Revista Convivência n. 5 / 2015

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CONVIVÊNCIA revista

Ano V | Número 5 | Rio de Janeiro | 2015 | Brasil (Segunda Fase)

ENTREVISTA: DOMÍCIO PROENÇA FILHO, POETA E VENCEDOR DO TROFEU RIO 2015

A INVENÇÃO DA SARDENHA. MITOS E REALIDADES DA ILHA NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA DE REMO BRANCA (1897-1988) CECÍLIA MEIRELES E A MÚSICA

CÚPULA DAS AMÉRICAS: BRASIL, PRESENTE

ESTUDOS, NARRATIVAS, POESIA, DOCUMENTO E MEMÓRIA A CAPOEIRA VISTA DE SALAMANCA


Capa: Strong's Males Dancing Capoeira / Foto: Elsoar

REVISTA DO PEN CLUBE DO BRASIL EXPEDIENTE EDITORA—RESPONSÁVEL: Luiza Lobo CONSELHO EDITORIAL: Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado, Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar, Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira, Ivan Junqueira (in memoriam), Mary del Priore, Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão (in memoriam) e Tânia Zagury PROJETO GRÁFICO/DIREÇÃO DE ARTE: Roberto Portella CORRESPONDENTES: Ceará: Roberto Pontes; Paraíba: Elizabeth Marinheiro Pernambuco: Lucila Nogueira; Bahia: Aleilton Fonseca; Minas Gerais: Ronaldo Werneck Brasília: Fabio de Souza Coutinho; São Paulo: Raquel Naveira Santa Catarina: Péricles Prades; Paraná: Miguel Sánchez Neto COLABORADORES: Ana Luiza Almeida Ferro é promotora pública do Estado do Maranhão, historiadora e poeta; Aniello Angelo Avella é historiador, professor e sócio correspondente do PEN Clube do Brasil na Itália; Carmen Moreno é professora e poeta; Claire Leron é professora e poeta; Cláudio Aguiar é romancista, dramaturgo e ensaísta; Domício Proença Filho é ensaísta, poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL); Edivaldo Boaventura é professor e historiador; Helena Ferreira é professora e tradutora; Ives Gandra da Silva Martins é jurista, poeta e escritor; Jorge Sá Earp é diplomata e contista; Maria Helena Kühner é dramaturga e ensaísta; Raquel Naveira é ensaísta e poeta; Vasco Mariz é embaixador, musicólogo e historiador. Todos os colaboradores são membros titulares do PEN Clube do Brasil. PEDE—SE PERMUTA. We ask for exchange. Pide–se canje. On demande l´échange. Man bittet um Austausch. Chiesto di scambio. Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. ISSN 1518—9996


FOTO: LUCIANO DELBONS / CG: ROBERTO PORTELLA

PEN CLUBE DO BRASIL Fundado a 2 de abril de 1936. Filiado ao PEN Internacional de Londres DIRETORIA (Triênio 2014/2017) Presidente: Cláudio Aguiar Vice–Presidentes: Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado e Clair de Mattos Conselho de Curadores: Délio Mattos, Godofredo de Oliveira Neto, Ivan Junqueira (in memoriam), Reynaldo Valinho Álvarez e Victorino Chermont de Miranda Conselho Fiscal: Dorée Camargo, Helena Ferreira e Francisco de Paula Souza Brasil SEDE SOCIAL PRÓPRIA: Praia do Flamengo, 172 — 11º Andar —Flamengo — Rio de Janeiro / RJ CEP 22.210–030 — Brasil —Telefax: (21) 2556 0461 www.penclubedobrasil.org.br | pen@penclubedobrasil.org.br


FOTO: ANGAD B. SODHI

FOTOS: DIVULGAÇÃO

SÚMARIO

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SUMÁRIO

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EDITORIAL O GESTO DO PERTENCIMENTO

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ENTREVISTA DOMÍCIO PROENÇA FILHO, POETA E VENCEDOR DO TROFÉU RIO 2015

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TÓPICO CÚPULA DAS AMÉRICAS: BRASIL, PRESENTE

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NARRATIVAS TRÊS GRAÇAS por Jorge Sá Earp DUAS CRÔNICAS por Raquel Naveira

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ESTUDOS A INVENÇÃO DA SARDENHA. MITOS E REALIDADES DA ILHA NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA DE REMO BRANCA (1897–1988) por Aniello Angelo Avella CECÍLIA MEIRELES E A MÚSICA por Vasco Mariz BLAS DE OTELO PEDE DE NOVO A PAZ E A PALAVRA por Helena Ferreira EU CONHECI SÃO JOSEMARÍA ESCRIVÁ por Ives Gandra da Silva Martins

revista CONVIVÊNCIA

A CAPOEIRA VISTA DE SALAMANCA por Edivaldo M. BoaVentura

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DOCUMENTO E MEMÓRIA DE REPRESA A SALTO ALTO por Maria Helena Kühner CLAUDIO DE SOUZA, UM HOMEM DE TEATRO por Sergio Fonta

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POESIA TRÊS POEMAS DE CARMEN MORENO por Carmen Moreno TRÊS POEMAS DE ANA LUIZA ALMEIDA FERRO por Ana Luiza Almeida Ferro POR QUEM OS SINOS DOBRAM? por Claire Leron RICARDO REIS NO RIO DE JANEIRO por Raquel Naveira

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EDITORIAL

O GESTO DO PERTENCIMENTO

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ideia mais adequada para sintetizar o conteúdo editorial desta Revista será falar sobre o sentido imediato que traduz o seu título: Convivência. Em nosso último jantar de confraternização natalina, realizado no dia 14 de dezembro próximo passado, no Terraço Panorâmico do IHGB, ao saudar os convidados — integrados por sócios e amigos do PEN Clube do Brasil — destaquei, de maneira brevíssima, a satisfação de reviver mais uma vez a “alegria do encontro”. Alegria, repita–se, promovida pela energia da convivência. Disse, então, que um poeta da antiguidade escrevera em uma de suas odes que o Homem é o sonho de uma sombra. No entanto, o que estávamos a fazer ali, de fato, significava algo a mais do que simplesmente reviver sonhos e provocar sombras. Revivíamos também a alegria do encontro na constante tentativa de definir a vida além de um mero sonho. Ao mesmo tempo, reforçávamos a ideia do pertencimento, de filiação e do desejo de atuar ou de construir coisas que ultrapassem as palavras do poeta e nos permitam afirmar que a vida, não sendo somente feita de sonhos, não poderia excluí–los de sua composição essencial. No momento em que a Revista Convivência chega a seu quinto número, editado em formato digital, como ocorreu aos números anteriores, nós, em verdade, não vivemos apenas um sonho, mas damos um passo importante em direção a uma concreta realidade. Por isso, quando os colaboradores aproveitam a oportunidade para dizer algo neste quinto número de Convivência, estamos diante de atitude que vai além do simples fato de declarar–se sócio ou amigo de uma entidade cultural. Mediante seus textos, eles reafirmam o gesto do pertencimento, ação traduzível no desejo de atuar por meio da palavra, instrumento eficaz e construtivo, capaz, enfim, de justificar a própria missão do PEN Clube do Brasil e de todos os demais Centros espalhados por cerca de cento e cincoenta países. Este número de Convivência abre–se com a Entrevista

concedida pelo Acadêmico Domício Proença Filho, vencedor do Troféu Rio 2015, recém–eleito presidente da Academia Brasileira de Letras e escritor atuante em nossas letras com cerca de setenta títulos publicados. A direção do PEN Clube, por meio de seu presidente, em Tópico, vem dizer aos sócios e amigos que a entidade esteve presente à Cúpula das Américas, ocorrida em México, em fevereiro de 2015, onde quase todos os Centros PEN das Américas discutiram medidas tendentes a reduzir ou a eliminar a violência praticada contra escritores e jornalistas americanos, porém, de modo especial na terra do legendário e memorável Emiliano Zapata. Os sócios Jorge Sá Earp e Raquel Naveira oferecem narrativas, enquanto o historiador Aniello Angelo Avella fala sobre a Sardenha, seus mitos e realidades da ilha a partir da fatura artística de Remo Branca (1897–1988). O musicólogo e historiador, embaixador Vasco Mariz ao relatar sua estreita convivência com Cecília Meireles nos revela os poemas da poetisa musicados por importantes compositores brasileiros. Os espanhóis Blas de Otero e São Josemaría Escrivá, o primeiro escritor e o segundo santo, são estudados, respectivamente, pela professora e tradutora Helena Ferreira e o jurista Ives Gandra da Silva Martins. Além disso, a Capoeira, gênero de dança típico dos baianos, surge na área acadêmica espanhola, precisamente em Salamanca, pela voz do professor Edivaldo M. Boaventura. Em Documento e Memória publicamos texto da escritora Maria Helena Kühner que, na qualidade de intelectual, revela aspectos relevantes de seu depoimento prestado à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Por fim, quatro poetas — Carmen Moreno, Ana Luiza Almeida Ferro, Claire Leron e Raquel Naveira — apresentam poemas de suas lavras, que fecham este número.

Cláudio Aguiar Cláudio Aguiar PRESIDENTE DO PEN CLUB DO BRASIL

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ENTREVISTA

DOMÍCIO PROENÇA FILHO, poeta e vencedor do Trofeu Rio 2015 ENTREVISTA a Cláudio Aguiar

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om a recente publicação do libro de poesia O Risco do Jogo, o Acadêmico Domício Proença Filho vai confirmando sua condição de poeta, que o situa fora da conhecida menção de “poeta bissexto”, ou seja, aquele que, ao longo da vida, publica poesia, porém, em caráter esporádico. Outra importante conquista do Acadêmico Domício Proença Filho foi o Trofeu Rio 2015, premiação criada e concedida pela União Brasileira de Escritores, Secção do Rio de Janeiro (UBE/RJ), que se constituiu em promoção cultural de grande prestígio dedicada aos mais respeitados intelectuais brasileiros e também a destacadas entidades culturais. Ao longo de doze edições o Trofeu Rio já foi outorgado às seguintes personalidades: Nelly Novaes Coelho, Casa de Cultura Rui Barbosa, Museu do Folclore Edson Carneiro, Carlos Lessa, Ferreira Gullar, Gilberto Mendonça Teles, Cleonice Berardinelli, Ruy Castro, Ana Maria Machado, Astrid Cabral, Stella Leonardos e José Arthur Rios. Domício Proença Filho, personalidade literária eleita para o ano de 2015, é doutor e livre docente em literatura brasileira. Lecionou na Universidade Federal Fluminense, de que é Professor Emérito, além de inúmeros outros estabelecimentos de ensino fundamental, médio e superior, entre eles, a UFRJ e a PUC Rio. Foi Professor Titular Convidado da Universidade de Colônia e na Escola Técnica de Altos Estudos de Aachen, na Alemanha. Idealizou e produziu para a Rádio MEC, entre outras obras, a série “Nos caminhos da comunicação”, com cem programas centrados no nosso

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idioma. Foi diretor de textos da Enciclopédia Século XX. Ministrou cursos de atualização em língua portuguesa para professores e de português instrumental e comunicação na empresa. É membro, entre outras instituições, da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filologia e do PEN Clube do Brasil e Membro Correspondente da Academia das Ciências de Lisboa. Nascido na cidade do Rio de Janeiro, em 1936, Domício Proença Filho escreveu e publicou cerca de 60 livros, entre os quais destacamos: Estilos de Época na Literatura (1967), em 20ª edição; A linguagem literária (1997) em 8ª edição; Dionísio Esfacelado — Quilombo dos Palmares. poesia, (1984), Oratório dos Inconfidentes, poesia (duas edições em 1989), ambos esgotados; Estórias da mitologia: o cotidiano dos deuses (1994); Capitu — Memórias Póstumas (1998), romance, traduzido para o italiano, também esgotado; O Risco do Jogo, poesia, (2012). Tem, no prelo, para breve lançamento, a segunda edição do premiado Breves estórias de Vera Cruz das Almas. Cláudio Aguiar: Entre os escritores, de um modo geral, parece correr um desejo de cobrir todos os gêneros, sobretudo quando eles se iniciam no culto das letras. Só a maturidade lhes dá aquele certificado capaz de os qualificar para o exercício fecundo de um certo gênero e com ele se imortalizar. Machado de Assis, por exemplo, iniciou sua carreira como crítico, depois poeta, mas foi na prosa, como contador de histórias curtas que se consagrou nas letras brasileiras. No seu caso, entre o professor, o autor de livros didáticos, o crítico de literatura, o poeta e o narrador, agora, na maturidade, qual o gênero que mais lhe incita à produção intelectual? Domício Proença Filho: Essa atividade multifacetada


sempre me acompanha, desde os tempos em seu verbo, além de um certo veio da Faculdade Nacional de Filosofia. denunciador que o crítico Alfredo Bosi chamou de “grito de dor”? Verdade que o poeta ficou presente, mas DPF: Claudio, acredito que uma das só bem mais tarde ganhou letra impressa. O ficcionista, muito depois. A função de marcas do texto literário, é a ambiguidade, crítico do texto alheio mobilizou uma forte a multissignificação. Minha resposta a exigência em relação aos meus próprios essa pergunta seria prejudicada pelas escritos. O professor ficou dividido armadilhas da intenção e essa tem pouca entre a língua e a literatura e as matérias ou nenhuma relevância, no caso. Seria correlatas. Prefiro, a propósito, passar a apenas mais uma leitura. Deixo aos dez ou palavra a Alberto Pucheu e Caio Meira vinte leitores dos poemas, entre os quais que escreveram, e a responsabilidade do você, as descobertas que as vivências e juízo é deles, que “como ensaísta, crítico, a sensibilidade de cada um encontrarem ficcionista e poeta”, tenho como tema no silêncio dos poemas, ou seja, o risco primordial “a linguagem em si mesma, desse jogo que une autor, texto e leitor. em suas articulações enunciativas, e Qualquer manifestação minha a respeito em seus desdobramentos históricos e, seria suspeita e direcionadora... sobretudo, poéticos”. Para ser sincero, não CA: Acima tocamos em temas ligados os desminto. Tanto que se encontram no mais diretamente ao professor e ao poeta. prelo um livro de miniestórias e dois livros No entanto, convive, ainda, no escritor de ensaio. Domício, a constante preocupação com CA: Como explicar a longevidade de um o destino da Língua Portuguesa, de suas livro como Estilos de Época na Literatura, origens aos mais importantes processos Acima: O risco do jogo de lançado em 1967? Estará por trás dele de ramificações e transformações sofridas Domício Proença Filho. a fama e a comprovada capacidade do por esse belo idioma, que se convencionou Abaixo: Primeira edição de Estilos de Época. professor que se notabilizou em todos os chamar também de “a última flor da Lácio”. graus do ensino no âmbito da cultura brasileira? Que poderemos esperar de seu próximo e frondoso livro DPF: Obrigado, Claudio, por sua generosidade. É difícil, sobre a história da língua portuguesa, principalmente no que na condição de autor apontar as causas da permanência diz respeito ao português sedimentado e falado no Brasil ao e da atualidade de um livro dessa natureza. São mais de longo de mais de cinco séculos? cinquenta anos de catálogo, que, confesso, me surpreen- DPF: Esse livro corresponde a um desejo pessoal antigo. dem. Gratamente, é claro. Na base de tudo, talvez se situem Foi escrito com um objetivo básico: mostrar, de maneira algumas razões: a categoria que privilegia: estilos epocais; simples, o que aconteceu com o português que chega ao o apoio sempre nos textos; a preocupação com a clareza, Brasil na fala de Cabral e de seus comandados no processo a dosagem e a objetividade na apresentação dos conceitos. de sua transformação no português brasileiro. É bom A perspectiva diacrônica da literatura como base nos estilos esclarecer que se trata de um esboço, não de um retrato. de época pode ser um critério carregado de imperfeições, Na verdade, quando o escrevi, pensei nos estudantes de mas, acredito, está entre os que ainda melhor possibilitam letras e nas pessoas com alguma curiosidade a respeito uma visão panorâmica do processo literário. Desde que a da história brasileira do idioma em que nós, brasileiros, categoria seja entendida como resultando de uma dinâmica, nos expressamos. Em paralelo, busca mobilizar a atenção para além de limites redutores. O texto é a matéria-prima de para fatos de relevância vinculados ao uso da nossa língua literatura. clareza, dosagem são elementos mobilizadores oficial nas múltiplas e várias circunstâncias do convívio da cumplicidade do leitor. É isso. comunitário, entre elas, a relação entre a fala e a situação CA: Em seu mais recente livro de poesia — O Risco do de fala e a língua e a inclusão social. Os colegas especialiJogo —, o leitor logo descobre rico e insinuante jogo de zados nesses assuntos podem ficar tranquilos: se, por acaso, ideias e imagens, como no caso de palavras, às vezes, forem movidos pela curiosidade da leitura, o que muito me solitárias e prenhes de significados, a exemplo do poema alegrará, encontrarão nele, nos dois casos, matéria de todos “Fascínio”, expresso com apenas um termo com força consabida. Gratíssimo, Cláudio, por suas perguntas e pela dialogal: “— Vem...” Que mais quis deixar o poeta gravado deferência. E viva o PEN Clube do Brasil!

