MEGAESTRUTURAS | Friedman, Kikutake, Nieuwenhuys e Soleri

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MEGA ESTRUTU RAS friedman kikutake nieuwenhuys soleri

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Megaestruturas | Friedman · Kikutake · Nieuwenhuys · Soleri Autor: Pedro Ribeiro Rodrigues Orientadora: Elane Ribeiro Peixoto Este livro apresenta o Trabalho Final da disciplina Ensaio Teórico da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília. Brasília, 2017 1. megaestrutura 2. arquitetura especulativa 3. anos dourados 4. tecnologia.


resumo Este ensaio explora os conceitos de megaestrutura formulados por arquitetos da segunda metade do século XX, entendendo sua grande repercussão – comprovada por projetos em diversas partes do mundo – e a relevância destes debates para o presente. Ao expressar conteúdos críticos sem a pretensão de serem materializados, essa arquitetura aproxima-se da arte, captando o espírito de uma época e afinando a relação arte-arquitetura. O termo “megaestrutura” e as proposições desta modalidade remetem aos escritos e desenhos de Yona Friedman (1923-presente), Kiyonori Kikutake (1928-2011), Constant Nieuwenhuys (1920-2005), Paolo Soleri (1919-2013), entre outros nomes da arquitetura. O trabalho problematiza questões relacionadas as proposições dos arquitetos mencionados, e procura conceituar o termo “megaestrutura” e entender o cenário de sua formulação. Considera-se a produção arquitetônica como um todo (obra escrita, representações, projeto e construção), entendendo-a como processo e não como fim. O objetivo não é esgotar as particularidades destes arquitetos, nem mesmo apresentar uma história linear de suas produções, mas identificar o modo com que pensaram suas megaestruturas, expondo e discutindo semelhanças e diferenças. Palavras-chave: 1. megaestrutura 2. arquitetura especulativa 3. anos dourados 4. tecnologia.


abstract This essay explores the various concepts of megastructure formulated by architects of the second half of the twentieth century, understanding their great repercussion – proven by projects around the world – and the current relevance of these debates. By expressing critical thinking without the pretention of being materialized realms, this architecture is closer to art, capturing the spirit of an era and narrowing the relationship between art and architecture. The term “megastructure” and the following proposals of its modality refer to the writings and drawings of Yona Friedman (1923-present), Kiyonori Kikutake (1928-2011), Constant Nieuwenhuys (1920-2005), Paolo Soleri (1919-2013), among other names of architecture. This paper questions the mentioned architect’s designs, and tries to conceptualize the term “megastructure” by understanding the scenario of its formulation. This work considers the architectural production as a whole (written work, representations, design and construction), understanding it as a process and not as an end. The aim of this project is not to exhaust the particularities of these architects, not even to present a linear history of their productions, but to identify the way in which their megastructures have been thought, scrutinising similarities and differences.

Key-words: 1. megastrutucture 2. speculative architecture 3. golden age 4. technology


resumen Este ensayo explora los conceptos de megaestructura formulados por arquitectos de la segunda mitad del siglo XX, entendiendo su gran repercusión – comprobada por proyectos de diversas partes del mundo – y la relevancia de estos debates en el presente. Al expresar contenidos críticos sin tener la pretensión de ser materializados, esa arquitectura se aproxima del arte, captando el espíritu de una época y afinando la relación entre arte y arquitectura. El término “megaestructura” y las propuestas de esta modalidad remeten a los escritos y diseños de Yona Friedman (1923-), Kiyonori Kikutake (1928-2011), Constant Nieuwenhuys (19202005), Paolo Soleri (1919-2013), entre otros nombres de la arquitectura. El trabajo problematiza cuestiones relacionadas a las propuestas de los arquitectos mencionados y busca conceptualizar la “megaestructura” y entender el escenario de su formulación. Se considera la producción arquitectónica como un todo (obra escrita, representaciones, proyecto y construcción), entendiéndola como proceso y no como fin. El objetivo no es agotar las particularidades de estos arquitectos, ni presentar una historia lineal de sus producciones, sino identificar el modo con que pensaron sus megaestructuras, exponiendo y discutiendo semejanzas y diferencias. Palabras clave: 1. megaestrutuctura 2. arquitectura especulativa 3. anos dorados 4. tecnología


Agradeço à minha família pelo constante apoio, ao Fernando por estar sempre ao meu lado e à Elane por me guiar por esta aventura.


sumário introdução

3 contextualização

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megaestrutura anos megadourados

fkns

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yona friedman kiyonori kikutake

confrontamento de projetos

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constant nieuwenhuys

passível de realização

paolo soleri

cidades pré-existentes x novas transformações transporte dimensão social do espaço controle mínimo ponto, linha e plano representação

considerações finais bibliografia

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INT TRO DUÇÃO


Este trabalho explora os conceitos de megaestrutura formulados por arquitetos da segunda metade do século XX, entendendo sua grande repercussão, comprovada por projetos em diversas partes do mundo, e a relevância destes debates no presente. Antes, porém, de aprofundar a discussão, torna-se necessário esclarecer como essas especulações da mente humana, realizadas apenas “nos papéis”, podem ser consideradas arquitetura. Primeiramente, é preciso sinalar que na sua grande maioria elas expressam um conteúdo crítico. Sem pretensão de ser materializada em aço e concreto, essa arquitetura aproxima-se da arte (CABRAL, 2007), captando o espírito de uma época. Ao expandir as fronteiras de nossa profissão, ela instiga um modo de pensar, para depois, consequentemente, influenciá-la em sua dimensão real a qualquer momento (OBA, 2015). Muitos arquitetos usam o plano abstrato e ideal para que suas propostas sejam calcadas em “campo virgem [...] livres de constrangimentos e sem se adaptarem às realidades redutoras. São manifestos (OBA, 2015). Porém, como afirma Cláudia Cabral (2007), o fato de estarem entre arte e obra arquitetônica possibilita o mal entendimento do potencial crítico dos projetos de “papel, plástico, riscos, letras”. Ainda assim, sobrevivem como importantes referências tanto para o arquiteto que os propõe quanto para profissionais futuros. Leonardo Oba (2015) aponta: “Em geral o sonho é maior que a realidade complexa e redutora. Para a História da Arquitetura, tão importante como as obras efetivamente construídas são as genealogias das ideias que as inspiraram”. O conceito de megaestrutura é, atualmente, muito associado à produção de Rem Koolhaas, especialmente 4

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ao seu conceito de grandeza (bigness) ou ao projeto Hyperbuilding de 1996. No entanto, o termo e as proposições desta modalidade de arquitetura remetem aos escritos e desenhos de Yona Friedman (1923-), Kiyonori Kikutake (1928-2011), Constant Nieuwenhuys (1920-2005), Paolo Soleri (1919-2013) entre outros nomes da arquitetura atuantes nos anos 1960. Assim, neste trabalho, retoma-se à época, afim de levantar as questões mais discutidas pelos arquitetos do período. Os quatro nomes citados são, em geral, pouco conhecidos entre os estudantes de arquitetura. Talvez, esse desconhecimento se deva a escassa ou nenhuma atenção dedicada à arquitetura especulativa do século XX. O tema é tratado brevemente por referências aos ingleses do Archigram, aos italianos do Superstudio ou aos metabolistas japoneses. Este vácuo é curioso e pode ser verificado nos poucos livros sobre o tema em bibliotecas. Estudar as megaestruturas e o pensamento que lhes originou, além de responder ao desejo pessoal deste pesquisador, pode ser uma contribuição para divulgar os debates do terceiro quartel do século XX. Como elemento arquitetônico, a megaestrutura parece suscitar novamente o interesse de arquitetos, talvez porque nele encontrem uma possibilidade para o que consideram o descontrole da cidade contemporânea que ameaça a estabilidade de nosso planeta. Mas seriam as megaestruturas uma solução plausível? Ou elas seriam a negação do que tradicionalmente se pensa como cidade? O trabalho problematiza questões relacionadas as proposições dos arquitetos mencionados, procura conceituar o termo “megaestrutura” e entender o cenário de sua formulação. Debruça-se sobre importantes arquitetos pedro ribs

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defensores dos megaprojetos e questiona por que tais proposições foram esquecidas, ressurgindo como interesse para profissionais da atualidade. Para selecionar os autores de interesse do trabalho, elegeram-se os critérios: disponibilidade bibliográfica (periódicos, livros, dissertações e teses); arquitetos pouco conhecidos, cujos textos estão publicados em língua portuguesa, espanhola e inglesa. Também se considerou um corte temporal, selecionando autores que realizaram suas obras entre os anos de 1950 a 1973, com isto, restringiu-se as fontes de pesquisa. Para situar historicamente as megaestruturas e seus pensadores, recorreu-se a Eric Hobsbawn (1995) que considera este período temporal como “Anos Dourados” ou “Era de Ouro”. O trabalho apoia-se em material bibliográfico que demandou uma revisão das fontes por meio de fichamentos organizados de modo a melhorar a visualização do conteúdo sintetizado e facilitar a retomada de pontos chaves das fontes primárias. Foram executados fichamentos individuais sobre a biografia dos arquitetos incluindo a trajetória profissional, principais projetos, pontos importantes de seus discursos, definição do conceito de megaestrutura e particularidades. A revisão bibliográfica concluída permitiu cruzamento das informações, destacando similaridades e divergências entre os arquitetos pesquisados. O resultado do trabalho apresenta-se em três capítulos. O primeiro relaciona o surgimento da megaestrutura com as condições históricas que lhe embasaram, as bases para tal foram as leituras de Eric Hobsbawn (1995) e Nicolau Sevcenko (2001). Compreendese que as proposições e discussões acerca das megaestruturas nascem e caminham concomitantemente 6

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com a história cultural, econômica e política das quais são contemporâneas. Em seguida, dedica-se às definições deste elemento arquitetônico propostas por diferentes autores. O segundo capítulo aborda as obras dos arquitetos selecionados: Yona Friedman, Kiyonori Kikutake, Constant Nieuwenhuys e Paolo Soleri. O trabalho considera a produção arquitetônica como um todo, obra escrita, representações, projeto e construção, entendendo-a como processo e não um fim. O objetivo não é esgotar as particularidades desses autores nem mesmo apresentar uma história linear de suas produções, mas identificar o modo como eles pensaram suas megaestruturas, expondo e discutindo semelhanças e diferenças. A parte final da pesquisa discorre sobre o desinteresse acerca das megaestruturas a partir da década de 1970 e o ressurgimento do interesse sobre elas, expressos no fazer e nos escritos de gerações posteriores, incluindo os starchitects1, com maior destaque para Rem Koolhaas.

1 Starchitect é um neologismo da língua inglesa que funde as palavras “star” (estrela) com “architect” (arquiteto), poderia ser traduzido para o português como “arquitetos estrelas” ou “arquitetos celebridades”. Devido à enorme globalização e troca de informações na mídia, arquitetos de escritórios renomados internacionalmente são tidos como celebridades e sua produção recebe destaque. pedro ribs

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CON TEX TUALI ZAÇÃO


megaestrutura O período da “[...] mais impressionante, rápida e profunda revolução nos assuntos humanos” (HOBSBAWN, 1995, p.p.281) coincide com o nascimento “de modo consciente” (BANHAM, 2001, p.33) das proposições de megaestruturas. Reyner Banham, em seu livro “Megaestruturas: futuro urbano do passado recente” (1976) recupera diferentes visões de megaestrutura para os arquitetos que primeiramente se propuseram a pensar o assunto, evidenciando as diferenças e semelhanças de significado atribuído por esses arquitetos a esse termo. O livro do crítico inglês é inaugurado com uma imagem “clássica dos sessenta” (CABRAL, 2007), uma fotografia do edifício americano para montagem de veículos espaciais no Cabo Canaveral. O autor adverte que apesar dele ser um dos maiores edifícios construído pelo homem, ele não constitui uma megaestrutura (BANHAM, 2001, p.7). Entende-se que nem tudo que parece uma megaestrutura, de fato, o é. O que seria então uma megaestrutura? Banham busca nos escritos dos primeiros arquitetos que se debruçaram sobre o assunto para buscar a melhor definição dessa proposta arquitetônica. A primeira foi publicada em 1964 no livro “Investigations in Collective Form”, deve-se ao arquiteto japonês Fumihiko Maki, um dos integrantes do grupo Metabolista. Em 1960, em parceria com Masato Ohtaka, Maki publica “Metabolism: Proposals for New Urbanism”, neste texto debate as novas formas de ordenação urbana 10

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pensadas para a reconstrução do Japão do pós-guerra. Os conceitos, embora muito ligados à tecnologia, eram basicamente orgânicos, propondo uma cidade que se regeneraria pela constante renovação de partes como um ciclo metabólico natural (ABLEY, 2006). Com a obra de 1964, o arquiteto estabelece mais claramente alguns entendimentos dos Metabolistas sobre a criação de espaços urbanos. Em “Investigations in Collective Form”, Fumihiko Maki apresenta três abordagens no processo do desenho urbano: forma composta, megaforma (megaestrutura) e forma grupal. A primeira forma é a histórica relacionada ao desenvolvimento de cidades, onde distintas arquiteturas compõem um conjunto e criam os espaços urbanos. A megaforma ou megaestrutura, é definida como: “Uma grande estrutura que aloja todas as funções de uma cidade ou parte dela. A tecnologia atual a fez possível. De certo modo, é uma característica artificial da paisagem. É como a grande colina na qual as cidades italianas foram construídas” (MAKI apud BANHAM, 2001, p.8). A forma grupal, por sua vez, ao contrário da composta, advém de um desenho urbano a partir da repetição de uma tipologia edilícia, o que no passado seria construído por artesãos locais, no presente, poderia ser feito industrialmente numa escala internacional. Nesta abordagem, Maki busca inspiração nas cidades medievais europeias, vilas das ilhas gregas e aldeias no norte africano, como aponta Ian Abley (2006). Na prática todas as três formas cruzam-se e misturam-se em algum ponto, criando formas mais complexas do que as apontadas por Maki, que era consciente disso (ABLEY, 2006). Embora o arquiteto tenha sido o primeiro a definir e pedro ribs

