e como apenas ficou indicado, corria-lhe pela frente a rua do Passeio, que ligava aqueles dois largos, e no fundo terminava acima do mar por elegante terraço cuja base recebia às vezes os beijos, às vezes os embates violentos das ondas, ou namoradas ou embravecidas (Macedo, 2009: p. 114 e 115). Outra importante descrição do Passeio Público foi feita pelo comerciante inglês John Luccock: O Passeio Público, embora pequeno, perfeitamente plano, construído em estilo muito afetado e negligentemente mantido, reclama para si o primeiro lugar entre os sítios de divertimento do Rio. A entrada para esse retiro favorito é pela Rua das Marrecas, através de um belo portão... Pela frente desse portão, a alameda principal se estende até um terraço, no lado oposto do jardim, elevado cerca de dez pés acima do nível natural do terreno. Em frente dele há uma gruta artificial, coberta de vegetação, em meio da qual se veem engalfinhados dois jacarés de bronze, de cerca de oito pés de comprimento (Luccock, 1951: p. 59).

Figura 1 - Traçado do passeio público

O Passeio Público do Rio de Janeiro é um importante marco em diversos aspectos, primeiramente como histórico, em razão de ter sido criado no período em que a família real portuguesa iniciava sua vivência em terras brasileiras, o que levou a diversas alterações no intuito de deixar a cidade do Rio de Janeiro com “feições” mais próximas do continente europeu; segundo como arquitetônico, por se tratar do primeiro jardim público planejado do Brasil, o que apresentou ao território pátrio a estética europeia e serviu de inspiração para uma série de outros jardins em Belém, Olinda, Vila Rica e São Paulo. Sua construção reflete de forma clara o viés que o iluminismo atribuiu a arquitetura sob a ótica da influência francesa, especialmente no desenho do eixo principal e das alamedas em diagonal. Quanto ao seu uso, temos que refletia o “elitismo” da sociedade colonial, onde a concepção de público não se aplicava a todo o contingente populacional da cidade, aspecto este que foi bem abordado pela literatura: (...)os passeios, chamados públicos [...], cercados de grades de ferro, similares aos muros existentes em volta das casas mais elegantes, estão limitados ao usufruto das pessoas com botas de verniz, chapéus, gravatas, chapéu-de-sol - sinais de classe e de raça. Somente aos pretos de pés descalços como aos comerciantes em chinelas e cabelos curtos e mesmo aos portugueses em tamancas [...], estes jardins e passeios, chamados públicos, estavam fechados” (Freyre, 1990: XLII).

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Figura 2 - O Passeio Original na planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, por C. Rivara, 1808.

Passeio Público de Glazou Contexto geral em que a obra está inserida A arquitetura europeia do século XIX esteve marcada por diversas variações estéticas combinadas com a crescente inovação tecnológica, essas manifestações contemporâneas acabaram por serem traduzidas pelos chamados movimentos revivalistas. Os arquitetos da época viam na reprodução da arquitetura do passado uma expressão legítima a ser consolidada. Não obstante, foi dentro desse contexto que as transformações industriais repercutiram de forma degradante o meio urbano, péssimas condições de vida da população operária, a grande concentração da população nos

centros industriais e a poluição atmosférica oprimiram o contexto urbanístico e paisagístico das cidades. O Passeio público reformulado por Auguste François Glaziou em 1862, diferentemente de um contexto marcado por transformações industriais intensas, o Rio de Janeiro ainda caminhava para o surgimento das primeiras indústrias. A falta de uma urbanização coerente e o crescimento populacional fizeram com que um remodelamento fosse necessário a começar pela reformulação do Passeio público.

Contexto brasileiro A sociedade brasileira passou por inúmeras transformações tanto no campo políticoeconômico quanto no campo social. A mudança de governo, a realização de uma Constituição, a substituição do trabalho escravo pelo assalariado, o crescimento das cidades e o surgimento das primeiras indústrias marcaram de forma clara o contexto brasileiro. O passeio público necessitava de uma nova modelação, frente às inúmeras transformações da época, o estopim para essa reformulação esteve atrelada a visita do príncipe Maximiliano da Áustria ao Brasil, em janeiro de 1860. A situação degradante em que o Passeio se situava criou bases para que uma nova restauração fosse requisitada.


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(...) o príncipe deixou o caminho das alturas, penetrou no seio da cidade, dirigiu-se pela rua das Marrecas, e entrando no Passeio Público, foi subir ao terraço, donde poderia apreciar ainda uma vez a magnificência da nossa baía. Mas, ah! Mal tinha o arquiduque avançado quatro passos no recinto da elegante varanda, e já com ambas as mãos levava o lenço ai nariz!... O nossso vexame foi tão grande que um brado geral soou, e o governo não teve remédio senão acordar e olhar para o Passeio Público” (Macedo, 2009: p. 114 e 115). O então paisagista francês Auguste François Marie Glaziou desligou-se das linhas geométricas para apossar-se das ruas em linhas curvas e extensões. Houve um grande cuidado na escolha de árvores e plantas graciosas e raras, e uma análise ensejada nas leis da perspectiva na disposição das árvores, de maneira que “entre elas os olhos do observador vão espraiar-se ao longo e gozar ainda muito além dos limites do Passeio os panoramas admiráveis de sítios pitorescos que aformoseiam a cidade do Rio de Janeiro” (MACEDO, 2009, p.145)

Figura 3 - Planta da reforma de Glaziou

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Passeio Público Atual De modo geral no final do século XX e no século XXI, a violência urbana aumentou cada vez mais, surgiu o medo pelos espaços públicos e pode-se constar a migração de casas para condomínios tanto verticais quanto horizontais, verdadeiras fortalezas medievais que deveriam ser intransponíveis. Surgimento de arranha-céus cada vez mais altos e todo esse cenário contribuiu para o isolamento das pessoas em espaços sempre privados, diminuindo assim o valor do espaço público. Parques que antes faziam parte dos passeios matinais ou momentos de descanso e relaxamento com os amigos não tem mais seu grande prestigio. No Rio de Janeiro essa situação não foi diferente, o Passeio Público já não possui a importância que um dia tivera. Dificilmente as pessoas passam pelo local e tem a consciência que estão em uma área de grande prestigio passado. O que se verifica no momento presente é outra vez uma série de depredações e descuidos, uma falta de interesse e valorização do patrimônio histórico da cidade. Pode-se dizer que essa área é uma grande rota para os rápidos transeuntes que ali trabalham, caminho em direção aos transportes públicos para o retorno do trabalho para casa e vice-versa, por isso consta certa frequência de passageiros pelo Passeio durante a labuta dos dias. Essa hipótese pode ser confirmada ao andar pelo lugar no fim de semana, quando já não existe fluxo de pessoas