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TÓPICO

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om o objetivo de discutir vários temas ligados à liberdade de pensamento e de expressão, dezenas de Centros PEN das Américas (Norte, Centro e Sul) reuniram–se na cidade de México nos dias 20 a 23 de fevereiro de 2015. O PEN Clube do Brasil esteve presente e foi representado por seu presidente, escritor Cláudio Aguiar.

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Os graves antecedentes Leia a seguir o último informe do PEN Internacional sobre a Cúpula das Américas em México.

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PEN Cumbre de las Américas 2015 Escritores de todo el mundo se reúnen para abordar las agresiones a periodistas de América Central y México. En respuesta a la creciente preocupación sobre el estado de la libertad de expresión y los crímenes contra periodistas en América Central y México, PEN International está celebrando una importante cumbre en la región para establecer una estrategia de lucha contra la impunidad y los ataques contra periodistas desde el 13 hasta 24 de febrero 2015. Escritores prominentes miembros de PEN a nivel global, encabezados por el presidente internacional, John Ralston Saul, tomarán parte en una serie de eventos


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de alto perfil para hacer frente a estos desafíos. La delegación incluirá a la presidenta de PEN Argentina, Luisa Valenzuela; al presidente de PEN Brasil, Cláudio Aguiar; a la vicepresidenta de PEN Guatemala, Karla Olascoaga; a la presidenta de PEN Honduras, Dina Meza; a la presidenta de PEN México, Aline Davidoff; a la presidenta de PEN Nicaragua, Gioconda Belli; y a los presidentes honorarios de PEN Nicaragua, Ernesto Cardenal y Sergio Ramírez y la escritora estadounidense–mexicana, Sandra Cisneros. «La violencia contra los periodistas y la represión de la libertad de expresión en América Central y México es alarmante. Esta cumbre reunirá por primera vez a escritores miembros de PEN a nivel mundial en la región. Los periodistas deben poder realizar su vital trabajo sin miedo y en condiciones de seguridad». — John Ralston Saul, Presidente de PEN International. La seguridad de los periodistas es una condición esencial para la realización del derecho universal a la libertad de expresión, con una clara responsabilidad de los Estados de proteger a los periodistas y escritores. Por desgracia, esta responsabilidad se descuida con demasiada frecuencia

en América Central y México, lo que lleva a un clima de violencia, a la impunidad, al miedo y a la autocensura. México, Honduras, Nicaragua y Guatemala sufren graves violaciones a la libertad de prensa, por lo que la región es una de las zonas más peligrosas del mundo para ejercer el periodismo. La violencia, la inestabilidad y la creciente intolerancia a la disidencia causada por el crimen organizado y la corrupción institucional están dando lugar a un preocupante aumento de la violencia contra los periodistas. La protección de los periodistas y la libertad de expresión en América Central y México ha sido un tema de campaña clave para PEN durante muchos años. Esta misión incluye una cumbre estratégica de América Central y los Centros PEN de México en Managua, seguida de una cumbre en la ciudad de México de los Centros PEN de América Central, del Sur y del Norte, así como los delegados del Caribe, Europa y Asia. Aspectos críticos de estos tres países son los siguientes: Honduras: Con al menos 46 periodistas asesinados desde 2003 y un historial de casi total impunidad por estos crímenes, los ataques a periodistas siguen aumentando. Mientras la situación de seguridad sigue deteriorándose, decenas de periodistas han sido asesinados y muchos más seguirán trabajando en un clima de miedo y autocensura. Nicaragua: Tres décadas después de que una revolución colocara a los sandinistas en el poder, el gobierno del presidente Daniel Ortega considera enemigos a los medios de comunicación privados y se ha actuado con fuerza para

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Aguiar fala na Cumbre de las Americas Mexico 2015

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reducir su influencia. El gobierno emplea una variedad de tácticas para marginar y censurar a la prensa. Son comunes los informes de hostigamiento, amenazas, acusaciones legales, y el uso de los organismos gubernamentales para presionar e intimidar a los periodistas. México: Al menos 67 periodistas de prensa escrita e internet, blogueros y escritores han sido asesinados en el país desde 2004. La impunidad sigue imperando en casi todos los asesinatos y desapariciones de periodistas. Las investigaciones policiales y judiciales de estos asesinatos son a menudo lentas, superficiales y son paralizadas por procedimientos burocráticos engorrosos Tras años de campaña y en un una situación de deterioro de la seguridad, el momento en que se está llevando a cabo la misión de PEN es vital para salvaguardar la protección de los periodistas en la región. La independencia periodística y la libertad de expresión sólo florecerán cuando la cultura de la impunidad pierde su arraigo. Esta misión hará que PEN permanezca unida con escritores, periodistas y amigos de toda la región en contra de este control absoluto». —Marian Botsford Fraser, Presidenta del Comité de Escritores en Prisión de PEN International.

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A posição do Brasil Na reunião realizada na sede do Ministério de Relações Exteriores, de México, na presença do Ministro, ...................., que, então, representava o Presidente do México, Enrique Peña Nieto, o escritor Cláudio Aguiar, na condição de presidente do PEN Clube do Brasil, com o objetivo de mostrar que no Brasil, ao contrário do que muitos pensam, não ocorrem atos de violações à liberdade de expressão, sobretudo contra escritores e jornalistas, proferiu as seguintes palavras:

“Violações à Liberdade expressão no Brasil Cláudio Aguiar Presidente do Pen Clube do Brasil A ideia de que no Brasil não há a prática de violências contra a liberdade de pensamento e de expressão, já encontrou no passado, inclusive no âmbito das autoridades do PEN Internacional, para não falar de outras entidades preocupadas com essa questão. Apenas para ilustrar o afirmado, vale lembrar que em 18 de março de 1986, o escritor Francis King, presidente do PEN Internacional, escrevia ao presidente do PEN Clube do Brasil, escritor Marcos Almir Madeira, mensagem que assim concluía: “O Brasil é afortunado por ter um excelente registro de direitos humanos e os escritores brasileiros não sofrem perseguição como em muitas outras nações, não apenas na América do Sul, mas em todo mundo. Mas o preço dessa liberdade de expressão é a eterna vigilância, para impedir que os governos ultrapassem aquilo que é permissível e, por essa razão, é tão importante a existência do PEN Internacional e dos diferentes centros do PEN, como o seu (o do Brasil) que é extremamente ativo.” Por mais que pronunciamentos dessa natureza afirmassem a existência de um certo estado maravilhoso de paz entre governos, entidades particulares, escritores e jornalistas brasileiros, infelizmente, durante aquele período e, sobretudo nas décadas anteriores (60 e 70), a realidade foi diferente. Para não irmos mais longe, baste dizer que o próprio PEN Clube do Brasil, a partir do golpe militar de 1964, entrou em absoluta hibernação. Sua direção silenciou. Após o agravamento da ditadura, a partir de 1968 até 1980, o Clube brasileiro, também, continuou em silêncio. Somente a partir da consolidação da chamada abertura democrática, efetivamente, o Centro brasileiro passou a atuar com maior liberdade, porém, sem adotar os princípios básicos agrupados nos comitês de Paz, de Tradução e Direitos Linguísticos, de Mulheres e de Prisão, já vivenciados em quase todos Centros PEN do mundo desde o final da Segunda Guerra. Nele predominaram, até a chegada do novo milênio, a prática de atividades sociais, porém, insuficientes ao atendimento da missão a que se achava destinado. O tema da liberdade de pensamento e de expressão no Brasil, ainda nos dias atuais, parece ser um tabu. Não se limita, apenas, ao restrito âmbito de ação de uma entidade como o PEN Clube do Brasil. Recentemente o próprio governo brasileiro — constitucional, democrático e republicano —, criou a Comissão da Verdade destinada a apurar violações aos direitos humanos e às liberdades de


pensamento e de expressão, inclusive com efeito retroativo a várias décadas de nossa vida política e social. Ao final de anos de trabalho, o resultado alcançado por essa Comissão, até agora, foi meramente declaratório, para não dizer pífio. Pouco conseguiu apurar sobre os mais diversos casos de violências — prisões ilegais, torturas, desaparecimentos, assassinatos, etc. — perpetrados contra civis e militares. Todas essas considerações dizem respeito à própria história política e social do Brasil. Elas não podem ser simplesmente esquecidas, silenciadas. A Justiça precisa atuar e punir aqueles que exorbitaram de suas obrigações, quer como agentes do poder público, quer como donos de suas próprias decisões ou caprichos pessoais. As violações ocorridas no presente momento no Brasil, a exemplo do que ocorre no México, na maioria das vezes, são praticadas não só por agentes do governo, mas também por agentes vinculados a instituições que agem em proveito de seus grupos. Verdade que, como denunciou recentemente o escritor John Ralston Saul, então presidente do PEN Internacional, em muitos países grassa a impunidade, lamentável expediente que impede o exercício da apuração da verdade e da justa aplicação de punição aos infratores. Os casos de perseguições e de assassinatos ocorridos no Brasil nos últimos três anos, podem ser associados a essa mesma característica, ou seja, atos decorrentes de agentes de entidades particulares que resolveram ignorar a responsabilidade dos poderes público e judicial de apurar os fatos e passaram a fazer justiça com as próprias mãos, certos de que serão, no mínimo, premiados pela impunidade. Entre nós, no Brasil, esses dados foram mapeados e divulgados por entidades internacionais, a exemplo, da ONG Artigo 19, de Londres, com sucursal em São Paulo, ou, entidades nacionais, a exemplo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Congregação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). As estatísticas Em 2013, cerca de 52 jornalistas e defensores de Direitos Humanos sofreram graves violações à liberdade de expressão no Brasil, contra 207, no México. No Brasil, o levantamento identificou casos de homicídio (30%); tentativas de homicídio (15%); ameaças de morte (51%); e sequestros ou desaparecimento (4%). As vítimas sofreram retaliações por denunciarem publicamente atos de violência praticados por policiais; conflitos agrários; crimes ambientais ou práticas de corrupção. O relatório também apresentou um panorama comparativo das violações à liberdade de expressão nas regiões

brasileiras. Assim, o Centro–Oeste e o Sudeste foram as que apresentaram elevado número de ocorrências. São Paulo, Mato Grosso do Sul e Maranhão são os estados mais violentos. O relatório “Graves violações à liberdade de expressão de jornalistas e defensores de Direitos Humanos” relatou os casos acompanhados pela equipe da ONG Artigo 19 e as medidas adotadas pelo Poder Público. De forma complementar, o documento também apresentou outros tipos de infrações: intimidação; agressões físicas; prisões; detenções arbitrárias; sanções civis desproporcionais e instauração de processos civis e criminais, sob a alegação de calúnia, injúria ou difamação. Os dados consolidados no período já representam um quadro assustador. Pode–se dizer que um jornalista ou defensor de direitos humanos é assassinado a cada quatro semanas no Brasil por algo que tenha afirmado ou publicado. Para cada assassinato, há mais de 3 situações em que o jornalista ou defensor de direitos humanos já tenha sofrido um sério atentado contra sua vida. Dezesseis jornalistas e defensores de direitos humanos foram assassinados por se manifestarem no ano de 2012. Sete destes eram jornalistas e nove, defensores de direitos humanos. Foram investigados 82 casos em que profissionais da mídia ou defensores de direitos humanos foram vítimas de violência. Em praticamente 64% dos casos, as vítimas sofreram algum tipo de ataque por terem feito alguma denúncia, oral ou escrita.

Tipos de violência

Números de casos Porcentagem

Homicídio

16

30

Tentativa de homicídio

7

15

Sequestro

2

Ameaça de morte Ameaça de morte

27 52

4 51 100

Sobre quem incide a violência? A resposta é simples. O dobro de jornalistas (30, comparado com 17 defensores de direitos humanos) foram vítimas da maioria dos sérios ataques à liberdade de expressão (classificados como homicídios ou tentativa de homicídio). A maioria das vítimas dos casos mais sérios de violência são praticados contra aqueles que escrevem em blogs com boa audiência (44%).

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Jornalistas do impresso

25

Jornalistas de radiodifusão (Rádio e TV)

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Jornalistas de Internet

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Está demonstrado que houve mais violência contra a liberdade de expressão nas zonais rurais do que nas grandes cidades. De imediato, essa constatação aponta para o problema da política e da reforma agrária como temas insolúveis há décadas, senão há séculos. Quase 50% dos casos de violência ocorreram em cidades com população menor do que 100 mil habitantes. Incluindo as cidades com população em cerca de 500 mil pessoas, essa taxa sobe para 68%. Mais de 1/3 dos crimes contra a liberdade de expressão ocorreram nas grandes cidades (32%). Em praticamente 74% dos casos, a motivação para violência decorreu de alguma declaração específica feita contra um agente público, funcionário público ou empresa privada. Outros fatores de motivação incluem a manifestação de uma opinião crítica (17%), o compartilhamento de informação (4%) e a participação em passeatas (2%). Pelo menos um agente do Estado está envolvido em 18% dos casos de violência contra a liberdade de expressão. Até aqui tivemos uma brevíssima radiografia do que foi o ano de 2013 em relação a liberdade de expressão no Brasil. A Federação Nacional de Jornalistas (FENAJ) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) recentemente divulgaram informe sobre o estado da violência contra a liberdade de expressão em relação ao ano de 2014. O resultado é desalentador: tivemos um dos anos mais brutais para a profissão de jornalista no Brasil. Foram registrados 129 casos de violência contra profissionais em decorrência do exercício de seu trabalho, de acordo com dados do Relatório da Violência contra Jornalistas, divulgado pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), números esses que voltaram a crescer em relação aos anos anteriores. As mortes ocorreram em fevereiro, quando Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes do Rio de Janeiro, morreu após ser atingido por um artefato explosivo durante manifestação popular. No mesmo mês, os jornalistas Pedro Palma, em Miguel

Pereira, Estado do Rio, e Geolino Lopes Xavier, em Teixeira de Freitas, no interior da Bahia, foram assassinados em decorrência de denúncias que publicaram. O Relatório incluiu, ainda, a morte de três radialistas e de um blogueiro, que não foram computados nos números finais por não pertencerem legalmente à categoria. Da mesma forma, integram os relatos as mortes de quatro jornalistas em crimes que não tiveram relação com o exercício profissional.

