Uma História Como Esta (cap. II-IV)

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CAPÍTULO II !Ӂ Alvo: o futuro Ӂ! Dezenas de olhares fixam, lá no fundo, a partir de uma ponte, o que parece ser um cadáver. Pelos contornos e pelas roupas, o aparente cadáver é feminino quanto ao sexo e adulto quanto à faixa etária. As questões como caiu?, há quanto tempo está aí? e será que vive aqui perto? são interrompidas pela chegada de duas mulheres perto do corpo estendido. As mulheres têm andar desequilibrado, embriagado. Viram o provável cadáver, revistam-no, desamarram-lhe o pano que cobre a cintura e as pernas e retiram-lhe o que parece ser uma quantia avultada de dinheiro. Há gritos de protesto na boca das pessoas na ponte. Há linguagem ultrajante na boca das duas mulheres em resposta. Protestos disputam contra linguagem ultrajante por momentos, até que alguns da ponte atiram pedras contra as mulheres. Elas afastam-se em fuga insurrecta. As pessoas na ponte não param de lhes jogar pedras até que elas desaparecem de seu campo de visão. No meio daquela situação revoltante e da escuridão nocturna, duas coisas escapam à percepção daquelas pessoas: A primeira: O estado embriagado e irascível das duas mulheres não lhes permite ver que, no pano em que tiram o dinheiro ao aparente cadáver, há um bilhete com as seguintes palavras: Quantos hojes de tua vida se transformaram em ontens, perderam-se em anteontens, mas afectarão consideravelmente os teus distintos amanhãs? A segunda: Para as dezenas de indivíduos da ponte, a vontade de agredir aquelas duas mulheres é tanta que não se apercebem que, no momento em que a mulher que parece ser um cadáver recupera os sentidos e tenta se levantar, uma das pedras atinge-lhe a testa e ela volta a cair, sangrando.


CAPÍTULO III !Ӂ Palpitando o desespero Ӂ!

Ansiedade é o que pinta o rosto ameninado de Weza. O seu coração está aos pulos com extrema preocupação. Vira e revira a casa gritando o mesmo nome infinitas vezes: – Lemba, Lembinhé! Mas essa miúda foi aonde? Filha alheia, meu Deus! Quer me trazer azar essa hora! – Távamo brincá de se escondê có ela, depois só vi, desapareceu – diz a rapariga ao seu lado. – Já lhe precuramo na rua e na casa da mâ Mena; num lhe achamo. – Filha alheia, estás aonde então? Vieste mesmo só nos visitar para desaparecer? E mãe dela está quase a chegar. Vou-lhe responder o que então? Vai ainda lhe procurar mais na rua, Sambita. Vou lhe procurar no quintal. – Está bem, mana – diz a menina, correndo para fora da casa em seguida. Weza sai de casa. O quintal é revistado com o olhar, interrogado com os lábios e amaldiçoado com o coração por não apresentar o resultado desejado: a menina procurada também não está ai. Os minutos passam. O desespero toma conta de Weza. Inúmeras coisas passam pela sua mente, coisas bizarras, coisas tenebrosas. Contar à mãe da menina que esta desapareceu será algo angustiante, terrivelmente tormentoso; mas contar ao pai da menina? Ah! Isso será invocar o fim do mundo! Haverá discussões, haverá acusações de premeditação, bruxaria. Haverá vingança, luta, mortes. E este é o primeiro dia em que a menina lhe visita. Porque uma coisa assim tinha de acontecer? – Está aqui – grita Sambita de dentro de casa, fazendo Weza levantar-se e correr para onde a voz da rapariga soa. O local é um dos quartos da casa e a menina está em baixo da cama, dormindo. Weza a tira com as mãos trêmulas e a coloca sobre a cama em transe comedido. – Ela se mijou, mana – retruca Sambita. – Vai só sujá os lençois.


