Ndolo

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Janeiro, 2016


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●Ӂ Pulsação zero Ӂ● As lágrimas que caem a alguns metros do rapaz que está de pé com expressão zangada são de Tusanji. O rapaz que está a sangrar, desfalecido, aos braços de Tusanji, é o Kyene, filho dela. O rapaz com expressão zangada tem Bana como nome, e é ele o causador do desfalecimento do Kyene, o seu único irmão.

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●Ӂ O crime da Adolescência Ӂ● Há galinhas e cães correndo em susto pela rua. A razão? Uma rapariga de catorze anos corre em movimento coxeante, fugindo de um trio de jovens. Ela corre com a mão no peito e com lágrimas nos olhos. Um dos jovens do trio alcança-a, segura-a pela blusa, mas ela consegue morder-lhe a mão, despir a blusa e correr apenas de sutiã por entre os becos. Os três pares de pernas masculinas continuam a persegui-la. Ela consegue esquivar-se, entrar por uma esquina e – infortúnio – chocar-se contra o corpo de uma mulher enorme. A mulher enorme agarra-a fortemente. – Me larga, mana Avó! – grita a rapariga em demanda. – Me larga só! – Quem te mandou se dar de rápia? – inquere a mulher enorme com vulgarismo. – Agora aguenta! – Você sabe que eu estou... Quem te contou? – Todo o mundo da rua já sabe que você está grávida, Perna Mbuku. Teu pai é que só acreditou agora. O trio de jovens aproxima-se e segura-a. Ela esperneia. Um grupo de crianças ri-se dela em maneira zombeteira. O trio de jovens entra para um prédio, carregam-na até – não ao primeiro ou ao segundo, mas até – ao terceiro andar. Há várias pessoas com os rostos zangados no apartamento para o qual eles entram e, no centro da sala, há uma rapariga de treze anos, de faces rubras, chorando. A rapariga transportada pelo trio de jovens reconhece-a. Ela é a – sua vizinha, sua melhor amiga; ela é conhecida por – Maria Mulata. O trio de jovens coloca a rapariga de catorze anos ao lado da rapariga de treze anos. O coração delas pulsa em agonia. Ambas levantam o rosto e vêm as mãos trêmulas de um rapaz de dezasseis anos. A pulsação delas aumenta. Elas sabem quem ele é: o causador de toda a angústia e arrependimento que sentem no momento. Dois casais aproximam-se das raparigas e olham para o casal que está atrás do rapaz. Ngoma Usuku

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– Estão aqui as duas raparigas que o vosso filho engravidou – diz um dos homens entre os casais. – A partir de hoje elas vão ficar aqui – diz o outro homem entre os casais. – Nós limpamos as mão. Vocês é que vão lhes sustentar e criar as criança. Ora, a Perna Mbuku também é conhecida como Tusanji, e tal cena aconteceu dezasseis anos antes de o seu segundo filho dar azo ao desfalecimento do seu terceiro filho.

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●Ӂ Pânico Ӂ● O homem de trinta e dois anos deitado sobre a cama de hospital, de ventre inchado e expressão sofrível tem Ramiro Paxeku como nome. A causa? Hepatite. A mulher de pele clara que olha para ele com expressão chorosa, fora do quarto, já foi alguém emocionalmente importante para ele. Vinte e nove anos é a sua idade. O rapaz ao lado dela é filho de ambos. Esta é a primeira vez que ele vê o pai pessoalmente. Desde que nasceu que recebeu o mesmo nome que ele, mas nunca tinha sido presenteado com a sua presença física. A única imagem que tinha dele é de uma fotografia tirada há dezasseis anos, onde um parecia ser o reflexo do outro neste momento. – Wawe! Mô filho! Ajudem o mô filho! Este é o palavreado gritante que assusta a mulher de pele clara e fá-la afastar-se às pressas do quarto com o seu filho. Ela dirige-se para fora do corredor e vê a mulher que executa o berreiro na recepção. É a Tusanji, carregando o Kyene desfalecido no colo. – Me ajudem só, por favor – continua a Tusanji, vozeando em luto. – Me ajudem! Pai dele já está aqui internado. Agora queres me tirar também o filho de sete anos, Deus? Que mal fiz, Pai do céu? Se há dinheiro de alguém que eu comi e não devolvi, me fala se é de quem, Pai, porque eu não me lembro. Vou devolver. Não deixa o meu Kyene morrer, meu Deus. Ajuda o mô filho. Ajuda, Nzambi! As pessoas estão especadas, assistindo ao seu sofrimento. As enfermeiras que ela segura pelo braço, rogando por ajuda, olham-na com desprezo e avançam por entre os corredores. Outras dizem-lhe para se sentar, retirar uma senha e esperar a sua vez de ser chamada. A Tusanji explode em pânico irascível: corre em movimentos coxeantes até à sala de onde um dos pacientes acaba de sair. Um dos guardas tenta impedi-la. – Deixa-a! – grita a mulher de pele clara. O guarda engole em seco e deixa que a Tusanji passe. Carregando o fardo do desespero no coração, a Tusanji não olha para trás para ver quem a ajudou, pois, se olhasse, talvez reconheceria que a mulher de pele clara é a Maria Mulata e que o rapaz ao lado dela é meio-irmão do Kyene. Ngoma Usuku

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●Ӂ A mulher dos treze partos Ӂ● Uma mulher idosa está descalçada, trajada de panos coloridos, pisando o chão da horta do seu quintal ao embalar de várias memórias. A pele enrugada dos dedos dos seus pés passam por entre as folhas de hortaliças sem sentir qualquer frescor. As batidas do seu coração são o maestro do pulsar das veias do seu pescoço. O tremer das suas mãos são o íman do solavancar do seu corpo. Lembra-se do antanho, de quando ainda era jovem, virgem; do dia em que, com doze anos, a sua mãe a levou para a casa de uma tia e a deixou lá para que se casasse com um dos seus primos e, duas semanas depois, fugiu por achar que era muito nova para manter um compromisso conjugal e que, mais importante, o primo era feio demais para ser o seu marido. Recorda-se de como cultivava e trocava mandioca e milho por roupas e calçados para poder estar bem apresentada e sustentar os seus estudos; da primeira vez que se apaixonou e como foi o seu alembamento; da dúzia de vezes em que ficou grávida, mas perdeu os filhos para a morte prematura ou para doenças estranhas, enterrando-os na parte traseira da sua kubata, por falta de cemitério na localidade rural em que vivia. O desespero fê-la acusar de feitiçaria o seu tio idoso com o qual compartilhava o quintal. Quando ficou grávida pela décima terceira vez, num acto irracional, ela e o seu marido seguraram uma catana e uma enxada, afiaram-nas, amarraram o tio idoso e auspiciaram cortar-lhe o pescoço sob ameaças. – Se esse mô filho me sair mais – dizia a mulher com olhar avermelhado em tom amargurado e irascível – se você me comer mais essa minha gravidez, te juro memo: vamo te cortejar tipo ngulu! Com o medo de ser morto, o tio abandonou a residência. Com o desenrolar da casualidade, a gravidez da mulher correu bem; deu à um luz um filho saudável que agora está vivo há mais de três décadas, tendo, no momento quatro descendentes. No entanto, o momento alegre em que o seu filho nasceu já não lhe causa felicidade, visto que o sol que fustiga a sua cabeça está de conluio Ngoma Usuku

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com os rumores dos vizinhos que estão parados do lado de fora da sua casa, falando sobre o menino que acaba de matar o irmão menor por este lhe ter irritado. Ninguém tem coragem de entrar para o quintal e consolar a mulher idosa. Porquê? Porque ela é a Maria da Horta, a esquizofrénica, a mãe de Ramiro Paxeku.