FOTO: ENRIQUE PEREZ HUERTA

Porcentagem

Vítima

De acordo com o jornalista Celso Schroeder, presidente da FENAJ, mais de 50,4% das agressões, um total de 65 casos, aconteceram durante protestos. Ele afirma que esse dado aponta para uma mudança de perfil dos agressores. Se antes a maior parte dos crimes era cometida por políticos e seus assessores, hoje policiais militares e guardas municipais


são os responsáveis por 48,06% das ocorrências, seguidos por manifestantes, com 12,4%. Além desses eventos, a categoria continua a sofrer com outras formas de violência historicamente recorrentes. Foram computados 17 episódios de agressões físicas não relacionados a manifestações (13,17%), 12 de cerceamento à liberdade de expressão por meio de ações judiciais (9,3%), 11 relacionados a ameaças

profissionais do sexo masculino (76,74%), atuantes na mídia impressa (32,56%). Ao finalizar, vale dizer que o PEN Clube do Brasil vem a esse encontro com o propósito de solidarizar–se ao esforço de articulação continental de luta contra as violências praticadas no México, já ao longo de vários anos, mas, também, dizer que no Brasil, em proporções assemelhadas as mesmas violações contra a liberdade de pensamento e de expressão são praticadas e merecem a atenção das autoridades governamentais e outras entidades, nacionais ou internacionais, que se preocupam com tão grave situação”. Declaración de la cumbre de las Américas Ciudad de México, 21–23 de febrero del 2015 La cumbre de PEN de las Américas ha constado de tres pasos: una misión de PEN Internacional a Honduras para celebrar la fundación del Centro PEN Hondureño y denunciar la impunidad de los crímenes contra periodistas en el país; un encuentro de los centros PEN de América Central en Nicaragua para definir prioridades comunes para una coordinación centroamericana; una tercera misión de PEN a México. Reunidos en Ciudad de México el 21 de febrero de 2015, primer día de la misión, los centros PEN de Argentina, Brasil, Honduras, Guatemala, Nicaragua, de Haití, de México, Guadalajara y San Miguel de Allende, de Canadá, junto con el American PEN y el PEN USA West y con la participación solidaria de los centros de Japón, Alemania y Gales, han compartido la realidad de sus países, los retos a la libertad de expresión que enfrentan en cada sociedad y han propuesto las líneas centrales de una estrategia de PEN para las Américas. Los delegados han asumido la Declaración de Managua, redactada el 20 de febrero por los centros PEN de Nicaragua, Guatemala y Honduras, y presentada al inicio del encuentro en México. El diálogo ha ampliado la reflexión y las propuestas de acción a nivel de todo el continente y ha añadido nuevos vectores a tener en cuenta para la estrategia de PEN en las Américas.

e intimidações (8,52%) e sete envolvendo agressões verbais e injúria racial (5,43%). O Relatório aponta, ainda, a região Sudeste como a mais violenta para a categoria, com 55,81% das agressões, e a Centro–Oeste como a menos violenta, com 18,6%. A maioria das ocorrências aconteceu contra

El ciclo Corrupción–Violencia–Impunidad Existe en América Latina y el Caribe un ciclo infernal de corrupción–violencia–impunidad de los crímenes contra escritores. Existe un vínculo directo entre la pérdida de libertades democráticas y los altos niveles de corrupción provocados por el crímen organizado. Los medios de comunicación que denuncian la intolerancia y la

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corrupción son reprimidos, en un rango que va desde la descalificación de la profesión periodística por parte de los poderes públicos, las amenazas de pérdida del trabajo o de violencia contra el profesional o su familia, hasta los casos extremos de secuestros y asesinatos de periodistas. Estas formas de represión son las causantes de unos altos niveles de autocensura entre los profesionales.

expresión provocan la división del colectivo de escritores. Los delegados han constatado la falta de unidad ante los abusos en México, Honduras, Nicaragua, Argentina. PEN es para el colectivo de los profesionales de la palabra una oportunidad de trabajar de manera unitaria contra la represión de la libertad de expresión y para fortalecer las redes de solidaridad entre escritores.

El uso del discurso antiterrorista para limitar la libertad de expresión PEN ha denunciado desde hace más de una década el uso del discurso antiterrorista, a nivel internacional, para acallar las voces críticas y disidentes. Los delegados han constatado que en todo el continente existe una constante presión contra la libertad de expresión causada por este estilo de pensamiento.

Contra el secretismo, acceso a la información En muchos países los gobiernos son intolerantes con las voces críticas y no apoyan al periodismo independiente. La transparencia es un valor central de una sociedad democrática. Los gobiernos deben dar cuenta de sus acciones y del financiamiento utilizado, y los medios de comunicación deben poder investigar cualquier tema, también las sospechas de corrupción. El derecho al acceso a la información es un derecho de todos los ciudadanos.

Abolir la difamación criminal Una de las formas legales de represión de la libertad de expresión en América Latina y el Caribe es la difamación criminal. PEN pide a todos los gobiernos que promuevan la supresión de la consideración criminal de la difamación, puesto que una de las características de la democracias modernas es la abolición del libelo criminal a favor de su consideración civil. Por la unidad de los profesionales de la palabra La corrupción, la violencia y la represión de la libertad de

Educación La disminución del espacio de debate público a causa de las limitaciones impuestas a la libertad de expresión tiene también consecuencias en el ámbito de la educación. Los centros PEN contemplan la necesidad de implicarse en la universidad y el medio educativo para abrir un espacio de pluralismo para que los estudiantes, mediante la escritura y el debate, tengan voz propia. La defensa de las lenguas y literaturas indígenas


Los tratados de libre comercio, que expanden una mentalidad indiferente al valor de las distintas culturas, unidos a la represión secular de las lenguas autóctonas, han provocado el ahogo de las comunidades indígenas. Los delegados han podido conocer el apoyo de los centros PEN de México y de Canadá a distintas literaturas indígenas. PEN reitera una vez más su defensa de los derechos linguísticos de todas las culturas y abre sus puertas a escritores en todas las lenguas del continente americano.

FOTO: GARRIDO/REUTERS

Vigilancia masiva en Internet La vigilancia masiva ejercida por los gobiernos de Estados Unidos y Canadá ha provocado una oleada de

autocensura por parte de los escritores de estos países, difuminando la frontera que diferenciaba los países represores de la libertad de expresión y las democracias avanzadas. PEN estará atento a la expansión de estas formas de vigilancia a América Latina y el Caribe. Coordinación americana Los centros reunidos en la Cumbre de las Américas valoran la necesidad que PEN tenga una visión de conjunto para América Latina y el Caribe, con la participación activa de los centros PEN de Estados Unidos y de Canadá mediante sus hermanamientos con otros centros (como actualmente entre PEN Honduras y PEN Canadá, o American PEN y PEN Haití). Los centros reunidos se responsabilizan de desarrollar una estrategia de PEN para las Américas a partir de esta declaración. John Ralston Saul, presidente de PEN Internacional: "He sido testigo de un renacer de PEN en América

Latina. La Cumbre de las Américas hace visible que a la generación de los Octavio Paz y Vargas Llosa sucede hoy la generación de Elena Poniatowska, Gioconda Belli, Antonio Skármeta y Luisa Valenzuela, por citar tan sólo algunos nombres." Aline Davidoff, presidenta de PEN Mexico y anfitriona de la Cumbre de las Américas: "La celebración del PEN Pregunta ha permitido escuchar nítidamente esa voz única pero diversa de PEN, voz que clamaba justicia frente a los asesinatos de escritores y estaba formada por las voces de autores mexicanos, de toda América Latina y el Caribe, de Norteamérica, de Europa y del Japón." Claudio Aguiar, presidente del PEN de Brasil: "Brasil es solidario con la Cumbre de las Américas con el fin de trabajar todos juntos en ese largo combate contra la impunidad de los crímenes contra escritores." Luisa Valenzuela, presidenta de PEN Argentina: "PEN une a los escritores por encima de divisiones, porque PEN tiene una visión de conjunto y sabe ver el trasfondo del crimen y de la impunidad, esa realidad oscura que da cuerpo a las amenazas y que ha hecho que el periodismo se haya convertido en una profesión de riesgo." Gioconda Belli, presidenta de PEN Nicaragua: "La solidaridad es la ternura de los pueblos y también es la ternura entre los centros de escritores del PEN en los distintos países de nuestra América. La integración de PEN en América Central y en toda América Latina se realiza gracias a esa solidaridad." Dina Meza, presidenta de PEN Honduras: "La Cumbre de las Américas ha sido un espacio de recocimiento de nuestros problemas comunes, pero lo más importante es que se profundizó la solidaridad entre nosotros: "Tus problemas son mis problemas", y así somos más fuertes. Para PEN Honduras estas sinergias son vitales y el acompañamiento de PEN Internacional y PEN Canadá es un catalizador para la lucha en un país donde la muerte está en cada esquina y donde la libertad de expresión está en un cuarto de cuidados intensivos." Brendan de Caires, coordinador de programas internacionales de PEN Canadá: "La implicación de PEN Canadá en la lucha contra la impunidad en México y en Honduras ha interpelado con fuerza a los escritores canadienses. De ahí nace el hermanamiento entre PEN Honduras y PEN Canadá y la convocatoria conjunta del nuevo premio de periodismo de investigación Escribir sin miedo en Honduras."

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TRÊS GRAÇAS TEXTO Jorge Sá Earp


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oravam numa casa espaçosa no fundo da rua, próxima ao meu edifício na Tijuca. Eram filhas de uma amiga de infância de minha mãe, Selma, que eu aprendera a chamar de tia. Era uma senhora gorda de riso largo, que exibia uma vistosa carreira de dentes. Tia Selma tocava piano e posso confessar que graças aos seus recitais informais em tardes quietas de sábado ou domingo, adquiri meu gosto pela música. Cheguei mesmo a pedir–lhe que me ensinasse a tocar piano, ela me apresentava a condição de trazer um caderno pautado e como minha displicência adiava continuamente essa tarefa, não voltamos nunca mais a abordar o assunto. Conformei–me à condição de mero apreciador não só dos dotes de tia Selma mas de muitos outros intérpretes e compositores. E segui a vocação tão desejada por meu pai, por ser exatamente a dele: a medicina. A mais velha (comecemos pela primogênita, como é costume narrar) se chamava Laura. E se invoco agora sua imagem, a cena que emerge à tona é a de Laura se pintando em frente ao espelho redondo posto sobre a penteadeira de seu quarto verde. Sim porque sendo a mais velha, Laura tinha o privilégio de possuir um quarto só para ela. E nesse cômodo predominava a cor da esperança: molduras das janelas verdes envernizadas, armário e cama com frisos verdes, cortinas com ramagens. Talvez para ela os pais augurassem um futuro seguramente promissor, por estar, vamos assim dizer, Laura no “topo da escada” e nela depositassem maiores anseios numa atitude que normalmente recairia num varão que não veio. Pois Beatriz — a segunda — e Nise — a caçula — dividiam o mesmo quarto que não tinha cor específica: era constituído de uma miscelânea colorida de móveis e tecidos. Me lembro que a casa era espaçosa mas somente no seu aspecto exterior: dentro a divisão dos cômodos irregular e até ilógica fazia–a parecer bastante menor. E nesses quartos relativamente pequenos acomodavam– se não só tia Selma e o marido, tio Alípio, como a sogra deste, D. Maura, que tinha uma das pálpebras caída e os cabelos brancos atados sempre em coque, e D. Ondina, sua irmã solteira, de uma doçura extrema. Quando penso numa xícara de porcelana chinesa com chá de erva doce, D. Ondina ressurge intacta à minha frente. Tio Alípio, a contrário da mulher, era caladão e depois de aposentado da Caixa Econômica gostava de jogar damas,

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xadrez ou cartas na praça Saenz Peña com outros velhinhos. Tinha os olhos esbugalhados e sua timidez apenas permitia que emitisse as raras opiniões pelo canto da boca. — Você quer também, Mário? — Laura me perguntou espalhando com o pincel felpudo sombra cinza na pálpebra. E sorriu zombeteira. É que naquela época da minha pré–adolescência fascinava–me o trabalho de transformação de um rosto sob o efeito da maquiagem. Fui, ao longo da minha vida, admirando cada vez mais essa mutação nos rostos de palhaços e atores, sobretudo chineses e japoneses. Mas isso são divagações trazidas inevitavelmente pela memória. Laura não intuiu esse meu sentimento porém quis apenas brincar comigo, ferir talvez meu orgulho masculino. E quem sabe tenha conseguido, dado o surgimento súbito da cena de maquiagem no quarto verde quando evoquei o nome Laura. Naquela tarde, que subitamente se fizera noite, por ser inverno, Laura, depois de maquiada caminhou pela sala de maneira coquete. Tinha ido ao cabeleireiro e seus cabelos, em seu aspecto natural lisos, deixavam–se cair ligeiramente anelados. Talvez naquele sábado à noite (e com certeza não tinha havido sarau de tia Selma) fosse se encontrar com Gabriel, seu namorado, sujeito excessivamente risonho, dado a gargalhadas forçadas, logo enervantes, e dotado de um senso de humor que só provocava o riso dos futuros sogros. Ou seja, era pessoa absolutamente destituída de graça, que acabou se casando com uma das minhas ditas três Graças. Engraçado talvez tenha sido somente o porre que Gabriel tomou em casa de uns tios meus (esses sim tios de verdade): gritava o tempo todo que era do time de futebol Benfica. Naturalmente não da equipa portuguesa porque, que eu saiba, o Gabriel não tinha ascendentes próximos da terrinha, mas do antigo time do Rio de Janeiro. Enfim: tomou o conhecido porre homérico (nunca li que o primeiro bardo fosse tanto chegado ao vinho), deu vexame, fez Laura ruborizar e com toda certeza sofreu, no dia seguinte, o fatal e inelutável arrependimento. Me lembro bem dele aos gritos. “Eu sou é Benfica. Eu sou é Benfica”, Casaram–se e Laura não foi feliz. Gorou o augúrio do quarto verde. Mas depois do primeiro desastre contraiu outro matrimônio. O destino deste ignoro completamente. Os olhos redondos e vivos de Beatriz, seus busto e nádegas empinados, sua cintura de bailarina e sua maneira de andar rebolante constituíam a personificação da coqueteria. O que contrastava dramaticamente com a sensaboria de Laura e a delicadeza de Nise. Aliás, os nomes das moças foram dados por escolha de Alípio, apesar de sua conhecida reserva e de seu papel de eminência parda no lar, por