para os seus trabalhos nesses edifícios corporativos que circunda a área. Fato que explica o abandono corrente e apenas a presença de moradores de rua, um local de que deveria ser de permanência, mas agora é apenas de preocupação para a sociedade. Entretanto, apropriando-se da ferramenta especulativa que tanto utilizou Joaquim Manuel de Macedo em seu livro “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”, soluções podem ser elucubradas para esse espaço que um dia também já esteve tão desgastado mas que reformas foram suficientes para retomar seu valor funcional. Observa-se grande potencial para sua melhoria, pois, como Central Park é imerso em um local extremamente urbanizado, cercado de arranha-céus, o Passeio Público tem esse potencial de “oásis no meio de um deserto” ou de “pulmão no meio de um cidade densa”, evidentemente em escala menor. Pois como descreve Inês El-Jaick Andrade a respeito da concepção do parque à maneira do paisagista norte-americano Andrew Jackson Downing: (...)o parque deveria não só ser projetado para oferecer uma paisagem agradável aos seus frequentadores, mas como uma terapia para a doença, o caos, a sujeira e a violência da metrópole moderna. Partindo do conceito de uma arcádia metropolitana inovadora, com espaços de entretenimento modernos (diversão) e sentimentalismo bucólico (solidão)” (Andrade, 2010, p.106).

Figura 4 – Vista aérea do Central Park


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Conclusão Independente do período histórico, os parques e passeios públicos necessitam de reformas no decorrer do tempo para adequar às necessidades da população que ali vive. Naturalmente, os espaços públicos vão se desgastando, e por isso a importância do seu cuidado e reformas quando oportunas. Para cada época existe uma carência da sociedade e uma relação com o espaço público, não sendo um exceção, esses lugares atualmente também precisam dessa reciclagem.

Bibliografia ANDRADE, Jorge. Passeio Público: a paixão de um vice-rei. Rio de Janeiro: Litteris Editora, 1999.

GALLERANI, Maria Aimée Chaguri. O ideário iluminista no passeio público de Mestre Valentim.

ANDRADE, Inês El-Jaick . A idealização do espaço verde moderno. São Paulo: Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.17, n.20, 2010.

HETZEL, Bia e NEGREIROS, Silvia. Glaziou e as raízes do paisagismo no Brasil. Rio de Janeiro, Manati, 2011.

ARAGÃO, Solange e SANDEVILLE JÚNIOR, Euler. O passeio público do Rio de Janeiro na literatura, na pintura e na fotografia do século XIX. São Paulo:n. 30- p. 187-202 – 2012. CARVALHO, Ana Maria Fausto Monteiro de. Mestre Valentim. São Paulo: Cosac e Naify, 2000. DOURADO, Guilherme Onofre Mazza. Belle époque dos jardins da França ao Brasil do século XIX e início do XX. Tese de doutorado Escola de Engenharia de São Carlos/ USP, 2009. FERREIRA, Adjalme Dias. Efeitos positivos gerados pelos parques urbanos: o caso do Passeio Público da Cidade do Rio de Janeiro. Niterói: [s.n.], 2005.

MACEDO, Joaquim Manuel de. Um Passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ganier, 1991. MARIANNO FILHO, José. O Passeio Público do Rio de Janeiro (1779-1783). Rio de Janeiro: A Noite, 1943. PEIXOTO, Clarice Ehlers. Envelhecimento e imagem: as fronteiras entre Paris e Rio de Janeiro. Editora AnnaBlume, 2001. SEGAWA, Hugo. Ao amor do público: jardins no Brasil. São Paulo: Studio Nobel, 1995. VILAS BOAS, Naylor Barbosa. A reconstrução virtual do antigo passeio público de Mestre Valentim: Metodologia de Pesquisa. Rio de Janeiro: Sigradi, 2000.

Figura 5 – Vista aérea do Passeio Público do Rio de Janeiro


Ludicidade em 5 Atos: “Arretada ” além dos “Olhos de Ressaca ” 1

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1 “Arretada” – expressão tipicamente nordestina que valoriza positivamente um objeto ou pessoa 2 Referência à descrição feita aos olhos da personagem Capitu em Dom Casmurro (Machado de Assis).

Resumo dos variados interiores criados dentro de um mesmo espaço à espaços cenográficos imaginados pelas mentes criativas, a parceria entre o diretor Luiz Fernando Carvalho e o artista plástico Raimundo Rodriguez levou à televisão brasileira nova apropriação do Brasil Colônia e Império com as microsséries1 “Capitu”(2008, TV Globo) e “A Pedra do Reino”(2007, TV Globo). Ambas seguem distintas escolhas estilísticas para contar as histórias de época, engajando os telespectadores num jogo visual e inovador, deixandoos presos à sua dinâmica. Pretende-se, por meio deste, compreender as implicações destas escolhas estilísticas no processo de adaptação da arquitetura, interiores e contexto urbano das regiões tratadas, compreender sua fidedignidade às realidades locais e questionar o quão livre são tais escolhas, se positivas ou negativas e se coniventes com a história arquitetônica e cultural brasileira. Palavras-chave: Direção de Arte. “Capitu”. “A Pedra do Reino”. Cenografia. Luiz Fernando Carvalho. Raimundo Rodriguez.

1 dios

Minissérie com relativamente pequena quantidade de episó-


Lucidade em 5 Atos

Introdução “Ludicidade – Forma de desenvolver a criatividade, os conhecimentos, através de jogos, música e dança. O intuito é educar, ensinar, se divertindo e interagindo com os outros. O primeiro significado do jogo é o de ser lúdico (ensinar e aprender se divertindo).” (Dicionário Informal) Lúdica no sentido de incitar o imaginário de quem assiste e provocar questionamentos a respeito da trama contada nos poucos capítulos, contextualizar as obras tão renomadas sem por isso fazer dos detalhes cenográficos mais relevantes que seus enredos. Brincar com o que se tem e criar novas apropriações artísticas para as visões e composições da época. Contrastar novo e velho, Nordeste e Sudeste, sem por isso perder lógica a troco de frivolidades. Com o poder não só do discurso mas também da inovação estética e artística nas obras televisivas, o diretor Luiz Fernando Carvalho, em parceria com o cenógrafo e artista plástico Raimundo Rodriguez, ganhou tremendo reconhecimento entre 2007 e 2008 não só pela crítica mas também pelo público que abraçou sua genialidade e se prendeu às “TVs” para assitir suas adaptações de clássicos da literatura brasileira em estilo muito peculiar. As obras brincam com as imagens précriadas das épocas e locais representados,