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tenha explorado as megaestruturas nos ateliês de projeto que lecionou em Harvard, rejeitava esta abordagem a favor de forma grupal. Maki concluiu que esta forma seria a mais apropriada ao lidar com projetos de grande escala, pois o desenho geral era claro e coeso, as partes repetidas criariam um “equilíbrio dinâmico” aberto a novas adições e subtrações (ABLEY, 2006). Em 1968, a segunda definição de megaestrutura é estabelecida em quatro pontos chave por Ralph Wilcoxon, bibliotecário de projetos do College of Environmental Design, em Berkeley. Para ele, a megaestrutura é “não somente uma estrutura de grandes dimensões, mas... também uma estrutura que é frequentemente”: 1. construída em unidades modulares; 2. capaz de uma grande ou “ilimitada” ampliação; 3. um quadro estrutural em que pequenas unidades estruturais, pré-fabricadas em outro local (por exemplo, cômodos, casas ou pequenos edifícios de outros tipos) podem ser construídas – ou até ‘plugadas’ (plugged-in) e ‘anexadas’ (clipped-on); 4. um quadro estrutural, cujo vida útil seja muito mais longa que as unidades menores que este poderia suportar. (WILCOXON apud BANHAM, 2001, p.9)

Banham considera como mais importante na definição de Wilcoxon a terceira característica, que define a megaestrutura como uma entidade estrutural permanente, na qual unidades transitórias são anexadas. Esta ideia encontra-se desde a gênese até o descrédito ao que se denominou megaestruturalismo (BANHAM, 2001, p.9). A definição mais tardia é estabelecida por John Cook e Heinrich Klotz, em “Conversations with Architects” (1973) onde o conceito começa a se aproximar de seu 12

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significado lexical: “[...] uma massa arquitetônica colossal, de superescala e de múltiplas unidades” (COOK; KLOTZ apud BANHAM, 2001, p.196). É relevante entender ainda o valor das imagens produzidas pelos arquitetos megaestruturalistas, pois elas manifestam significados que as palavras não poderiam emitir. Conclui-se que uma megaestrutura deve parecer uma megaestrutura (BANHAM, 2001, p.13). Como uma megaestrutura se pareceria com uma megaestrutura antes da existência da primeira? Para responder a esta pergunta, volta-se ao passado e constata-se que, mesmo sem a precisão do conceito e o motivo da produção ser outro, algumas arquiteturas demonstravam aspectos megaestruturalistas antes da segunda metade do século XX. O arquiteto americano Paul Rudolph, em entrevista contida no livro “Conversations with Architects” (1973) ao ser questionado sobre exemplos visuais que ajudariam na compreensão de megaestruturas, afirma que o melhor modelo por ele encontrado é a Ponte Vecchio em Florença. Alguns aspectos das definições apontadas anteriormente podem ser constatados nesta construção medieval italiana: a presença de uma estrutura geral rígida como a base em arcos de pedra; a transitoriedade das lojas anexadas ao longo dos anos sobre a estrutura; e a presença de um elemento que demonstra certa expansibilidade, o corredor superior que liga os Palazzos Uffizi e Pitti. Outra estrutura semelhante é encontrada na Inglaterra medieval, a antiga London Bridge, que além de comércio continha casas e uma capela (BANHAM, 2001). No entanto estas arquiteturas não abarcavam o sentido completo das megaestruturas, pois as proposições dos anos sessenta caminharam com pedro ribs

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os acontecimentos históricos desta época, expressando os pensamentos e os desafios da urbanização acelerada. Aproximando-se do período de formulação das megaestruturas, encontra-se o reconhecido precursor projeto Fort l’Empereur (1931) de Le Corbusier para a cidade de Argel. Um edifício colossal serpenteia a cidade africana, a imponente estrutura assemelha-se a “uma gigantesca estante de livros feita de concreto armado, em cujas prateleiras os habitantes construíram casas de dois pavimentos [...] de acordo com suas próprias vontades” (BANHAM, 2001). O megaestruturalismo não é abordado de maneira significativa pelo arquiteto, mas o projeto contém elementos essenciais ao conceito que estava por vir: uma estrutura principal maciça contendo espaços de habitação adaptáveis. Não se pode entender o conceito de megaestrutura como fixo e único, bastando aos interessados nesta forma de arquitetura, a elaboração de projetos que seguissem uma lista de atributos passíveis de verificação. Como se esclarecerá mais adiante, ao se estudar detalhadamente a proposição dos arquitetos citados, as motivações para suas proposições eram múltiplas e diversas, sendo também assim os resultados obtidos. Apesar das variações, possivelmente, ‘megaestrutura’ é o termo que melhor sintetiza o espírito da arquitetura dos anos sessenta, porém ele não consegue exprimir todas as nuances de um dos períodos mais ricos em especulação sobre o objeto arquitetônico no século XX.

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anos megadourados Apresentado o conceito de megaestrutura, partese para o esclarecimento das condições históricas que propiciaram o surgimento destas arquiteturas. Após a “Era da Catástrofe” definida por Eric Hobsbawn (1995) como o período entre as duas Guerras Mundiais, instaura-se um período de prosperidade, com a expansão da economia mundial e as profundas transformações tecnológicas ocorridas em curto espaço de tempo (HOBSBAWN, 1995). Neste período, cujo marco final é a década de 1970, as megaestruturas foram pensadas. O pós Segunda Guerra Mundial assiste a ascensão dos Estados Unidos à uma forte e próspera posição na economia mundial. Lidando naquele momento com a ampliação do bloco de países socialistas, os Estados Unidos colocaram em ação o plano de ampla recuperação de países capitalistas europeus e, posteriormente, o Japão. Esta política internacional permitiu o fortalecimento das economias industriais, cujo crescimento, entre 1953 e 1975, dava-se por uma taxa de produção na ordem de 6% ao ano sendo que, entre 1950 e 1980, o PIB mundial quadruplicou, saltando de dois trilhões para oito trilhões de dólares (SEVCENKO, 2001). A produção de alimentos também foi ampliada, a produção de grãos por hectare quase duplicou, esta expansão não se deu pela ampliação de terras cultiváveis, mas pela melhoria da produtividade. Por estes fatores, os anos dourados foram anos em que não houve relato de fome endêmica (HOBSBAWN, 1995). pedro ribs

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A grande expansão tecnológica que marcou o terceiro quartel do século XX é fruto da Segunda Guerra Mundial, a constante corrida por novos equipamentos influenciou diretamente a vida do cidadão comum e repercutiu na melhoria de produtos preexistentes, que, em larga escala, passaram de objetos de luxo a padrão de conforto, entre eles estavam as geladeiras, lavadora de roupas, o telefone e o rádio. Além disso, possibilitou a criação de incontáveis novos produtos como radares, plásticos, propulsores a jato, polímeros, discos de vinil, relógios digitais, energia nuclear, equipamentos de foto e vídeo e a “criatura-chave do século XX – a televisão” (SEVCENKO, 2001, p.77). Se não fosse por estas invenções “[...] os primeiros computadores digitais civis (1946) teriam aparecido consideravelmente mais tarde” (HOBSBAWN, 1995, p.259) e seu alcance, se não fosse pela miniaturização e portabilidade, teria sido menor. De acordo com Nicolau Sevcenko (2001), contando todas as inovações tecnológicas, descobertas científicas e invenções humanas, mais da metade ocorreu no período logo após a Segunda Guerra Mundial. A Segunda Guerra Mundial instaurou uma nova condição, em decorrência do desenvolvimento tecnológico, definida pela inviabilidade de qualquer novo conflito direto entre as potências em virtude das armas atômicas, que colocou “[...] gerações inteiras [...] à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento, e devastar a humanidade” (HOBSBAWN, 1995, p.224). A Guerra Fria então fez-se por enfrentamentos indiretos, entre os blocos capitalistas e socialista, através do duelo de propaganda, controle de telecomunicações, cultura, educação e a dispendiosa 16

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corrida espacial (SEVCENKO, 2001). As inovações atingiram também as ciências biológicas, em 1964 o cirurgião americano James Hardy executou o primeiro transplante de órgãos em um ser humano, ele transferiu o coração de um chimpanzé para um idoso que teve uma sobrevida de 18 dias. Mecanismos artificiais também começaram a ser usados na medicina, tais como os marca-passos, ressalta-se ainda o surgimento de importantes remédios como os anticoncepcionais. Uma descoberta que afetou o entendimento do universo infinitamente pequeno foi o modelo de dupla-hélice do DNA proposto pelos cientistas Francis Crick e James Watson (1953). Distante da superfície terrestre os avanços humanos podiam ser testemunhados. Em 1957, a União Soviética envia ao espaço o primeiro satélite artificial da Terra, o Sputnik I, um mês depois a cadela Laika viajou a bordo da nave Sputnik II. A URSS aumentou sua vantagem em relação aos EUA ao enviar o primeiro homem ao espaço, o astronauta Iuri Gagarin, em 1961. Vendo a Terra a partir do espaço Gagarin afirmou “A terra é azul”. Diante do feito russo, o presidente americano John F. Kennedy afirmou em 1961 que os EUA levariam à lua o primeiro homem antes do final daquela década. Quatro meses antes do fim do prazo estabelecido, no dia 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin colocaram os pés em solo lunar. A disputa entre os EUA e a URSS não somente permitiu o desenvolvimento de instrumentos científicos e de espionagem militar como fomentou a concepção dos satélites de propagação de mídias, modificando as comunicações. Os Estados Unidos investiram na divulgação do estilo de vida americano, o “American way of life”, que pedro ribs

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Yuri Gagarin, o primeiro homem a ir ao espaço. Imagem 01 18

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promoveu a crença de que o modo de vida capitalista era superior ao socialista, destacando a livre iniciativa, o mercado competitivo onde qualquer pessoa, independente de sua condição social, poderia ascender a padrões de vida superiores através do trabalho e esforço individuais. Sevcenko (2001) afirma que as pessoas passaram a viver o lema “você é o que consome”, entendendo o poder de compra como um ganho de “[...] visibilidade social e [...] poder de sedução” (p. 65). Essa “ebulição sísmica da mercadoria” foi denunciada por artistas da pop art no começo dos anos 1950, entre eles encontravam-se nomes como Richard Hamilton, Roy Lichtenstein e Andy Warhol. Através da ironia e da extrema repetição de ícones do período, eles externaram com exagero a obsessão da sociedade americana pelo consumo de uma cultura de massa. Apesar do papel proeminente dos Estados Unidos, foram europeus que desenvolveram reflexões sobre as tecnologias na arquitetura (GAGE, 2010). Ir para o espaço demandou estudos sobre cápsula espaciais, cujo princípio era a ocupação de espaços mínimos com conforto, os estudos de compactação espacial e suas relações ergométricas repercutiram em diversos projetos arquitetônicos da época das megaestruturas, tendo em vista a demanda de moradia por parte de uma população crescente. Chegar à lua, de certo modo, propiciou a sensação de distâncias menores; a popularização do carro, dos meios de transporte movidos a eletricidade como os trens, bondes e metrôs fizeram com que as distâncias se tornassem, realmente, menores (SEVCENKO, 2001). Além das novas tecnologias de transporte, o modelo de produção do americano Henry Ford vulgarizou-se no pedro ribs

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Velho Continente, o processo de produção em massa atingiu também a construção de habitações. A descoberta da aplicabilidade do método permitiu a rápida e barata construção de grandes conjuntos em estilo “internacional” situados nos entornos das cidades, caracterizando-se, de acordo com Hobsbawn (1995), como a era “[...] mais desastrosa na história da urbanização humana”. Os meios de transporte permitiram que grandes quantidades de pessoas fossem rapidamente levadas de pontos afastados das cidades onde as zonas residenciais eram construídas para os centros de trabalho e comércio, e vice-versa. Além da expansão horizontal, as metrópoles expandiram-se cada vez mais verticalmente graças aos novos materiais como os aços especiais, chapas de vidro mais resistentes e o alumínio (SEVCENKO, 2001). Uma paisagem cada vez mais “homogênea e serializada” (KAMIMURA, 2010, p.23) foi construída, não somente na arquitetura, mas no âmbito social através dos Estados, capitalistas e socialistas, empenhados na constituição de uma sociedade de massas, formada por indivíduos padrão “prontos para exercer o seu papel designado com precisão pelas engrenagens do motor corporativo” (KAMIMURA, 2011, p.23). A partir da década de 1960 a economia mundial gradualmente torna-se transnacional, os territórios e as fronteiras entre os Estados são parcialmente superados. Essa mudança pôde ser observada por meio da nova divisão internacional do trabalho: nos países dominantes, a máquina e a industrialização substituíram o trabalho manual, e mais tarde, as grandes indústrias desses países foram transferidas para países em desenvolvimento, cujas leis de proteção social e ambiental eram e são menos 20

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restritivas. Uma questão não percebida, com graves consequências posteriores, foi a degradação ecológica, visto que a ideologia de progresso da humanidade foi mensurada pela capacidade do homem de dominar a natureza (HOBSBAWN, 1995). Outro problema preocupante foi a situação do trabalho precário e exploratório nos países em desenvolvimento, negligenciada pelas multinacionais. Durante os anos dourados a política “parecia tranquila, se não sonolenta” (HOBSBAWN, 1995, p.279), as únicas questões preocupantes para os países hegemônicos eram a possibilidade de uma guerra nuclear, o comunismo e as crises internas, causadas pelas remanescentes atividades imperiais no exterior como as Guerras de Suez (1956), Argélia (1954-61) e Vietnã (1965). Essa calmaria surpreendeu os políticos e intelectuais quando o repentino radicalismo estudantil explodiu quase em todo o mundo em 1968 (HOBSBAWN, 1995). A geração nascida durante a Segunda Guerra Mundial entrava na fase adulta e a experiência do início do século, caracterizada pelo sentimento de insegurança, desemprego em massa e preços instáveis tinha se tornado história para os que cresceram em meio a conquistas econômicas, empregos abundantes e inflação contínua. No final da década de 1960, os novos trabalhadores perceberam que os constantes e bem-vindos aumentos salariais eram muito menos do que o mercado poderia oferecer, isso levou ao encerramento de uma calmaria nas negociações anteriores e apontava a decadência dos anos dourados. A rebeldia juvenil lutou pela liberdade social e sexual. A nova geração empenhou-se pelo não enquadramento no núcleo familiar ocidental, estabelecido durante os dois pedro ribs