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●Ӂ Ndolo Ӂ● Há uma multidão afunilada de passageiros sentados e de pé, no autocarro. Entre eles, alguns discutem, enquanto outros sorriem ao som das gargalhadas de outros. Repentinamente, um homem levanta-se, segurando uma Bíblia, cumprimenta-os e começa a falar sobre Deus, transformandoos na sua audiência. Os passageiros calam-se; ouvem-no, enquanto alguns murmuram. Numa sequência ritmada de minutos, a audiência diz ámen em resposta às perguntas do pregador. Outro homem, pertencente ao rol de passageiros murmuradores, levanta-se e começa a falar sobre mulheres, festas, fome e traição, interrompendo propositadamente o discurso do pregador. – Xé! Comé então! – diz um homem com indignação. – O outro está a falar da ngelu e você vem pôr lá esses teus assunto do mundo? Você é Diabo ou quê? – Autocarro é público – responde o homem interruptor. – Eu falo dos assunto que me interessam. Quem quiser me ouvir, me ouve. Quem não quiser, recebe trinta dele no cobrador e apanha táxi. Muitos dos passageiros gritam para que o homem interruptor se cale, mas outros o apoiam. – Um gajo passa a vida a bater bloco e a cavar buraco pra virem toda a hora me encher com nhé-nhé-nhé da ngelu? – diz um dos adeptos do homem interruptor. – Vamo inda falar das nossa vida, we! Vamos espairecer! Fala memo, mô kota! Enquanto isso, num dos solavancos do autocarro causado pelos relevos do terreno alcatroado, um senhor idoso, que está de pé, choca o seu cotovelo contra a cabeça de uma senhora que está sentada. Ela lança-lhe três palavras ofensivas como resposta. O idoso responde-lhe da mesma forma. Um grupo de quatro rapazes e uma rapariga, que está de pé, vaia o senhor idoso. O idoso amaldiçoa-os. O quintecto ri-se a pulmões abertos. – Assim memo tá bom? – demanda uma senhora, que está de pé, falando seriamente para o quintecto. – Pai do outro também é teu pai. Respeitem o mais velho! Ngoma Usuku

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– Se pai do outro é teu pai, mãe do outro também é tua mãe – responde a rapariga do quintecto. – Então a tia quer que nós lhe deixamo a disparatar essa senhora? – Inda por cima nos rogou praga – continua um dos rapazes do quintecto. – Filho do outro também é teu filho. Tem que nos respeitar também. – Mas ele é vosso mais velho – recobra a senhora. – Então vocês... – Minha tiota – interrompe a rapariga do quintecto – num vamo só se menti, we! Esse mais velho é malandro. Só tás a lhe acudir porque não lhe conheces. Nós andamo bwe de autocarro e quase sempre ele faz isso! – Ai é? – inquere a senhora. – Mas assim vocês andam de autocarro toda a hora porquê se ainda não tamos no tempo das aula? – Nossa vida mbora é na rua, kota – fala outro dos rapazes do quintecto, enquanto o autocarro estaciona e eles se dirigem para a saída. – Nossos pais não querem nada connosco. Então nós também num queremo nada com eles. – Até você menina anda nas ruas? – interrompe uma jovem que está sentada, em coscuvilhice. – Com esses quatro rapazes? A rapariga olha com desprezo para a jovem enquanto se aproxima da porta com os quatro rapazes. – Eu sou tua filha pra me perguntares isso? – demanda a rapariga com irritação. O quintecto e outros passageiros descem do autocarro antes que a jovem possa dar uma resposta à altura. – Essa miúda assim anda a se fazer o quê com esse rapazes? – demanda a jovem, olhando para a senhora que conversava com o quintecto, enquanto o autocarro entra em movimento. – Cheirar gasolina? – Só? – responde outra senhora, que está sentada ao lado da jovem. – Devem se cheirar mais outra coisa que daqui há nove meses ela já vai estar a fazer planeamento. – Essa juventude agora sabe o que é planeamento? – pergunta uma idosa. – Eu lhe conheço – diz um rapaz. – Nome dela é Ndolo. Ela tem uma história bwe triste. Família dela tipo sofre de azar, ya? Principalmente a avó dela, que já enterrou doze filhos.

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●Ӂ Oração Ӂ● – O meu irmão... A culpa é minha. Lhe cura só, por favor. Já num vou ser mais bem nervoso. Juro! Sei memo que ele é que me abusou e eu é que lhe bati com a cabeça na parede. Ele me atirou pedra e cuspiu na minha comida. Uma vez mijou na minha roupa da escola e roubou o meu matabicho. Mas a culpa é minha. Lhe salva só, por favor. Vou ser um miúdo bwe bom agora. Minha mãe me deu chapada na cara quando chegou aqui e lhe encontrou estendido a se esticar com sangue na boca. Minha mãe já sofre muito com a perna dela que não é boa. Inda por cima meu pai tá bem doente; quase nem temo comida de jantar. Andamo a dormir fome, às vezes. Ajuda só o meu irmão. Sei memo que a resposta é tua, mas vou falar ámen. Esta é a oração do Bana, filho do Ramiro Paxeku e da Tusanji, a Perna Mbuku, a favor do seu irmão Kyene, ignorando completamente a existência sofrível da sua avó, Maria da Horta, e da vida inconsequente da Ndolo, a sua irmã mais velha.

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●Ӂ Nzila Lufwa Ӂ● – A partir de hoje elas vão ficar aqui. Nós limpamos as mão. Vocês é que vão lhes sustentar e criar as criança – foram estas as palavras que sentenciaram Maria Mulata e Tusanji a viverem na casa de Maria da Horta e seu marido, pais de Ramiro Paxeku, quando a primeira tinha treze anos e a segunda, catorze. Apesar da relutância das raparigas de ficar naquele apertamento, a permanência de ambas naquela morada tornou-se um facto de duração extensiva. A sua gravidez estava no primeiro mês. Os sintomas corporais tornavam-se evidentes. Os sintomas comportamentais eram delatores. O tempo tragou os dias e carcomeu as semanas. Tinham agora três meses de gravidez. Após uma manhã cansativa, uma tarde exaustiva e uma noite terrível, o macho bígamo, de dezasseis anos, aconchegou-se no seu quarto com as suas fêmeas – sim, o Ramiro Paxeku dormia descansadamente no seu quarto com a Maria Mulata e a Tusanji. No quarto ao lado, a Maria da Horta e o seu marido faziam o mesmo. Repentinamente, a Maria da Horta desperta. Os seus olhos enxergam apenas a escuridão; não há energia eléctrica. A Maria da Horta levanta-se da cama, acende uma vela e vai até à cozinha. Em expressão e gestos de repulsa, retira pratos, talheres e panelas do armário, coloca-os dentro de uma bacia que, em seguida, enche-a de água e detergente. O barulho desperta as suas noras e o seu marido. Pega uma bacia enorme e vai até ao seu quarto. Abre o guardaroupas e, sob o olhar admirado do seu marido, retira calças, calções, camisas, camisolas, casacos e vestidos e coloca-os na bacia enorme. Leva-a para a cozinha. Quando intenta enchê-la de água e detergente, uma mão no escuro segura-a. Ela treme. Tenta livrar-se, mas a mão é forte, domina-a. – Eh! Estás a fazer quê, mulher? – demanda o dono da mão. – Roupa tá suja. Num tás ver, António? Isso tudo aqui tá sujo! Tá me trazer alergia, marido. Tenho que lavar. Me deixa! Me deixa ó! – Isso está limpo – diz ele, tentando acalmá-la. – A Mulata e a Perna Mbuku lavaram tudo isso ontem de manhã, Maria. – Aquelas são porca. São mijona que pensam que já são gente porque agora dormem com homem. Tá tudo sujo. Vou lavar. Me deixa! Ngoma Usuku