Figura 1 - Logotipo microssérie Capitu (2008) Fonte: Memória Globo

deixando livre à apropriação do espectador o engajamento e entendimento. Tal ludicidade é fruto de escolhas estilísticas do design das produções e do departamento de arte. Aqui serão contrastadas e analisadas tais escolhas. Em meio a um comparativo entre as duas microsséries da TV Globo, Capitu (2008) e A Pedra do Reino (2007), adaptadas do acervo de Machado de Assis e Ariano Suassuna, respectivamente, pelo diretor. Tendo como base o entendimento da vivência, urbanização e arquitetura do período colonial brasileiro, tais jogos e brincadeiras estéticas serão analizados. Não só para compreender o quão fidedignos aos contextos do Rio de Janeiro e do Sertão Nordestino as obras foram, mas também o que de fato se ressalta, se critica e se absorve das mesmas. Um estudo minucioso do trabalho dos diretores, a importância de suas escolhas e deixando clara uma questão principal: o quão visualmente fiel há de ser uma obra para que as massas apreendam sobre o que fala a trama e o quão lúdica pode-se ser esta arquitetura televisiva para que o telespectador tenha a noção correta de tempo e espaço? O quão lúdico se pode ir com a licença artística sem distorcer a história? Uma análise da arquitetura real em contraste com a arquitetura representada.

Figura 2 - Logotipo microssérie A Pedra do Reino (2007) Fonte: Memória Globo

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O Trabalho Inovando e reinventando os formatos tradicionais da televisão brasileira, a parceria gerou bons frutos e capturou olhares críticos – não só de críticos de fato, mas de todo aquele que se encanta por literatura, teatro e até história. Explorando tamanha dinamicidade das formas e enriquecendo a poesia das obras, juntos, diretor geral1 cenógrafo, passaram a cativar o público com um olhar afastado dos clichés e cópias, olhar este que Luiz Fernando Carvalho já vinha cultivando com toda a teatralidade que leva até a televisão. Não só com distinto posicionamento de câmeras e um bom roteiro adaptado se fez as microsséries aqui tratadas, Capitu e A Pedra do Reino são ambas exemplos do sucesso da colaboração dos dois artistas aqui citados. No ritmo compassado pelo imaginário do diretor e contextualizado pelos espaços, cores e materiais criados por Raimundo Rodriguez, Dom Casmurro (Machado de Assis) e O Romance d´a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (Ariano Suassuna) encontraram seu caminho para a televisão da forma mais completa e autêntica possível. Luiz Fernando Carvalho é um cineasta e diretor de televisão brasileiro, com formação em arquitetura e letras e que vem acumulando projetos de renome e variados prêmios. Já Raimundo Rodriguez é filho de carpinteiro, não cursou o ensino superior mas conta que sua formação vem do Ciep2, é animador cultural e um dos fundadores do coletivo de arte Imaginário Periférico3. Diz ele que gosta daquilo que é visivelmente cheio aos olhos, seguindo caminhos cada vez mais contrários à estilos minimalistas e mostrando seu estilo único onde quer que venha a se envolver. “Tanto na vida como na arte, gosto de muito” –­ diz o artista.

Machado de Assis, Ariano Suassuna e a Adaptação das Obras Citadas

Capitu (2008, TV Globo) e A Pedra do Reino (2007, TV Globo) são frutos da parceria citada anteriormente, mas cabe aqui também conferir ao processo de adaptação de obras literárias clássicas um caráter de parceria entre autor e aquele que adapta, sendo reservado ao segundo a tarefa de fazer jus ao peso do trabalho do anterior. 1

Profissional que dirige, planeja, organiza e controla as atividades de diversas áreas da produção.

2 Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), popularmente apelidados de Brizolões, foram um projeto educacional de autoria do antropólogo Darcy Ribeiro que os consideravam “uma revolução na educação pública do País”. 3 O grupo Imaginário Periférico – meio artístico natural do Rio de Janeiro.

Figura 03 – Luiz Fernando Carvalho e Ariano Suassuna (2008) Fonte: Memória Globo

Figura 04 – Raimundo Rodriguez Fonte: blog ArtArte (website)


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Capitu veio da adaptação de Dom Casmurro4 (1899), da obra de Machado de Assis. Aqui, no processo de adaptação, foi necessário considerar não só o caráter estético e rítmico dos cinco capítulos mas também as falas de Bentinho (protagonista), da própria Capitu e dos demais caricatos personagens nos diálogos vivenciados nas dependências das residências do antigo Rio de Janeiro. A microssérie mostra as duas fases em que o romance se divide: o amor adolescente de Capitolina (Letícia Persiles), e Bento Santiago (César Cardadeiro); e o ciúme que Bento (Michel Melamed), já casado com Capitu (Maria Fernanda Cândido), passa a ter de sua esposa e de seu melhor amigo Escobar (Pierre Baitelli). Tudo se passa em meio a cenários voluptuosos de casas cariocas do final do século XIX, misturando-se ao cotidiano da cidade da época e retratando a vivência de famílias “classe média alta” do Rio de Janeiro. Já A Pedra do Reino, veio de inspiração do livro O Romance d´a Pedra do Reino e O Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta5, obra de Ariano Suassuna. Na trama, o poeta-escrivão D. Pedro Dinis Ferreira Quaderna (Irandhir Santos) recorre a seus antepassados e a suas memórias para lidar com suas inquietações existenciais. Ele sonha ser o Grande Gênio da Raça, o autor de uma grande obra literária que expressa a verdadeira identidade nacional. Para tal, ele usa a imaginação para dar novo colorido à realidade. A história se passa em meio a uma currutela ou vilarejo no meio do sertão nordestino, deixando também à mostra as vivências da região e seus tipos sociais na época – com heranças culturais surgidas no Brasil Colônia. 4 Dom Casmurro é um romance escrito por Machado de Assis em 1899 e publicado pela Livraria Garnier. 5 Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta é um romance do escritor brasileiro Ariano Suassuna, publicado em 1971.

Fidedignidade e Apropiações Visuais – Contextos Urbanos Coloniais As impressões geradas a respeito do Rio de Janeiro do século XIX de Capitu, eram do Rio que até então era a sede da administração colonial e posteriormente imperial, desde 1763. Devido também à sua situação geográfica, dividia com Santos o caráter de principal cidade portuária. Em conjunto, essas duas condições fizeram do Rio de Janeiro a primeira cidade brasileira a se modernizar durante o século XIX e isso se refletia no comportamento da população que desejava se aproximar da cultura européia e do “contemporâneo” da época, modificandose hábitos e costumes. Capitu se enquadra neste intervalo de tempo, um pouco além, no caso, pós Proclamação da República mas ainda sim na agitação local. Diferentemente da arquitetura colonial antiga brasileira, as residências do Rio de Janeiro passam a ter mais importância

Figura 5 e 6 - Cenas de Capitu (2008). Fonte: TV Globo.