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séculos anteriores, de um homem, uma mulher e filhos; o número de divórcios aumentou consideravelmente, mulheres escolheram não ter filhos e nem casar formalmente; despontaram também os movimentos a favor do direito dos negros, homossexuais e das mulheres com uma nova onda feminista e o movimento verde. Outro acontecimento que tornou iminente o fim da época de prosperidade e sossego ocorreu em 1971 e resultou das implicações econômicas causadas pela Guerra do Vietnã. O presidente americano Richard Nixon estabeleceu unilateralmente que o dólar não seria mais conversível em seu equivalente em ouro, causando a desestabilização e o colapso financeiro internacional, pois desde 1944, sob o acordo de Bretton Woods, todas as moedas das nações aliadas estavam vinculadas ao dólar americano, cujo lastro era o ouro (HOBSBAWN, 1995, p.279281). O equilíbrio econômico dependia de uma balança estável entre a grande produção e a capacidade de compra dos consumidores. Para que esta balança se mantivesse equilibrada, os salários tinham que subir com grande rapidez sem alteração dos lucros das empresas, para não descontrolar a inflação. Além disso, os EUA, grande estabilizador político e econômico mundial, mostravam sintomas de desgaste refletidos na queda do dólar (HOBSBAWN, 1995). O desgaste da economia americana só precisava de mais um empurrão para o crash final, ocorrido com a crise da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, quando os barris de petróleo árabe tiveram um aumento de preço de mais de 400%. A economia mundial muito dependente do “ouro negro”, tanto para os meios de transporte quanto para a fabricação de materiais como os 22

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plásticos, sofreu um esfriamento drástico. Entender o período histórico em que as megaestruturas foram propostas esclarece diversas inspirações e justificativas para os projetos. A arquitetura sofreu o impacto da explosão de produtos, novas tecnologias, ciências médicas, corrida espacial, novos meios de transporte. O trabalho do grupo Archigram apresenta diversas alusões ao período, a começar pelo próprio nome, a junção das palavras “architecture” e “telegram”, indicando que a representação dos projetos deveria ser de fácil apreensão, com a “instantaneidade de um telegrama” (SILVA, 2004), o que resultou na representação através de colagens que incorporavam à arquitetura ícones do cinema, quadrinhos, imagens publicitárias, aplicações tipográficas semelhantes às propagandas. Além da crítica à sociedade do consumo, o grupo absorveu as novas tecnologias projetando cidades que poderiam literalmente caminhar, cidades espaciais e aquáticas; cápsulas, escadas rolantes, elevadores, telas de projeção demonstravam as transformações provocadas pelos novos sistemas de transporte, comunicação e informação e as tecnologias cibernéticas, eletrônicas e espaciais. As descobertas na área das ciências biológicas e médicas influenciaram a produção dos metabolistas, que propunham uma arquitetura com comportamento biológico, semelhante a um organismo que cresce e se adapta considerando períodos de desintegração e reintegração (SCHALK, 2014). Kisho Kurokawa, inspirado no modelo do DNA projeta em 1961 uma série de edifícios em dupla hélice que poderiam aumentar ou encolher de acordo com a demanda da cidade de Tóquio (KOOLHAAS; OBRIST, pedro ribs

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2011). Fumihiko Maki elabora o projeto Golgi Structures (1968) constituído por diversas cápsulas incorporadas a torres, facilitando a troca de informações entre as partes e permitindo diferentes experiências, o nome e a forma das torres vêm da organela, de mesmo nome, presente nas células vegetais e animais que processam e transportam proteína. Além da inspiração na biologia, podemos perceber a relação com a conquista do espaço sideral no projeto construído de Kurokawa, a Nagakin Capsule Tower (1972), composta de diversas células que conformam o espaço mínimo para viver como nas cápsulas espaciais. As cápsulas viraram um tema recorrente na arquitetura, aparecendo em projetos do Archigram, Moshe Safdie com o Habitat 67 (1967) e tantos outros. Mais um exemplo proveniente de outra área é o Neo Tokyo Plan (1958) de Hisaakira Kano para a expansão da capital japonesa sobre a baía. O arquiteto imaginou o uso de bombas atômicas para a retirada de terra do continente para a transplantação posterior na água. As duas primeiras características apontadas por Wilcoxon (1968) em sua definição para as megaestruturas (construída em unidades modulares; ilimitada ampliação) costuram uma estreita relação com o modelo de produção fordista, no qual uma unidade pode ser produzida em massa num sistema padronizado. Esta característica aparece em diversos projetos, como na Ville Spatialle (1958) de Friedman, na Marine City (1958) de Kikutake e até mesmo na New Babylon (1956) de Nieuwenhuys que se opõe e critica o modelo. Este pequeno apanhado de projetos exemplifica brevemente a ligação intrínseca entre história geral e arquitetura. As profundas mudanças na forma como o 24

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homem passou a enxergar o planeta, as transformações sociais e culturais e a expansão não antes imaginada da tecnologia materializam-se no mundo construído, portanto, na arquitetura.

pedro ribs

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FRIEDMAN KIKUTAKE NIEUWENHUYS SOLERI


yona friedman Yona Friedman nasceu em 5 de junho de 1923 em Budapeste, Hungria. Começou seus estudos em arquitetura na Technical University, de Budapeste, mas foi interrompido em 1945 quando a Alemanha nazista ocupou seu país. Friedman era judeu e integrou-se ao grupo de resistência. Depois da guerra, mudou-se para a Romênia e, posteriormente, para Israel onde concluiu seus estudos em arquitetura na Technion Israel Institute of Technology, na cidade de Haifa. Como arquiteto começou a trabalhar e lecionar, dedicando ao tema da habitação. Como estudante e recém-formado, o arquiteto apresentava ideias pouco convencionais para a arquitetura e urbanismo. Participou do CIAM X em Dubrovnik, 1956, cujo tema central era o estudo do habitat humano, nesta ocasião, apresentou suas ideias sobre arquitetura móvel como “[...] arquitetura que engloba as mudanças em curso necessárias para fornecer ‘mobilidade social’ com base em habitações e planejamento urbano que possam ser compostos e recompostos, em função das intenções dos seus ocupantes e moradores” (BRAYER apud MIYASAKA, 2011, p.49). Durante o encontro, as ideias de Friedman causaram pequeno impacto, porém, ensejando a formação junto a Jan Trapman, em 1957, do GEAM, Groupe d’Études d’Architecture Mobile. O grupo contou com a participação de arquitetos de diversas partes da Europa e Japão e elaborava uma crítica ao planejamento urbano vigente, considerando falhos seus métodos e abordagens ultrapassados e custosos, como 28

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podia ser percebido no congestionamento das cidades, na baixa qualidade das moradias, isolamento de bairros e fluxo de pessoas para fora das cidades nos finais de semana. Algumas das propostas do grupo eram o uso de estruturas pré-fabricadas de uso flexível e baixo custo; a possibilidade dos cidadãos de construir a própria cidade; e o uso das novas tecnologias aplicadas à arquitetura (FRIEDMAN, 2017). O GEAM entendia mobilidade como: […] transformação na sociedade e na vida cotidiana é imprevisível, por um período comparável ao da existência do edifício em média. Novos edifícios e as cidades devem ser facilmente ajustáveis de acordo com a vontade da futura sociedade que irá utilizar: eles devem permitir todas as transformações, não precisando da demolição total (BUSBEA apud MIYASAKA, 2011, p.59).

Em 1958, Friedman publicou o primeiro manifesto “L’Architecture Mobile”, nele, defendia a mobilidade e mudança como características e necessidades essenciais do homem moderno, criticando o “homem-tipo”, uma figura inventada que não representava a realidade social da época (GONÇALVES, 2014). Os conceitos de mobilidade são demonstrados pelo arquiteto através de seus projetos para a multiplicação do solo urbano, a Ville Spatiale. Esta nova cidade seria inserida sobre cidades pré-existentes por todo o mundo, permitindo a maior concentração de pessoas onde as infraestruturas estavam estabelecidas e freando a criação de novos bairros e novos centros urbanos. Esta nova cidade foi aplicada a grandes cidades como Nova York, Londres e, principalmente, Paris, para onde elaborou o projeto com maior detalhe para a instalação de estruturas espaciais pedro ribs

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sobre alguns distritos da cidade, elevando sua densidade para 800 habitantes por hectare (GONÇALVES, 2014). A Ville Spatiale seria a cidade do homem moderno, como Friedman acreditava, cada vez mais desprendido de um local, se locomovendo pelo globo e modificando suas ações em uma velocidade acelerada e constante. Associando sua arquitetura ao recém-criado campo da cibernética, em 1967, Friedman criou o Flatwriter, uma máquina capaz de literalmente projetar as unidades de habitação, a serem dispostas na malha tridimensional, de acordo com as vontades e necessidades do habitante Friedman, assim, concebia sua versão de cidade e de megaestrutura.

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kiyonori kikutake Kiyonori Kikutake nasceu em 1 de abril de 1928 em Kurume, sul do Japão, em uma família de proprietários de terra. Em 1948, antes de se formar em arquitetura, foi premiado em terceiro lugar no Concurso para a Catedral Memorial Mundial da Paz de Hiroshima, sendo Kenzo Tange o vencedor do segundo lugar e, curiosamente, não houve um primeiro lugar. Em 1950 graduou em arquitetura pela Universidade Waseda em Tóquio e três anos depois abriu seu próprio escritório, trabalhando nos projetos de recuperação do Japão do pós-guerra. Em 1958 completou a construção do projeto que o levou ao reconhecimento nacional, a Sky House, residência onde viveu toda sua vida, e cujas características à vinculavam ao movimento metabolista japonês. De acordo com Kikutake, entre essas características encontravam-se as unidades móveis de banheiro e cozinha substituíveis por novas unidades a qualquer momento. Em 1960, realizou-se a Conferência de Design Mundial , uma enorme oportunidade para jovens arquitetos japoneses entrarem em contato com o debate internacional no âmbito da arquitetura, pois devido a ocupação americana do Japão, até meados de 1969, era muito limitada a quantidade de pessoas que viajavam para fora do arquipélago. O arquiteto Kenzo Tange, em decorrência de sua vinculação ao CIAM, era muito bem relacionado internacionalmente, condição para qual contribuiu para pedro ribs

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sua carreira acadêmica como professor em diversas universidades no exterior. Para a Conferência de Design Mundial2, Tange reuniu um grupo de jovens arquitetos que se apresentaram como Metabolistas. As principais figuras do grupo foram os arquitetos: Fumihiko Maki, Kisho Kurokawa, Kiyonori Kikutake, Masato Ohtaka e o crítico de arquitetura Noboru Kawazoe. Diversos membros do recémformado Team X compareceram, elevando a importância e a divulgação do evento. As propostas dos metabolistas decorreram da análise da situação do país após a Segunda Guerra Mundial, originando um manifesto de transformação do país. Os três pontos diagnosticados: a. A exiguidade espacial do arquipélago: muito montanhoso, os espaços adequados ao estabelecimento urbano são subdivididos em microscópicos, séculos de antigos retalhos de propriedade; b. Terremotos e tsunamis tornam precárias todas as construções; concentrações urbanas como Tóquio e Osaka estão suscetíveis a potenciais devastações; c. Tecnologia e design modernos oferecem possibilidades de superar as fraquezas estruturais japonesas, mas apenas se forem sistematicamente, quase militarmente, buscadas soluções em todas as direções: na terra, no mar e no ar (KOOLHAAS; OBRIST, 2011, p.13).

A partir destas questões, os arquitetos metabolistas se empenharam em recuperar a força da nação devastada pela guerra, principalmente respondendo à catástrofe atômica, e lidaram com a expansão populacional sobre um arquipélago finito sempre vulnerável a desastres naturais. O manifesto Metabolismo 1960: Propostas para um Novo Urbanismo3, preparado para a conferência continha 32

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projetos e textos dos arquitetos, mas foram os desenhos de Kiyonori Kikutake que receberam maior destaque, ocupando 35 de 87 páginas o documento. (WELKENDEN apud SCHALK, 2014, p.283). Além disso, o arquiteto foi o único japonês que teve seu trabalho incluído na exposição Visionary Architecture no mesmo ano (1960) no MoMA, em Nova York.

Capa do Manifesto Metabolista de 1960. Imagem 02

Kikutake merece atenção por ter se dedicado por quase duas décadas à pesquisa de uma arquitetura que solucionasse problemas de moradia sobre a água. Para tanto, explorou campos da estética, político-econômico, planejamento urbano, tecnologia e psicologia. Suas ideias 2 World Design Conference 1960 - WoDeCo 3 Metabolism 1960: Proposals for a New Urbanism メタボリズム 1960 都市への提案 pedro ribs

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foram apresentadas em diversos textos síntese. Além disso, ele foi o primeiro arquiteto a propor a construção de megaestruturas sobre o mar (NYILAS, 2016). A abordagem de Kikutake para o início de um projeto não partia de um programa de necessidades, uma lista de ambientes pré-definidos, mas das relações entre as partes do edifício, como se relacionariam com o contexto e de que maneira afetariam as pessoas. Além de uma preocupação mais psicológica e social voltadas aos projetos, Kikutake trabalhava próximo a engenheiros, fabricantes e construtores, levando seus projetos a um patamar mais próximo ao de realização. Seu interesse pela factibilidade dos projetos também podia ser notado nos constantes testes em escala menor de novas técnicas. Segundo seu ponto de vista, configurações e geometrias estruturais poderiam ser testadas em um quarto ou pequeno edifício para depois serem transformadas em elementos de uma cidade (MULLIGAN, 2015). A primeira ideia para a Marine City surgiu em 1958, sendo largamente divulgada em 1960, com a publicação do manifesto metabolista. O projeto nasceu como resposta a diminuição de áreas livres para a construção nas cidades japonesas e lidava com a instabilidade política e social decorrente desta situação. A busca por ocupar o oceano não se tratou da intenção de expandir as terras japonesas nem uma tentativa de fugir dela, de acordo com Kikutake, a Marine City seria um novo arquétipo urbano, um novo modo de vida sobre o oceano (KIKUTAKE apud NYILAS, 2016). O projeto Marine City, proposto entre os anos de 1958 e 1975, não conforma apenas um projeto. O projeto inicial tratava de uma cidade industrial circular de quatro quilômetros de diâmetro. Na parte mais externa da cidade 34