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O António larga-a. No instante em que se ouve o som da água batendo sobre as roupas na bacia, o olhar de tristeza dele contrasta com o olhar de mágoa e vingança de Maria Mulata e Tusanji. As horas passam e a madrugada cede o seu lugar à manhã. A louça e as peças de roupa estão completamente lavadas e a Maria da Horta está totalmente estafada, dormindo, ressonando. Enquanto o Ramiro Paxeku e o seu pai conversam sobre o que fazer com o estranho comportamento de Maria da Horta, a Tusanji e a Maria Mulata saem de casa com intuitos vingativos profundos. A Maria Mulata encontra-se com uma amiga numa zona da rua parcialmente isolada. A razão? Comprimidos. A amiga entrega-lhe dois comprimidos e ela toma-os. Passados instantes, a Maria Mulata sente-se mal. Chora pelas partes oculares, sangra pelas partes íntimas. A amiga sai assolada por pânico para ir buscar ajuda. Enquanto corre, vê duas mulheres que lhe podem socorrer perto de dois rapazes que conversam de costas voltadas para ela. – Azar bem grande, amiga – diz ela em despero. – Kizangu! – Kizangu então mais de quê? – responde uma das mulheres. – A Mulata me pediu pra lhe ajudar a tirar gravidez. Agora tá sair bwe de sangue aí perto daquele quarto do prédio do chichi! Ora, um dos rapazes que estava de costas voltadas para elas sai correndo em aproximação do local mencionado por ela. Corre com pulsação zero, corre com pulsação de luto. Ramiro Paxeku é o seu nome. As duas meninas seguem-no. Chegam ao local e a transportam até ao prédio onde vivem. Com a orientação da Maria da Horta, levam-na ao posto médico mais próximo entre . Cuidam dela durante horas, dias, semanas. A Maria Mulata perde peso, ganha rouxidão nas pálpebras, adoece, contudo o que ela tentou assassinar permanece intacto, não morre. Todavia, durante estas semanas, outra questão os preocupa: Onde está Tusanji? Porque nunca mais voltou para a casa? Escapava-lhes o facto de que, a partir do momento em que Maria da Horta falou mal de Tusanji e de Maria Mulata, ambas intencionaram trilhar nzila lufwa – o caminho da morte.

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●Ӂ Boa notícia vs Má notícia Ӂ● A Maria Mulata e o seu filho de quinze anos saem do hospital, transportando o temor macabro causado pela imagem do Ramiro Paxeku deitado sobre aquela maca, completamente enfermo, totalmente à beira do fenecimento. – Será que ele vai ficar bom, mamã – pergunta o filho. – Claro que vai, Karramiro – responde ela. – Ele é teu pai e teu chará. Quando ficas doente, não ficas melhor? – Fico, mas essa tua resposta... – Deixa Deus cuidar do resto, filho. O Karramiro olha para a sua mãe e impede a si mesmo de falar qualquer coisa em contradição por causa do desalento que lê no seu rosto. Dentro do hospital, o Kyene é atendido pelo doutor cuja sala foi invadida pela Tusanji. Pela expressão facial do doutor enquanto examina o rapaz de sete anos, a histeria gritante e chorosa de Tusanji ganha ímpeto descomunal. Ela repete inúmeras vezes o nome do filho em clamor apelativo. O som estridente da sua voz espalha-se por todos os corredores, despertando alguns pacientes. O doutor sai da sala e chama alguém. A Tusanji continua a gritar e a chorar. Um dos pacientes reconhece o nome enunciado pela Tusanji e, com extrema dificuldade, levanta-se da maca e anda até à porta. A Tusanji tenta colocar o seu filho no colo e reanimá-lo, mas o seu intento é interrompido quando dois enfermeiros entram com uma maca, colocam o Kyene sobre ela e, com o doutor, saem correndo em afastamento da sala. O coração da Tusanji pulsa com tanta força que ela sente o sabor de sangue na boca, enquanto sai em perseguição da maca. Ao sair da sala, é impedida, não por um guarda, mas pela imagem de um homem de ventre inchado e expressão cadavérica, discutindo com um guarda e com um par de enfermeiras. – Ó senhor – diz o guarda ao homem de ventre inchado. – Volta pro quarto! Não pode ficar assim a andar aqui, pá! – Volta, senhor Ramiro – diz uma das enfermeiras. – Volta. Isso não vai lhe fazer bem! Ngoma Usuku

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Sim, o homem de ventre inchado e expressão cadavérica é o Ramiro Paxeku. Nenhuma palavra sai da sua boca, apenas gesticula com o seu olhar amarelado fixado no rosto da Tusanji. Se conseguisse falar, talvez as palavras que sairiam da sua boca seriam: – Aquele é meu filho. Aconteceu então o quê, Tusanji? Não estás a cuidar bem dos meus filhos porquê? Volvidos extensos minutos, o Ramiro Paxeku é colocado novamente no seu quarto. A Tusanji acompanha-o, enquanto lhe explica o triste acontecimento entre o Bana e o Kyene. Ele derrama lágrimas em dor paternal e fúria comiserativa. O doutor entra, carregando duas notícias de caris diferentes. – Boa notícia: o Kyene não está morto, mas desmaiado. Má notícia: O Kyene não está a recuperar os sentidos.

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●Ӂ “Olha a Joana! Olha a Joana Perna Mbuku!’’ Ӂ● O Bana termina a sua oração peculiar a favor do seu irmão com lágrimas nos olhos e vai para o quintal, ao som dos murmúrios da vizinhança sobre ele ter assassinado o Kyene. Olha triste para a sua avó, Maria da Horta, que está descalça, trajada de panos multicolores, pisando a areia da zona hortícola do quintal como se estivesse em transe, regurgitando inúmeras lembranças. As lembranças da Maria da Horta levam-na até ao tempo em que as suas noras por obrigação estavam no oitavo mês de gravidez – sim, ao momento em que faltava um mês para a Maria Mulata dar à luz o Karramiro e ao instante em que Ndolo nasceria da Tusanji em trinta dias. Embora a Maria Mulata tivesse tentado um aborto no terceiro mês, estava mais calma, volvidos cinco meses, contudo, respondia mui friamente à sua sogra por descalabro leviano, por causa do peso do rancor da conversa irreflectida da Maria da Horta, no dia em que, em plena madrugada, ela lavou a louça de cozinha e as roupas que já estavam limpas. Todavia, estes cinco meses foram tensos para os pais da Tusanji e para o Ramiro Paxeku, visto que ela permanecia desaparecida. Todas as buscas empreendidas foram rotuladas com insucesso. As questões permaneciam sem resposta: Onde está a Perna Mbuku? Está viva? Morta? E a criança no seu ventre? Abortou-a? Deu-a à luz prematuramente? A angústia corroía o coração daqueles que realmente se importavam com ela e fustigava a atenção dos fomentadores de tagarelice espontânea. Ainda neste oitavo mês de gravidez, por causa do comportamento estranho da Maria da Horta, o seu esposo, António, decide levá-la ao hospital, a fim de ela ser avaliada física e psicologicamente. Encontram o local abarrotado de pacientes. Retiram uma senha e esperam pela sua vez. Após algumas horas, a Maria da Horta movimenta as mãos e as pernas com impaciência. – Queres ir no quarto de banho? – pergunta o António em preocupação exagerada. Ela responde que sim com a cabeça. Ambos levantam-se e dirigemse ao local mencionado por ele. Ela entra. Ele permanece do lado de fora, parado à porta. Repentinamente, a Maria da Horta sai correndo, gritando. Ngoma Usuku