trás da exuberância de tia Selma. Os nomes foram homenagem respectivamente a Petrarca, Dante e Camões. Pois além do passatempo de cartas e peões na praça, Alípio apreciava poesia. Reparado meu esquecimento acerca da origem dos nomes das minhas três vizinhas, passo agora a um episódio na vida de Beatriz, impresso em minha memória. Com aquele modo de caminhar que descrevi acima, num cair de tarde de sábado (não o mesmo sábado invernal em que Laura se maquiava) a irmã do meio se dirigiu ao botequim da esquina para comprar cigarro. O bar naturalmente lotado pela classe operária, que se desafogava da dureza semanal. Alguma batucada vibrava na calçada e um cheiro acre de fritura exalava do interior. Beatriz achegou–se ao balcão apinhado de gente mas mantendo certa distância. Uma mulatinha desdentada com um palito no canto da boca e de shorts cor–de–rosa sorriu para ela. Beatriz fixou o empregado do boteco que naquele momento estava longe de se afligir num ambiente daqueles, rodeada de gente do povo bebendo cerveja em copos pequenos e fumando. Postou–se ali paciente até que finalmente o empregado de jaleco azul a viu, fez–lhe uma expressão interrogativa, Beatriz respondeu dizendo a marca preferida do cigarro e o atendente deu–lhe as costas para pegar o maço na prateleira. De repente, Beatriz sentiu duas mãos agarrarem–lhe o seios. Soltou um grito. Era mulher de reações estridentes. Formou–se confusão. Tão súbito quanto o ato das mãos nos seios, um soco lançou o agressor longe da vítima. Beatriz em total estado de alarme, virou–se e deparou com Edgar, seu vizinho, morador do prédio ao lado. Beatriz então puxou–o pelo braço. O agressor, um bêbado de barba por fazer e camisa aberta levantou– se a custo da calçada e avançou titubeante para Edgar, que fechou o punho de novo encarando–o com olhar ameaçador. Apesar de novo puxão de Beatriz, o vizinho desvencilhou–se dela e avançou para o agressor, que subitamente fez surgir uma faca. Antes que o grito de Beatriz estridulasse no ar em meio à roda de espectadores, a faca cravou–se no flanco de Edgar. Sangue e confusão. Polícia e ambulância. No hospital os médicos informaram os pais de Beatriz e à própria que, por sorte, o punhal não atingira a base do pulmão de Edgar. Ele estava a salvo mas com uma grande cicatriz nas costas. Beatriz, que fazia pouco tempo tinha dolorosamente encerrado um namoro com um grã–fininho nada fiel, recebeu do destino o amor de Edgar, rapaz proveniente do interior de São Paulo, que viera estudar engenharia no Rio de Janeiro. Se o grã–fininho era bonito (conheci–o rapidamente na casa de campo de Tia Selma em Araras onde ele chegara bem mais tarde que a hora do almoço alegando


um contratempo), Edgar por sua vez já não fora tão bem aquinhoado pela mãe–natureza. Mas não se pode dizer que fosse propriamente feio: era bem moreno e tinha os traços finos; e como fazia esporte tinha os músculos desenvolvidos, o que o faria vencer facilmente qualquer luta contra inimigos desarmados e sóbrios. Apesar do longo namoro Beatriz não chegou a se casar com seu herói (esse mesmo herói que uma vez quis me levar a um bordel naturalmente achando minha vida sexual misteriosa; ou inexistente; ou ambas as coisas); casou–se com um rapaz do sul, porém de um estado mais meridional que o de Edgar, para lá se mudou e constituiu uma sossegada vida familiar. Do pequeno herói não tive mais notícia. Distraído que eu estava no museu recordando essas histórias, quando uma japonesa esbarrou em mim com sua câmara digital em frente ao quadro de Rubens. Desculpou– se, recuperei consciência do mundo ao meu redor e antes de me dirigir ao café do Prado, olhei para a figura da direita do óleo do pintor flamengo. Nise voltou radiante da praia louca para contar às irmãs que tinha conhecido um alemão muito bonito chamado Udo. Engenheiro de sistemas. Eu estava na casa delas naquela tarde, não mais de sábado, mas de domingo. Os últimos raios de sol douravam o dorso do morro visto da janela da sala, mas iluminados mesmo eram os olhos da pequena Nise, ainda de biquíni debaixo da saída de praia. As irmãs riam e davam força ao namoro. E com aquela notícia a sala foi tomada por um chilreio de pássaros, como um viveiro em bulício. Logo acorreram D. Maura, com sua pálpebra caída, D. Ondina e seu passinho miúdo e D. Selma exuberante e exibindo sua dentadura risonha. Até Seu Abílio apareceu também sujo de areia, carregando apetrechos de pescaria, pois acabava de voltar do Recreio dos Bandeirantes aonde fora com uns amigos. Demorou–se um bom tempo até que viesse a conhecer Udo. Não me lembro se semanas ou até meses. De qualquer modo, quando fui apresentado a ele, tomei um susto: era mais bonito do que imaginara pela descrição de Nise. Se não tinha o típico físico teutônico por causa dos cabelos castanhos, em seu rosto incrustavam–se resplandecentes olhos azuis. E os traços finos dignos de um príncipe bávaro. Simpático apertou–me a mão com a rígida delicadeza de um soldado dessas terras guerreiras. E afável, ao contrário da alardeada frieza germânica. Enfim, simpatizei logo à primeira vista com Udo. Ele respondia às minhas perguntas com um inglês carregado de forte sotaque. Era de Munique mesmo. No entanto percebi pelo seu olhar esgazeado que se distraiu quando lhe falava dos castelos construídos pelo Rei Luís II e do mecenato do monarca em relação a Wagner.

Udo pescou apenas um fiapo de uma de minhas frases, que contestou com o comentário nada surpreendente da parte de um alemão, que as obras dos três monumentos custaram caríssimo. Mudei então de assunto para as cervejarias de Munique e para a existência de festa similar ao Oktoberfest no sul do Brasil quando a empregada surgiu com uma bandeja com café. Udo apanhou uma xícara examinando bem o seu formato e deixou escapar a observação: — Vocês brasileiros tomam café o dia inteiro! — Sim, mas só nessas xicrinhas. — Na Alemanha nós tomamos em xícaras um pouco maiores, mas menos vezes ao dia. Eu, por exemplo, não consigo tomar café depois das seis da tarde. Se tomar não consigo dormir de noite; tenho taquicardia. Quando Jucineide voltou e se inclinou para pegar as duas asas da bandeja, percebi que Udo mais uma vez olhou a empregada com o rabo do olho. Logo apareceu Nise que como toda mulher, demora a se preparar para uma saída noturna no sábado à noite com o novo namorado. Sentou–se e se aconchegou ao corpo de Udo, que lhe respondeu com um abraço. Ambos sorriram entre si, olhos nos olhos, e me dei conta de estar no momento exato de me despedir. Passei outro bocado de tempo sem ver Nise, o namorado bávaro, suas irmãs e enfim de fazer uma visita à casa amarela do fundo da rua. Mas como disse Mauriac, acabamos de saber as histórias de famílias graças às nossas empregadas, a minha, Aldeise, veio um belo dia me revelar que Nise, no dia anterior, havia surpreendido Udo aos abraços e beijos com Jucineide na área de serviço junto ao tanque de lavar. Aldeise ainda foi precisa no pormenor de Nise ter visto a mão grande de Udo sobre as nádegas da doméstica. Nise gritou, esbravejou, seus olhinhos geralmente tão ternos expeliram lágrimas de ira e avançou com as unhas afiadas para os dois excitados. Fim da ópera: rompimento com Udo e dispensa de Jucineide, quem – vim a saber por outra fonte — acabou acompanhando o sedutor alemão ao seu país de origem. — Uns ordinários! — arrematou essa minha fonte, que pediu segredo absoluto de identidade. Paguei o café (do tamanho do nosso) ao garçom da cafeteria do Prado e me veio ainda a vontade de dar uma última olhada no quadro de Rubens no fundo da sala. Contemplei–o, pensei nas três irmãs de Tchekhov, até que um guarda me desse um tapa delicado nas costas para avisar que as portas do museu estavam prestes a fechar.

Milão, 23 set. 2013

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FOTO: SILVIO CEZAR SCREMIN

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O AVIÃO INVISÍVEL DUAS CRÔNICAS Raquel Naveira


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or muito tempo aquele avião foi invisível para mim. Atravessava a rua Pinheiro Machado, no coração do bairro de Laranjeiras, entre elevados e árvores de fícus e observava a escultura em bronze, do tamanho natural de um homem, do aviador Carlo del Prete. Com os olhos baixos li os dizeres da placa. Descobri que se tratava de um tributo a um herói, pioneiro que arriscou a própria vida fazendo um voo sem escalas entre Montecélio, perto de Roma, até o Rio Grande do Norte, em 1928. No mesmo ano, quando testava um avião em acrobacias sobre o mar, caiu na baía da Guanabara. Morreu, alguns dias depois, no hospital, em meio a muito sofrimento. Foi extraordinária a comoção da cidade. A estátua marca o lugar onde Del Prete recebeu homenagens póstumas, próximo da embaixada italiana. Um belo dia, quando fazia a travessia perigosa do viaduto em direção à praça, deparei–me com o avião. Sim, acima da estátua de Del Prete, meio coberto pelas folhas de fícus, havia um avião, uma enorme reprodução do avião usado pelo aventureiro. Que surpresa. O avião estava ali o tempo todo e eu não tinha reparado nele. Lembrei–me dos índios que não enxergaram as caravelas. Eles não conseguiram ver coisa alguma, até que as caravelas estivessem a pouca distância da praia. A explicação é que a caravela era algo desconhecido para os nativos e que a mente só pode ver o que conhece. Por mais estranho que pareça, o que a mente não conhece é invisível aos olhos, é parte da paisagem. As caravelas surgiram da névoa, estavam ocultas por um véu espesso como se fossem fantasmas. A bruma é mística, separa mundos. As brumas separaram Avalon, terra dos magos e das fadas, do mundo medievo do rei Artur. A impactante chegada das naus dividiu culturas. Os homens brancos, considera-

dos filhos do deus Sol pelos índios, trouxeram guerras e enfermidades pelas espumas do mar. O avião estava ali o tempo todo: matéria compacta, mas não passava de um imenso vazio atômico não captado pelo meu pensamento e pela minha vontade. O avião era “maya”, como diriam os budistas, ilusão não projetada em meu restrito campo de visão. O avião era essência pura, fruto de uma forma a princípio abstrata, alto reflexo de um sonho transfigurado em realidade, como imaginou Platão em sua “Teoria das Ideias”. Talvez eu estivesse de costas para a entrada da mítica caverna, presa na escuridão, e, agora, subitamente, na luz da verdade, brilhou, dourado, o avião. O escritor Antoine Saint–Éxupery, autor da fábula “O Pequeno Príncipe”, também foi piloto, escreveu sobre a aviação, sobre a sensação de solidão ao sobrevoar os desertos. Desapareceu misteriosamente num voo de reconhecimento na região do Mediterrâneo. Os destroços da aeronave foram encontrados e é provável que tenha sido abatida por alemães. Foi pela boca do seu personagem que ele nos ensinou: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.” Ah! Como precisamos de amor, companheirismo e amizade, meu Pequeno Príncipe. Dá para entender porque o apóstolo Tomé duvidou da ressurreição de Jesus e o sentido do ditado popular: “Aquela pessoa é feito São Tomé, precisa ver para crer.” Tomé viu Jesus, tocou em suas chagas. E eu que preciso crer para ver, adorar um Deus em Espírito, nem sabia que naquele ponto da vida cruzara com um avião invisível. Mas quando o vi, fui tomada por uma onda de consciência. Não coloquei mais limites entre o natural e o sobrenatural. O avião invisível me provou que há coisas que estão ao nosso lado, que a fé é maior que tudo que o universo nos esconde.

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CASA MÁRIO DE ANDRADE


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ntrei com uma pasta cheia de livros no elevador. Uma senhora de cabelos castanhos e óculos dourados cumprimentou–me sorrindo: — Vai dar aulas? — Sim, uma oficina poética na Casa Mário de Andrade. — Na rua Lopes Chaves? — Isso. — Morei na rua Margarida, fui vizinha de Mário de Andrade. Minha mãe era amiga de Dona Maria Luísa, a mãe de Mário. Costurava roupas para ela. Muitas vezes, eu era uma menina de uns sete ou oito anos, eu o via tocando piano ou debruçado na janela observando a brincadeira da criançada. O elevador se abriu e nos despedimos. Reconheci que ela, por trás do sorriso e dos óculos dourados, tinha uma experiência maior que a minha de vida, de São Paulo e de Mário de Andrade, malgrado o peso de minha pasta cheia de livros. Que emoção pisar na casa de Mário, naquele canto da rua Lopes Chaves. Um sobrado simples, de cômodos grandes e arejados. Não é um museu. Das coisas de Mário, restaram o piano preto, alguns livros numa estante e um antigo armário de xícaras e louças na cozinha, onde ele certamente guardava um doce de calda e um vinho econômico. Na principal sala de aula, uma fotografia enorme do grupo que participou da Semana de Arte Moderna: Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Murilo Araújo, Paulo Prado, Graça Aranha, Victor Brecheret e o jovem Mário, que se tornaria o líder dessa revolução artística. Os alunos me aguardavam no andar superior, no quarto que pertencera a Mário. Fecho os olhos e posso vê–lo: alto, queixo enorme, de robe de chambre de seda, sentado junto à escrivaninha, à luz do abajur, sempre lendo, pesquisando, escrevendo cartas que enviava a intelectuais de todo país. Sobre a escrivaninha, a máquina de escrever, que ele chamava de “Manuela”, em homenagem ao poeta Manuel Bandeira; as laudas de papel em branco que depois tomaram forma de livros como Pauliceia Desvairada, esse canto cruel, concebido entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, buzinas de automóveis e fagulhas de bonde.

O ambiente da casa de estudos hoje é tão despojado, mas sei que essas paredes eram cobertas de quadros como o “Homem Amarelo” comprado naquela célebre exposição de Anita Malfatti, que revelou para ele uma transformação radical de conceitos. Que admiração tinha Mário por essa artista cheia de paixão e arrebatamento, que pintava a ventania, a chuva, a neblina, os faróis e as cabanas de pescadores em telas e mais telas, num turbilhão estranho de cores e formas. Talvez ela o tenha amado secretamente. Um amor não correspondido e sublimado. Pensar que nessas salas aconteceram reuniões, debates, polêmicas sobre o futurismo, essa ânsia de esfacelar velhos moldes literários e arejar o pensamento. Que aqui Mário ora tocava músicas para os amigos, ora lia poemas, ora comentava trechos de seus romances, como Macunaíma, o herói brasileiro sem nenhum caráter, o anti–herói, o resultado da miscigenação de várias etnias e culturas. Debaixo desse teto, Mário envelheceu e viu tudo explodir: políticas, guerras, ditaduras, amizades profundas, casamentos de artistas. Como devem ter doído o rompimento com Oswald de Andrade por discordâncias em questões estéticas e morais e os gritos do povo na rua: Getúlio, Getúlio! Como deve ter sofrido ao perceber que não mais fazia sentido a sede destrutiva da Semana de Arte Moderna. Depois de um período trabalhando no Departamento Municipal de Cultura, onde criou bibliotecas e discotecas, restaurou documentos, fez o levantamento do patrimônio histórico paulista, Mário enfrentou na rampa dos cinquenta anos um tempo triste, crepuscular, onde escreveu versos como estes: “Nesta rua Lopes Chaves/ envelheço, e envergonhado/ nem sei quem foi Lopes Chaves. // Mamãe me dá essa lua,/ ser esquecido e ignorado/ Como esses nomes de rua.” Terminada a aula, ao descer a escada de madeira rangente, lembrei que foi ali que Mário, num domingo distante, sentiu uma dor no peito e tombou. À noite, um segundo ataque de angina foi fatal. Esgotaram–se as forças desse guerreiro, proletário da inteligência. Amanhã, se eu encontrar de novo aquela senhora de cabelos castanhos e óculos dourados, vizinha de Mário, poderei lhe dizer que ainda há afeto familiar, modéstia e bondade, naquela casa da rua Lopes Chaves.