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e atender às elites locais – caso das famílias de Bentinho e Capitu. Nos cenários estilizados vê-se a casa como elemento central dos relacionamentos familiares da vida moderna, com mais mobília e salões de arquitetura eclética. Tudo que se sabe da cidade e se diz como acontecimento em torno da trama se trata do que é dito nos diálogos dos personagens. Em certos casos, cenas externas são filmadas no interior do edifício antigo onde praticamente toda a minissérie foi filmada – exemplo: afogamento de Escobar – refletindo o uso da novas áreas da cidade (nova utilização da praia) que aqui é predominantemente representada em tons mais sóbrios, sofisticados e cinzas, bem diferente de como normalmente se vende o Rio de Janeiro, mas configurando-se numa escolha estilística de representação da modernidade. Em certas horas usa-se contextos atuais, dos anos 2000, em filmagens que podem vir a confundir o espectador mas ainda sim refletem essa ideia de progresso. Já no caso de A Pedra do Reino, o contexto se modifica por completo. A trama se passa no início do século XX mas menciona períodos mais antigos do Brasil Colônia por todo o tempo, situa-se em vilarejo ou currutela cenográfica no Nordeste na

Figura 7 – Cena de Capitu (2008). Fonte: TV Globo. ebsite)

qual padrões bem antigos formais se estabelecem e a vivência ainda é herança do estilo de vida do fim do período imperial. É claro que ainda mais lúdica e menos baseada na realidade do que Capitu, no entanto, as dualidades entre interiores e exteriores, edificações públicas e religiosas em contraste com as residenciais também é clara. Aqui também percebe-se o contraste da amplitude do espaço público da praça onde tudo que é importante acontece em contrapartida com as casas modestas e pouco definidas. Nesta grande praça, edificações cenográficas em tons claros se erguem com aparências de um barroco brasileiro, misturando-se com os telhados das casas, as janelas de madeira

Figura 8 -Cenas de Capitu (2008). Fonte: TV Globo.


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Figura 9 –Cena de A Pedra do Reino (2008). Fonte: TV Globo.

emolduradas em branco e os santos fixados às fachadas. Além disso, cidade é fechada por uma muralha com grande porta onde tudo que chega ao local se torna mais relevante ao passar por ali, relembrando aspectos medievais pelos quais o Brasil nunca passou mas refletindo o caráter de currutela onde o que há de novo torna-se um marco, sempre na praça.

Relação Interior x Exterior, Ornamentos, Composições e Contexto Estudando-se a arquitetura colonial brasileira pouco mais a fundo e buscando valores semelhates retratados em ambas as microsséries, muito pode ser tido como fiel a realidade e muito pode ser visto como lúdicas escolhas dos autores. O fato de Capitu ter sido inteira filmada no interior de um único espaço (Sede do Automóvel Club do Brasil) construído também durante o Brasil Colônia, limita certos aspectos visuais mas ao mesmo tempo reforça o contexto da época e liberta a imaginação para novas formas. O fato de ser filmada dentro deste único local também faz focar-se nos espaços dos interiores das casas, tão importantes no Rio do fim do século XIX e começo do século XX, contrastando com os cenários de interiores nordestinos pobres em mobília e luminosidade de A Pedra do Reino. Nesta segunda, a microssérie montada numa cidade cenográfica no sertão, é óbvia a relação entre interior e exterior, e o quão mais importante era o meio público em comparação ao espaço privado. Talvez esta relação interior x exterior torne-se aqui o elemento mais contrastante e mais fiel à realidade nestas duas obras. Em Capitu, vê-se a modernidade do Rio de Janeiro vivenciada nos interiores, voluptuosos e mobiliados enquanto em A Pedra do Reino a luminosidade e edificações da praça deixam clara a realidade da vida sertaneja colonial, de casas simples, predominantemente vazias e pouco iluminadas – num jogo de luz e sombra barroco como a arquitetura religiosa das igrejas locais. Em Capitu, as paredes e colunas do Salão do Automóvel Club do Brasil foram revestidas com camadas de papel para dar a aparência de ruínas e encobertas com cores da última pintura do local. Os antigos espelhos manchados e os tetos de cores neutras foram mantidos, reforçando ainda mais o aspecto autêntico do período representado. O chão do salão foi pintado de preto e o quintal e o muro que separa as casas dos dois vizinhos foram desenhados ali, em giz, como um grande quadro negro – tratando metaforicamente da imaginação de Capitu. O espaço contextualizava a casa da rua Matacavalos, o seminário e a casa de Escobar.

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A Sede do Automóvel Club onde tudo foi filmado, configura-se num edifício rico em história devido às sucessivas reformas durante o período imperial e às variadas funcionalidades que teve ao longo dos anos, sendo mais antigo até que sua própria fachada neo-clássica posteriormente construída. O edifício foi tratado pelo diretor como local ideal para contar a história de um homem em ruínas – Bentinho torna-se prisioneiro patológico da própria imaginação. Em meio à linguagem teatral das cenas, a temática urbana torna-se clara, numa busca dos personagens em viver um estilo de vida “clássico/contemporâneo”, quase que parisiense no meio carioca. Os longos vestidos vestem moças e mulheres de vocabulário enriquecido, de fato bem Machadiano, em meio aos tons sóbrios de materiais e cores que revestem as muitas cortinas dos interiores e revelam-se sob efeitos de luz não tão intensamente barrocos mas mais neo-clássicos ou românticos. No caso de A Pedra do Reino, os tons quentes e amarelados, empoeirados, a Literatura de Cordel e o Cangaço com seus tipos sociais são claras influências nas escolhas dos diretores. Um reflexo da vida local não só no calor do sertão onde cerrado e caatinga se misturam, mas do folclore. Os contrastes entre rico e pobre se dão na materialidade dos figurinos, em peças de ouro falso e penduricalhos de metal, típicos do Cangaço. Como dito anteriormente, os interiores das casas são simples, possuem paredes de arquitetura bruta representando a taipa de pilão ou o adobe e com crucifixos ou retratos pendurados representando as dualidades entre sacro e pagão. São escuros e “barrocamente” iluminados.