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– Tão me mijar aí! Tão me mijar – exclama ela, procurando proteção atrás do António. Ele, em susto e brio redentor, abre a porta e observa o local. Constatação: o lugar está vazio e o tecto de concreto, intacto – não há sinal de presença humana nem de vazamento de líquidos. – Não tem ninguém aí, mulher – diz ele, parcialmente irritado. – Entra, Maria. Vai mijar. A Maria da Horta assusta-se ao ouvi-lo, dá-lhe as costas e afasta-se em movimentos céleres. – Não quero – diz ela. – Aí tão mijar na cabeça dos outro. O António corre em aproximação e alcança-a. Ela grita por ajuda. Ele consegue acalmá-la, dizendo-lhe que não a obrigará a voltar para o quarto de banho. Ela acalma-se entre suspiros e tremores. O casal volta para a sala de espera. Sentam-se entre os rumores cómicos das outras pessoas. A Maria da Horta começa a coçar-se e, acto contínuo, retira a blusa que tem vestida. – Aqui tá a me andar bicho – diz ela, alvoroçada. O António finge matar qualquer insecto que haja no corpo dela, endireita-lhe a blusa e ela acalma-se. O número da sua senha é chamado. Eles levantam-se e dirigem-se para a sala de atendimento. Antes que a porta da sala seja fechada e ambos possam se sentar, a Maria da Horta afasta-se dele em celeridade e assombro. – Num te disse que aí tem bicho – diz ela, notando que é perseguida pelo António. – Me deixa ó. Me deixa, pá! Xé, moça! – grita ela para uma mulher que acaba de chegar. – Olha bicho bem grande na tua roupa! A mulher apontada pela Maria da Horta despe rapidamente a blusa, gritando com repulsa, enquanto as outras pessoas na fila riem-se dela a pulmões abertos. Uma jovem aproxima-se da mulher e ajuda-lhe a vestir novamente a blusa, sussurrando-lhe ao ouvido. – Não tem nada bicho, we. Essa aí é maluca. Enquanto a Maria da Horta presenteia o hospital com as suas alucinações, o Ramiro Paxeku, de dezasseis anos, está no apartamento, sentado, assistindo à televisão, ao mesmo tempo em que a Maria Mulata está à janela, acariciando maternalmente o seu ventre, observando as crianças que brincam na rua, jogando à macaca e à garrafinha. Ela sorri ao ouvir a discussão entre elas. – Cê muito batotera, ya? – diz uma das crianças que joga à macaca. – Nem parece teu pai é da igreja. – Batotera, batotera – responde a outra. – Tás ver batota aqui? Num vala pena pôr meu pai na conversa! Tô te ganhar desde aquela hora e já tás falar de batota, né? Ngoma Usuku

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No desenrolar da discussão, uma rapariga em estado avançado de gravidez aparece no meio delas, causando surpresa à Maria Mulata. As crianças reconhecem-na. A rapariga grávida agacha-se e começa a encher as garrafas de areia, enquanto duas crianças lançam uma bola feita de meias entre si. A rapariga grávida levanta-se. A criança à extrema direita lança a bola contra a rapariga grávida, mas a rapariga grávida esquiva-a. A criança à extrema esquerda apanha a bola e lança-a contra a rapariga grávida, mas a rapariga grávida agarra a bola e lança-a para longe. A rapariga grávida termina de encher as garrafas e esvazia-as com alegria, enquanto outras crianças sorriem. A rapariga grávida sai da quadra de garrafinha, pega uma malha, aproxima-se das crianças que jogam à macaca e começa a jogar com elas enquanto as crianças que jogam à garrafinha em coro inusitado com a Maria Mulata cantam alegremente: – Olha a Joana! Olha a Joana Perna Mbuku.

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●Ӂ Desejo a primeira vista Ӂ● – Eu lhe conheço. Nome dela é Ndolo. Ela tem uma história bwe triste. Família dela tipo sofre de azar, ya? Principalmente a avó dela, que já enterrou doze filhos – foram estas as palavras articuladas por um rapaz depois de a filha primogénita da Tusanji descer do autocarro e começar a andar pelas ruas com os seus quatro amigos. O rapaz profere tal discurso dramático quando ainda é manhã. É exactamente esta mesma manhã que avança em horas enquanto a Ndolo e o seu quartecto fraternal andam pelas ruas, pedem esmola, roubam a comida de algumas mulheres da zunga, fogem da polícia e quase lutam com um grupo de alunos. A manhã cede o seu lugar à tarde e, perto do momento em que a tarde almeja ceder o seu lugar à noite, o quintecto dirige-se para uma paragem de autocarro onde pulsa uma multidão conversante. No desenrolar da espera, um carro luxuoso é estacionado perto deles. Um rapaz desce do automóvel sumptuoso e anda em aproximação de uma roulotte. – Manda só dois hambúrgueres aí, moite – diz o rapaz à mulher que atende na roulotte. Enquanto espera, o olhar dele fixa-se nas pernas e nas coxas das mulheres e das raparigas que aguardam pelo autocarro. O seu olhar circula até estacionar na silhueta da Ndolo. O rapaz engole em seco ao ver curvas tão bem torneadas nela. Quando sobe o olhar, assusta-se ao ver que a Ndolo também tem o olhar fixado nele. Ele sorri. Ela sorri. O rapaz ouve a conversa dela e do quartecto fraternal sobre estarem esfomeados e cansados. Volvidos minutos, ele recebe o saco com o par de hambúrgueres, paga, anda em aproximação da Ndolo, entrega-lhe um hambúrguer, ela aceita-o num mesclado de vergonha e gratidão e ele entra para o carro luxuoso sob o olhar austero da mulher de pele clara que está ao volante. – Assim ofereceste o hambúrguer porquê? – inquere a mulher de pele clara. – Oh, mãe! Já ofereci mesmo! Deixa só já assim. – Se fores tão bonzinho assim com as pessoas lá do nosso bairro, ainda vão nos assaltar a pensar que está a chover dinheiro lá em casa. – Deixa só eu comer em paz, mãe. Já passou, we. Esquece isso! Ngoma Usuku

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O diálogo entre eles decorre até tornar-se em monólogo maternal. Fora do automóvel em que estão há um trânsito levemente congestionado. Há também especulações sobre se o autocarro chegará para levar aquela multidão. – Xé, mboa! – diz um motorista, olhando com desejo para a Ndolo. – Me passa inda teu número. – Não tenho telefone – responde ela, dividindo o repasto oferecido com o quartecto fraternal. – Me dá então o da tua mãe. – Xé! E se o meu pai atender? – Sem makas, vou falar que quero falar com a filha dele. – Xé! Se carrega só com teu azar – responde ela, dando-lhe as costas. – Muito burra você, Ndolo – cochicha-lhe um dos rapazes do quartecto fraternal. – Podias partir o braço do gajo pra nós ter dinheiro pra acompanhar esse hambúrguer com umas gasilhas, we. Antes que ela possa responder, o autocarro chega e a multidão entra em alvoroço comedido. Enquanto sobe, a Ndolo olha para o rapaz que está dentro do carro luxuoso, comendo o hambúrguer e sussurra-lhe: – Obrigado! Ora, o rapaz no carro luxuoso é o Karramiro e a condutora é a sua mãe, a Maria Mulata.

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●Ӂ Acusação Ӂ● O dia em que o Bana quase se tornou no assassino do Kyene já é chamado de ontem. Todavia, o estado do seu irmão continua a ser atribuído ao desconhecido. O pavor e a ansiedade desgastam os pensamentos do Bana. O pânico perturba-lhe o espírito, vergastando-lhe o íntimo sem piedade. – Mô irmão tá bom, Deus? Fizeste o que te pedi quando orei? – são estas as perguntas que ecoam da sua boca enquanto as lágrimas escorrem dos seus olhos. Levanta-se do colchão estendido sobre o chão com lugubridade funesta. Sente o cheio a urina seca impregnado no ar. Volta a pensar no Kyene. – Se ele tivesse aqui, ele teria se mijado na cama e falado na mamã que eu é que mijei. Dessa vez, eu nem ia se importar em aceitar as mentiras do meu irmãozinho, Deus. Lhe deixa só voltar pra casa, por favor, we! Em procissão singular, passa por todos os compartimentos da casa e vê que a única pessoa presente aí é ele mesmo. Anda em aproximação do quintal e alcança a rua. Ouve a conversa sobre a Tusanji ter ligado para algumas vizinhas e estas terem levado roupas novas, comida e água para ela, o Kyene e o Ramiro Paxeku, o seu pai. Sente a fome a tomar conta do seu estômago. Tenta aproximar-se para pedir comida. Afinal, há quase um dia que ele e a sua avó, Maria da Horta, não comem. Triste – os olhos das vizinhas acusam-no. Assolador – os cochichos dos seus amigos supliciamno. Sente o terror do linchamento. Suspira e volta a entrar para a casa, fugindo a atmosfera tortuosa. Antes que consiga fechar o portão, uma colher grande de madeira atinge-lhe as costas. Ele grita e volta-se. – Tá onde o mô António? – grita-lhe com fúria a pessoa que lhe lançou a colher de madeira. Ele reconhece-a: Maria da Horta, é assim que ela é conhecida. – Lhe escondeste onde? – Qual António, avó? – demanda ele, enquanto ela se aproxima, apanha a colher e tenta atingi-lo novamente. – Você sabe bem qual António! O mô marido! Você lhe escondeu quando nasceste! Devolve o mô António. Ngoma Usuku

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– Avó – diz ele, correndo em fuga. – O avô António desapareceu há muito tempo! – Mentira! Lhe escondeste! Devolve o mô marido!