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ESTUDOS

A INVENÇÃO DA SARDENHA. MITOS E REALIDADES DA ILHA NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA

DE REMO BRANCA (1897–1988) TEXTO Aniello Angelo Avella

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m dos maiores mestres da xilografia na Europa do século XX, Remo Branca foi figura impar no panorama intelectual da sua época; atuando como pintor, teórico da arte, professor, jornalista, documentarista, ele se empenhou constantemente em preservar os valores mais autênticos da tradição da sua terra natal, a Sardenha, no contexto das transformações produzidas pela modernidade na vida social, ao longo do chamado “século breve”. Quando se fala da Sardenha, logo se pensa na Costa Smeralda, cujas praias de areias branquíssimas e águas cristalinas são meta privilegiada do Jet–Set internacional. Existe, porém, uma Sardenha diferente, a do interior, caracterizada por uma natureza muitas vezes áspera, montanhosa, um território campestre, rústico. A região mais “selvagem” é a da Barbagia, dotada de uma milenar cultura pastoril, cujo centro é a cidade de Nuoro. O nome provém do latim Barbaria: os antigos romanos, não conseguindo durante muito tempo dominar as populações locais, chamaram–nas de Bárbaros, do mesmo jeito que apelidavam os povos nórdicos das regiões externas ao império. Escondidos nos famosos Nuraghi (construções em pedra de forma tronco–cônica, cuja origem remonta a um período entre a Idade do Bronze e a do Ferro), os habitantes da região praticavam uma guerrilha, realizando ataques rápidos e predatórios para logo desaparecerem nos recessos da natureza.

A cultura local guardou, ao longo da história, traços de rebeldia que se manifestaram até anos recentes, às vezes, em formas de bandidismo com conotações de cunho social. O nome de Graziano Mesina ficou no imaginário coletivo dos italianos como o do “Rei das evasões” nos anos 1960/1970. Ao mesmo tempo, os povos da Barbagia são bastante hospitaleiros para com todos os que se aproximam deles respeitando suas tradições e características. Filho desta terra, no húmus dela Remo Branca afunda as raízes da sua obra. Ele nasceu na cidade de Sassari em 1897 e foi autodidata no campo artístico. Aos 20 anos de idade começou a trabalhar como ilustrador no Giornalino della Domenica e na Rivista Sarda. O talento do jovem intelectual foi notado pela grande escritora Grazia Deledda, também sarda, prêmio Nobel de literatura em 1926. Em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, ela sublinhou a originalidade do artista, intimamente ligado à sua terra de origem. A verdadeira paixão de Remo Branca foi pela xilografia. A partir do final dos anos 1920, ele participou de numerosas exposições nacionais e internacionais, tornando–se o maior representante do chamado “Grupo Sardo dos Xilógrafos”. Uma vez terminados os estúdios secundários, ele cursou a faculdade de direito formando–se em 1921. Freqüentou as aulas dos tribunais da Sardenha na qualidade de auditor, para acompanhar de perto os processos relacionados com o


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mundo agro–pastoril e as lutas fatais entre famílias de povoados e pequenas cidades como Orgosolo, Mamoiada, Fonni, Orune, lugares onde a “disamistade” — como se diz na língua sarda — e a aplicação do chamado “Codice Barbaricino” mandavam mais do que o código do Estado italiano. Como conta o filho de Remo Branca, o professor Francesco Paolo, ele gozava de tamanho respeito geral, que não raramente era chamado para conciliar as partes em conflito; a própria polícia e os “carabinieri”, às vezes, lhe pediam para conversar com uma ou outra pessoa que se havia desviado, para que retomasse o caminho certo. A juventude do artista coincidiu com o advento do regime fascista, com o qual o espírito livre de Remo, obviamente, não podia conviver; sua oposição através do jornal Libertà, que dirigia, lhe custou uma reação pela qual foi obrigado a deixar Sassari e se mudar para a cidade de Iglesias, no sul da Sardenha (1926). Permaneceu em Iglesias por 10 anos, durante os quais, abandonada a profissão forense, concretizou o sonho de se realizar no campo da arte. Entrou no Liceu científico local, instituiu uma escola de arte destinada a produzir talentos como Giorgio Carta, os irmãos Giovanni e Enea Marras, Mansueto Giuliani e tantos outros. Naqueles anos, a arte moderna da Sardenha ia se afirmando na Europa graças às obras de personalidades como Dessy, Floris, Nivola, Biasi, Delitala; todos eles, assim como os artistas da chamada “Scuola Iglesiente” fundada

por Remo Branca, estavam profundamente ligados, cada um com suas especificidades, à realidade local, representando personagens, ambientes rurais, momentos de vida dos trabalhadores das minas de carvão e dos camponeses. Depois do período passado em Iglesias, Remo Branca foi exercer o ensino nas cidades de Nuoro e Novara; em seguida, ele radicou–se em Roma, onde viveu até a morte, mas nunca deixou de visitar a sua terra de origem. Acabada a Segunda Guerra Mundial, na época da reconstrução da Itália em suas infra–estruturas materiais e institucionais, ele começou a praticar a cinematografia, produzindo numerosos, importantes documentários de natureza didática, o que o levou a fundar a revista A Passo Ridotto e a trabalhar seja pelo Ministério da Publica Instrução, seja pela Universidade de Roma na cátedra de História Medieval e Moderna. Em 1968 fundou outra revista: Frontiera. No mesmo ano 1968, em 23 de agosto, Remo Branca tomou posse na Academia Brasileira de Arte. O Presidente da época, Nestor Egydio de Figueiredo, lhe havia enviado a comunicação oficial em carta datada 9 de novembro de 1967. De acordo com o que o Presidente escreveu na carta, o nome do artista italiano “foi apresentado pelo nosso confrade Heitor Usai”. O escultor Heitor Usai era também oriundo da Sardenha; nascido em 1889, dois anos mais tarde que o Remo Branca, completou a sua formação

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uma perspectiva que — a partir do local — se abre para dimensões nacionais e universais. No campo da política, por exemplo, a Ilha possui uma tradição extraordinária. O “Partito Sardo d´Azione” foi fundado em 1921 por um grupo de ex–combatentes da Primeira Guerra Mundial. Entre os fundadores, Emilio Lussu (1890–1975) é personalidade de destaque; de idéias socialistas, opositor do Fascismo, foi autor de uma obra prima intitulada Un Anno sull´Altipiano. O livro, publicado primeiramente em 1938 em Paris, onde Lussu estava exilado, documenta em forma de reporta-

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artística em Roma e em 1927 transferiu–se para o Brasil. Já no ano seguinte participou da 35ª Exposição Geral de Belas Artes promovida pela antiga Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Especializou–se em obras de temática religiosa, como o notável Monumento a Anchieta, erigido em bronze na Praça da Sé em São Paulo (1954). Entre os seus numerosos trabalhos, recordamos as estátuas em mármore de Santo Antonio e São Francisco, na igreja de Nossa Senhora da Paz no bairro carioca de Ipanema. Também no Rio de Janeiro se encontra a estátua de Miguel Couto; o busto de Stefan Zweig foi realizado em Salvador de Bahia. Ele produziu também esculturas funerárias, como as que se encontram nos túmulos de Carmen Miranda e de Ary Barroso. Segundo Presidente da Academia Brasileira de Arte, Humberto Usai foi titular da cadeira n. 34. A cerimônia de posse do seu ilustre compatriota Remo Branca aconteceu no Rio de Janeiro a 23 de agosto de 1968. O diploma que lhe foi entregue explica que a Academia o elegeu como sócio correspondente “Considerando os altos méritos de artista [...] e o modo admirável como tem na imprensa, no livro e na cátedra ilustrado e elevado a arte italiana e universal”. De fato, ele foi um intelectual com interesses de amplo alcance, e atuou brilhantemente como artista, professor, crítico, jornalista, documentarista. Entre as suas numerosas publicações, lembramos La Xilografia in Sardegna, Breviario di Xilografia, Incisori Sardi, Sardegna Segreta, Medioevo a Orgosolo, Raffaello, Frate Silenzio, Una Gioventù Bruciata. Remo Branca fez parte da melhor intellighentsia sarda, profundamente preocupada com os problemas sociais, em

gem, através das memórias do escritor, a vida dos soldados nas trincheiras da Grande Guerra. Pela primeira vez, na literatura italiana, são descritas a insensatez da guerra e as aberrações da exagerada disciplina militar. Baseado no livro, o cineasta Francesco Rosi realizou o filme Uomini Contro (1970), que ganhou numerosos prêmios na Europa. Antonio Gramsci (1891–1937) é, sem dúvida, o autor italiano contemporâneo mais traduzido e estudado no mundo. A sua enorme fortuna crítica deve–se, sobretudo, às suas Lettere dal Carcere, contendo mensagens escritas a parentes ou amigos, as quais foram posteriormente reunidas para publicação, e aos 32 Quaderni del Carcere, com reflexões e anotações, organizadas por sua cunhada Tatiana Schucht, sem todavia levar em conta a verdadeira cronologia; somente em 1975, graças a Valentino Gerratana, os Quaderni foram publicados seguindo a ordem cronológica. As Lettere são unanimemente reconhecidas como um monumento da língua e da literatura italianas. Os Quaderni, por sua vez, tornaram–se um clássico do pensamento político.


Na mesma linha ideal e política de Gramsci, temos o arcaicos, o subdesenvolvimento econômico, a emigração, outro sardo Enrico Berlinguer, que foi secretário do “Partito são tratados por estes intelectuais em formas originais, dinâComunista Italiano” e morreu em consequência de uma micas; para usar uma expressão de Gramsci, pode–se dizer hemorragia cerebral sofrida durante um comício na cidade que tais intelectuais são “orgânicos” ao povo sardo. Segundo a minha opinião, Remo Branca realizou, através de Padova (1984). Na gestão Berlinguer, o P.C.I. obteve a mais alta porcentagem de votos da sua história. Aquele fune- de suas imagens icônicas de lugares, pessoas, situações, algo parecido com o que o escritor ral é lembrado como a última Gavino Ledda fez com seu manifestação de massa do parromance autobiográfico Padre tido, com mais de um milhão de Padrone. L´educazione di un pessoas emocionadas lotando pastore (1975). O autor do praças e ruas de Roma. livro conta as suas vicissitudes Enquanto secretário, Enrico na tentativa de se emancipar Berlinguer havia condenado da tutela opressora do pai, abertamente a invasão russa que quer lhe impor uma vida do Afeganistão, sustentando de pastor de rebanhos, dando a legitimidade da chamada continuidade ao atávico des“via italiana ao socialismo” e tino de ficar para sempre em afirmando a total indepencondição de subalternidade dência do P.C.I. em relação familiar, cultural, social. O resà União Soviética. Defensor gate acontece por meio da inflexível das liberdades indieducação. Gavino se apaixona viduais e da democracia, era Remo Branco: Retrato de SS. Paulo VI, xilografia, 1970 pelo estudo, se esforça para sair profundamente respeitado até pelos adversários políticos mais intransigentes. Quando do analfabetismo, se afasta da Sardenha. O enfrentamento ele morreu, o jornal do Vaticano, L´Osservatore Romano, com o pai e a sua visão arcaica do mundo é violento, mas publicou na primeira página elogio, reconhecendo o elevado finalmente, com muito sacrifício, ele consegue acessar os níveis mais elevados da instrução. perfil ético e a nobreza do seu empenho na vida pública. Considerado um clássico da pedagogia progressista, o Giovanni Berlinguer, irmão de Enrico, foi cientista muito famoso por seus estudos sobre os problemas da saúde livro foi traduzido em mais de 40 línguas. Os irmãos Taviani, pública. Professor emérito de medicina social do ateneu de famosos diretores de cinema, fizeram dele um filme que Roma, doctor honoris causa por várias universidades entre ganhou a Palma de Ouro no festival de Cannes de 1977. Os perfis de perspectivas diferentes, com relações famias quais a de Brasília, ele ocupou posições importantes nas instituições italianas, da União Européia, da Organização liares e sociais mais abertas e modernas, são delineados nas obras dos intelectuais sardos da geração de Remo Branca. Mundial da Saúde. Os irmãos Berlinguer eram primos de Antonio Segni Mesmo respeitando os valores da tradição, é superada a e Francesco Cossiga, também sardos, líderes do partido visão da Sardenha, da Barbagia, como arquétipo de todos os da “Democrazia Cristiana”. Mais tarde, os dois viriam a ser lugares sem tempo, espaço ontológico e universo antropológico onde se consome o eterno drama de existir. As vidas Presidentes da República Italiana. A vida e a obra de Remo Branca precisam ser inseridas dos homens já não são, como dizia Grazia Deledda, “canne e consideradas neste contexto geral de comprometimento al vento”; o resgate é possível e, no processo de superação, com a sociedade e seus problemas. Ele pode ser definido a arte joga um papel fundamental. Octávio Paz vê o artista como uma árvore. Suas raízes, como artista atento à realidade da Sardenha em suas partes mais remotas, profundamente alheio a qualquer obséquio ele diz, afundam na terra da qual as experiências, as heranao poder ou às exigências do mercado. Católico progres- ças culturais e humanas do criador se nutrem; o tronco é a sista, ele manteve relações de amizade com o Papa Paulo obra por ele produzida, com suas peculiaridades e traços individuais; os galhos voltados para o alto representam a VI, do qual fez um retrato em xilografia (1970). Pertenceu ao grupo de intelectuais que fizeram da Ilha multidão das possíveis leituras e interpretações. Os robustos galhos da “árvore Remo Branca” hão de o centro vital de suas criações no campo da arte, da literatura, da política. Temas como a permanência de costumes continuar a ilustrar a Sardenha tempos afora.