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localizar-se-iam as indústrias, situadas em doze esferas conectadas por um anel cilíndrico de circulação, essas esferas assemelham-se ao sistema de flutuação “v” da figura 08, que será abordada mais adiante. No círculo industrial estariam seis cilindros de concreto armado que conteriam todas as habitações, cerca de 50.000 habitantes viveriam em unidades individuais. As torres seriam formadas por cilindros concêntricos, o cilindro externo conteria as habitações, voltadas para um vazio interno, e o cilindro interno funcionaria como componente estrutural, provavelmente por onde as pessoas circulariam. Kikutake não deixou claro o que aconteceria no fundo do cilindro, se seria ou não um espaço público (NYILAS, 2016). Por fim, no centro do complexo circular estaria uma torre de controle. Como pode ser visto na figura 03, toda a cidade estaria submersa e contaria com uma plataforma flutuante no nível da superfície da água, onde as relações sociais ocorreriam. Os desenhos do projeto mostram diversas cidades independentes flutuando no oceano, mas o arquiteto não chegou a demonstrar como seria o processo de expansão das mesmas, tampouco determinou como as cidades seriam acessadas. Em 1960, Kikutake projeta a Marine City Unabara, outra cidade industrial, agora formada por dois anéis de forma irregular. O anel externo, constituído por enormes peças conectáveis como um quebra-cabeça, seria a zona produtiva da cidade e o anel interno, a zona habitacional, formada por dezenas de edifícios em paraboloide hiperbólico chamados de “mova-blocks” (KAWAZOE apud NYILAS, 2016). Esses últimos flutuariam independentes sobre o mar como navios de concreto armado, as moradias ficariam nos três planos verticais que se unem, e os pedro ribs

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espaços públicos seriam localizados na base dos “movablocks” submersos. Estes anéis estariam separados pelo mar, funcionando como zona tampão, onde o cultivo de produtos marinhos seria realizado, e se conectariam entre si por meio do edifício administrativo. No centro do anel interno localizar-se-iam duas torres de controle e de produção de, com alturas de 1000 metros acima do nível do mar. Kikutake realizou em 1963 um projeto para uma nova Marine City, numa escala maior do que os anteriores, sendo esse, talvez, o projeto mais audacioso do arquiteto. Esta cidade seria formada por seis ilhas maiores onde a produção industrial seria realizada, arranjadas de modo que conformassem um círculo. Internas ao conjunto maior, propôs diversas ilhas menores (“block units”) que comportariam as habitações de cerca de 500.000 pessoas. As “block units” seriam compostas de uma plataforma flutuante no nível da água e torres cilíndricas, como no projeto de 1958 elas seriam formadas por um cilindro interno de circulação e o externo para as habitações, mas neste elas não estariam submersas e as unidades de habitação estariam voltadas para o lado externo. Estas unidades seriam conectadas umas as outras e às ilhas maiores através de pontes, conformando uma “community block”. Cada comunidade conteria ainda uma ilha administrativa e de controle. O ponto mais importante da trajetória de Kikutake foi a demonstração, através de analogias biológicas, como as cidades evoluiriam, cresceriam e mudariam ao longo do tempo.

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Marine City, 1958. Imagem 03

“mova-blocks”, o edifício residêncial da Marine City Unabara. Imagem 04 pedro ribs

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constant nieuwenhuys Constant Nieuwenhuys, originalmente Constant Anton Nieuwenhuijs, nasceu em 21 de julho de 1920 em Amsterdã, Holanda, e começou a estudar artes em 1939 no Instituut voor Kunstnijverheidsonderwijs (Escola de Artes Aplicadas) e no ano seguinte na Rijksacademie van Beeldende Kunsten (Academia de Belas Artes) na mesma cidade. É interessante entender, no caso de Nieuwenhuys, a formação e desencadeamento de suas passagens por diferentes grupos artísticos, principalmente o Internacional Situacionista (IS) pois todos confluíram para a formação do projeto New Babylon. Em 1948, Nieuwenhuys, juntamente de outros artistas, formou o grupo CoBrA (acrônimo para Copenhagen, Bruxelas e Amsterdam, cidades de origem de seus membros). O grupo se destacou pela tentativa de renovação da pintura europeia do pós-guerra através de discursos radicais e técnicas distantes da academia. A pintura realizada por eles era figurativa, com gestos bem marcados, “baseada combinações cromáticas fauves e garatujas usualmente associadas ao desenho de crianças e loucos” (MIYADA, 2013, p.114). CoBrA obteve enorme reconhecimento internacional logo em sua primeira exposição no Stedelijk Museum, Amsterdam (1949). Seus trabalhos causaram enorme impacto, dado ao contraste entre a principal vanguarda holandesa, o neoplasticismo do De Stijl, e seus “rabiscos” exagerados e grosseiros. 38

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Devido a discordâncias ideológicas, o grupo se desfez depois de apenas três anos de existência, em 1951. Após o fim do CoBrA, Nieuwenhuys reviu o que vinha produzindo; no lugar de brutas garatujas surgiram cada vez mais composições de cores uniformes. O artista colabora com o arquiteto holandês Aldo van Eyck, amigo próximo de Gerrit Rietveld, uma situação improvável tendo em vista as críticas ferozes ao neoplasticismo feitas pelo CoBrA. Esta colaboração e consequente amizade transformaram os interesses do artista, que canalizou a construção de uma sociedade de criatividade espontânea e livre através do espaço e arquitetura (MIYADA, 2013, p.118). Christian Dotremont medindo uma pintura de Mondrian na casa de Van Eyck, 1949. Imagem 05

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Van Eyck emprestou livros e manuais de arquitetura a Nieuwenhuys, introduzindo-o em reuniões de grupos de arquitetos holandeses e incentiva a colaboração do artista com Rietveld. As relações com a arquitetura fortaleceramse quando Nieuwenhuys percebeu o compromisso proposto em integrar as artes e a tecnologia, resultando em experimentações espaciais com jogos de planos de cor assimétricos em seu trabalho. Contudo, logo o artista notou que os arquitetos não estavam dispostos à tal integração das artes, perpetuando a continuação de uma rotina de projeto já estabelecida. Em 1956, Constant viajou para Alba, Itália, para o Primo Congresso degli Artisti Lebri e se instalou na casa do pintor italiano, também farmacêutico, Giuseppe PinotGallizio. O artista italiano estava envolvido com uma terceira atividade, a qual Nieuwenhuys se interessou enormemente, o apoio a uma comunidade de ciganos. A cidade de Alba era um ponto importante e estratégico na migração dos ciganos entre a Itália e França e, na época, a comunidade em questão havia sido expulsa dos locais de acampamento. Lutando pelo direito da população nômade, Gallizio realizou manifestações públicas e ofereceu alguns de seus terrenos para um novo acampamento. Nieuwenhuys envolveu-se com o ideal romântico de uma vida livre, desprovida de posses e passou a ver o ideal de vida moderno como móvel e nômade, relacionando às novas relações transnacionais do período. Comovido com a possível interdição do modo de vida cigano, o artista holandês projetou seu primeiro esboço de arquitetura, uma grande tenda que cobriria cabanas, pavilhões, plataformas, torres ou qualquer outra “arquitetura” realizada por aquele povo. O modelo que 40

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Nieuwenhuys executou parecia mais uma das esculturas que vinha produzindo, estruturas leves metálicas, composta por elementos suspensos e linhas de força aparentemente prestes a entrar em movimento. Sem nenhum tipo de intenção construtiva, a maquete se realizada em escala real (nem mesmo a escala é precisa) teria proporções, dimensão de materiais, vãos e encaixes muito distantes do ideal. Posteriormente, esta estratégia de evocar plasticidades, sensações e concepções de espaço em detrimento de detalhes construtivos reais se repetiu ao longo do projeto para a New Babylon. O acampamento de Alba nunca foi realizado, mas foi o primeiro passo para a cidade megaestruturalista do artista-arquiteto. O grupo que mais influenciou a produção de Nieuwenhuys, Internacional Situacionista, nasceu da união do Internacional Letrista (IL) e do Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginativa (MIBI), grupos formados por artistas radicais que buscavam através da arte, seja escrita ou visual, mudar o cenário da época. De acordo com Miyada (2013), o texto mais próximo das questões de arquitetura e urbanismo da Internacional Letrista é o Formulaire pour um urbanisme nouveau4 (1953), escrito por Gilles Ivain aos 19 anos de idade. O texto é inaugurado com: “Estamos entediados na cidade”, e segue apontando os males da cidade moderna, o caráter castrador da arquitetura corbusiana e a aridez do planejamento funcionalista estéril. Como alternativa a esta situação, Ivain reivindica uma cidade composta por paisagens pitorescas que usaria as novas tecnologias de controle ambiental

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Formulário para um Novo Urbanismo

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para provocar experiências e representar “desejos, forças, eventos passados, presentes e futuros” (McDONOUGH apud MIYADA, 2013, p.136). A outra parte formante do IS, o MIBI, explicitava em seu nome (Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista) um confronto direcionado aos ideais da Bauhaus, mais diretamente sob a liderança de Max Bill da Escola de Design de Ulm (Hochschule für Gestaltung). Fundado pelo pintor dinamarquês Asger Jorn, o movimento criticava a formação de profissionais “adestrados”, saídos prontos da Bauhaus para ingressar em indústrias e corporações privadas. Jorn propunha resgatar o espírito de experimentação e liberação criativa de professores da Bauhaus como Wassily Kandinsky e Paul Klee (MIYADA, 2013, p.109). Nieuwenhuys não estava presente na unificação da Internacional Letrista com o MIBI para a formação da Internacional Situacionista, em 1957, mas foi persuadido por Guy Debord, fundador do IL, a participar do grupo, fortalecendo os estudos do Urbanismo Unitário. Em 1958, juntos publicam um documento onde as proposições sobre a cidade são abordadas, o chamado “Declaração de Amsterdam” (CONSTAND; DEBORD apud MIYADA, 2013). Através de imagens publicitárias, grafites, histórias em quadrinhos, panfletos e textos, a principal busca do Internacional Situacionista era uma mudança profunda na sociedade tecnocrática e capitalista do pós-guerra, mas antes que fosse entendido como um movimento socialista, a abolição do trabalho como atividade principal do homem impossibilitava este entendimento. Além desta ambição geral, os situacionistas buscavam superar também a arte, que deveria ser iniciada com a extinção da instituição e do 42

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mercado (MIYADA, 2013). Ainda em relação ao urbanismo, dois conceitos operativos levariam à experimentação da cidade de maneira subjetiva e criativa: a psicogeografia e a deriva. O primeiro conceito seria o “estudo das leis exatas e os efeitos específicos com que o meio geográfico, conscientemente planejado ou não, age diretamente sobre o comportamento dos indivíduos” e a segunda fundamentar-se-ia na “técnica de passagem apressada através de variados ambientes” (DEBORD apud MIYADA, 2013, p.106). Apesar do grande contato com o neoplasticismo holandês, defensor de um purismo estético, Nieuwenhuys não se distanciava tanto da postura humanista que embasava o grupo CoBrA, por isto a New Babylon é ao mesmo tempo desdobramento e negação dos ideais e princípios de Corbusier. A IS encara as lições do modernismo não como um “cânone normalizador da experiência urbana”, mas como um exemplo a ser “tomado, recombinado e desviado”, em busca de sua própria superação (MIYADA, 2013, p.132-133). Durante o período em que Nieuwenhuys participou da IS, a New Babylon foi a síntese dos ideais urbanísticos do grupo, focando mais nas questões teóricas da cidade, principalmente através de textos. Nieuwenhuys começou então a desenvolver trabalhos de representação gráfica e modelos reduzidos, criando um projeto para uma “cidade situacionista”, motivo para o rompimento com os Situacionistas, afinal, uma tradução formal (relativa a forma) de algo imprevisível como a construção coletiva, foi considerada uma atitude contraditória” (CALUA, 2008, p.107). Após esta separação, o arquiteto volta a se aproximar do meio arquitetônico, em especial do húngaro Friedman, pedro ribs

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o qual inseriu Nieuwenhuys no circuito internacional de debates sobre o futuro das cidades. Em 1961, Friedman encontrou muitos pontos em comum entre suas pesquisas para uma arquitetura móvel e a New Babylon e convidou Nieuwenhuys para um encontro em Paris, no ano seguinte o holandês passa a fazer parte do GEAM. A partir desta união, a cidade-labiríntica se tornou projeto constante nas publicações e eventos dedicados as visões urbanas do futuro.

Constant, Après nous la liberte, 1949. Imagem 06 44

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A automação da cidade, a busca por uma cidade em constante transformação e mobilidade e o controle ambiental dos espaços urbanos foram pensados pelos dois arquitetos em épocas muito próximas como forma de superar o urbanismo moderno. Apesar da aparente harmonia de pensamento, a aproximação dos dois arquitetos acabou por exaltar suas diferenças ideológicas. Friedman elaborou a fundamentação de seu projeto a partir dos CIAM e de sua formação como arquiteto, já Nieuwenhuys tinha como histórico suas experiências em vanguardas artísticas de motivação revolucionária. Em função disso, o arquiteto de formação, almejava uma democratização do espaço público através da independência dos cidadãos para construir a cidade, focando essencialmente na unidade mínima de habitação e suas relações com a vizinhança imediata; do outro lado, o artista-arquiteto aspirava uma transformação maior que atingisse a cultura e o cotidiano como um todo. Ao tentar criar uma nova cidade a partir do núcleo unifamiliar, Nieuwenhuys acusava Friedman de reproduzir a lógica da cidade funcional, perpetuando o núcleo social capitalista burguês. Em resposta às acusações, Friedman reconhecia um autoritarismo na proposta de Nieuwenhuys, pois o arquiteto predeterminou como os cidadãos lidariam com os próprios desejos. New Babylon, de modo geral, seria uma cidade imaginada para uma sociedade livre do trabalho manual e dedicada a vivência lúdica e criativa. Assim como a IS tentou, a arte deixaria de ser exclusividade de artistas e instituições burgueses e passaria a pertencer ao cotidiano. O arquiteto dedicou-se ao projeto de 1956, quando realizou uma proposta para um alojamento permanente de ciganos pedro ribs

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em Alba, até 1974, quando uma exposição realizada em Haia reuniu grande parte de sua produção. New Babylon seria uma cidade labiríntica infinita, conectada ao redor de todo o planeta onde a propriedade privada seria eliminada, não haveriam instituições nem coletivos que comandassem a população, todos seriam livres para se locomover e explorar o espaço através do jogo. A cidade projetada por Nieuwenhuys não deveria inibir nem obrigar nenhum tipo de ação: New Babylon oferece apenas condições mínimas para um comportamento que deve permanecer o mais livre possível. Toda limitação de movimento, de criação, de humor e atmosfera devem ser inibidas. Tudo deve permanecer possível, tudo deve ser capaz de acontecer. O ambiente é criado pelas atividades da vida e não pelo contrário (NIEUWENHUYS apud FONDATION CONSTANT, 2017).