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●Ӂ A penumbra do passado Ӂ● – Olha a Joana! Olha a Joana Perna Mbuku – essas palavras ecoaram nos ouvidos da adolescente Maria Mulata, fazendo-a chorar de alegria enquanto a imagem da Tusanji jogando à macaca com oito meses de gravidez pintalga o seu campo de visão. Completamente emocionada, a rapariga de pele clara sai do apartamento em movimentos tão céleres quanto o peso do seu ventre lhe permite. O Ramiro Paxeku, que assiste à televisão, nem se apercebe. A Maria Mulata desce os três andares, pulando alguns degraus e evitando os corrimões, fazendo as vizinhas olharem em murmúrio depreciador para ela. O seu fôlego ordena-lhe que pare entre o portão e o terreno arenoso da rua. A Tusanji olha para ela, suando e sorrindo. Corre em aproximação da Maria Mulata em movimentos coxeantes. Abraçam-se. Escorrem – lágrimas de tristeza, lágrimas de alegria; caem – lágrimas de saudade. Sentam-se sobre os degraus, e é então que se dá azo a uma longa e esclarecedora conversa. – Onde é que andaste? – pergunta a Maria Mulata, entre sorrisos. – Estás bem grávida, ya? – Estou bem grávida? Eu? Tua barriga tá quase a rebentar! – Oh! Conta então! Ficaste onde esse tempo todo, Perna Mbuku? – Viajei! Fui dar uns passeio no meu mato. Tinha que espairecer. Não aguentava mais ouvir essa nossa sogra aí a falar mal de nós. Memo nós a lhe fazer tudo bem, inda nos chama de porca? Xé! Não aguentei! Ela assim queria o quê? Que lhe lavássemos os trusse dela? – Ias só desmaiar se lhe lavasses as cuecas. Teu bebê ia te sair da barriga com o cheiro! – Brincas? Aquela é muito assuntosa. Na minha casa, ninguém me mandava. Agora porque tô na casa do homem, pronto: mãe dele vai me mandar? Maluca ou quê? Nunca! E você? Tás a aguentar aqui as coisa com a velha trungungueira como? – Nada, amiga. Aqui não está a dar mais pra ficar. Tem muita confusão! Os irmãos do senhor António querem ficar com esse apartamento. Ngoma Usuku

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– Oh! O apartamento não é dele? Ele e a mulher dele não andam a se dar de rico porque vivem no prédio? Espalham já isso pra se dar que são mais gente que os vizinho que vivem nas casa de chapa e nos que casa dele né rebocada... – Deixa, Tusanji. O apartamento é uma herança do pai dele. Como ele é o mais velho, ficou com ele. Mas agora os irmãos viram que ele e a Maria da Horta aceitaram as duas miúdas que o Ramiro Paxeku engravidou e... – Wa? Nós duas? Assim lhes fizemo quê? – ...estão a pensar que o senhor António quer que o Ramiro Paxeku fique com o apartamento. – Que ele vai lundular o kubiku? – Ya! Já andam a se ameaçar muito de confusão. O senhor António tem irmãos que são bandidos de verdade! Não vou ficar aqui. Tenho de estudar e me formar. Depois de dar à luz essa criança que já tentei lhe matar e se deu de remetente, vou estudar. – Nem acredito que tentaste matar teu nené, ya? Assim pensaste quê? Isso então é pecado! – Sempre te disse que na minha vida a escola vem primeiro! Esse bebê está a me estragar muita coisa! – Devias ter pensado nisso antes de te engravidares – retruca com indignação. – Vida é sagrada! Nené não se mata! – Ah! Agora a culpa é minha, Tusanji? – vozeia, levantando-se. – E é de quê então? Se ao menos me falasses que estavas a namorar também com o Ramiro, eu não ficaria grávida. Ia lhe deixar na hora! Foste uma amiga malandra. Me traíste! – Amiga, você também devia ter me contado que ele andava a te conquistar... – Ah! Como é que eu ia saber que depois de se escondermos no beco, ele ia se cheirar contigo? – demanda, colocando-se na posição vertical com difuculdades. – Ah! Foi no mesmo dia? Ficamos grávidas no mesmo dia? – Foi ele que me contou... – Então ele é mais malandro e traidor que nós duas! – diz em fúria, começando a subir os degraus. – Ele vai ouvir das boas agora! A Tusanji alcança-a e segura-a em impedimento, havendo uma diferença de dois degraus entre ambas. – Assim queres ir lá lhe falar o quê, Mulata? Já num tamo memo grávida? Deixa disso!

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– Tens razão – diz, após suspirar em contenção. – Não vamos só nos complicar com o passado, né? Vamos sair nós duas daqui, Tusanji. Isso aqui vai dar maka. Eu vou embora. – Sair daqui? Vais embora? Vais aonde? – Sei lá. Para a casa dos nossos pais não dá porque eles é que nos trouxeram aqui. Não entendo como é que os nossos pais e os pais do Ramiro Paxeku pensam, ya? Como é que eles permitem que nós vivamos naquele apartamento? Ainda somos crianças! O senhor António não devia concordar com a ideia parva dos nossos pais! – Mulata, como estava a te falar, viajei. Fui até numa zona onde descobri bem a história da velha trungunguera. Ela já enterrou bwe de monami. Acho que agora ele tem medo que aconteça uma coisa de mal no Ramiro... – E isso tem o quê a ver? – Não sei, mas, como ela e o António nunca criaram mais de um nené, assim querem criar os nosso filho tipo são deles. – Para lhes dar a mesma educação? Nada! Não quero! Tenho grandes planos pra minha vida e para o meu filho. Essa gente daqui só vai me atrasar! – Na hora de se entupires de comprimido pra tirar gravidez num pensaste nos planos, né? – Não me chateia. Vou subir, arrumar as minhas coisas e ir embora. – Não, Mulata, você... O aparecimento do Ramiro Paxeku, descendo as escadas, emudece a Tusanji, e – constrangedor – o aparecimento da Maria da Horta e do António atribui silêncio à voz da Maria Mulata.

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●Ӂ Tragédia, drama, suspense Ӂ● O general lunar brilha no céu estrelado com sumptuosidade majestosa. O seu resplendor entra pelas janelas das casas, lojas, apartamentos e hospitais. Num dos quartos dos hospitais em que os seus feixes luminosos se fazem presentes, um homem está acamado – internado – com outros homens em estados parecidos ou piores que o seu. Ele está – com perda de peso, falta de apetite, náuseas, vômitos, febre, dor abdominal e inchaço do abdómen; sim, ele aparenta estar – em estado terminal. O seu nome? Ramiro Paxeku. Entre suspiros e lágrimas, pensa sobre a vida, reflete sobre a sua existência, cogita sobre a sua família. Lembra-se do tempo em que era mais jovem, atlético, másculo, conquistador. Recorda-se de como o uso descomunal de bebidas alcoólicas contribuiu para o seu estado clínico actual. Lamenta o comportamento inconsequente da Ndolo, a rebeldia do Bana e o perigo pelo qual o Kyene está a passar. Chora ao repassar na sua mente a informação do acidente ferroviário que a Maria Mulata teve aos catorze anos, quando faltava exactamente um dia para ela dar à luz. Pensa com extrema comiseração em como seria o seu filho ou filha com ela se a criança chegasse a nascer. Sim – para ele, até onde sabia, a Maria Mulata está morta e o Karramiro nunca chegou a existir. Na sala de espera do hospital, alguns homens e mulheres, jovens e idosos, estão a aguardar em desespero pela recuperação dos seus familiares aí internados ou dos seus entes queridos que acabam de entrar em estado crítico. Uma das mulheres tem Joana Tusanji como nome. Os pensamentos que gravitam na sua mente orbitam à velocidade do desejo da recuperação do seu esposo e do Kyene e de uma provisão divina para alimentar os seus filhos. – Quem vai fazer xandula pra vender na minha conta lá em casa? – pergunta ela de si para si. – Meu dinheiro que lhe pus no negócio está a se perder à toa. Aquela vizinha que lhe pus a caixa de coxa na arca inda vai só começar a dar nas crianças dela. Isso só deve ser praga daquela minha sogra! Ngoma Usuku