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ESTUDOS

CECÍLIA MEIRELES E A MÚSICA VASCO MARIZ Sócio benemérito do Pen Clube

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onheci Cecília Meireles no inicio dos anos 50, encantado pelos seus olhos verdes–cinza. Ficamos bons amigos e passei a frequentar amiúde sua casa na rua Smith Vasconcelos, nas Laranjeiras, perto da estação do bondinho para o Corcovado. Tempos depois, em 1955, estava ajudando o governador Clovis Salgado, de Minas Gerais, a organizar o 1º Festival de artes de Ouro Preto e indiquei o nome de Cecília para falar nesse importante evento. Convidei–a a ler o seu belíssimo Cancioneiro da Inconfidência. Cecília escolheu proferir a palestra na Casa dos Contos, linda construção colonial então recém restaurada pelo Banco do Brasil. Pouco antes da hora do início da leitura havia uma multidão na porta do prédio. Cecília entrou em cena parecendo uma sacerdotisa, vestida com uma túnica branca, etérea. Começou com voz baixa, foi se agitando, crescendo, e sua dicção era perfeita. Todos na platéia estavam comovidos. Ao terminar havia lágrimas nos olhos verdes dela e de muita gente na sala. Houve prolongado silêncio e depois começaram as palmas. Uma verdadeira ovação. Em 1959, eu estava trabalhando na embaixada em Washington e Cecília apareceu por lá. Estávamos convidados para um congresso da UNESCO na Universidade de Denver, Colorado, que foi interessante, mas o frio era intenso e lembro–me de que lá estava tudo coberto de neve. Certa noite em que estávamos convidados para uma festa em uma residência luxuosa, recordo–me de que muitos dos

convidados caíram na piscina enquanto nevava abundantemente. Cecília ficou vidrada olhando os jovens atirando–se à piscina. O tempo depois melhorou e como tínhamos alguns dias livres antes de chegar a São Francisco, nosso destino final na Unversidade de Stanford, resolvemos viajar de carro. Paulo Carneiro, personagem da UNESCO, que também estava em Denver, aderiu e lá fomos nós, comigo ao volante, conversando e rindo bastante. Demos uma espiada no Gran Canyon do Colorado e fomos dormir em Las Vegas. Atordoados pelas luzes da cidade, Paulo arriscou uns dólares na roleta sem sucesso, mas fomos dormir cedo porque estávamos cansados. No dia seguinte percorremos aquela estranhíssima cidade, surpreendente até hoje, 60 anos depois, e dormimos cedo porque deveríamos acordar às 6 horas para o grande estirão até a Califórnia. Almoçamos em Indian Wells, hoje famosa sede de torneios de tênis, mas o que mais recordo foi a brilhante conversação que tivemos nessa viagem de automóvel. Cecília e Paulo Carneiro estavam no seu very best e abordamos os temas mais distintos, falamos até mesmo de Abu Simbel, que Paulo Carneiro estava organizando a espetacular transposição do templo aprovada pela UNESCO e pelo governo do Egito. Lembro–me que provoquei Cecília sobre como os compositores deveriam musicar os poemas dela e nos divertimos muito com seus comentários. Um aspecto pouco conhecido da obra poética de Cecília Meireles é o notável aproveitamento de seus poemas pelos compositores clássicos brasileiros. Ao lado de


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Manuel Bandeira, Cecília é o segundo poeta mais frequentemente musicado na história da música clássica no Brasil. O sucesso de sua poesia na música erudita nacional reside no fato de que a sua obra poética, tal como a de Bandeira, possuem uma musicalidade inata. A música virtualmente salta de seus versos com espontaneidade e, naturalmente, isso atrai os compositores. Cecília tinha grande interesse pela música: debatemos várias vezes assuntos musicais, sobretudo problemas estéticos e técnicos relativos à criação da música nacional. Recordo porém que Cecília teve um bom músico em sua família, pois ela era sobrinha neta de Glauco Velásquez, notável rival de Villa–Lobos, morto em 1913, aos 31 anos de idade, de tuberculose, quando despontava como bastante promissor. Cecília Meireles está tão ligada à música clássica que a principal sala de concertos do Rio de Janeiro leva hoje o seu nome. Agora que se comemora o cinquentenário do sua morte, parece–me oportuno comentar a notável aceitação de seus versos na elaboração de canções de câmara, ou seja, das canções de concerto. Recentemente, ao revisar meu livro A Canção Brasileira para a sua 8ª edição, constatei com prazer que Cecília mantém com relativa folga o segundo lugar, logo atrás de Manuel Bandeira, entre os poetas brasileiros mais frequentemente musicados pelos nossos compositores eruditos. Lembro que o maior problema da canção de câmara é a escolha do texto a ser musicado. O poema, portanto, é essencial para o lied, ou seja, a canção de concerto. A sua escolha decide os destinos de determinada melodia, valorizando–a ou barateando–a. O compositor comenta o poema depois de sua leitura atenta, após se sentir embebido pela emoção estética que se desprende daquela pequena obra de arte. A melodia deve surgir então como por encanto do próprio texto poético. Aspectos curiosos se apresentam quando tentamos apreciar as diversas versões musicais de um poema visto por compositores de preparo técnico diferente. A mesma frase pode receber tratamento ascendente e pianissimo de um compositor, e descendente e forte por outro músico, o qual nem sequer sabia da existência da versão do colega. Infelizmente, a maioria de nossos compositores não sabe escolher bem os textos apropriados para uma canção. Eles recuam diante do grande poema, sobretudo perante o poema famoso. Por isso talvez lindas melodias têm sido prejudicadas por textos idiotas e um bom exemplo disso é a famosíssima Cantilena, da Bachiana Brasileira nº 5, na qual Villa–Lobos utilizou um poema medíocre. Felizmente o texto se esfumou diante da grandiosidade da música.

Remexendo correspondência antiga, encontrei uma carta de 25 / 11 / 1959 de Cecília Meireles, na qual ela me contava: “Uma coisa que eu não compreendo é porque os músicos sempre dão preferência a letras literariamente fracas . Os poemas escolhidos nunca são os melhores. É como se os músicos tivessem sensibilidade musical, mas não sensibilidade literária. O Villa–Lobos disse–me um dia que a música não tinha nada com a letra. A palavra era só para apoiar a voz. Engraçadíssimas aquelas teorias dele...”, escreveu Cecília. Considerando que existem aproximadamente oitenta canções ou peças para voz com letra de Cecília Meireles, só vou poder ressaltar as mais significativas, ou as que alcançaram maior sucesso em concertos. Apesar da popularidade da poetisa entre os músicos, grandes compositores como Villa–Lobos, Francisco Mignone, Claudio Santoro e Guerra–Peixe não se sentiram atraídos pela sua poesia, ou temeram os seus versos. A primeira canção que desejo salientar, uma das mais antigas, é a aplaudida Berceuse da Onda, escrita em 1928, ainda da mocidade de Cecilia. Escrita para canto e piano ou canto e orquestra, é de autoria de Oscar Lorenzo Fernández, um de nossos mais importantes compositores de canções. A canção foi concebida em ambiente ameríndio e teria servido de estudo para o poema sinfônico Imbapara . Desapoiada pela deliberada politonalidade do acompanhamento, a intérprete entoa o canto da sereia, uma Lorelai de pele–vermelha, a atrair os pescadores para chocarem–se com os rochedos. A canção Flor do meu coração (1967) foi musicada pelo grande Camargo Guarnieri, nosso lírico mais íntimo, mas a canção não “pegou” no repertório de concerto. Osvaldo Lacerda, outro paulista ilustre que dedicou boa parte de sua obra ao lied, escreveu em 1970 uma belíssima canção intitulada Retrato , possivelmente de caráter autobiográfico da poetisa. É uma peça sentida e refinada que bem expressa o pensar daquela admirável e doce criatura de olhos verde–cinzentos que enfeitiçava a todos. Cecília inspirou também Lacerda a musicar com linguagem depurada os poemas Murmúrio, Bem–te–vi, Teu nome e Se eu fosse apenas. Já o gaúcho Luiz Cosme compôs 3 Manchas (Modinha, Chorinho e Cantiga), graciosas miniaturas, e ainda Madrugada no campo, peça bem lograda que foi impressa na Argentina. Os compositores de vanguarda não tiveram dificuldade em utilizar a lira de Cecília, como o fez o líder do movimento no Brasil, Gilberto Mendes. Menos audacioso, Ernst Mahle também é autor das belas canções: Para uma cigarra (1966), Leilão de jardim (1971), Uma flor quebrada e a interessantíssima A chácara de Chico Bolacha (1974), de muito efeito


apesar de execução difícil devido aos intervalos de sétimas e oitavas que assustam os intérpretes. Talvez pela importância de seus versos, alguns grandes compositores hesitaram em colocá–los em música. A maioria das canções inspiradas pela obra de Cecília Meireles foi escrita por compositores menos conhecidos, mas encontro em minha própria História da Música no Brasil (8ª edição, 2012) nada menos de dez citações de seu nome. Ronaldo Miranda, que vem crescendo bastante no cenário nacional, compôs a bonita Canção antiga sobre poema de Cecília. Fernando Cerqueira, consagrado músico baiano, ousou musicar Equilibrista para voz média, clarineta e piano (1988), de estranho mas atraente efeito. Almeida Prado, talvez nosso maior compositor contemporâneo, recém falecido, escreveu em 1998 diversas canções sobre poemas de Cecília, que infelizmente não chegaram ainda até o Rio de Janeiro. Não esqueçamos que a distancia entre São Paulo e o Rio de Janeiro é bem maior do que entre o Rio e Nova York... Já Edmundo Villani–Cortes ganhou o prêmio APCA em 1989 graças a um belo Ciclo Cecília Meireles, para canto e píano que passo a comentar mais de perto devido á sua importância. Esta série foi estreada na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, em 1987. Contou–me o compositor que, ao entrar em contato com a poesia de Cecília, “sentiu uma emoção única, pois a profundidade de suas idéias e a sonoridade de seu vocabulário já possuíam música. “Escrever música sobre poemas de Cecília Meireles foi para mim um mero ato de passar para a partitura a música que ela já trazia em sua alma”, escrevceu Villani. No entanto, seu estilo da composição nada tem de nacionalista. É bem universal, pessoal e intelectual. O ciclo, que fez bastante sucesso em recitais na voz de Efigênia Côrtes, é constituído por seis peças de curta duração, em um total de 21 minutos, a saber: Cântico XXV, Do Caçador feliz, Canção da indiazinha, Imaginária serenata, a Canção de Maria Efigênia, e Motivo. Pena que o ciclo ainda não esteja gravado Outro grande compositor contemporâneo, Edino Krieger, inspirou–se no famoso Romanceiro da Inconfidência, desta vez uma peça para violão que tem agradado muito nas salas de concertos.. Mas Edino deixou–nos outra importante obra, o Romance de Santa Cecília (1989) para narrador, soprano, coro infantil e orquestra sinfônica, que alcançou notável êxito na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, com a participação da filha Maria Fernanda como narradora. Essa obra tem a forma de um poema musical em três movimentos, que podem ser rotulados de vida, martírio e glória., e deixou no público indelével impressão.

Também nosso ilustre colega da Academia Brasileira de Arte, Ricardo Tacuchian, acredita que Cecília é “um poeta que possui musicalidade com sugestão quase óbvia de uma forma musical. Além do ritmo, o contraste, a cor e a onomatopéia, todas as suas dimensões geram música e o compositor experimentado deve ter a sensibilidade para traduzi–las musicalmente”. Assim comentou o músico em seu depoimento à revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional. Tacuchian escreveu também uma cantata de câmara baseada no Canto do poeta, para soprano, flauta, violino e piano, já gravada pela FUNARTE. Os textos escolhidos foram escritos para voz de mezzo–soprano ou barítono, baseados em quatro poemas de Cecília Meireles, a saber: Motivo, Retrato, Canção e Ária. Mais importante talvez, e isso merece ser ressaltado, é a série infantil de Cecília Meireles intitulada Ou isto ou aquilo, para canto e piano, com acompanhamento bastante sofisticado. Tacuchian buscou explorar as contrastantes atmosferas criadas por Cecília e destaco as peças para coro infantil a três vozes Leilão de jardim, gravada pelos Carneirinhos de Petrópolis, e Os Carneirinhos, apresentada com sucesso na Sala Cecília Meireles em 1976 pela Associação Brasileira do Canto Coral. Tacuchian usou cinco poesias da série infantil de Cecília Ou isto ou aquilo. Cada peça tem uma atmosfera diferente, seguindo as sugestões dos textos. Colar de Coralina explora os efeitos onomatopaicos. Pescaria sugere as ondas do mar. Moda da menina trombuda é um recitativo em duas partes. O Cavalinho Branco acompanha o trote do animalzinho e Jogo de bola aproveita o ritmo de um jogo entre a bola amarela de Arabela e a azul de Raul. Infelizmente esta série também ainda não está gravada, mas seu efeito é contagiante. O sucesso da poesia de Cecília Meireles na música erudita nacional reside no fato de sua extraordinária musicalidade. Não tenho dúvida de que a palavra e a poesia da nossa querida poetisa tiveram um papel muito significativo na evolução da canção brasileira de concerto. Ela continua a ser o segundo poeta mais frequentemente musicado pelos compositores eruditos nacionais, logo depois de Manuel Bandeira. Esse é outro motivo para que ela seja lembrada com admiração, carinho e saudade neste ano de comemorações dos 50 anos de seu desaparecimento. Obrigado.

Artigo publicado no jornal “O Globo”, caderno Prosa e Verso, de 6 de novembro de 2002, atualizado em agosto de 2015.

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ESTUDOS

BLAS DE OTERO PEDE DE NOVO A PAZ E A PALAVRA

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las de Otero já traz altura no próprio nome: otero, outeiro. E como outeiro elevou–se à grande parte dos poetas espanhóis das décadas de 50 e 60, Blas de Otero, em 1976. maravilhando–os e influenciando–os bastante, além de haver sido por sua quase maioria decantado. Urge, no entanto, manivelar a máquina do tempo para lembrar que o panorama da poesia espanhola subsequente à Guerra Civil Espanhola e, sobretudo, à Segunda Guerra Mundial, não tinha qualquer vinculação com a realidade — no caso, herdeira do caos, melhor dizendo, “dos caos” — porque a par de sua artificialidade voltava–se em especial para a forma. Até certo ponto, poder–se–ia classificá–la de poesia de evasão para rimar com alienação, da qual se excetuaram poucos remanescentes da Geração de 27 (precipuamente só de poetas), tais como Gerardo Diego, Dámaso Alonso e Vicente Aleixandre (Prêmio Nobel de 1977) — que, isentos do autoexílio permaneceram na Espanha realizando seu trabalho, apesar de diversificado com sutileza, porquanto suas circunstâncias eram bem outras. Entretanto, de 1944 até 1955 surgiram alguns poetas que, de certa forma, seguiram a trilha das inúmeras tendên-

FOTO: Efe

TEXTO Helena Ferreira

cias de 27, embora desta divergindo em vários aspectos. Tais “divergentes”, se é que se pode assim considerá–los, procuraram reacender a chama da importância de Miguel de Unamuno ou de Antonio Machado, aos quais os gongorinófilos haviam preterido de algum modo em favor de Juan Ramón Jiménez, ganhador do Prêmio Nobel de 1958, com Platero y yo, uma prosa poética, cujo protaganista é um burrinho humanizado. Com ela J.R.J. suscitou polêmicas carreando outras tantas por não participar cabalmente de qualquer grupo literário nem soltar bafejos próprios de um representante dos –ismos. E mais: por ter sabido sacudir, com original força, a árvore das velhas formas despojando–as das folhas, talvez murchas ou secas, e haver se tornado, de fato, um renovador não–rotulado, ainda que emblemático. Esse despojar começa em “Eternidades” (1917): “Vino, primero pura,/vestida de inocencia: /y la amé como un niño. Luego se fue vistiendo/de no sé qué ropajes;/ y la fui odiando, sin saberlo./Llegó a ser uma reina/ faustosa de tesoros.../ ¡Qué iracundia de yel y sin sentido!/...Mas se fue desnudando./ Y yo le sonreía./ Se quedó con la túnica/ de su inocencia antigua. / Creí de nuevo en ella./ Y se quitó la túnica/ y apareció desnuda toda.../ ¡oh pasión de mi vida, poesía/ desnuda, mía para siempre!