Nas acomodações da igreja, o aspecto escuro ainda se destaca, mas também mostra mais a sensação de sacralidade e certo mistério, típico de romances nordestinos. O ouro, a ornamentação e as estampas nas cortinas também tornam claro o contexto em que a obra se passa. As cortinas/ lençóis ajudam a contar a história e dão vida a estes interiores tímidos do nordeste “arretado”, conferindo certa identidade aos interiores pouco marcados. Diferentemente de Capitu, o conjunto de cortinas marca o espaço de escala pequena, pés-direitos baixos e intimidade, já na microssérie carioca colonial, as cortinas avermelhadas dão o tom de riqueza e monumentalidade teatral, marcando a divisão dos espaços e misturando-se ao alto pédireito com varandas e maior movimento destes tecidos todos – tanto das longas peças que vão do teto ao chão como nos vestidos de Capitu. A importância da agitação do tempo é também destaque na montagem, onde uma caixa teatral (carroça de Quaderna) que gira em torno do próprio eixo é montada no centro da praça de A Pedra do Reino. O vilarejo criado foi concebido como uma cidade-lápide, com a ideia de remeter a cemitérios e criar um espaço de louvor à memória dos antepassados. O chão do local recebeu 40 cm de terra, e o espaço de 2 mil metros quadrados foi fechado transformando-se numa arena octogonal.

Figuras 10 e 11 – Cenas de Capitu (2008) e A Pedra do Reino (2007). Fonte: TV Globo.


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Figura 12 - Cenas de Capitu (2008). Fonte: TV Globo.

Conclusão Analisando-se ambas as obras com base no tempo e espaço em que se encontravam contextualizadas, é clara a ideia de que mesmo com novas formas, pouca definição de espaço e lógica e prendendo-se ao diálogo dos tipos sociais em cena, os diretores foram felizes com toda a brincadeira criada. O observador se leva a conectar-se com a trama de uma maneira distinta àquelas que a maioria das demais minisséries brasileiras tendem a levá-lo, rígida, de cenários concisos e carregados mas mesmo assim, sem muito interesse. Em outras adaptações, de modo geral, os ambientes, a arquitetura e a cidade fascinam pela beleza e pelas frivolidades dos detalhes, mas o interesse pára ali. Em muitos dos casos, obras se detém a perfeita reprodução da realidade que gera nos espectadores o imaginário das casas, modos de vida nas cidades, salas, vestuário e pratarias cumprindo a tarefa histórica de não só validar o enredo mas de certa forma “aculturar” aquele que assiste. Tais escolhas de estruturas mais rígidas e formais desenvolvem bem o trabalho mas criam tal imaginário que não necessariamente lhes engaja mais ao entendimento e vivência do período. No momento em que os idealizadores de Capitu e A Pedra do Reino decidem abstrair os contextos reais e inserir novas ideologias, muito da realidade se perde mas o dito “feeling” permanece. Os telespectadores interessam-se pelo contexto que já vêm conhecendo há certo tempo mas passam a reviver na intensidade de suas criações o tipo de vida dos personagens. Não entendem necessariamente o que a pouca mobília ou a cama de Capitu representam, nem os desenhos de giz, nem toda a areia e as imagens de santos nas paredes que cercam Quaderna, mas exercitam seu imaginário para adaptar seus prévios conhecimentos à realidade dos personagens, como num exercício lúdico de entendimento da história do Brasil. Pode-se sim questionar as decisões artísticas feitas, o quanto o cenário chama a atenção, a inserção de aspectos dos anos 2000 em Capitu ou os ornamentos falsos de A Pedra do Reino, mas cabe a todos também reconhecer o avanço do trabalho dos envolvidos neste processo e reconhecer que toda a liberdade artística utilizada apenas auxiliou a entender a vida local da época, pelo “feeling” indo muito além que as ricas pratarias.

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Artigo artigo artigo artigo

Bibliografia MOURA, Carolina Bassi de. A direção e a direção de arte: construções poéticas da imagem de Luiz Fernando Carvalho. 2015. Tese (Doutorado em Pós-Graduação em Artes Cênicas) - Universidade de São Paulo. São Paulo.

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BUTRUCE, Débora Lúcia Vieira. A Direção de Arte e a Imagem Cinematográfica: Sua incersão no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. 2005. Tese (Mestrado em Pós-Graduação em Análise e Experimentação da Imagem e do Som) - Universidade Federal Fluminense. Niterói. Rio de Janeiro.

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Duas Casas no Butantã

Resumo O presente estudo busca realizar uma análise de duas residências localizadas no bairro do Butantã, em São Paulo, tendo como foco a relação estabelecida entre seu contexto histórico, projeto arquitetônico, sistemas construtivos, espacialidade interna. Relacionando as residências, uma do período Colonial Brasileiro construída por volta da primeira metade do século XVII pelos Bandeirantes, a outra do período Modernista construída nos meados do século XX pelo arquiteto paulista Paulo Mendes da Rocha, procura-se identificar nelas se existe em ambas uma identidade regional paulista no que tange a sua relevância arquitetônica e semelhanças/ diferenças em seu partido. A pesquisa se vale de referências textuais e imagens para mostrar as instancias do projeto arquitetônico: desenho e espaço construído, e questiona: as casas tem ambas particularidades arquitetônicas que constituem um “estilo Paulista”? Se sim, quais são as atitudes espaciais/projetuais que o constituem? Concluímos então no trabalho realizado que essa questão da identidade cultural, permeia a arquitetura ao longo da história do estado de São Paulo. Palavras-chave: arquitetura brasileira, residencial, arquitetura paulista, história, paulo mendes da rocha, casa bandeirante.