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Distante da tragédia do Ramiro Paxeku e do drama da Tusanji, uma mulher de pele clara está sentada na sua mansão, pensando em como fazer com que o homem que ela não via há quase dezasseis anos fuja das garras tenazes da morte. Medita em como seria a criação do Karramiro, o seu filho primogénito, se tal homem estivesse com ela, se tal homem estivesse presente na sua vida desde o momento em que o rapaz veio ao mundo. Range os dentes com furor ao se lembrar de que o homem ficou estes anos todos com outra mulher e teve três filhos com ela. Quando os seus olhos brilham com firmeza para executar o plano de salvar o homem – perturbador – duas mãos masculinas pousam nos seus ombros e uma boca máscula beija-lhe a face. – Oi, minha latona bem cheirosa! – diz o dono das mãos e da boca. – Como foi o teu dia, fofinha? Facto: o nome da mulher já é sobejamente conhecido, mas o nome do homem que a beija – ah! Esse faz tremer a alma: Armando Paxeku, primo do pai do Karramiro.

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●Ӂ Os bastidores da fuga Ӂ● Faltando apenas um mês para que se dê azo ao nascimento da Ndolo e do Karramiro, o aparecimento dos avôs do dueto – António e Maria da Horta – e do pai de ambos – Ramiro Paxeku – emudece e constrange a mãe de cada um dos dois – Tusanji e Maria Mulata – no instante em que estas últimas discutem a sua amizade e a ideia de fugirem do apartamento em que vivem. O tempo dá azo aos dias e às semanas. Tudo é feito para que a Tusanji e a Maria Mulata permaneçam no apartamento sem possibilidade de evasão. Contudo, o desejo da Maria Mulata de se livrar das garras dos seus sogros por deslize ganha proporções épicas. Ora, no momento em que o desespero ganha soberba entre todos os seus sentimentos, aparece à frente da Maria Mulata o Armando, sobrinho do António que mensalmente visita a família Paxeku, sendo este mesmo Armando um dos três jovens que participou na caça à Tusanji no dia em que se descobriu a sua gravidez. – Você anda a sustentar essa mentira porquê? – demanda ela, após os dois estarem no quarto isolado em que a Maria Mulata tentou abortar o rapaz que, no momento, resta-lhe apenas um dia para vir ao mundo. – Sabes muito bem que essa criança na minha barriga não é do Ramiro! – Xé! Mboa, essa tua conversa é mais qual então? – Armando, não finge que não estás a entender. Sabes muito bem que nós dois dormimos juntos antes do Ramiro dormir comigo! – E dormiste com ele porquê se dizias que me gostavas bwe? – Sei lá! Ele era virgem e bonitinho. Não achei que eu iria ficar logo gráv... – Virgem bandido, isso sim – grita em interrupção. – Depois ele foi se dormir com a Perna Mbuku e... – Não me fala de bandidagem, porque você, cada vez que vens aqui, se esfregas com mais de cinco mulheres no sábado e no domingo! – vocifera, antes de suspirar e engolir em seco. – Mas não é sobre isso que eu quero falar agora. Esse filho é teu e você tem que me ajudar a sair daqui! Se não fizeres isso... – Se eu não fizer isso, vais fazer o quê? Matar a criança? Já fizeste isso e não deu certo, pá. Ngoma Usuku

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– Se não fizeres isso, vou sair daqui, vou subir as escadas e falar pro teu tio e pro teu primo que essa criança é tua! – Xé! E quem vai te acreditar? Todo mundo do bairro já sabe que você é malandra e mentirosa. Aqui ninguém te acredita, we! Vais só se tirar mais ponto, mboa. – Você já ouviu falar que os irmãos do António querem ficar com aquele apartamento, não? Comportamento deles é de matumbu! Eu não quero ficar numa casa que sempre tem guerra! – Isso aí já é um problema teu, não meu! – Você sabe também que a Maria da Horta é maluca. Não bate nem um pouco bem da cabeça aquela tua tia. Um dia inda vai incendiar aquele apartamento ou vai me matar. Vais deixar o teu filho aqui pra morrer? – Pára com essa invenção que o filho é meu, pá! – Você sabe muito bem que o dia que eu dormi contigo e o dia que eu dormi com o teu primo são diferentes. Fiz contigo primeiro. Esse filho é teu! – Toda hora repetir essa tua dica podre? Assim queres que eu faça o quê? Eu trabalho! Fico vinte e um dias no mar! Vou te levar na província onde eu vivo pra quê? Pra mostrar que eu, de vinte e quatro anos, engravidei um miúda de catorze? Não me traz azar, pá! Comé então? Recebeste algum feitiço pra complicar a vida dos outros, né? – Você já se complica a tua vida sozinho a muito tempo! Com certeza, eu não sou a única miúda que engravidaste e não queres assumir. Mas eu não quero viver contigo nem ser tua mulher. Podes continuar a se esfregar com quem quiseres. Podes me levar lá na tua província e não falar que o filho é teu, Armando. Eu posso me virar lá. Me leva só, por favor! – Vais se virar lá como então? Vais vender fuba? Vais zungar água? Vais fazer micate e gallete? – Você sabe que eu lá também tenho alguns familiares e uns amigos. Me leva só, por favor! – suplica em tom choroso. – Não vou te incomodar lá. Vou criar a criança sozinha. Eu quero ir lá estudar e me formar. Aqui não vou conseguir isso. Nem os meus pais querem saber de mim. Me ajuda, Armando. Pelo amor de Deus, me ajuda! Ele suspira. Olha para ela e para o seu desespero. Fixa as suas pupilas nas veias que latejam no pescoço dela e no seu olhar avermelhado. Pesa a determinação das suas palavras. Observa as suas lágrimas e sente consternação. – Está bem – diz ele, volvidos segundos. – Vais me levar? Verdade? Estás a falar verdade, Arman... – Não, não vou te levar. Vou te dar dinheiro de passagem. Vais viajar de autocarro interprovincial. Ngoma Usuku

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– E lá vão deixar entrar grávida? – Mulata, isso é uma resposta que você mesma vai ter de descobrir.

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●Ӂ Histórias Ӂ● – Obrigado – esta palavra ecoou em sussurro na direcção do Karramiro enquanto ele estava no automóvel luxuoso da sua mãe. A enunciante? Ndolo, a complexa. Depois de muita confusão, a filha primogénita da Tusanji sobe para o autocarro na companhia do quarteto fraternal e do rapaz que disse que a conhecia a uma jovem e a uma idosa no dia em que o Bana quase se tornou no assassino do Kyene. O afunilamento de pessoas é asfixiante, o ar é causticante, abafado, quase irrespirável. O rapaz senta-se perto da Ndolo. Ele olha para ela, desejando falarlhe sobre a triste situação do Ramiro Paxeku e do Kyene, mas ela conversa efusivamente com o quartecto fraternal, desencorajando-lhe o intento. Há jovens sentados e idosos de pé. Cede-se as cadeiras apenas para as grávidas. Todos os passageiros parecem entender e aceitar tal descalabro social. Prioridade para as gestantes – somente. Paralíticos e idosos vão de pé. – Olha só memo esses kimatulão a olharem nos avôs – diz um homem que está de pé, comentando a reprovável situação. – Nem levantam só? Só olham? Como quem diz: “Quem lhes mandou não estarem à frente na fila? Aqui todo mundo pagou trinta dele. Pra próxima chega cedo!” Esse mundo já acabou, ya? Os jovens ouvem, mas permanecem inamovíveis, impávidos, insensíveis. Apenas um cede lugar para uma mulher paralítica que se senta beirando o de sconforto. A viagem continua. O trânsito é fluído em segundos, congestionado em minutos. No interior do autocarro, há o decorrer de várias conversas. – Agora ter dinheiro tá rijo, ya? – diz uma mulher. – E tá tudo caro! – Ya. Até mabele subiu – responde uma grávida. – Tem que se poupar em tudo, mana – comenta outra mulher. – Agora cozinhar é com duas gotas de óleo, minha irmã. – Tem que se guardar bem as banha de frango pra quando o óleo acabar ter uma coisa pra dar gosto no arroz – diz a primeira mulher. – Aqui agora não há porque ah, vizinha me dá lá kabocado de açúcar – acrescenta a grávida. Ngoma Usuku