Nieuwenhuys ao longo de quase duas décadas de produção utilizou diversas técnicas para demonstrar suas ideias como pintura, desenho, colagem, texto, palestras, filmes e muitas maquetes. Muitos dos produtos que o arquiteto produziu são imprecisos ou confusos se comparados com a produção arquitetônica convencional, seus modelos mais se parecem com esculturas e seus “desenhos técnicos” são bastante abstratos. A intenção do holandês não era projetar simplesmente uma cidade, mas projetar uma nova cultura.

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paolo soleri Paolo Soleri nasceu em 21 de junho de 1919 na cidade Italiana de Turim. Se formou em arquitetura pela Politecnico di Torino em 1946, e no mesmo ano se muda para os Estados Unidos, trabalhando com Frank Lloyd Wright e ganhando reconhonhecimento internacional pelo projeto de uma ponte, exibida no MoMA em Nova York. Em 1950, voltou para a Itália para realizar um projeto de uma fábrica de cerâmicas, durante este período o arquiteto aprendeu a produzir sinos de cerâmica e bronze, os quais realizou durante muitos anos e ajudou a obter o dinheiro necessário para iniciar o projeto Arcosanti, um teste em escala real de suas arcologias, posteriormente explicado. O trabalho de Soleri é dedicado a produção de uma nova paisagem urbana, onde a sociedade humana e a natureza viveriam em harmonia. Seus modelos são opostos ao que estava ocorrendo na urbanização europeia na época, o espraiamento das cidades. O modelo vigente exigia uma enorme quantidade de energia e recursos naturais além de ser um desperdício de terra e tempo dedicado aos deslocamentos. Em 1969, foi publicado o livro “Arcology: The City in the Image of Man” e Soleri cunhou o termo Arcologia, a fusão das palavras “arquitetura” e “ecologia”, para referir-se às estruturas urbanas extremamente densas e compactas, nas quais reciclagem, redução de resíduos e uso de energias renováveis eram pensadas:

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Tal estrutura tomaria o lugar da paisagem natural na medida em que constituiria a nova topografia a ser tratada. Essa topografia artificial seria diferente da natural das seguintes maneiras: - Não seria uma configuração de uma superfície, mas uma de vários níveis; - Seria concebida de tal forma que o transportador de todos os elementos que tornam possível a vida física da cidade - lugares e entradas para pessoas, frete, água, energia, clima, telefone; locais e saídas para pessoas, frete, lixo, correios, produtos, e assim por diante; - Seria um dispositivo de abrigo de grande dimensão, fracionando tridimensionalmente o espaço em grandes e pequenos subespaços, modificando o próprio clima e a própria paisagem urbana; - Seria o recipiente principal para o fluxo maciço de pessoas e coisas dentro e para o exterior da cidade; - Seria o padrão de organização e ancoragem para instituições públicas e privadas da cidade; - Seria a estrutura focal para a vida complexa e em constante mudança da cidade; - Seria a expressão inconfundível do homem, o construtor e criador. Seria diversa e singular em todas suas realizações. A arcologia seria cercada por uma paisagem aberta e livre (SOLERI apud GRIERSON, 2003, p.5).

Soleri produziu dezenas de projetos de Arcologias que podem ser divididos em duas gerações. Em um primeiro momento, o arquiteto dedicou-se a esboçar enormes estruturas que seriam locadas nos mais inóspitos locais, até mesmo no espaço sideral. Entre elas, encontravam-se Novanoah II (uma cidade oceânica com capacidade para mais de dois milhões de habitantes com mais de 1.600 metros de altura), Stonebow (uma estrutura estabelecida em cânions para 200.000 pessoas), Theology (cidade no penhasco para 13.000 habitantes), Arcube (uma 48

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cidade em planaltos para quase meio milhão de pessoas) e Asteromo (onde 70.000 pessoas viveriam em órbita) para citar alguns. Em um segundo momento, destacou-se a prioridade dada por Soleri às questões energéticas da cidade, como resposta à crise do petróleo em 1973 e ao movimento ecológico em ascensão. Na Arcologia dos Dois Sóis são descritos seis efeitos arquitetônicos da nova abordagem:

O efeito de estufa é uma membrana enclausura uma área de solo que pode ser cultivada, estendendo a estação de crescimento a praticamente doze meses, e também poupa uma grande quantidade de água. ... Com a “estufa”, é possível uma agricultura intensiva, uso limitado de água e extensão de ciclos sazonais. Este é o efeito horticultural. Depois, há o efeito abside. Algumas estruturas podem absorver a radiação benigna do sol nos meses de inverno e tendem a cortar a forte radiação do sol no verão. Pelo efeito da chaminé, que está ligado ao efeito de estufa, pode-se transmitir, passivamente, energia através do movimento do ar e do calor de uma área para outra. Então, temos esses quatro efeitos; há também a capacidade de alvenaria para acumular e armazenar energia - efeito dissipador de calor. Com alvenaria relativamente grande, pode-se armazenar energia durante o horário quente do dia e liberá-lo durante o frio ou horas frias da noite. A intenção é ver se esses cinco efeitos podem ser organizados em torno do que eu chamo de efeito urbano. O efeito urbano é a capacidade da matéria mineral tornar-se animada, sensível, responsiva contendo memória. ... Se nós coordenássemos esses seis efeitos juntos, definitivamente poderíamos economizar recursos como terra, água, tempo, energia, materialismo e ter uma melhor sanidade ecológica. (SOLERI apud GRIERSON, 2003, p.7)

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O que faz de Soleri uma importante referência para a arquitetura especulativa dos anos dourados é sua preocupação, por mais de 50 anos, com questões de sustentabilidade ambiental e ecologia, antes mesmo de se tornar uma questão amplamente discutida no meio arquitetônico. Além disso, Soleri foi um dos poucos arquitetos a testar suas ideias construindo uma cidade real, chamada de Arcosanti no Arizona, Estados Unidos, que será abordada posteriormente.

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Arcosanti, a cidadeprotรณtipo de Soleri. Imagem 07

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CON FRON TAMENTO DE PRO JETOS


Após esta apresentação geral das vidas e trabalhos dos quatros arquitetos, parte-se para uma comparação em nove pontos chave encontrados nos projetos e discursos da Ville Spatiale, Marine City, New Babylon e Arcologia. Deste modo, apontam-se algumas semelhanças e diferenças entre os arquitetos e suas megaestruturas.

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passível de realização Muitas vezes entendidas como utopias arquitetônicas, as megaestruturas são vistas como manifestos e não como intenções construtivas reais, no entanto vários destes arquitetos se empenharam para que seus projetos fossem realizados em escala real. Friedman, Kikutake e Soleri desenvolveram diversos aspectos de seus respectivos projetos para comprovar a construtibilidade dos mesmos. O não comprometimento de Nieuwenhuys com aspectos técnico-construtivos da New Babylon deve- se ao posicionamento da Internacional Situacionista que buscava uma “revolução na sociedade antes de uma revolução das cidades” (CAÚLA, 2008, p.105), portanto, a arquitetura surgiria como resposta ao Homo Ludens que estava por vir. A relação que Kikutake estabeleceu durante sua prática arquitetônica com engenheiros e indústrias da construção refletiram na constante busca por respostas técnicas na Marine City. Em 1959, o arquiteto demonstrou através de um diagrama cinco possíveis soluções estruturais para as plataformas flutuantes, baseadas em prismas triangulares e hexagonais conectados ou em cilindros e esferas atuantes como boias.

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Nas imagens “i” e “iv” são demonstrados os prismas hexagonais que unidos seriam suporte para as plataformas da cidade marinha. A imagem “ii” demonstra uma grande plataforma flutuando diretamente sobre a superfície do mar, é suportada por esferas e cilindros conectados, formando uma voluta ou um grid triangular. A figura “iii” representa uma enorme placa horizontal fechada por cilindros horizontais e sustentada por grandes tubos verticais e pequenas boias. A última sequência de desenhos, imagem “v”, apresenta um esquema onde grandes esferas flutuantes unidas a cilindros verticais formariam unidades ambientalmente independentes. Imagem 08

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O arquiteto italiano Soleri aspirava por uma realização de suas Arcologias em um futuro muito próximo e afirmava que elas seriam, além de possíveis, desejáveis: Além do fato reconhecido e demonstrado de que construímos edifícios de vários andares que chegam a uma centena de histórias, que respondem à questão técnica na medida em que muitos dos exemplos apresentados são bem abaixo dessa altura, há um aspecto muito mais importante para a questão. Podemos gastar a nossa riqueza tecnológica por coisas que são tecnicamente viáveis, mas humanamente irrelevantes ou ruins, e podemos afirmar honestamente as coisas que são humanamente desejáveis, embora tecnicamente exigentes? Arcologia é realizável e desejável. (SOLERI, 1973, p.47)

Para que fossem realizadas, Soleri foi o único dos quatro arquitetos estudados que se dispôs a colocar em prática e testar em escala real suas propostas. Em 1970, Soleri foi para a região semidesértica do estado do Arizona nos Estados Unidos, onde iniciou a comunidade Arcosanti – palavra formada por “architettura”, “cosa” e “anti”, juntas significam “arquitetura antes das coisas”. A comunidade foi e ainda é realizada por voluntários que ajudam a projetá-la e construí-la. Visa-se a formação de uma comunidadeprotótipo concebida como um laboratório urbano onde as ideias de Soleri seriam testadas quanto à: a) b) c) d) e) f)

Expansão populacional e uso do solo; Integração social; Habitat autossuficiente; Transporte urbano; Produção de alimentos e energia; Impacto do habitat nos recursos naturais e

poluição (GRIERSON, 2003, p.8). pedro ribs

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A cidade tridimensional tem como objetivo, quando completa, ser habitada por cerca de cinco a seis mil moradores em apenas seis hectares, equivalendo a uma densidade maior que dez vezes a da cidade de São Paulo. O projeto conta com pomares, plantações, estufas e uma área de mais de 1200 hectares de preservação nos seus arredores concedida pelo estado do Arizona. É previsto que a estrutura construída não chegue a mais de 400 metros de extensão em nenhum dos sentidos, mas poderá chegar a trinta pavimentos. Nela, estarão locadas todas as funções de uma cidade: casas, escritórios, escolas, parques, centros culturais, entre outros. Soleri acreditava que o contato entre as diversas funções da cidade criaria um senso de comunidade. Longe de qualquer centro urbano e no meio de uma região semidesértica, Arcosanti seria a prova de uma cidade autossustentável e independente, validando as propostas de Soleri para construções nos locais mais inóspitos. Este distanciamento físico não levaria a uma perda de contato global, pois todas as cidades se conectariam por meio de uma rede digital de comunicação. Atualmente, a comunidade de Arcosanti conta com menos de 100 habitantes e somente pequena parte do projeto foi finalizada. Banham aponta o erro de Soleri ao implantar uma estrutura imprópria ao deserto: No final das contas, parece para mim, que nem (Frank Lloyd) Wright nem Soleri produziram estruturas que são, em senso comum, simpáticas ou adequadas ao deserto. Ambos levaram inerentes visões alienígenas e a impuseram na paisagem desértica, e os resultados são, nos seus modos, tão alheios quanto a maluca paisagem urbana de Las Vegas (BANHAM apud IMPERIALE, 2014, p.316). 58

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Mais recentemente, o projeto de Soleri foi alvo de críticas, segundo a perspectiva da sustentabilidade, pois colocar milhares de pessoas em uma área desértica, onde a água é escassa, torna a produção de alimentos difícil, sendo outro problema sua enorme distância de centros urbanos já estabelecidos (IMPERIALE, 2014). O arquiteto situacionista da New Babylon reforça as imagens que sugerem plasticidades, concepções de espaço, mas se exime em dar respostas técnicas às questões tais como encaixes, ligações, dimensões de pontos de apoio e vãos. A escala do projeto não é clara, os modelos aproximam-se mais de esculturas, como aquelas por ele praticadas, quando no grupo Neo-vision, fundado pelo artista Nicolas Schöffer em 1955. A intenção do arquiteto era evocar atmosferas possíveis e não delimitar formas finais. Em uma publicação de 1960 da Internacional Situacionista, Nieuwenhuys descreve uma das áreas da cidade, a Zona Amarela, formada “por uma série de câmaras de forma irregular, escadas em espiral, cantos distantes, terrenos baldios, cul-de-sacs”, nela poderiam ser encontrados “o quarto silencioso, coberto com material isolante; o quarto barulhento com cores vívidas e sons ensurdecedores; o quarto dos ecos (jogos com alto-falantes radiofônicos); o quarto das imagens (jogos cinemáticos); o quarto para reflexão (jogos de ressonância psicológica); o quarto para descanso; o quarto para jogos eróticos; o quarto das coincidências, etc” (CONSTANT apud MIYADA, 2013, p.130). Por se tratar de uma cidade da exploração e do jogo sem fim, o arquiteto propôs que as indústrias, usinas e serviços primários seriam realizadas por máquinas pedro ribs

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localizadas abaixo do solo de modo que o homem ficasse totalmente apto a exercer sua criatividade. Antes de qualquer questão técnica, para Nieuwenhuys, a sociedade do Homo Ludens deveria se tornar realidade para que, depois, a New Babylon, sua espacialização, fosse solucionada em termos construtivos. Diferentemente da abordagem de Nieuwenhuys, Yona Friedman, para alcançar uma arquitetura móvel, onde o cidadão controlaria o desenho urbano, propõe uma grande malha tridimensional regular, construída em treliças de aço e tirantes tensionados, e que seria capaz de expandir e retrair de acordo com as necessidades da cidade, na qual unidades arquitetônicas menores seriam anexadas. A estrutura metálica seria suportada por grandes pilares de concreto, distantes entre 40 a 60 metros, dispostos em pontos estudados da malha urbana estabelecida de modo a não a afetar. Esses pilares, além da função estrutural, também conteriam toda a rede de infraestrutura necessária. A cidade sobre pilotis apresenta semelhanças com a New Babylon, também suspensa do solo por meio de grandes pilares. A estrutura metálica principal da Ville Spatiale estaria entre 12 e 15 metros do solo e teria entre quatro e seis níveis passíveis de ocupação. O acesso à cidade móvel dar-se-ia por escadas rolantes e elevadores. A cidade móvel de Friedman, de acordo com ele, era uma resposta às tecnologias da época, sendo possível sua realização. Banham discorda ao afirmar que os projetos de Friedman eram simplistas e não edificáveis; estavam, na sua opinião, fadados ao fracasso por apresentarem uma estética brutalista datada e por serem tecnicamente impossíveis.