Duas Casas no Butantã

Introdução A comparação entre duas casas que serão apresentadas neste trabalho, a princípio parecem completamente distintas, e incomparáveis. O fato da arquitetura moderna ser criticada as vezes por ser alheia a seu ambiente e cultura cria uma barreira e assume que ela apenas se deriva como fruto das condicionantes políticas, sociais e culturais de seu tempo, sem levar em conta o passado. Então, porque uma obra como a residência do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, olharia para uma casa do século XVII? A casa colonial bandeirista é um tipo de residência que reflete a tradição construtiva da época e acomoda famílias formadas por diversas gerações. Esse modelo de residência agrária lembra as casas do Butantã do período moderno. Para Luis Saia, a casa Bandeirista desenvolveu-se sem depender de “fenômenos alheios ao seu ambiente”, “tanto na conquista da sua autonomia social como no seu crescimento”, acabou definindo seu caráter sui generis em relação ao restante da colônia. Ele diz: “Até este período de experimentação social e econômica, este esforço de adaptação de conceitos medievais às condições específicas desta parte da Colônia Portuguêsa, corresponde a uma fase de experimentação arquitetônica. Enquanto se ajustavam as formas européias à conformidade do desenho aconselhado pelo novo conteúdo da vida social, também se reajustam a organização do espaço habitável e utilizável, a disposição dos estabelecimentos (aldeias, vilas e fazendas); escolhem-se os pontos melhor aquinhoados na estratégia colonizadora, os programas, os esquemas construtivos e a expressão plástica; pesquisam-se no complexo dos pequenos acontecimentos e condicionamento, os valores positivos, as soluções mais rendosas, as sua significação, a sua linguagem.” 1 O arquiteto paulista Paulo Mendes da Rocha buscava também em 1964 um esforço de adaptação: novas técnicas construtivas que surgiam em meio a uma discussão sobre o processo de industrialização brasileira e acompanhou o acirramento do clima político no país. Seu olhar para o período colonial é critico e propõe uma revisão do colonialismo e sua influencia em nossas cidades, no espaço habitado e conceitos de público e privado.2 Em sua obra podemos ver então, uma interpretação desse passado e o desejo de transformação e reiteração de um território. As duas obras de um programa residencial, refletem muito mais do que simplesmente um lugar de morada para clientes completamente distintos. Ambos os projetos partiram de desejos diferentes, porém são obras canônicas da arquitetura do estado de São Paulo e busca-se analisar nesse trabalho, se as duas tinham também como desejo a criação de uma arquitetura característica do estado que difere do restante do país e uma identidade cultural paulista contrastante. Se essa identidade existe, podemos dizer que ela seja presente talvez desde a época da exploração Bandeirante até o período moderno, conforme se analisa no presente trabalho. 1 SAIA, Luiz. A casa bandeirista – uma interpretação. São Paulo: Comissão do IV Centenário da cidade de São Paulo, 1955. 2 ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, Cidade e Natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

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A Casa Bandeirista “É sobretudo na aliança das paredes de taipa com o telhado de quatro águas que reside a característica mais firme desta arquitetura.”3 Os dois primeiros séculos são valorizados no texto como período de experimentação de soluções e de criação de estratégias de sobrevivência num ambiente hostil – que foi dominado pela engenhosidade do colono – onde se misturaram os elementos português e índio. Salientando o papel fundamental do mameluco na formação e efetivação da estratégia de povoamento e guerra, Saia situa a emergência das casas bandeiristas num cenário social feudal, onde os poderosos potentados administravam suas propriedades e seus privilégios políticos com a ajuda de exércitos militares formados por mamelucos, elementos que viabilizaram a criação das “máquinas de guerra” - as bandeiras.4 No estado de São Paulo a história dos bandeirantes começou a ser escrita no século XVIII exaltando a coragem das personagens através de narrativas de fatos heróicos. Também o mameluco é nobilitado pelo exercício militar e pela sua participação no episódio das bandeiras. Depois podemos dizer que houve mais duas ocasiões em que as figuras da bandeira e do bandeirante foram recuperadas do passado para servir a construções ideológicas do presente: primeiramente nos estudos históricos do final do século XIX e início do XX; e depois, no Estado Novo. Tendo como perspectiva a construção de um projeto de Nação não só com uma identidade cultural mas com uma suposta especificidade paulista e mostrar ao Brasil que São Paulo deveria liderar o processo de desenvolvimento da nação. Para o arquiteto, o tipo de planta, a técnica de se construir em taipa e o dispositivo de depósito no andar superior também compareceram em outras áreas da colonização ibérica e “denunciam sua importação já elaborada”. Mas em São Paulo, acredita, ela se particulariza, se torna “regional”, aproveitando detalhes técnicos de várias 3 SAIA, L. “Utilização do concreto armado na restauração de edifícios construídos com taipa”. In: Revista de Engenharia Mackenzie no 86. São Paulo, junho 1944, 4 SAIA, Luis. Morada paulista. São Paulo, Perspectiva, 1972.

procedências e refletindo a peculiaridade do ambiente no próprio programa do “potentado bandeirista”. Atribui ao funcionamento da faixa fronteira uma materialização do “caráter feudal” da sociedade bandeirista, revelando os elementos fundamentais da organização familiar (separada do mundo exterior e reclusa no interior da residência), sendo o alpendre a “peça mais característica desse tipo de habitação” A planta se desenvolve segundo um esquema bem preciso com regularidade geométrica, limpa, sem anexos, sem aderências, sem puxados: uma faixa social, fronteira com o exterior, que contém a capela e o quarto de hóspedes e, no meio o alpendre; atrás dessa faixa e em correspondência com as divisões dela, em torno de uma sala central os quartos se dispõem lateralmente. A faixa exterior utiliza de todo o pé-direito, e os cômodos internos dispõem de um sótão, que aproveita a declividade do telhado de quarto águas. Estão ali presentes as chamadas “alcovas”, cômodos sem iluminação natural direta, que eram os dormitórios. O espaço de dormir não era para requintes, para visibilidade, era para a escuridão, o sossego, a simplicidade, o refúgio.

Fig. 1. Planta de Situação das duas casas. Fonte: SOUTO, Ana Elisa Moraes. Projeto arquitetônico e a relação com o Lugar nas obras de Paulo Mendes da Rocha.1958-2000.


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Fig. 2 e 3. Fotos do exterior da Casa Bandeirante, após o restauro. Fonte: http://www.museudacidade.sp.gov.br/ bandeirante-imagens.php

Residência Butantã A casa situada no bairro City Butantã que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha projeta para si mesmo, localiza- se em frente a uma praça onde se situa a casa bandeirista analisada anteriormente. Foi projetada em 1964 e concluída em 1966. Aqui estamos diante do projeto de duas casas, uma para o arquiteto e a outra de sua irmã, praticamente idênticas, com apenas algumas diferenças em sua divisão dos ambiente internos. Segundo o arquiteto, as casas foram pensadas como “um ensaio de peças pré-fabricadas”.5 A estrutura modulada, o detalhamento mínimo (um só caixilho para todas as aberturas, por exemplo), o sistema estrutural simples e rigoroso, com apenas quatro pilares, duas vigas mestras e lajes nervuradas foram citados pelo arquiteto como índices de uma racionalidade que se procurou imprimir ao projeto, num momento em que a discussão sobre a pré-fabricação ganhava força no Brasil. Há que se destacar ainda uma tendência, forte entre os arquitetos mais atuantes em São Paulo, de lutar pela reinvenção do habitar urbano, entendendo a casa como núcleo gerador da cidade. Na casa do arquiteto o terreno tem formato aproximadamente retangular, deformado pela esquina em curva, o volume da edificação tem o formato que nasce basicamente desse terreno e das limitações urbanísticas impostas como recuos e área máxima de ocupação. A tecnologia do concreto protendido permitiu ao arquiteto um nível térreo livre, com apenas os 4 pilares que sustentam o pavimento superior e um núcleo de serviços. Sobre essa atitude projetual o arquiteto diz: ”A suspensão da casa em relação ao solo se refere a um problema de implantação, de espacialidade em relação à própria cidade. O lugar, uma colina na beira do rio, mas a rua principal que passa na frente já tinha sido cortada e descaracterizada. Suspendi a casa nesses quatro pilares e cortei o território da colina só por baixo da casa, criando um patiozinho protegido de modo que não aparecesse como uma ofensa à colina e ao traçado da rua existente.”6 5 Depoimento de Paulo Mendes da Rocha a Luis Espallargas Gimenez. in: PIÑÓN, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Romano Guerra, 2002. 6 Depoimento de Paulo Mendes da Rocha a Luis Espallargas Gimenez. in: PIÑÓN, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Romano Guerra, 2002.