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– Eh, mana – continua a segunda mulher. – Há mesmo umas atrevida que vão te pedir. Ontem não foi lá uma me pedir açucar e sal porque me viu a chegar com saco de compra? Lhe respondi: Comprei pros meus filho, não pra dividir com as vizinha! As gargalhadas espalham-se entre a gente afunilada, enquanto outras conversas no centro do autocarro desaguam no sistema auditivo de vários passageiros, sendo a mais destacada a seguinte. – Esses homem que se dão que traem as mulher – diz uma senhora – também andam a lhes trair, we. Tô falar mentira? – Verdade, minha kota – responde uma jovem. – Quem trai se arma em viju, mas não dá conta que andam a lhe cornear também! – Wa? Como é que ela vai saber que andam a lhe trair – diz um homem em intromissão. – Homem mente mais que mulher, fica tipo nada. – Nunca – responde a jovem. – Mulher finge mais! Papa outro gajo, limpa a boca e ainda chega a te carinhar bwe tipo você é o único homem na terra! – Há dúvida? – demanda a senhora em sorriso gozoso. – Minha vizinha um dia foi já dormir com outro no mesmo quarto que ela dorme com marido dela. Na casa deles mesmo! Aquela é corajosa, ya? O marido já andava a desconfiar que andavam a lhe cornear. Os vizinho é que andavam a lhe bwatar. Um dia, ele chegou mais cedo do serviço e a mboa estava com o outro no quarto. Não tinha lugar para esconder o homem. Cesto estava cheio de roupa, guarda-fato também. Quarto de banho não dava. Em baixo da cama também não dava. Então a mulher deu uma ideia no homem. O homem não mayou, aceitou. O gajo ficou atrás da porta. Logo que o marido dela entrou, o homem lhe abriu uma granda ngaya das vistas. O marido ficou a gritar à toa: “Feiticeiro! Feiticeiro!” A mulher saiu do quarto a gritar já we, tipo tava a vir acudir marido dela. Encontrou marido a gritar sozinho na sala. Lhe rebentou um mixoxu e disse no marido que ele tá a ficar maluco. O marido aí com olho bem vermelho com a ngaya que lhe deram, nem entendeu que o outro gajo já tinha saído. Mulher mente mais que homem, mô irmão! – A outra escondeu memo em baixo da cama – diz a jovem, começando outra história inusitada sobre traição feminina. – Marido chegou. Inda jantou até! Quando foram dormir, estenderam o luandu pro filho e eles já, o casal, dormiram na cama. A criança viu que tinha um homem com olho bem grosso em baixo da cama. O miúdo tava toda a hora a falar: “Olha olho dele, we!” O pai tava mbora a lhe mandar calar! Ohó! Filho falou três vezes; pai quase lhe bateu de raiva! Ah! Filho dormiu. Pai também. O homem saiu debaixo da cama e foi embora. Quando acordaram, o marido viu todas porta da casa aberta. Perguntou já se desapareceu Ngoma Usuku

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alguma coisa. Pensou mbora que era gatuno, afinal era o próprio wi que andava a lhes afiar os corno na xipala. – Essas nossa filha dagora têm marido e namorado – diz uma idosa que está de pé em contraargumento repreensivo. – Já não se respeitam mais. Não pode ser assim. Mulher tem que se dar o valor! – Falou e disse, minha avó – diz um jovem que está compactado às partes traseiras da idosa. – Perdi meu marido, mas estou aqui, sempre santa – continua a idosa. – Dormir com homem não é tudo na vida. A mulher tem que se preservar. Se tem coceira de dormir com macho, se concentra. Não faz te chamarem de bandida à toa. – Essa kota sabe das coisas, ya? – continua o jovem. – Avó me dá o teu número pra casar com meu avô. Ele também tá solteiro! – Wa? Eu mais assim bem velha vou casar pra quê? Vamo tirar dinheiro onde? – Vamos juntar trinta, trinta – argumenta o jovem. - Vosso casamento vai sair, mamoite. Enquanto que dá azo a novas gargalhadas, o quarteto fraternal conta histórias entre si. – Xé! Esse que você está a falar não é maluco – diz o mais velho entre o quartecto fraternal. – Tem pessoa que é maluco de verdade. Ouvi a história de um miúdo que lhe abusaram bwe na rua dele, foi no mbanji, tirou a kalash do papoite dele, voltou na rua, fez tiro nos gajos que lhe abusaram, mas eles fugiram. Quando o wei voltou no mbanji, irmão dele entrou a correr a dizer: “Mataste teu melhor amigo com aqueles tiros.” O wei ficou malayke. Ficou bem maluco, ya? Pôs as mão na cabeça, saiu a correr na rua e se atirou à frente dum carro pra lhe matarem. Mas não morreu. Irmão dele lhe riu bwe! – Tem mais um outro frustrado que algemou a irmã dele porque ela não foi na escola – continua outro integrante do quartecto fraternal. – Quando pai dele chegou, lhe deu uma surra nele, lhe algemou na árvore e lhe deixou aí um dia. No decorrer das gargalhadas estridentes dos quartecto fraternal e enquanto o autocarro faz uma paragem, o rapaz que conhece a Ndolo inspira e expira coragem. Ela levanta-se. Ele segura-lhe a mão sobre o ombro e fala com ela. – Vais voltar quando pra tua casa quando? – Lá devem estar todos bem – responde ela, após reconhecê-lo. – Um dia... – E não vais visitar o teu pai e o teu irmão? Ngoma Usuku

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Antes de sair do autocarro e retirar-lhe a mão com violência, ela responde com displicência irascível. – Eh! Me deixa! Não me fala desses assunto. Quando me der nganza de saber deles, eu vou...

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●Ӂ Assalto a mão desarmada Ӂ● – Avó, o avô António desapareceu há muito tempo! – Mentira! Lhe escondeste! Devolve o mô marido! Este diálogo defensivo/acusativo acontece enquanto a Maria da Horta corre atrás do Bana, no quintal, tentando atingi-lo ferozmente com uma colher de pau. O rapaz foge de casa, abandonando a idosa em frenesi esquizofrénico. Na rua, em desespero e tristeza, o Bana questiona-se sobre o paradeiro da sua irmã mais velha, visto que ela é hábil em acalmar os ânimos da Maria Horta. Cogita também sobre o seu pai que é exímio em conversar com ela naquele estado. Os olhares dos seus vizinhos continuam a vergastá-lo com o peso da culpa pelo estado do Kyene – sim, o Bana não se sente seguro nem benquisto em lugar nenhum. Há dois dias que a sua mãe, Tusanji – também conhecida como Perna Mbuku – não fala com ele. Lembra-se que ela voltou para a casa apenas uma vez com o intuito de tomar banho e deixar alguma comida para ele e para a sua avó. Contudo, após ela sair de casa e voltar para o hospital, a Maria da Horta deitou a comida no quintal, dizendo que a Tusanji colocou veneno naquela refeição para matá-la. Facto: A fome e o desespero tomam conta do Bana, mas o desejo de ver o Kyene parece suplantar tais sentimentos. Por isso, percorre vários becos, tendo em mente chegar a pé ao hospital em que o seu irmão se encontra internado. Fome – muita fome. O seu estômago não lhe permite pensar com clareza. Levanta a cabeça e – surpreendente – vê um fogareiro com brasas e – interessante – há uma grelha sobre as brasas e – apetecível – três peixes grossos. O Bana engole em seco. As suas pupilas dilatam. Dá passos em aproximação do fogareiro mas – impeditivo – uma mulher enorme e um cão saem. A mulher crava os dentes do garfo na sua mão sobre os peixes e faz uma expressão de satisfação. O Bana lê na expressão dela que o peixe está pronto para ser carcomido e volta a engolir em seco. A mulher e o cão entram. O Bana descalça os chinelos e coloca-os entre os seus calções. Num acto relampejante, corre com velocidade estonteante, apodera-se da Ngoma Usuku

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grelha e corre em afastamento do fogareiro. Todavia – assustador – ouve um latido feroz atrás de si. Volta-se e vê o cão correndo em perseguição atrás dele. O Bana retira uma parte pequena do peixe e lança-a para o cão que para e come-a enquanto ele corre sorrindo pelo prêmio da sua refeição. Entra e sai por inúmeros becos e senta-se. Antes de começar a devorar os peixes, olha para o céu e, em tom de pedido de desculpa, solta seis palavras sobejamente conhecidas. – Saco vazio não fica de pé.