Nesse meio tempo reavivam–se as inquietações religiosas, filosóficas e patrióticas à la Unamuno e Machado. Os poetas de então passam a defrontar com uma Espanha que, de certa maneira, já varrera de seu território a poeira com cheiro de pólvora e sangue, assim como limpara as camadas de ferrugem que o isolamento e o ostracismo lhe cobriram no interregno de duas guerras. Pairava, então, um arremedo de leve trégua política, razão por que, mesmo de gatinhas, sua literatura ia tentando percorrer novos caminhos, cujos primeiros passos rumavam para o social, segundo o vade– mécum deixado por Rafael Alberti e seguido à risca por Miguel Hernández. Entretanto, de um modo geral, aos poetas surgidos pouco antes de 1950 não se pode lançar a pecha de que tenham se alheado totalmente dos problemas sociais, apesar de seus questionamentos fundamentais gritassem e grifassem com mais intensidade os temas existenciais e religiosos. Eis que se vislumbra o outeiro: Blas de Otero, que já vinha publicando versos desde 1942 (“Canto espiritual”) e iria centrar–se na bifurcação da poesia existencial– religiosa de caráter profundamente social, tendo Gabriel Celaya como companheiro de estrada. Tão grande foi sua influência nos contemporâneos, que, a partir de 1950, o grafema básico da poesia espanhola é o social, acompanhado de perto do romance de mesma natureza, aquele que irá, digamos, contagiá–la ou inoculá–la até 1960, quando a produção poética faz seu primeiro vestibular para entrar no perigeu universitário. Diz Blas de Otero em um dos sonetos de seu livro Ancia (1958), que não foi senão um condensar de dois livros anteriores: Ángel fieramente humano (1950) e Redoble de conciencia (1951), com a inserção de vários poemas inéditos, como “Y el verso se hizo hombre”, que ora reproduzo com minha tradução: Ando buscando um verso que soubesse/ parar um homem no meio da rua/ um verso em pé — aí está o detalhe —/ que até desse a mão e cuspisse. (...) E não cessa sua preocupação de caráter social no último poema do livro En castellano, mais precisamente no “Cantar de amigo”, onde o poeta sublinha essa inquietação com traços fortes por mim vertidos em português: Quero escrever de dia./De cara com o homem da rua,/ e quão/ terrível se ele não parasse./ Quero escrever de dia./ De cara com o homem que não sabe/ ler,/ e ver que não escrevo em vão./ Quero escrever de dia.(...) Por suas convicções políticas, antagonicíssimas ao franquismo, o destino do poeta teve sempre o crivo de uma censura contumaz e até insidiosa. Alguns de seus livros só puderam ser publicados na América Espanhola e na França, como é o caso de En castellano, em que um dos

poemas, de mesmo título, converteu–se em libelo contra a política da Espanha de então: Aquí tenéis mi voz/ alzada contra el cielo de los dioses absurdos,/mi voz apedreando las puertas de la muerte/ con cantos que son duras verdades como puños (...) / Borradlo. Labraremos la paz, la paz, la paz,/ a fuerza de caricias, a puñetazos puros./ Aquí os dejo mi voz escrita en castellano./ España, no te olvides que hemos sufrido juntos. Nesse sentido, o francês Claude Couffon, um de seus melhores tradutores, no prólogo do suprarreferido En castellano, que na tradução bilíngue (Paris: Pierre Seghers, 1959) recebeu o título de Parler clair que também traduzi por Falando claro, assim como o texto em si, ratifica–lhe o talento e a saga com estas palavras: “D´abord, de tous les poètes de sa génération, Otero est sans doute celui qui a été le plus loin dans le chemin de la précision, de la rigueur de l´expression poétique. Chez lui, aucune floriture; chaque mot a sa valeur propre, son sens, souvent même son double–sens; chaque vers est un élément efficace, net et tranchant comme la voix qui le dicte » (« De todos os poetas de sua geração, Otero é, de antemão, aquele que, sem dúvida, se adiantou no caminho da precisão, do rigor da expressão poética. Em sua obra não há qualquer floreio. Cada palavra tem seu valor próprio, seu sentido, às vezes até seu duplo sentido; cada verso é um elemento eficaz, claro e categórico como a voz que o dita”). Quando afirmo que Blas de Otero se eleva a todos os poetas espanhóis de seu tempo é porque sua obra carrega, como um Atlas, a mais rara cosmovisão que abarca e abraça Deus e o homem, a vida e a morte, a dor e a miséria, a luta existencial e o sentimento amoroso, a solidariedade humana, a pátria, a política, a paz e a liberdade, em cujo enfoque alia originalidade à riqueza da forma, entremeando–a de aliterações e paralelismos, além de prodigalizar o léxico mediante frases feitas e coloquialismos. Esmera–se em dinamizar a poesia alternando versos toantes e consoantes e em desmontar o soneto de sua arquitetura clássica, emprestando–lhe a construção popular da trova a par de orná–lo com versículos, do decassílabos e alexandrinos. E, finalmente, coloca pari passu o humano e o social — o binômio gritante de seu fazer poético. Ao recordar aqui o poeta, lembro–me também de um lamentável lapso: não estar seu nome incluído nos currículos universitários nem tampouco ser devidamente conhecido dos leitores brasileiros, mesmo entre aqueles que apreciam a literatura espanhola. Para homenageá–lo, apresento a tradução que fiz de três de seus poemas mais difundidos (“Hombre”, “En el principio” e “Tú que hieres”), constantes de Blas de Otero, expresión y reunión. Madri: Alianza Editorial, 1992.

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HOMBRE Luchando, cuerpo a cuerpo con la muerte, al borde del abismo, estoy clamando a Dios. Y su silencio retumbando ahoga mi voz en el vacío inerte.

HOMEM Lutando, corpo a corpo com a morte, à beira do abismo, estou clamando a Deus. E seu silêncio retumbando afoga–me a voz no vazio inerte.

Oh Dios. Si he de morir, quiero tenerte despierto. Y noche a noche, no sé cuándo oirás mi voz. Oh Dios. Estoy hablando solo. Arañando sombras para verte.

Oh Deus. Se hei de morrer, eu quero ter–te desperto. E noite a noite, não sei quando ouvir–me–ás. Oh Deus. Estou falando a sós. Arranhando sombras para ver–te.

Alzo la mano, y tú me la cercenas, Abro mis ojos: me lo sajas vivos, Sed tengo, y sal se vuelven tus arenas.

Alço a mão, e logo m´a cerceias, Abro meus olhos: tu os vazas vivos. Sede tenho, e sal se tornam tuas areias.

Esto es ser hombre: horror a manos llenas. Ser — y no ser — eternos, fugitivos. ¡Ángel con grandes alas de cadenas!

Isto é ser homem: horror feito a mancheias. Ser — e não ser — eternos, fugitivos. Anjo com grandes alas de cadeias!

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Esse poema pertence a um de seus livros proscritos — Ángel fieramente humano — que depois da publicação na revista madrilenha Ínsula (1950) foi proibido por ter sido considerado blasfemo. No entanto, a Editora Losada, de Buenos Aires, republicou–o dez anos mais tarde. Nele o poeta, ao dialogar com o invisível, extravasa suas inquietações de cunho existencial–religioso.

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TÚ, QUE HIERES Arrebatadamente te persigo. Arrebatadamente, desgarrando mi soledad mortal, te voy llamando a golpes de silencio. Vem, te digo

TU, QUE FERES Arrebatadamente te persigo. Arrebatadamente, destroçando a solidão mortal, vou te chamando a golpes de silêncio. Vem, te digo

como un muerto furioso. Vem. Conmigo. has de morir. Contigo estoy creando mi eternidad. (De qué. De quién.) De cuando arrebatadamente esté contigo.

qual um morto furioso. Vem. Comigo. hás de morrer. Contigo estou criando minha eternidade. (De quê? De quem?) De quando arrebatadamente esteja contigo.

Y sigo, muerto, en pie. Pero te llamo a golpes de agonia. Vem. No quieres. Y sigo, muerto, en pie. Pero te llamo

E sigo, morto, de pé. Mas eu te chamo a golpes de agonia. Vem. Não queres. E sigo, morto, de pé. Mas eu te chamo

a besos de ansiedad y de agonia. No quieres. Tú, que vives. Tú, que hieres arrebatadamente el ansia mía.

com beijos de ansiedade e de agonia. Não queres. Tu, que vives. Tú, que feres arrebatadamente a ânsia minha.

Tal como en Los árboles mueren de pie, do dramaturgo espanhol Alejandro Casona (1903–1965), Blas de Otero — em “Tú, que hieres” morre de pé, amando agônico embora altaneiro — é, arrebatada e frustradamente, amante sempre! O poema delineia a faceta sentimental–amorosa do autor (Ib.) EN EL PRINCIPIO Si he perdido la vida, el tiempo, todo

NO PRINCÍPIO Se eu perdi a vida, o tempo, tudo


lo que tiré, como un anillo, al agua, si he perdido la voz en la maleza, me resta la palabra.

o que joguei, qual um anel, na água, se eu perdi a voz lá na maleza, me resta a palavra.

Si he sufrido la sed, el hambre, todo lo que era mío y resultó ser nada, si he sesgado las sombras en silencio, me resta la palabra.

Se suportei a sede, a fome, tudo o que era meu e redundou em nada, se esguelhei as sombras em silêncio, me resta a palavra.

Si abrí los labios para ver el rostro puro y terrible de mi patria, si abrí los labios hasta desgarrámelos me resta la palabra.

Se abri os lábios para ver o rosto puro e terrível de minha pátria, se abri meus lábios até despedaçá–los me resta a palavra.

O documento de identidade de “En el principio”, integrante do livro Pido la paz y la palabra (1955), recebe logo o sinal verde do leitor porque este o remete ao início do Evangelho Segundo São João (No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus). Em seguida, surge a “casa” que o poeta construiu para dois únicos moradores: o Homem e a Espanha, seus temas prediletos. Ali, o homem vem sobraçando tudo o que é vital de uma maneira, ora generalizada (a vida, o tempo e a voz), ora particularizada (a sede, a fome, o nada em traje de solidão). E a Espanha — seu ponto fulcral — amplia–se na materialização da voz nos lábios. Daí ele detectar, ao mesmo tempo, uma visão pura e terrível de sua pátria: a pureza, por sua essencialidade, e o terror, pela tragicidade do sofrimento que esses lábios lhe trazem, sobretudo quando diz: “Se abri os lábios para ver o rosto”, ou seja, a face não tão oculta da Espanha. Contudo, é a acústica que vai preponderar aos versos, porquanto a voz vital e poética poderá ser esteticamente “ouvida” por meio do estribilho: “me resta a palavra”, verso que, com suavidade, transfere a estrutura condicional dos períodos “Se eu perdi a vida (...)”// “Se eu perdi a sede (...)”// “Se abri os lábios (...)”, para a engenharia concessiva, grandiosa, que dimensiona a mensagem do poeta chegada ao leitor com eloquência contida e expressa de modo subliminar: embora tenha perdido tudo nesta vida; apesar de ter sofrido tantos descalabros; ainda que tenha presenciado o caos da pátria, permanece a palavra. A palavra é sinônimo de força e riqueza incomensuráveis que ninguém será capaz de arrebatar. O poema se alicerça em três estrofes quartenárias toantes, nas quais versos hendecassílabos e heptassílabos se combinam. Nesse particular, cabe um parêntese para lembrar as diferenças entre a métrica espanhola e a portuguesa: se o verso for oxítono, conta–se uma sílaba a mais; se paroxítono, todas as

sílabas são contadas, e no caso da proparoxítona, a contagem é de uma sílaba a menos. Mas voltando às estrofes. Estas, pelo fato de serem idênticas quanto à forma funcionam como três núcleos autônomos. Além disso, Blas de Otero nelas insere um sem–número de matizes que colorem a ordem poemática em dois tons apenas: individual e coletivo. O individual se encontra nas duas primeiras: “Si he perdido la vida, el tiempo, todo” e “Si he sufrido la sed, el hambre, todo − quando faz sua própria reflexão existencial; o coletivo, nos dois versos da última: “Si abrí los labios para ver el rostro/ puro y terrible de mi patria — quando expõe a realidade de sua piel de toro. Por conseguinte, percorre–se o poema por linhas paralelas, em cujo caminho há um único esquema gramatical que na versão portuguesa não pode ser percebido pelos luso– falantes com o mesmo sentido. Por exemplo, “Si he perdido (...)” é forma do pretérito perfeito composto, a mais usual na língua espanhola (peninsular) para indicar ação realizada em um passado recente, assim como aquela que vem se processando de modo sistemático desde o passado até o presente, melhor dizendo, aquela referente a dois pretéritos em português: o simples e o composto. Este último, no entanto, corresponderia para os lusófonos apenas a “se tenho perdido”. Resumindo: as expressões verbais “Si he perdido” / “Si he sufrido” / “Si he sesgado” determinam o fim virtual do processo, isto é, no caso, o passado recente. Ao passo que o verso “Si abrí los labios”, o equivalente a Pretérito Indefinido ou Pretérito Simple, em espanhol, indica o fim real desse processo, ou seja, a ação realizada mais remotamente. E quando Blas de Otero pede a paz e a palavra, parece confessar que sem as duas não vive. Ao buscar incessantemente a palavra, o poeta não a vê senão como algo mais integral — o espaço da essencial constituição do Outro. E é nessa criação de um novo mundo humano onde reside sua originalidade.

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ESTUDOS

EU CONHECI SÃO JOSEMARÍA ESCRIVÁ TEXTO Ives Gandra da Silva Martins

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UM ENCONTRO Conheci o fundador do Opus Dei em São Paulo. Durante sua viagem ao Brasil, de 22 de maio a 7 de junho de 1974, estive com ele em algumas ocasiões. Recordo– me especialmente do dia em que recebeu a minha família. Estávamos, minha esposa e eu, com nossos seis filhos. A alegria dele era contagiante e foi muito atencioso conosco. Relembrei–me especialmente desse encontro ao ouvir o papa João Paulo II dizer, na Praça de São Pedro: “Josemaría Escrivá foi um santo de grande humanidade. Todos os que se relacionaram com ele, de qualquer cultura ou condição social, tinham–no como um pai, totalmente entregue ao serviço dos outros, porque estava convencido de que cada alma é um tesouro maravilhoso; com efeito, “cada homem vale todo o Sangue de Cristo”. Esta atitude é patente na sua entrega ao ministério sacerdotal e na magnanimidade com que impulsionou tantas obras de evangelização e de promoção humana em benefícios dos mais pobres.

FOTO:s DIVULGAÇÃO

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Deus reserva–nos algumas surpresas nesta vida. Uma delas foi ter conhecido uma pessoa, que, passados os anos, foi canonizada, isto é, de quem a Igreja reconheceu a heroicidade das suas virtudes e o propõe como exemplo de vida a todos os cristãos. Essa pessoa a quem me refiro é São Josemaría Escrivá (1902–1975), fundador do Opus Dei, canonizado em Roma pelo papa João Paulo II (1920– 2005) em 6 de outubro de 2002. Aqui, neste artigo, quero retribuir um pouco o que recebi de Deus, por intermédio de São Josemaría Escrivá. Penso que não exagero ao afirmar que ele foi decisivo em minha vida e na de toda a minha família, e também na vida de tantos amigos. Com a graça de Deus, testemunhei ao longo dos anos muitas conversões de pessoas que retornaram à Igreja Católica depois de terem entrado em contato com a mensagem de São Josemaría.


FOTO: THE ASSOCIATED PRESS

Opus Dei em Roma. Basilica de San Salvatore.

São Josemaría Escrivá (1902–1975), fundador do Opus Dei.

Espanha celebra beatificação do líder da Opus Dei, D. Álvaro del Portillo, a segunda figura mais importante na ordem do fundador José Maria Escrivá (2014).

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RUNNING TITLE recebeu em Madri, em 2 de outubro de 1928, quando Deus lhe pediu que difundisse a mensagem da chamada universal à santidade no meio do mundo, fundando o Opus Dei. Era na ocasião um jovem sacerdote. Recordá– lo–ia anos mais tarde: "Tinha 26 anos, graça de Deus e bom humor. E nada mais". Desde então, ele dedicou sua vida a transmitir esta mensagem: lembrar a todos que, para amar a Deus, não é necessário abandonar o mundo familiar, profissional, social, cultural, etc., mas que, para a maioria das mulheres e dos homens, é exatamente aí, nas circunstâncias e nos afazeres cotidianos, que Deus espera a nossa correspondência amorosa. Hoje, essa mensagem de que todas as pessoas (sem exceção) estão chamadas à santidade não soa estranha; ao contrário, o Concílio Vaticano II proclamou–a de forma solene na Constituição Dogmática Lumen Gentium (capitulo VI). No entanto, durante muito tempo, não foi assim. Por isso, em certa ocasião, o beato João Paulo II afirmou: “Josemaría Escrivá foi escolhido pelo Senhor para anunciar a chamada universal à santidade e mostrar que as atividades correntes que compõem a vida de todos os dias são caminho de santificação. Pode–se dizer que foi o santo do cotidiano. De fato, estava convencido de que, para quem vive sob a ótica da fé, tudo é ocasião de um encontro com Deus, tudo se torna um estímulo para a oração. Vista dessa forma, a vida diária revela uma grandeza insuspeitada. A santidade apresenta–se verdadeiramente ao alcance de todos”.