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cidades pré-existentes x novas As definições de megaestrutura não tratam das relações entre o novo e o antigo, mas eram pontos determinantes para certos projetos. É o caso da Ville Spatiale, cujo nascimento é fundamentado pela premissa de multiplicar o solo das cidades e preservar suas partes históricas. Tocando em poucos pontos e deixando vazios de modo a não prejudicar a vida em curso no solo, a cidade de Friedman construiria uma relação harmônica com o pré-existente. O arquiteto demonstra esta sobreposição na escala do pedestre através de colagens realizadas com imagens urbanas de Paris, nelas percebemos as relações de cheios e vazios deixadas pela estrutura aérea, além da contraposição formal de edifícios clássicos abaixo de uma grelha metálica homogênea. As Arcologias de Soleri também poderiam coexistir com cidades pré-existentes desde que fosse se permitisse a autonomia para o funcionamento da nova arquitetura e favorecesse entre as duas cidades a sua integração. Não obstante, o arquiteto considerava as cidades, contemporâneas a ele, um enorme investimento humano equivocado, porém sendo o ponto de partida para lidar, não sendo possível simplesmente descartá-las. Soleri esperava que a sociedade do futuro caminhasse para um desenvolvimento de “paisagens urbanas mais humanas” onde a tecnologia, logísticas e funcionalidades se associariam à ecologia, o que levaria ao fim das cidades tradicionais. Se as Arcologias fossem concretizadas, pedro ribs

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“nenhuma lágrima (seria) derramada pela destruição progressiva das nossas cidades” pois seriam “bem mais preparadas para lidar com os desafios impostos pela vida” (SOLERI, 1973, p.59). Paolo Soleri acreditava ainda que se as cidades fossem miniaturizadas: “os continentes [...] permaneceriam quase virgens ou retornariam ao estado natural. Seria possível por em marcha a “recuperação” e a conservação do planeta para o total benefício da espécie humana e para os reinos animal e vegetal” (SOLERI apud IMPERIALE, 2014). New Babylon sobre a cidade de Amsterdam, 1959. Imagem 09

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Nieuwenhuys desenvolvia através de seu projeto a vontade de que as cidades deixassem de ser concentrações pontuais ao redor do mundo e se tornassem parte da paisagem. A cidade “[...] é uma rede, ao invés de um núcleo. Uma cidade não é uma área, uma seção de terra embalada, envolta pela natureza, mas uma rede que se espalha em outro nível sobre a paisagem” (NIEUWENHUYS apud KOOLHAAS; OBRIST, 2011, p.20). Muitas maquetes produzidas por Nieuwenhuys apresentam-se sobre bases desprovidas de quaisquer objetos, muitas vezes preenchidas com elementos indistintos, tais como manchas de tinta, listras ou geometrias. Neste sentido, seus modelos reduzidos não demonstram exatamente a correlação do novo com o antigo. É possível encontrar em certas maquetes alguns blocos indicadores de arquiteturas preexistentes, mas sem a certeza do que se tratam, um galpão, uma igreja, uma casa, impossível saber. Através de sobreposições de mapas de cidades reais como Amsterdam ou Paris, o arquiteto explicita que a New Babylon se incorporaria a cidades antigas, contudo mais uma vez não esclarece de que maneira esta sobreposição se faria. Kikutake propõe cidades independentes do continente e de cidades estabelecidas, as Marine Cities não seriam nem a destruição de pré-existências nem sua ampliação, mas uma nova maneira de viver sobre o oceano. Em vista disso nenhum elemento semelhante a arquiteturas existentes aparece nas diversas representações do projeto, seja em forma de maquete ou em desenhos.

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transformações A apresentação do conceito de unidades menores suscetíveis a mudanças e trocas, como definidas por Wilcoxon (1968), aparece fielmente nos projetos para a Marine City de Kikutake e a Ville Spatiale de Friedman, de maneira mais nebulosa em New Babylon de Nieuwenhuys, sendo ausente na Arcologia de Soleri. Este conceito vinculase às mudanças sociais e econômicas ocorridas nos anos dourados, no qual a velocidade do aparecimento de novos produtos era sem precedente. Esta condição iniciou a throw-away culture ou cultura do descarte, novos produtos apareciam e os “antigos” deveriam ser descartados. O descarte expressava a liberdade individual sobre o que consumir e ao mesmo tempo sinalizava a característica da sociedade de consumo e da orientação da indústria para a obsolescência programada. Paolo Soleri, ao propor uma cidade compacta e densa criou uma cidade-edifício única, ao contrário da maioria das megaestruturas, uma Arcologia não seria formada de vários pequenos componentes cambiáveis ao longo do tempo, como são as proposições presentes principalmente nos projetos de Kikutake e Friedman. O arquiteto defendia a perenidade da arquitetura e criticava o pensamento corrente do consumo na expansão urbana, na qual imensos novos bairros eram dispersos horizontalmente pelo território. Buscando inspiração na natureza, realizou a comparação com o desenvolvimento de organismos, que crescem até certo ponto e continuam a se desenvolver 64

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internamente, sem que o organismo geral seja alterado, assim seria uma arcologia, que evoluiria no interior sem modificar a estrutura geral. No caso dos metabolistas, estes buscavam suplantar a cidade da máquina proposta pelo movimento moderno por uma cidade que se desenvolveria como um organismo vivo e, para tanto, buscaram inspiração nas dinâmicas da natureza. Para as Marine Cities de Kikutake, foram elaborados diversos esquemas que demonstravam a evolução da cidade, relacionando-a com a biologia e a genética. Por isso, o Marine City Unabara apresenta uma analogia do crescimento das cidades com o processo de reprodução celular. Na imagem 10, a torre de controle é representada como o pequeno círculo branco ao centro, ela simboliza o núcleo de uma célula onde os cromossomos são alojados e divididos mitóticamente. A zona habitacional é representada pelo círculo pontilhado simbolizador da membrana protetora do núcleo, que se desintegra no processo de divisão, mas é reconstituída quando a formação das novas células se conclui. A zona industrial é representada pelo círculo duplo mais externo e simboliza a membrana externa da célula. Por fim, o pequeno círculo preto refere-se ao bloco administrativo identificado a uma organela de células eucarióticas, o centrossomo que auxilia a divisão celular. Como pode ser visualizado na figura 10, Kikutake apresenta três maneiras de reprodução da cidade. Em “a” e “b”, as divisões partem do centro da célula. Em “a”, um novo bloco administrativo é formado e se movimenta para o lado oposto do original, neste movimento a zona habitacional é expandida e uma nova torre de controle é pedro ribs

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criada. Finalizada esta etapa, os blocos administrativos que se afastaram começam a se juntar, forçando a divisão da célula. Na divisão “b”, a zona habitacional inicia o processo se dividindo, a recém-formada zona habitacional passa a ter um bloco administrativo e uma torre de controle novos. Os conjuntos se distanciam no interior da célula, causando uma cisão. Na última divisão, a “c”, o processo é iniciado pelo anel industrial que se expande a partir do bloco administrativo. Em certo ponto uma nova zona de habitação, uma nova torre de controle e bloco administrativo são formados até se desprendem. Para o projeto de 1963, Kikutake apresentou um planejamento de crescimento das cidades a partir da divisão de partes do conjunto. A imagem 11 demonstra este processo, no qual grandes ilhas (“vii” e “viii”) se desprendem do corpo geral da “community block” e levam consigo algumas “block units”. Depois da separação, elas se conformam como a cidade antiga e podem seguir independentes, criando novas ilhas de habitação, indústrias e a administração.

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Processo de reprodução da Marine City Unabara Imagem 10

Processo de reprodução da Marine City de 1963. Imagem 11 pedro ribs

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Além dos processos de crescimento e desmembramento, Kikutake ainda propõe a substituição de células habitacionais de acordo com a necessidade da população, os cilindros de concreto permanecem e as unidades menores mudam com o tempo. Tange apresentou os conceitos do projeto de Kikutake em Otterlo (1959): [...] como uma árvore – elemento permanente – com as unidades habitacionais como folhas – elementos temporários – que caem e voltam a brotar segundo as necessidades do momento. Dentro desta estrutura, os edifícios podem crescer, desaparecer e voltar a crescer, mas a estrutura permanece (BANHAM, 2009, p.47)

No projeto Marine City Unabara, as torres de habitação são formadas por grandes planos verticais que se assemelham semelhantes a ábacos, onde as unidades individuais de habitação são retiradas e adicionadas (imagem XX), permitindo uma enorme liberdade para os habitantes. Em adição as conotações biológicas, o padrão de renovação constante, nascer, morrer e renascer pode ser relacionado aos valores do Budismo. Em japonês, metabolismo poderia ser traduzido para 新陳代謝 (shinchintaisha) que também pode significar renovação ou regeneração, palavras relacionados ao conceito budista de reencarnação. Nesta leitura percebemos que a metáfora “metabolista” possui o caráter universal científico e uma conotação espiritual japonesa (WENDELKEN apud SCHALK, 2014). Nieuwenhuys aponta que a New Babylon estaria em constante mudança pela própria população, não existe, portanto, uma definição de como isto ocorreria. A cidade seria um interminável movimento de crescimento, 68

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renovação, diminuição, reordenação ou qualquer outro tipo de remodelação espacial desejada e necessitada por seus habitantes. Esta constante reorganização impediria a fixação de uma identidade. A cidade proposta por Friedman teria um quadro estrutural permanente que receberia as arquiteturas realizadas pelo Flatwriter a partir dos inputs dos usuários. Estas arquiteturas poderiam trocadas a qualquer momento, adequando-se não somente às novas vontades dos moradores, mas também às novas tecnologias. Friedman, assim como Nieuwenhuys, buscava uma cidade em constante modificação pela população, mas restringia esta possibilidade ao estipular um zoneamento estratificado, como em projetos funcionalistas modernos. Na Ville Spatialle, a parte superior seria exclusivamente ocupada por habitações, as zonas intermediárias dedicarse-iam ao comércio e espaços públicos e o térreo seria destinado às fábricas e à agricultura.

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transporte Um ponto muito importante na constituição de uma megaestrutura é o transporte interno e entre as megaestruturas. Os anos dourados testemunharam a expansão dos meios de transporte de massa nas cidades, metrôs, trens e automóveis passaram a ser parte da paisagem urbana. Os arquitetos procuraram em seus projetos demonstrar como seria a locomoção, seja fazendo uso dos meios da época, ou se opondo a eles. Soleri crítica incisivamente o carro. Defendia sua retirada da cidade, pois eles “arruínam a paisagem urbana” (SOLERI, 1973, p.51). A redução ou retirada dos carros permitiria reduzir as terras urbanas de 50% a 60%. Soleri não se opunha à tecnologia per se, e sim à sua dependência causada por sua reprodução em larga escala. Segundo ele, esta reprodução descomunal assemelhar-se-ia ao crescimento do pescoço de uma girafa: o que seria benéfico, em algum ponto tornar-se-ia inadequado (SOLERI, 1973, p.65). Em Arcosanti, por exemplo, Soleri permitia o uso de carros para serviços nas periferias da cidade ou para a viagem entre diferentes comunidades. No entanto, em seu interior, os deslocamentos seriam realizados por elevadores, plataformas móveis, escadas rolantes e passarelas de pedestres (GRIERSON, 2003). Ao contrário de Paolo Soleri, Friedman propunha uma grande área destinada ao automóvel, no centro da estrutura principal da Ville Spatiale, existiria uma pista de alta velocidade, chamada de eixo neutro, abaixo dele 70

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uma grande esplanada peatonal pública, a partir dela, os cidadãos acessariam as praças públicas, áreas de lazer, espaços esportivos, comerciais e grandes terraços onde as trocas humanas ocorreriam (CAÚLA, 2008). Nem crítico nem defensor dos carros, o arquiteto holandês Nieuwenhuys demonstrou a existência de veículos em algumas de suas maquetes, eles são locados no solo e não sobre a estrutura da New Babylon e por isso aparentam transitar livremente sobre a superfície, não existem limites específicos, como ruas ou rodovias. O projeto do japonês Kikutake, por sua vez, por se tratar de uma cidade sobre o oceano, longe do continente, não apresenta nenhum elemento ou imagem indicativa da existência de carros. A locomoção no primeiro projeto (1958) não é explicitada, nem mesmo os possíveis acessos à cidade. Nos projetos posteriores, Marine City Unabara (1960) e Marine City (1963), o principal meio de locomoção é aquático: são barcos e navios que circulam nos arredores das cidades, ancorados a portos ou se locomovendo entre cidades.

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dimensão social do espaço Nieuwenhuys propôs em New Babylon sua ambição por uma cultura em transformação ininterrupta, constituída por uma população nômade. Esta população estaria sempre experimentando criativamente os espaços e tecendo relações interpessoais prazerosas e lúdicas: Eles (os habitantes da New Babylon) dispõem de um arsenal de ferramentas técnicas para fazer isso (agir sobre o mundo) [...] assim como o pintor, que com uma pequena quantidade de cores cria uma infinita variedade de formas, contrastes e estilos, os New Babylonians podem transformar o seu ambiente ilimitadamente, renová-lo e muda-lo utilizando seus recursos técnicos. A comparação revela uma diferença fundamental entre os dois modos de criar. O pintor é um criador solitário que é confrontado pelas reações de outras pessoas apenas após a conclusão do ato criativo. Entre os New Babylonians, por outro lado, o ato criativo é também um ato social: como intervenção direta sobre o mundo social, ele provoca respostas imediatas (CONSTANT, “New Babylon, een schets voor een kultuur”, 1974. In: WIGLEY, 1998, p.162).