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Fig. 4. Planta baixa e do telhado, depois da restauração, elaboradas com base em levantamento no local. Fonte: MAYUMI, Lia.Taipa, canela preta e concreto. São Paulo: Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, 2005.

Sobre o sistema construtivo empregado: o concreto, ele é fundamental na constituição da espacialidade da residência. A estrutura é uma laje nervurada aparente, as paredes divisórias internas são também de concreto com espessura mínima e totalmente independentes da estrutura portante, terminando sempre na altura da face inferior das vigas nervuradas. Essa casa é constituída, primariamente, por dois elementos: uma plataforma e uma cobertura posta por cima. É o chão com colunas, é a tenda de cobertura, ao mesmo tempo abrigo e envoltória.7 O programa residencial é distribuído no pavimento superior ocupado em três zonas paralelas às fachadas que contam com aberturas. As faixas adjacentes as aberturas são livres, contínuas, sem compartimentações, no lado sudeste existe uma espécie de varanda ou estar íntimo contíguo aos dormitórios, e no lado noroeste localizamse as áreas de estar, jantar e escritório. A faixa intermediária, sem iluminação direta para as fachadas conta com apenas iluminação zenital, é ocupada pelos dormitórios e banheiros. Essa situação onde duas das fachadas são cegas e os dormitórios voltam a ser como as “alcovas” do período colonial e aludindo à simplicidade espacial da casa bandeirista. O efeito desses dispositivos de iluminação natural na casa é de uma penumbra constante devido ao limitado acesso de luz natural e o 7 Depoimento de Paulo Mendes da Rocha a Luis Espallargas Gimenez. in: PIÑÓN, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Romano Guerra, 2002.

pequeno reforço dado pelo iluminação artificial, e cria uma atmosfera que relembra a maneira como a luz é tratada em obras da arquitetura tradicional, quando o ingresso de luz era dificultado pelas limitadas possibilidades construtivas e tecnológicas. Como na Casa Bandeirista, essa penumbra está presente nos ambientes internos, onde pequenas janelas iluminam fracamente um amplo espaço de pé-direito alto, com ausência de detalhes e cor. É interessante observar portanto como o arquiteto busca essas características de luz, textura e cor na casa PMR, e que isso não deriva nem do acaso, nem da insuficiência de recursos e meios construtivos.

O conceito de uma identidade paulista na arquitetura No ano de 1954 , quando se comemorou o IV Centenário de São Paulo. A população da cidade orgulhava-se de viver na então terceira maior cidade da América Latina, com quase 2.500.000 habitantes. O caráter industrial, cosmopolita e “progressista” da cidade era motivo de orgulho geral. A ocasião foi uma oportunidade oficial para os paulistas afirmarem a superioridade política e econômica de São Paulo sobre o restante do Brasil. O próprio trabalho de Luíz Saia, A Casa Bandeirista – uma interpretação8 foi escrito e publicado para as comemorações do IV Centenário. Com essa elaboração ideológica do passado, a idéia mesma 8 SAIA, Luis. A casa bandeirantista (uma interpretação), São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1955,

Fig. 5. Foto de uma “alcova” no interior da residência. Fonte: http://www.museudacidade. sp.gov.br/bandeirante-imagens.php


Duas Casas no Butantã

Fig. 6, 7 e 8: Fotos da residência Paulo Mendes da Rocha Fonte: http://www.leonardofinotti.co m/projects/architect-s-house-h ouse-in-butanta

da casa bandeirista adquiriu forte conotação simbólica como se o tipo bandeirista fosse o primeiro de uma linhagem hereditária, o primeiro fenômeno arquitetônico de uma linhagem. Era o berço do povo paulista, concebido e edificado pelo próprio paulista, concebido e edificado pelo próprio paulista. Na historiografia de Arquitetura, o tema paulista emerge em meados de 1960, como parte de uma discussão mais ampla acerca da arquitetura moderna brasileira, até então as análises reconheciam, apesar de uma ou outra diferença, uma coesão entre as obras nacionais tidas como modernas. Por exemplo, é notável no catálogo Brazil Builds, realizado para exposição de mesmo nome, no MoMA em 1943 que nada é comentado sobre uma diferenciação paulista do restante da produção nacional.9 No final dos anos 50, algumas leituras começam a apresentar a arquitetura paulista, vista como manifestação coletiva e independente. Em 1959, Luiz Saia publica o artigo “Arquitetura Paulista”, nele, o engenheiro-arquiteto revela a formação de um campo profissional local.10 Também emerge na época um corpo local de historiadores, que dão os primeiros passos de revisão da narrativa que entrelaçava intimamente a produção contemporânea e a herança colonial como o próprio Luiz Saia e Flávio Motta. A compreensão dessa proposta arquitetônica acaba apontando então, releituras inevitáveis de certas tradições, mais do que brasileiras, paulistas; redefinições sobre um certo lugar, escolhas e comparações entre materiais de tecnologias disponíveis, reelaborações sobre certas afinidades formais livremente eleitas.. Não podemos negar que a arquitetura moderna Paulista tem a contribuição de três dos mestres da arquitetura moderna do século XX: Le Corbusier, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright. Porém, evidentemente essa arquitetura também abraça a arquitetura pré-existente no estado de maneira as vezes não tão óbvia, como afirmou Luiz Saia: “Uma das tarefas centrais da arquitetura moderna – e talvez do próprio homem moderno – é encontrar os termos de convivência da herança positiva do passado com as pretensões e falsos valores impostos à dignidade humana pelas experiências negativas desse mesmo passado.” 11 Na obra de Paulo Mendes da Rocha, podemos perceber esse desejo, de olhar para as realidades do colonialismo em sim mesmas, e não como perenes “atrasados” em relação às antigas “metrópoles”, de maneira conectada com o restante do mundo. 9 GOODWIN,Phillip L.Brazil Builds:Architecture new and old (1652-1942).NewYork:The Museum of ModernArt, 1943. 10 SAIA, Luiz. “Arquitetura Paulista” In: XAVIER, A. (org). Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. 106-119p. Publicado originalmente em 1959. 11 SAIA, Luis.“Até os 35Anos,A fase Heróica”.In:Revista CJ.ARQUITETURA no 17.Rio de Janeiro:FC Editora,1977.