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●Ӂ A fuga Ӂ● Depois de ter ouvido as palavras “Mulata, isso é uma resposta que você mesma vai ter de descobrir” como resposta à sua pergunta sobre se seria permitido que ela, em estado avançado de gravidez, viajasse de autocarro, a jovem Maria Mulata, de treze anos de idade, recebe animadamente a quantia monetária que o Armando Paxeku, de vinte e quatro anos, lhe entrega e sai correndo em afastamento alucinante. A sua ideia? Ir apanhar o primeiro autocarro numa das paragens e fugir da vida incongruente que a moradia sob o teto do António e da Maria da Horta lhe proporciona. Não leva muda de roupas nem mantimentos. O dinheiro outorgado pelo primo do pai do filho que ela carrega no seu ventre parece-lhe suficiente para atribuir exequibilidade à sua fuga. Contudo, enquanto corre – retardativo – vê a Tusanji numa padaria, ladeada por várias pessoas. Em tom parcialmente relutante, afrouxa o passo, aproxima-se dela e abraça-a por trás com saudade antecipada. A Tusanji volta-se para ela em imperceptibilidade. A Maria Mulata sussurra-lhe o nome de um local, corre em afastamento célere e aproxima-se de um táxi antes que a Tusanji possa articular qualquer palavra em impedimento e antes que ela note a expressão aflitiva da Perna Mbuku. Algumas pessoas gritam pelo nome da Maria Mulata. Ela entende aquilo como o intuito delas de impedirem-na de alcançar a sua liberdade fartamente almejada. Escapa-lhe o facto que a Tusanji está a transpirar e a gemer por ter entrado em trabalho de parto e as pessoas na padaria tentam socorrê-la. A Maria Mulata entra para um táxi e desaparece no horizonte. As pessoas encaminham a Tusanji para o apartamento dos seus sogros por deslize. O Ramiro Paxeku e os seus pais estão presentes. As dores de parto acometem a Tusanji até ao eclodir da noite. O seu marido por acidente e os seus sogros não a levam para o hospital. Elegem duas parteiras empíricas para cuidar dela, sendo a Maria da Horta uma entre elas. Enquanto a Tusanji geme, chora e exsuda copiosamente, uma terceira parteira empírica entra. Com o desenrolar do tempo, o trio de parteiras Ngoma Usuku

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ajudam-na e confabulam sobre o dom de dar a vida que Deus outorgou às mulheres, sobre o comportamento machista dos homens, sobre doenças e sobre um trágico acidente que aconteceu com um autocarro. A Tusanji freme de dor ao ouvir o local em que o autocarro foi encontrado. É o mesmo sítio que a Maria Mulata lhe sussurrou no ouvido. Pelo número de mortos, o pensamento de que a sua amiga morreu naquele acidente pulsa por todo o seu corpo. Entre soluços e aos prantos, a Tusanji conta tudo às suas parteiras e, enquanto vozeiam em discussão, desespero e choro, alguém pergunta o nome que darão à linda menina que acaba de nascer. A resposta sai, não da boca da Tusanji, mas da boca da Maria da Horta que segura – Pela dor da morte da minha nora, pela dor do parto dessa minha outra nora, pela dor de perder um neto e pela dor de me lembrar da morte dos meus onze filhos, vamo te chamar de Ndolo...

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●Ӂ O fardo dos Paxeku Ӂ● Já é chamado de ontem o momento em que o Armando Paxeku, de quarenta anos de idade, proferiu as seguintes palavras em saudação à mãe do Karramiro: – Oi, minha latona bem cheirosa! Como foi o teu dia, fofinha? O tempo corre, ocorre, decorre, transcorre. Agora a Maria Mulata está no hospital, tendo uma bata branca sobre os seus trajes, prevenindo, diagnosticando, tratando e curando as doenças de alguns pacientes que entram para a sua sala, enquanto a sua mente suspira em ânsia de ver o pai do seu filho. Num dos quartos do mesmo hospital, a Tusanji está sentada ao lado do Ramiro Paxeku, seu esposo, exponde-lhe efusiva e sofrivelmente a montanha de problemas que ela tem carregado sozinha desde o dia em que ele foi internado. Ela – fala sobre as falsas acusações que tem ouvido sobre ela ter se tornado numa adúltera para tentar sustentar os seus filhos, ela – lamenta o dissabor causado pelas discussões com a Maria da Horta, a sua sogra, que a rotula como culpada pelo trágico estado clínico dele. A Tusanji levanta-se e sai para chorar ao relento, enquanto o olhar marejado do Ramiro Paxeku indica a sua angústia. Volvidos instantes, uma mulher de pele clara faz-se presente naquele quarto, trazendo informações fantasmagóricas e uma proposta assombrosa. A mulher aproxima-se dele e, trêmula, segura-lhe a mão. – Há quanto tempo não sinto o teu toque – diz ela em sussurro, enterrando o rosto na mão dele. – Sei que não consegues me reconhecer ainda, mas sou eu. Não morri. E estou aqui com o teu filho. Ela suspira, larga-lhe a mão e deixa que ele vê o seu rosto. Ele em dúvida e em embasbaque tenta reconhecê-la. Não pode ser! Impossível! Não é o mesmo rosto, mas é – a mesma pele, o mesmo tom de voz; sim, é a – Maria Mulata, a pessoa que todos pensavam estar morta há dezasseis anos. – Ele está ansioso para te conhecer – continua ela em sussurro, fazendo-lhe disparar a pressão arterial – mas tenho pouco tempo aqui. Queres morrer? Queres ficar os últimos dias dando sofrimento à tua esposa e fome aos teus filhos? Ela olha para ele aguardando ansiosamente a resposta. Silêncio é o Ngoma Usuku

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que se ouve. O seu olhar percorre o quarto e as macas dos pacientes. – Um dos homens que estava aqui internado contigo já morreu. Queres seguir o mesmo caminho que ele? O que ela ouve a seguir parece mais um sussurro do que uma palavra. – Tusanji... Uma expressão de fúria toma conta das suas faces rubras da mulher de pele clara e o seu olhar mareja. – Faz como quiseres – diz ela, em displicência. O Ramiro aperta-lhe a mão em confirmação. A Maria Mulata sorri. – Já que aceitas, presta atenção às minhas exigências. Os segundos passam e o que o Ramiro Paxeku ouve é macabro, inumano, insensível. Enquanto isso, o Karramiro está parado à porta do hospital, contristado por ter de conhecer o seu pai naquela situação emocionalmente enegrecida. Quando levanta o olhar – surpreendente – vê uma rapariga de corpo formoso, andando na companhia de quatro rapazes. Reconhece-a, mas não se lembra do seu nome. A rapariga olha para ele e sorri. Ele intenta andar em aproximação dela, mas – interruptivo – a rapariga vê uma mulher de andar coxeante e feições tristes caminhando atrás dele – sim a Ndolo vê a Tusanji, a sua mãe. Para não arriscar ser vista por ela com o prenúncio de ser arrastada à força para casa, a rapariga foge em temor mórbido. Assustado e interessado em saber a razão de tal correria, o Karramiro entra em movimento célere de perseguição e – doloroso –choca-se contra o corpo de um rapaz que está a andar enquanto come parte do peixe que está na grelha que ele segura. Sim – o Karramiro choca-se contra o Bana.

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