Esta sociedade imaginada por Nieuwenhuys provém de uma referência compartilhada com o grupo CoBrA, o livro do historiador Johan Huizinga, “Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura”. Publicado em 1938, Huiziga entende o jogo como o foco da criatividade humana, e ponto de referência para a civilização surge e seu desenvolvimento. Ressalta-se que a liberdade permitida 72

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no intervalo da vida cotidiana, “uma evasão temporária que obedece a limites espaciais e temporais” (MIYADA, 2013, p.136), era pretendida por Constant para a totalidade da vida, seria o fim do homo faber (o que faz) (CAÚLA, 2008). A tecnologia e automatização permitiriam uma total despreocupação com a sobrevivência, pois o fornecimento de comida, água e energia estariam garantidos (MIYADA, 2013). O homem característico do pós-guerra europeu era o “homem de terno cinza” (MIYADA, 2013, p.185), retratado no filme Playtime (1967) do francês Jacques Tati, que satiriza a vida urbana moderna, estandardizada e monótona. Friedman defendia que o homem tipo, como era tratado o usuário da arquitetura moderna universal, não existia, cada indivíduo possuiria vontades e necessidades únicas. Além da influência de Huizinga, Friedman explorou o Princípio da Incerteza desenvolvido pelo físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976). Pioneiro na Mecânica Quântica, Heinsengerg formulou que, grosso modo, seria impossível saber a posição exata que um elétron ocupa em um átomo. Isto é, quanto maior a precisão do método para deduzir sua posição exata, menor será a precisão do resultado encontrado. A incerteza foi assimilada pelo GEAM na “composição” do novo homem, individualista, independente e imprevisível, para “fazer a cidade” móvel. Estes conceitos garantiriam um direito natural do ser humano, segundo Friedman, a liberdade. Soleri acreditava que, a partir do entendimento do homem como um ser cooperativo e cultural, a Arcologia, como experiência de vida em que as relações se tornam mais próximas e um grupo é a soma da cultura de cada indivíduo, seria a “melhor plataforma para a autorrealização” pedro ribs

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(SOLERI, 1973, p.52). O arquiteto acreditava ainda que através da adoção de um estilo de vida mais simples, a população se desenvolveria espiritualmente e causaria menos mal ao planeta. Fechadas em si mesmas, estas arquiteturas encorajariam as relações sociais e intensificariam a cultura ao mesmo tempo em que preservaria a natureza (GRIERSON, 2003). De acordo com os métodos projetivos de Kikutake, uma das primeiras preocupações do arquiteto deveria ser o entendimento de quem iria utilizar o espaço a ser concebido e suas relações com o entorno. Para os projetos Marine Cities, não existem importantes referências em relação a escala do usuário, os espaços públicos são definidos como grandes áreas sem qualquer sugestão de como seria a vida em suas cidades. Em Project Japan (2011), Rem Koolhaas e Hans Ulrich Obrist entrevistaram o arquiteto japonês e se surpreenderam com seu posicionamento político-social. Ao iniciar a entrevista, ocorrida na Sky House (1958), Kikutake apontou para um retrato na parede que continha seus avós e disse que representava suas origens. Ao ser questionado o que isto significava, o arquiteto japonês diz que ele nasceu numa família de proprietários de terra (landlords) e, tradicionalmente no Japão, eram as elites que forneciam toda a infraestrutura necessária para a população, como escolas, templos e barragens, auxiliando na manutenção de fazendas e cuidavam da cultura. Kikutake comenta que sua arquitetura foi um protesto contra a ocupação americana em seu país e a abolição do sistema latifundiário, que, em suas palavras, destruiu pouco a pouco o tecido social e cultural das comunidades locais. O que para os arquitetos ocidentais parecia ser 74

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uma arquitetura defensora da democracia, cujas unidades transitórias seriam a base para a liberdade individual de vida foi, para o projetista, uma criação de um “exilio aristocrático” fora da superpopulosa terra, indo para o céu ou para a água. (KOOLHAAS; OBRIST, 2011, p.133).

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controle A Ville Spatiale assim como a New Babylon seriam cidades “sem regras” (CAÚLA, 2008), pois a população determinaria as adições, subtrações e modificações da arquitetura, neste sentido o arquiteto não seria um agente ativo na construção urbana. Friedman acreditava que “um arquiteto não cria uma cidade, é apenas um acúmulo de objetos. É o habitante que inventa a cidade: uma cidade desabitada, mesmo nova, é apenas uma ruína” (FRIEDMAN apud MIYASAKI, 2011, p. 62). Friedman estabeleceu uma abordagem estrita com o jogo conforme compreendido por Huizinga, no qual espaço e tempo são determinados e as regras bem definidas. Neste sentido, a cidade móvel seria um espaço livre para constantes modificações dentro de regras estabelecidas pelo arquiteto. Para tanto, além de predeterminar a estrutura principal onde as unidades menores seriam anexadas, o arquiteto definiu 10 pontos do planejamento da cidade móvel: 1. O futuro das cidades: os centros de lazer. Outras funções são cada vez mais atomizadas. 2. A nova sociedade urbana tem de estar livre da influência do planejador urbano. 3. A agricultura nas cidades é uma necessidade social. 4. A cidade deve ser climaticamente condicionada. 5. Os prédios que formam a cidade devem obedecer a uma escala técnica. 6. A cidade deve ser a intensificação de uma cidade existente. 76

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7. A técnica de três dimensões no urbanismo permite a sobreposição ou superposição de diferentes bairros. 8. Estruturas de edifícios devem ser esqueletos que podem ser preenchidos à vontade. 9. Cidades com três milhões de habitantes são o modelo empírico ótimo. 10. Toda a população da Europa, em 120 cidades de 3 milhões de habitantes. (FRIEDMAN apud MIYASAKA, 2011, p.63-64).

Segundo Soleri, para que um acontecimento fosse efetivamente realizado, seria imprescindível algum direcionamento; no caso da cidade, o promotor deste acontecimento deveria ser o arquiteto planejador. Reconhecia os limites do planejador pois ele não era onisciente de todas as necessidades da sociedade, mas, mesmo assim, ele seria o mais qualificado personagem para traçar os rumos da cidade. Com mais uma de suas metáforas Soleri compara o arquiteto planejador com o criador de uma máquina de escrever, este sabe que a máquina reproduzirá todas as letras do alfabeto que poderão formar textos, mas ele não sabe que tipo de mensagem será produzida com sua invenção. O posicionamento do italiano era o oposto ao de Nieuwenhuys, para esse último, a figura do planejador urbano deveria ser combatida, pois ela reduzia as possibilidades de invenção, além da busca por uma cidade asséptica, geradora de segregação. Não caberia ao arquiteto decidir como seria a cidade, por isso Nieuwenhuys apresentava seu projeto de forma tão nebulosa e imprecisa. Além da libertação dos departamentos de planejamento urbano, a New Babylon estaria livre de qualquer instituição, fosse o Estado ou o mercado imobiliário. A cidade seria autogerida pelos indivíduos e pedro ribs

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coletividade nômade. Em “New Babylon: een schets voor een kultur” (1960-65) o arquiteto aponta: A New Babylon não tem fim (já que o planeta é redondo); ela não possui fronteiras (já que não existem mais economias nacionais) ou coletivos (já que toda humanidade é flutuante). Todos os lugares são acessíveis para todos. A Terra inteira torna-se a casa de seus proprietários. A vida é uma jornada sem fim através de um mundo que está mudando tão rápido que parece sempre outro (CONSTANT apud MIYADA, 2013, p.19).

No que se trata de instituições, o húngaro Friedman propõe, em 1967, uma gestão cibernética da cidade, o Flatwriter seria o criador e administrador das arquiteturas de toda a Ville Spatiale. Com esta máquina, os habitantes da cidade de Friedman poderiam, independentes de planejadores urbanos ou arquitetos, conceber suas habitações, optando por milhares de possibilidades e combinações de projeto inseridas através de uma interface desenhada por Friedman5. O Flatwriter estaria em constante contato com os usuários através de um canal de feedback, por onde aconselharia o habitante para possíveis novas alterações. O sistema estabeleceria uma total “democratização arquitetônica e espontaneidade urbana” (GONÇALVES, 2014, p.133) permitindo que o usuário: a) Escolha o nível e as características da sua casa (ambiente individual), uma atividade que é atualmente desempenhada por arquitetos; b) Escolha a situação do seu entorno na cidade e receba uma “permissão para construção” imediata, atividade que é atualmente desempenhada pelo

5 Alguns anos depois foi desenvolvida por um time do MIT (Massachussets Institute of Technology) 78

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urbanista e pelo município; c) Seja informado das consequências particulares que atingem diretamente a si e sua morada, o que ocorre toda vez que haja uma nova eleição ou decisão na cidade. O Flatwriter é pois a aplicação de um novo processo de informação entre o usuário e o objeto de seu uso, permite uma decisão individual quase ilimitada e uma oportunidade direta para corrigir seus próprios erros sem a intervenção dos profissionais “intermediários” (FRIEDMAN apud MIYASAKA, 2011, p.92-93).

Interface do Flatwriter desenhada por Friedman Imagem 12 pedro ribs

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Utilizando-se da linguagem computacional, o produto final seria o hardware arquitetônico, cujo layout seria alcançado através da união de “teclas” especiais que juntas formariam uma “palavra” instalada no “grid”, a malha tridimensional da Ville Spatialle. Para a inserção deste novo elemento na malha, o Flatwriter analisaria os espaços vazios e todos os possíveis efeitos resultados de sua adição nos hardwares já instalados e na cidade antiga, deste modo chegaria ao melhor resultado possível. Friedman explorou a Teoria da Comunicação, criada por Shannon and Weaver (1948), para elaborar os métodos do Flatwriter. Nesta teoria, os matemáticos estudaram os processos de transmissão de dados, que no caso do processo arquitetônico convencional foram transformados em: o emissor seria o usuário; a mensagem é transmitida e traduzida pelo arquiteto; o produto tangível seria o hardware arquitetônico; o retorno da mensagem ocorreria quando o usuário passasse a utilizar a arquitetura. Diagrama explicativo do processo de design convencional Imagem 13

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No momento em que a arquitetura passava a ser uma “indústria”, o arquiteto deveria produzir centenas de casas para diferentes usuários, o sistema sofreria alterações: o emissor da mensagem seria um “homem-tipo” imaginado pelo transmissor e tradutor (o arquiteto); este criaria um hardware aplicável a todos os possíveis usuários. Friedman vislumbrava neste processo informacional um problema, como no diagrama de Shannon e Weaver (imagem XX). Isto é, o arquiteto funcionava como um ruído (noise source) que poderia interpretar a mensagem de maneira equivocada, resultando em uma arquitetura não desejada. Para que este ruído fosse removido, o arquiteto deveria posicionarse em espaço paralelo ao processo, sendo responsável pelo repertório de possibilidades e advertindo possíveis problemas na inserção dos elementos criados pela máquina na cidade.

Diagrama de Diagrama de Shannon & Weaver 1948. Imagem 14

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mínimo O habitat pensado por Friedman era formado por três esferas: o urbano, a casa e o indivíduo. O conceito de arquitetura móvel percorre as diferentes escalas de projeto e todas as partes da cidade eram conectadas. A casa, portanto, seria composta pela rua, jardim, casas vizinhas, ampliando-se até a escala urbana. O arquiteto buscou “extrair o máximo de flexibilidade de uma estrutura mínima” (BUSBEA apud MIYASAKI, 2011, p.59), para tanto, o interior das habitações foi pensado como uma unidade capaz de transformação composta por elementos “quase-móveis”, como ele os denominou. As funções molhadas da casa (banheiro e cozinha) seriam como móveis que, colocados em diferentes posições, dividiriam e conformariam os espaços restantes. A atenção de Friedman dada a escala mais íntima demonstra que a mobilidade defendida era mais do que a movimentação na cidade, implicava a mobilidade do próprio ambiente através da movimentação de todos os elementos. Sobre essa flexibilização interna, Friedman se distancia da flexibilização defendida pelo Movimento Moderno, no qual a estrutura seria independente das vedações e do layout. Para o arquiteto húngaro, tudo deveria ser móvel e para isso propõe soluções técnicas como as cozinhas e banheiros conectados à rede de serviços públicos através de tubos flexíveis de plástico e painéis pré-fabricados portáteis (MIYASAKA, 2011, p.77). Friedman e o GEAM questionavam a organização 82

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dos ambientes internos de acordo com a tripartição burguesa do habitar (social, serviço e íntima) e tinham em mente os novos núcleos familiares em formação: pessoas sós, casais sem filhos, mulheres com filhos únicos entre outros. Seguindo os preceitos do Urbanismo Unitário proposto pela IS, o foco de uma cidade situacionista seria em uma escala mais ampla do que a casa, deveria abranger o complexo arquitetônico “que é a união de todos os fatores de condicionamento de um ambiente ou uma sequência de ambientes colidindo na escala da situação construída” (McDONOUGH apud MIYADA, 2013, p.102). Em New Babylon não existiriam propriedades privadas, Nieuwenhuys era avesso até mesmo à ideia da mínima unidade de habitação permanente. A cidade deveria ser composta de espaços vastos sempre “disponíveis para o jogo e a criação coletiva” (MIYADA, 2013, p.130). O entendimento do mínimo para Soleri encaminhase para uma questão mais ampla e específica, o arquiteto buscava a miniaturização das cidades. Ela não seria uma questão de “diminuir uma cama ou armário, nem a redução de uma sala de estar ou varanda. É a expulsão dos elementos que arruínam a paisagem urbana” (SOLERI, 1973, p.51). Miniaturizar não seria diminuir e sim compactar uma enorme complexidade em espaço menor. Com a intenção de esclarecer esta ideia, Soleri utilizou o cérebro humano como exemplo, apontando para a enorme capacidade de absorver e transmitir informações em um órgão reduzido. Na sua visão, algo, quanto mais desenvolvido, menos matéria necessita. Parte deste pensamento está no paradigma CMD (complexidade – miniaturização – duração), que apontava direções para a revisão das estruturas sociais, pedro ribs

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culturais e político-econômicas: Complexidade. Muitos eventos e processos se agrupam onde quer que um processo de vida esteja funcionando. A concepção do processo é imensamente complexa e se intensifica. Miniaturização. A natureza da complexidade exige a utilização rigorosa de todos os recursos - energia em massa e espaço-tempo, por exemplo. Portanto, sempre que a complexidade está no trabalho, a miniaturização é obrigatória e parte do processo. Duração. O processo implica a extensão do tempo. A extensão temporal é deformada por coisas vivas em atos de duração, isto é, a eventual “vida fora do tempo” (SOLERI apud GIERSON, 2003, p.7).