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Duas Casas no Butantã

Conclusão A análise das duas casas nos leva a concluir que, ambas possuem aspectos que se apresentam muito similares, como o partido que utiliza da geometria pura e limpa, a organização da planta em faixas, o sistema construtivo nos parece ser uma evolução natural da taipa para o concreto materiais que se aproximam na questão da textura e podemos dizer que a técnica é aprimorada devido a novas tecnologias, mas os elementos maciços sustentando uma cobertura que é abrigo estão presentes. O autor Sérgio Ferro, chegou a chamar a arquitetura moderna da Escola Paulista de “Brutalismo Caboclo”12, que é interpretada como uma referência à miscigenação do brutalismo europeu com as nossas tradições nativas. Essa Escola assumiu características formais e compositivas próprias, a ponto de conseguir afirmação como uma corrente arquitetônica autônoma e reconhecida na história. Mais que isso, seja por distinções locais, sobretudo associadas a determinadas particularidades culturais, econômicas entre outras, citadas anteriormente no texto: a questão da identidade do território paulista permeia desde a época Bandeirante até a era moderna, e a construção do que seria uma arquitetura que representa esse território e sua cultura.

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FERRO, Sérgio, Reflexões sobre o brutalismo caboclo. In: Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

Bibliografia Artigas, Rosa Camargo. Paulo Mendes da Rocha: projetos 1957-1999.a Ed.rev. São Paulo: Cosac & Naify, 2006,240 p. : il. COSTA, Lucio. Sobre uma arquitetura. Porto Alegre: Uniritter, 2007. Depoimento de Paulo Mendes da Rocha a Luis Espallargas Gimenez. in: PIÑÓN, Helio. Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Romano Guerra, 2002. FILHO, Nestor Goulart Reis. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectivas, 1970. FICHER, Silvia e ACAYABA, Marlene Milan. “Tendências regionais após 1960”.Arquitetura moderna brasileira. São Paulo, Projeto Editora. 1982. FERRO, Sérgio, Reflexões sobre o brutalismo caboclo. In: Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. GOODWIN,Phillip L.Brazil Builds:Architecture new and old (1652-1942).NewYork:The Museum of Modern Art, 1943. LEMOS, C.A. C. Casa Paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo: Edusp, 1999. ROCHA, Paulo Mendes da; VILLAC, Maria Isabel. América, Cidade e Natureza. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. 14 SOUTO, Ana Elisa Moraes. Projeto arquitetônico e a relação com o Lugar nas obras de Paulo Mendes da Rocha.1958-2000.

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura, Porto Alegre, BR-RS, 200. Ori.: Edson da Cunha Mahfuz. SAIA, Luis. A casa bandeirantista (uma interpretação), São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1955, SAIA, Luis. Morada paulista, São Paulo, Perspectiva, 1972. SAIA, L. “Utilização do concreto armado na restauração de edifícios construídos com taipa”. In: Revista de Engenharia Mackenzie no 86. São Paulo, junho 1944. SAIA, Luiz. “Arquitetura Paulista” In: XAVIER, A. (org). Depoimento de uma geração – arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. 106-119p. Publicado originalmente em 1959. SAIA, Luis. “Até os 35 Anos, A fase Heróica”. In: Revista CJ. ARQUITETURA no 17. Rio de Janeiro: FC Editora, 1977. ZEIN, Ruth Verde. A arquitetura da escola paulista brutalista 1953-1973.200. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de Pesquisa e Pós- Graduação em Arquitetura, Porto Alegre, BR-RS, 200. Ori.: Comas, Carlos Eduardo Dias. ZEIN,Ruth Verde. Breve introdução à Arquitetura da escola Paulista brutalista. Arquitextos no069,São Paulo,Portal Vitruvius, fevereiro 2007<www.vitruvius.com.br/ arquitextos/arq069/ arq069_01.asp,08pgs



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Análise Artigo Mariana artigo xartigo Ouroartigo Preto

Análise Mariana x Ouro Preto Atividade realizada em sala Minas Gerais teve intensa fase de urbanização em meados do século XVII, onde vilas e cidades vieram a se formar devido a exploração aurífera e migração de colonos. Entre tais cidades, destacam-se Mariana e Ouro Preto, ambas com grande importância porém formações distintas. Mariana, considerada a única cidade colonial situada em Minas Gerais, originou-se da ocupação das margens do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo com sistema semelhante as das demais vilas ocupadas por bandeirantes, porém, aparenta ser a única ordena e planejada. Por ser a sede do bispado de Minas e reflexo da ordem social que a coroa desejava transmitir, a cidade se mostra mais organizada, mais regular, ordenada, evoluindo do povoamento bandeirista de Vila do Carmo para uma verdadeira cidade. Seu relevo é montanhoso, porém mais regular devido à proximidade do rio, a importância das ordens Carmelita e Franciscana é clara, com as principais igrejas, de ambas as ordens, situadas numa praça central, assim como boa parte das povoados mineiros. Ouro Preto tem formação peculiar que desobedece o sistema radial de cidades tradicionais coloniais brasileiras. Possui configuração orgânica e linear, sendo posteriormente formada pela conurbação de variados povoados próximos que depois vieram a formar a antiga Vila Rica de Albuquerque. Diferentemente de Mariana, a cidade não se formou as margens de nenhum rio ou ribeirão local mas das diversas zonas de exploração de ouro que vieram a gerar tais arraiais, por isso a cidade possui terreno extremamente acidentado, com igrejas intercaladas e posicionadas em partes mais altas da cidade e demais construções nas suas redondezas. Dentre tais igrejas encontra-se a Igreja de São Francisco de Assis, situada em parte alta de destaque da cidade, em área central e de grande importância como as Igrejas do Carmo e São Francisco, de Mariana. Caracterizando-se como duas das principais cidades mineiras do período colonial, são exemplos do sistema social-político da época, contudo com extremas particularidades, sejam elas devido ao relevo, ao processo de desenvolvimento, à riqueza e até aos interesses de Portugal.

Fig. 1. Desenho – Paisagem de Ouro Preto


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Análise Mariana x Ouro Artigo artigo artigo artigoPreto

Fig. 2. Malha de Ouro Preto

Fig. 3. Malha de Ouro Preto – Formação do Aldeamentos

Fig. 4. Malha de Mariana


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Fig. 5. Igrejas no Relevo de Mariana

Fig. 6. Catedrais em Mariana e Ouro Preto


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