– Eh, deixa! – exclama em alívio. – É melhor ter os lençóis molhados com chichi dessa menina do que aguentar o barulho do pai e da mãe dela se ela perdesse. – Essa hora íamo só está a lhe bater lata à toa, enquanto ela estava aqui em baixo a dormir porque se mijou. Assim ficou com vergonha, se escondeu aqui e adormeceu. – Não sei, mas o bom é que ela já apareceu… – Aqui em casa, quem está? – demanda alguém da sala. – Estamos aqui no quarto, vizinha Mena – responde Weza. – A menina já apareceu. – Ainda bem, menos um azar – diz Mena. – Menos um azar então mais como? – pergunta Weza. – Aconteceu mais o quê? – Meu filho me ligou agora – conta Mena. – Me disse que a tua irmã, a mãe dessa Lembinha mesmo, estava então num óbito a se embebedar, discutiu bwe com umas rabugentas aí, e agora lhe encontraram a sangrar em baixo da ponte.


CAPÍTULO IV !Ӂ À beira da irracionalidade Ӂ!

O homem que fala salivando fúria e gesticulando violência tem Kalumba como nome. A progenitora dos seus filhos está deitada sobre o cadeirão da sala, atordoada, tentando conter as dores que a recente ferida no seu crânio lhe causa. Dikulu – é assim que a chamam. – Mas você vai no óbito pra nos trazer mais óbito? Foste então só la pra quê? Eu bem te disse: «Mulher, me espera. Vou só acabar esses biscates aqui e vamo junto.» Mas me ouviste? Não! Se apressou só em vão. Não sei se pensaste que ias ganhar alguma micha no óbito. Micha que te deram é essa, uma ndembu, uma pedra bem remada da cabeça. – E trouxeste então a pedra pra quê? – pergunta ela em agonia. – Pra apanhar quem te fez isso! Isso não vai ficar assim. Antes desse sangue aqui nessa pedra secar, já vai haver mais sangue do cão que te fez isso. E as tuas crianças? Não estão aqui todas porquê? – Foram passar as férias na minha família. – Fizeram bem. Iam só ver mãe delas nesse estado. Esses cães te roubaram aquele dinheiro todo e ainda te deram esquebra de ferida? Devem estar a pensar que selaram bem a noite. Vai ter falida pro caixão aqui! E esse bilhete que te deixaram então é o quê? – Não sei, lê você… – Minhas vistas estão a me doer. Lê ainda você… – Chama o vizinho… – Para te ver nesse estado? Já chega os fofoqueiros que vieram comigo. Essa gente vai se dar mal! Eu que já lhes orei? Ah! Só se meu nome não Kalumba Nvula Nzaji! Vou lhes afogar e lhes queimar ao mesmo tempo! Já mandei uma gente aí se informar bem quem tava contigo no óbito. Daqui a pouco já vão lhes arrastar até aqui. As primeiras pessoas que eles encontrarem a se laifar naquele óbito a mandar rodadas de katrungungu vão lhes remar no carro e lhes trazer aqui. – Vão só trazer as pessoas erradas…


– Meus amigos não erram. Meu sangue e o deles é forte. Wi que nos faz mal lhe sentimos à distância. Nosso faro pra partir cara de bandido sempre acerta. – Marido, me leva só no hospital. Tipo perdi muito sangue… É melhor doutor me analisar, me dar umas picas, soro… – Qual muito sangue qual quê? Você passa todos os meses a sangrar e nunca morreste, é hoje já que estás preocupada com sangue? Vem, vou te lavar a cabeça com água gelada. Ainda tenho que te reparar bem de cima a baixo para ver se não te violaram também. – Me leva só no hospital, por favor… – Primeiro eu vou descobrir quem te fez isso e lhe fazer pagar, depois teu doutor pode de espreitar onde ele quiser. Vais ver que… Quem é? – inquire ao ouvir as batidas do outro lado da porta. – Chegamos, mano Kalumba! – responde um dos inquiridos. – Trouxemos o que nos pediste. – Ah! Afinal não eram cães, eram cadelas – diz Kalumba, abrindo a porta. – Pois muito bem. Sejam bem-vindas à minha casa. Aquela pedra aí com sangue é que vos convidou. Vamos começar o culto. Me traz ainda aquele martelo em cima da mesa, mano. Vou pregar a Palavra do Senhor nessas duas ovelhas com muito sentimento agora.


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