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representação O modo como um arquiteto representa seu projeto carrega muitos significados de como a arquitetura deverá ser ou o que ela representará. Estas questões subjetivas deixam de ser muitas vezes expostas em textos, mas não deixam de ser tão importantes quanto. Para o artista Nieuwenhuys, as representações constituem a parte mais relevante de sua obra e a que mais fala sobre o que o arquiteto pensava. As representações da New Babylon misturam diferentes técnicas, como pintura, colagem e desenho, e resultam em espaços em preto e branco labirínticos, descontínuos e com geometrias confusas. O movimento e modificações constantes na cidade são representados através de espirais, setas e fórmulas matemáticas. O arquiteto apontava que suas representações poderiam ser giradas e visualizadas em qualquer posição já que demonstravam uma intenção espacial e não um espaço final definido. As maquetes de Nieuwenhuys existiam com a intenção de demonstrar plasticidades e sensações desejadas pelo arquiteto, não exatamente funcionavam como modelos reduzidos de uma arquitetura real. Esses modelos se analisados sob uma lente técnica seriam totalmente equivocados, grandes partes da cidade sustentadas por apenas um único pilar, torres suspensas, vãos exagerados e pavimentos interrompidos são alguns exemplos do que se podia ser encontrado na New Babylon. Consonante com o conceito de cidade da pedro ribs

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Maquete da New Babylon Imagem 15

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Ville Spatiale sobre Paris Imagem 16

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transformação contínua, as maquetes foram modificadas diversas vezes, sendo acrescidos e retirados elementos que deixaram rastros através de manchas, furos e ligações não mascaradas, testemunhas das transformações. Algumas maquetes eram até mesmo a união de outras maquetes anteriores que o arquiteto desejou desmontar. Após “finalizadas” (entre aspas pois para o arquiteto nenhuma parte do projeto teria realmente um fim) estas maquetes eram fotografadas em ângulos que confundiam a escala, elas “eram projetadas para serem olhadas de dentro, mas nada é revelado além da polêmica indeterminação de seus andares” (WIGLEY apud MIYADA, 2013, p.157). Após o rompimento com a Internacional Situacionista, Nieuwenhuys passa a experimentar representações arquitetônicas (cortes, plantas e elevações) combinadas a elementos claramente pictóricos como manchas de tinta e volumetrias confusas. Nos últimos anos do projeto, Nieuwenhuys realiza maquetes precisas do ponto de vista técnico, com milhares de treliças representadas, proporções e apoios gerais coerentes com uma possível realização. Além das maquetes os desenhos, antes caóticos, passam a se assemelhar a projetos executivos, com traços limpos e precisos. Embora o discurso ao longo de sua trajetória foi afirmar que a New Babylon só seria realizada após a liberação do homem do trabalho e possibilidade da plena dedicação à criatividade, ele esteve muito próximo de um projeto realizável nos últimos momentos. As representações da cidade de Yona Friedman são realizadas em grande parte por desenhos de traços simples, quase como esboços infantis, técnica que o arquiteto desenvolveu para demonstrar informações de maneira 88

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clara e rápida em suas aulas e palestras. Estes desenhos contavam histórias como os quadrinhos, colocando seus pensamentos numa lógica linear temporal. Além destes desenhos, o arquiteto faz uso de fotomontagens, onde insere a Ville Spatiale em contextos conhecidos da cidade de Paris, estas representações se assemelham à claustrofobia causada pela cidade de Nieuwenhuys, ambas cidades se tornariam ambientes de difícil leitura e compreensão, sem marcos urbanos e de “urbanidades estilhaçadas diante da supressão da rua” (GONÇALVES, 2014). Harvey (2014) aponta que Friedman introduz o conceito pós-moderno de fragmentação ao desenvolver uma cidade tão imaterial quanto o grid que a contém, além de sua morfologia mutável. A escala humana é um ponto importante em desenhos arquitetônicos. Além de sua função técnica de demonstrar a escala de projeto, ela pode, subjetivamente, indicar sensações, interações e atividades que o arquiteto imagina para seu projeto. Para Friedman, são estas calungas que demonstram, muitas vezes, os conceitos da cidade móvel, o método de desenho rápido e eficiente, traços limpos e simples, também são aplicados para a escala humana em espécies de “bonecos palito” genéricos que assim como em histórias em quadrinhos, muitas vezes possuem falas e ações.

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Maquete do Marine City, Kikutake Imagem 17

Arcologia, Soleri Imagem 18 90

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Os desenhos de Kikutake em carvão, pastel ou nanquim apresentavam frequentemente elementos nacionais japoneses de uma maneira romântica, como o sol nascente refletindo sobre as águas do oceano, imagem constantemente associada àquela nação, ou ainda o Monte Fuji como plano de fundo. A intenção do arquiteto japonês era de representar sua arquitetura de maneira grandiosa, valorizando sua nação e demonstrando assim a capacidade projetiva dos japoneses, neste sentido a escala humana é retirada, deixando um tom de monumentalidade a seu projeto. A representação humana nos projetos de Kikutake são raras, quando aparecem são como manchas anônimas dispersas. Os espaços urbanos públicos propostos pelo arquiteto, as grandes plataformas ao nível da água, aparecem vazias. O material gráfico encontrado do arquiteto italiano não é muito vasto e não existem bancos de dados que forneçam informações mais precisas, nem mesmo no site da Fundação Cosanti, responsável pela Arcosanti e conservação da obra de Soleri. Os desenhos encontrados demonstram uma distância entre Soleri e os outros arquitetos, muito relacionado ao desenho arquitetônico convencional, o arquiteto apresentava seus projetos através de cortes, plantas, detalhes, perspectivas isométricas e elevações minuciosamente desenhadas que continham indicações das diferentes atividades estabelecidas dentro das Arcologias. Além disso, o arquiteto testou alguns de seus projetos através de maquetes, muitas realizadas com a ajuda de voluntários da Arcosanti. O material produzido por Soleri demonstra o mesmo que seus textos: os projetos, por mais utópicos e fantasiosos pedro ribs

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que pareçam, eram levados a sério pelo arquiteto e eram estudos para cidades que deveriam ser concebidas na época em que foram pensadas. Os projetos megaestruturalistas apresentados, em suas intenções de desenho e morfologia podem ser comparados com geometrias básicas, como ponto, linha e plano e talvez a união de dois destes elementos, como no caso de Kikutake. O elemento mínimo na formação de geometrias, o ponto, é o que a arquitetura de Soleri buscar ser. A Arcologia deveria ser tão compacta, que em seu mais “absurdo limite”, se tornaria puntiforme. Esta arquitetura deveria tender ao centro, resultando, fisicamente numa composição mais equilibrada, com momento menor. Uma composição concentrada proporcionaria uma visão macro dos sistemas dentro da cidade fazendo com que os habitantes fossem mais conscientes do todo que eles fariam parte (SOLERI, 1973, p.66). A união de várias “arcologias” ou pontos, formaria uma linha, elemento geométrico o qual a New Babylon de Nieuwenhuys se assemelha. Através de maquetes e colagens realizadas sobre mapas de cidades reais, o arquiteto demonstra uma arquitetura que se estenderia infinitamente ao redor do globo como linhas interconectadas, nestas representações uma das dimensões, o comprimento, é muito maior do que a outra dimensão, a largura. O terceiro elemento seria o plano, representado pelo projeto de Friedman, sua malha tridimensional, no contexto geral da cidade formaria um grande plano horizontal, onde a altura da grelha seria suprimida. O projeto restante, a Marine City de Kikutake não se 92

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aproxima de nenhuma das três geometrias básicas, mas talvez seja a união de duas. Volumetricamente, poderíamos dizer que as plataformas públicas seriam planos onde linhas, edifícios residenciais, se apoiam perpendicularmente; olhando o projeto em planta as linhas se tornariam pontos, formando uma união plano-ponto. A partir desta leitura, percebemos que as megaestruturas se diferenciam consideravelmente em termos morfológicos.

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CON SIDE RA ÇÕES FI NAIS


Ao recuperar o debate sobre megaestruturas, percebe-se uma gama de detalhes e diferenças não expressadas pelo termo que abraça e designa todos os projetos e arquitetos dos anos dourados. A conceituação do termo, realizada por arquitetos e estudiosos, procurou englobar os projetos em seus pontos chaves, entendidos como atributos possíveis de serem conferidos, podendo discutir a abrangência do rótulo. . Todavia, as variações sobre a megaestruturas não impediram de visualizar um conjunto de pensamento comum a uma época. Os avanços tecnológicos muito impactaram a arquitetura após a Segunda Guerra Mundial. A explosão de produtos de consumo, por exemplo, foi determinante para a proposição de arquiteturas pré-fabricadas, cujas partes pudessem ser modificadas e trocadas, conforme as ofertas em uma prateleira de supermercado. A época da uma nova revolução informacional alimentava a ideia de transnacionalização, o que levou arquitetos como Nieuwenhuys, Friedman e o grupo Archigram a projetarem cidades móveis, que acompanhassem o boom da mobilidade e troca de informações internacionais. As descobertas nas áreas da medicina e biologia mudaram a forma de entender o mundo do infinitamente pequeno, composto por minúsculas estruturas e mecanismos complexos, aplicados na prática da arquitetura 96

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dos Metabolistas. Do lado oposto, o universo infinitamente grande também foi desvelado, a arquitetura expressou esta possibilidade de se expandir para fora do planeta, através de cidades em órbita. A cápsula espacial colonizou o imaginário arquitetônico. Analisando os projetos da época mais detalhadamente, percebe-se um posicionamento político e engajado para suas questões. Um destes casos é a New Babylon de Nieuwenhuys, o projeto como utopia oferece um raciocínio crítico à sociedade e urbanismo, ressaltando a transnacionalidade e o posicionamento do artista ao lado de minorias e oposto às instituições capitalistas. Outro projeto protesto foi o Marine City de Kikutake. Herdeiro de uma família dona de terras, o arquiteto perdeu diversos direitos quando da ocupação de seu país pelos Estados Unidos. Em reposta a esta situação, os projetos de Kikutake são espaços de fuga das classes mais abastadas do Japão para o mar, contrariando o que em geral é entendido de suas proposições. Percebe-se ainda certas preocupações específicas de cada arquiteto: Friedman demonstrou através da Ville Spatiale uma preocupação com a mobilidade, que poderia ser solucionada através dos estudos da cibernética e processos informacionais; Kikutake se esforçou para que seus projetos alcançassem soluções reais de crescimento e desenvolvimento como um organismo; Nieuwenhuys dedicou décadas de trabalho em busca de uma sociedade ideal, livre do trabalho e apta a viver ludicamente todos os dias; por fim, Soleri, a frente de seu tempo, propôs uma arquitetura comprometida com questões ambientais, antes mesmo que se tornasse comum. Apesar do discurso sobre a “ampliação ilimitada” pedro ribs

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das megaestruturas, a concentração de atividades explicita que as palavras ‘descompromissadas’ e ‘libertadoras’ dos megaestruturalistas significavam um controle sobre o que consideravam o caos das cidades, impondo uma lógica arquitetônica, simples e controladora. Deste modo, o megaestruturalismo apresentou uma nostalgia pelo passado Corbusiano, um retorno à “idade heroica da arquitetura moderna” quando os projetos eram ousados, radicais e moldados por “gestos precisos” como a Ville Contemporaine (1922) e o Fort l’Empereur (1931). Na visão do crítico inglês Reyner Banham (2001), muito comprometido com o movimento moderno, “a megaestrutura foi a última grande esperança da arquitetura para conservar o controle do desenho e da urbanização das cidades” (BANHAM, 2001, p.199-202). As proposições megaestruturalistas perdem força no início dos anos 1970, mesmo período em que a economia mundial desacelera como consequência das dificuldades econômicas americanas e da crise do Petróleo. Estes obstáculos corroboraram para o abandono destes projetos, tendo em vista a dificuldade que seria, numa crise, colocar em prática todas as ideias visionárias. No entanto, ainda hoje, é possível afirmar que projetos com características parecidas foram desenvolvidos após os anos dourados e continuam aquecendo o debate arquitetônico acerca de questões polêmicas de nossa sociedade. São projetos como Hyperbuilding (1996) de Rem Koolhaas, Crystal Island (2008) de Norman Foster, X-Seed 4000 (1995) de Peter Neville, The Interlace (2007) de Ole Scheeren e OMA e Linked Hybrid (2009) de Steven Holl, cujos conceitos estão associados aos debates dos anos 1960. 98

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Hyperbuilding (1996), OMA. Imagem 19 pedro ribs

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Estes projetos de edifícios buscam abranger todas ou a maior parte dos usos desenvolvidos em uma cidade, desprendem-se do tecido urbano e funcionam independentemente dele. Contudo, diferentemente dos projetos desenvolvidos na segunda metade do século XX, que criticavam através de soluções arquitetônicas os novos vícios da sociedade, os projetos atuais aparentam mais preocupados em satisfazer um programa de necessidades e movimentar mecanismos capitalistas que os tornam possíveis. Ademais, os arquitetos estão restritos aos terrenos reais onde se eles concretizam, não estabelecendo, normalmente, nenhum tipo de relação com o entorno préexistente. Dentre os projetos citados, o Hyperbuilding de Koolhaas é o que mais se aproxima do megaestruturalismo inicial, pois este projeto funciona como uma imensa cidade vertical: a união de diversos edifícios em um só, nascido como resposta à congestão da cidade de Bangkok, criticando a urbanidade da cidade através de um projeto teórico. Um fato interessante a ser notado, todos estes projetos estão localizados em cidades do oriente: Bangkok, Moscou, Tóquio, Singapura e Pequim, em ordem, locais onde a população está em expansão e as cidades explodem demograficamente. A concretização destas novas megaestruturas demonstra que a arquitetura, de certo modo, ainda aposta na resolução dos problemas de falta de solo urbano e superpopulação através de arquiteturas colossais. As megaestruturas entraram na memória da arquitetura como projetos excêntricos, quase como uma arquitetura de ficção científica, e por este entendimento, 100

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talvez, foram esquecidas no debate acadêmico, não deixando rastros nem mesmo nos livros de história do século XX, em especial nas bibliotecas brasilienses. Projetos especulativos como os desenvolvidos pelos megaestruturalistas incitam questionamentos sobre o presente e libertam a arquitetura de suas amarras técnicas, presentes em escolas de arquitetura ainda vinculadas ao funcionalismo moderno. A especulação possibilita inovações da academia para o mundo profissional, num ambiente em que a realidade limitadora não suprime o pensamento crítico.

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BI BLI OGRA FIA


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Este livro foi produzido em papel pรณlen 90gr na fonte Raleway




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