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Imagem de São Josemaría na praça de Chiclayo

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Ao conversar com monsenhor Josemaría Escrivá, era evidente seu profundo sentido cristão da vida. Interessou– se pelos detalhes de nosso dia a dia; a seus olhos, tudo tinha importância, porque tudo — o pequeno e o grande — era ocasião para elevar o coração a Deus, para oferecer–Lhe uma resposta de amor e fidelidade. Penso que essa união entre o divino e o humano é um aspecto essencial da vida de São Josemaría. Viveu o que procurou transmitir a todas as pessoas com quem se encontrou ao longo da vida: "Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir–se o céu e a terra. Mas não; onde verdadeiramente se unem é nos vossos corações, quando viveis santamente a vida diária". Esta foi a luz que

O OPUS DEI Disse que conheci São Josemaría Escrivá em 1974, em São Paulo. De certa forma, eu o conheci alguns anos antes, quando comecei a participar de algumas atividades de formação espiritual do Opus Dei, ao ouvir pela primeira vez seus ensinamentos, que me impressionaram muito. Confesso que eles me impressionaram, pois eram a mesma doutrina católica que eu tinha aprendido com os meus pais, no colégio, na paróquia, mas com um matiz até então novo para mim. Podia e devia encontrar Deus em meu trabalho profissional no escritório de advocacia, nas aulas, nas audiências e nos julgamentos – e muito especialmente na minha vida familiar, com a minha esposa, na educação dos nossos filhos, nos momentos alegres e também nas ocasiões difíceis que todas as famílias atravessam. São Josemaría afirmava que podemos ser "contemplativos no meio do mundo", transformando nosso trabalho em oração, em diálogo com o Senhor. O fundador do Opus Dei dizia que nós, cris-


tãos, devemos saber "converter a prosa diária em mada universal à santidade. A mensagem de que também decassílabos, em verso heroico, pelo amor com que os leigos pudessem ser santos, e santos de altar, era tida desempenhamos as ocupações habituais' Queria que por alguns como algo “revolucionário progressista”. Nos fôssemos — pela graça de Deus– audazes, otimistas, anos após o Concílio Vaticano (1962 – 1965) a acusação magnânimos, caridosos, compreensivos, bons trabalha- inverteu–se e alguns passaram a tachá–lo de conservador, dores e bons amigos, generosos, enfim, comum coração reacionário. Na verdade, Josemaría Escrivá foi sempre o grande, com esse único coração que temos para amar a mesmo: um sacerdote católico, com uma devoção cheia Deus e as criaturas. de carinho a Nossa Senhora e a Sagrada Alguém poderia pensar que esse Eucaristia, que fez da sua vida um serideal está restrito a pessoas espeviço à Igreja, buscando realizar a ciais; não seria para nós, com tarefa que Deus havia lhe transnossos erros e misérias. O então mitido naquele dia 2 de outubro cardeal Joseph Ratzinger de 1928. (1927–), referindo–se essa Para responder se ele era concepção, dizia: “Esta seria conservador ou progressista, uma ideia totalmente equicito um ponto do seu livro vocada da santidade, uma Sulco, que penso que ajudará concepção errônea que foi a entender qual era a cabeça, corrigida precisamente por o coração de São Josemaría: Josemaría Escrivá. (....) Ser “Para ti, que desejas formar– santo não significa ser superior aos te numa mentalidade católica, outros: pelo contrário, o santo pode universal, transcrevo algumas caracser muito fraco, e ter numerosos erros em terísticas: sua vida. A santidade é o contato profundo — amplidão de horizontes e um aprofundaOpus Dei Cruz. com Deus: é fazer–se amigo de Deus, deixar mento enérgico no que é permanentemente que o Outro trabalhe, o Único que pode fazer real- vivo na ortodoxia católica; mente com que este mundo seja bom e feliz. Quando — empenho reto e sadio — nunca frivolidade — em Josemaría Escrivá fala que todos os homens somos cha- renovar as doutrinas típicas do pensamento tradicional, na mados a serem santos, parece–se que no fundo se está filosofia e na interpretação da história; referindo à sua experiência pessoal, porque nunca fez — uma cuidadosa atenção às orientações da ciência e por si mesmo coisas incríveis, mas se limitou a deixar do pensamento contemporâneos; Deus agir”. — uma atitude positiva e aberta ante a transformação Isso tudo foi sempre o que aprendi com São Josemaría, atual das estruturas sociais e das formas de vida. no Opus Dei. E penso que é meu dever transmitir a minha Tentei de forma sucinta, em grandes linhas, transmitir experiência direta, pois infelizmente algumas vezes me um pouco do santo que conheci, de São Josemaría. Não deparei com pessoas que tinham uma ideia equivocada é fácil. Para terminar este breve artigo, tomo emprestasobre esse santo. das algumas palavras do então cardeal Ratzinger: “Por O papa João Paulo II, no dia 6 de outubro de 2002, tudo isto, compreendi melhor a fisionomia do Opus Dei: referiu–se às incompreensões sofridas por São Josemaría a forte conexão que existe entre uma absoluta fidelidade durante sua vida: “Certamente não faltam incompreensões à grande tradição da Igreja, à sua fé, com desarmante e dificuldades aos que procuram servir fielmente a causa do simplicidade, e a abertura incondicionada a todos os Evangelho. O Senhor purifica e modela, com a força miste- desafios deste mundo, seja no âmbito acadêmico, no do riosa da Cruz, todos aqueles a quem chama: mas, na Cruz trabalho cotidiano, na economia, etc., Quem tem essa – repetia o novo Santo– encontramos luz, paz e gozo: “Lux vinculação com Deus, quem mantém essa conversa ininin Cruce, requies on Cruce, gaudium in Cruce!”. terrupta com Ele, pode atrever–se a responder a novos Ainda que o fundador do Opus Dei tenha sempre desafios, e não tem medo; porque quem está nas mãos atuado em plena sintonia e obediência ao arcebispo de de Deus, cai sempre nas mãos de Deus. É assim que Madri; já nos anos 1930, foi acusado de ser herege, por desaparece todo o medo e nasce a valentia de responparte de algumas pessoas em razão de proclamar a cha- der aos desafios do mundo de hoje.

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FOTO: VITTORIO SCIOSIA/ALAMY

ESTUDOS

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A CAPOEIRA VISTA DE SALAMANCA

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TEXTO Edivaldo M. Boaventura


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A

Universidade de Salamanca com o seu alto prestígio acadêmico acolheu uma tese sobre a capoeira. No conjunto das universidades espanholas, Salamanca, a Universidade do grande Miguel de Unamuno, exerce uma atração imagética tanto nos estudantes nacionais como nos estrangeiros. Dentre estes, contam-se cerca de 700 brasileiros, segundo Vicente Justo Hermida, do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Salamanca. Por sua vez, a capoeira, encontrada nos currículos escolares de maneira tímida e no ensino superior, é praticada como atividade esportiva, lúdica e como dança em cerca de 150 países. A sua internacionalização é uma evidência e, efetivamente, uma contribuição cultural brasileira ao mundo, com berço na Bahia. O interesse pela capoeira permite estabelecer um cenário de contrastes. Imaginemos a capoeira baiana exercitada pela nossa gente no democrático e patriótico bairro da Liberdade, da cidade do Salvador, sendo pesquisada na

Universidade de Salamanca, pelo professor Odilon Góes (2014), afrodescendente, em pleno ambiente espanhol e europeu. São 800 anos de vida acadêmica, guarnecida por muros de pedras vermelhas e por duas catedrais. A velha basílica românica, com tons bizantinos e com sinais góticos, e a nova catedral, luminosa, ampla e renascentista. Soma-se a Praça Maior, cercada de edifícios conjugados, construída por Carlos V, que é bem o lugar para se festejar o doutorado de um brasileiro. Albergado no Colégio Arcebispo Fonseca, construção da Renascença, integrei-me mais ainda no cenário medieval do Estudo Geral Salmantino, criado pelo rei Afonso IX, de León, à sombra das escolas catedráticas (SAN PEDRO, 2004). Depois Afonso X, o sábio, dotou de regulamentos e recursos (ÁLVAREZ, SAN PEDRO e VILLAR, 1992). A capoeira é encarada como disciplina curricular com conteúdos de expressão cultural, nas classes de Educação Física e Desporto, em conformidade com a legislação de ensino brasileira. Seguindo o ritual acadêmico da Universidade, depois da apresentação da tese

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pelo doutorando, a palavra foi franqueada aos doutores presentes para possíveis contestações. A orientadora, Margarida González Sánchez, que não participou do Tribunal da Tese, falou naquele momento significativo. Seguiram-se as arguições pelos examinadores e as respostas pelo doutorando. Ao término, o presidente do Tribunal da Tese proclamou, formalmente, o resultado, ficando todos de pé. Seguiram-se as congratulações e o tradicional almoço aos examinadores e à orientadora. Um ponto forte a destacar é a trajetória da capoeira. É uma trajetória de resistência como confirma Hélio Campos (2001). Ainda no tempo colonial, no início do século XIX, os capoeiristas eram o inferno dos prepostos policiais. Castigados severamente, quando encontrados vadiando no jogo de capoeira na rua, dessa maneira, praticamente, eram condenados à morte, pois amarrados pelos punhos em cavalos que saiam em disparada. O crime de capoeiragem foi tipificado pelo Código Penal do Império ( Artigos 402 e 404). A capoeira foi perseguida em todo o país. No Rio de Janeiro, então, capital imperial e republicana como também na Bahia. Entretanto, em Salvador era permitida ou suportada. O certo é que na Bahia se desenvolveu e se organizou. Por isso é, muitas vezes, chamada de capoeira baiana. Há evidências da associação da capoeira com o culto religioso dos candomblés, dos orixás, outra contribuição espiritual baiana para a humanidade. Houve sempre certa permissividade que possibilitou o seu crescimento e a sua aceitação popular na cidade do Salvador da Bahia. A permissividade para o que é socialmente proibido é muito próprio do comportamento soteropolitano. Com os mestres fundadores e organizadores da arte da capoeira, Bimba e Pastinha, a atividade começou a atrair jovens estudantes. Primeiramente, mestre Bimba criou, ainda na década de trinta, o Centro de Cultura Física Regional (CCFR). Evitou colocar o vocábulo capoeira na denominação de sua escola. Ele foi um dos expoentes nas lideranças e soube elaborar, como educador popular, um currículo com estratégias de ensino. Bimba soube estabelecer um método de aprendizagem com exame de admissão e, mais ainda, quando formulou a sequência do ensino: batizado, roda, esquenta-banho, formatura, jogo de iúna e toques de berimbau. Mas a ênfase maior estava na ginga. “A ginga é a base do jogo”, sentenciava o mestre Bimba. Por sua vez, mestre Pastinha, na década seguinte, já utilizou a denominação capoeira, titulando a sua academia de Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA). É reconhecidamente o guardião da capoeira Angola (REGO, 1968). Teve dois seguidores principais que se destacaram: mestre João Pequeno, que continuou na Bahia e mestre

João Grande, que levou a capoeira para New York e daí ela se expandiu para outros países. Com essas duas escolas — Academias de Capoeira — começou a formalização do ensino da arte capoeira. Assim, a capoeira se integra na cultura dos jovens da classe média como atividade física, prazerosa, esportiva, ritmada ao som do berimbau, componente obrigatório da capoeira. A capoeira expandiu-se para as corporações militares, clubes e escolas públicas e particulares e chegou à Universidade como disciplina acadêmica. O processo de legitimação foi lento até a capoeira ser considerada desporto nacional. Um outro aspecto a ressaltar é o processo da organização da aprendizagem da capoeira — a sua formalização para o ensino (BOAVENTURA, 1984). A sequência das modalidades é significativa para a formalização da capoeira regional como disciplina acadêmica. A capoeira nasce na informalidade dos grupos de vizinhança, de dança, de recreação e, pouco a pouco, vai se constituindo nas escolas (academias ou grupos de capoeira) como educação não formal, isto é, conforme as programações curriculares destas instituições. Com a evolução, torna-se educação formal, regular ou escolarizada, tanto na escola fundamental e secundária (CAMPOS, 2001), alcançando a superior (CAMPOS, 2001); melhor dito, a Universidade, nos cursos de Educação


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Física, Educação Artística e mais recentemente como componente curricular da História e Estudos Africanos. A formalização da capoeira para o ensino, todavia, não a retirou do ambiente nativo e criativo afrodescendente baiano, na rua ou em determinados espaços, onde é permanentemente exercitada. Dessa maneira, além das duas vertentes clássicas, Regional e Angola, há uma terceira modalidade chamada Capoeira de Rua, com exibição, em certos espaços públicos. Para finalizar, acompanhando a progressão da capoeira na sociedade brasileira e internacional, busca–se considerá-la como bem imaterial do patrimônio cultural. Assim procedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional (IPHAN), organismo do Ministério da Cultura, ao reconhecer a capoeira nas instituições públicas e privadas, em conformidade com a Unesco, como bem imaterial, servindo sobremaneira de estímulo para resgatar os aspectos culturais, indentitários e adicionar conhecimento ao cidadão brasileiro. Por coincidência, no dia da aprovação da tese de Odilon Góes, em Salamanca, em 26 de novembro de 2014, a Unesco declarou a capoeira patrimônio imaterial da humanidade. Como bem cultural do patrimônio cultural, a capoeira se afirma pela herança negra. Contribuindo para a identidade (ou para a diferença), confirma-se mais uma vez que

o Brasil é um país tropical, mestiço, miscigenado. Contudo não somos o paraíso dos afrodescendentes com os nossos problemas de preconceito e de racismo. Desse modo, a capoeira se expressa nos espaços culturais lúdico-esportivos e de lazer. É nessa perspectiva que se deve compreender o Programa Brasileiro Internacional para a Capoeira “Capoeira para a Paz”. A pesquisadora da capoeira, Lúcia Correia Lima (2016), estudando a dimensão internacional da capoeira, prepara trabalho sobre mestre João Grande, que mantém em funcionamento o Capoeira Angola Center, em New York City, EUA. Do ponto de vista de sua expansão no exterior, discute-se a participação da capoeira nos certames internacionais. Por isso, vale a pergunta: não deveria a capoeira entrar para os Jogos Olímpicos e Pan–Americanos e participar das competições esportivas internacionais? Todavia, a situação é polêmica em face da rigidez dos regulamentos desses jogos. Há muitas outras questões relacionadas com a capoeira, principalmente, no que diz respeito à educação. As evidências do surgimento, desenvolvimento e estruturação na Bahia começam a ser estudadas. A hipótese da permissividade há de ser considerada no contexto do comportamento social do soteropolitano. A presença no currículo escolar e universitário como manifestação da nossa cultura afrodescendente e a dimensão internacional ensejam maiores abordagens. Há muito o que se fazer, como trabalhou o professor Odilon Jorge Daltro Góes com sua tese elaborada e defendida na Universidade de Salamanca.

REFERÊNCIAS ÁLVAREZ, Manuel F., SAN PEDRO, Luis E. Rodriguez e VILLAR, Julián A. The University of Salamanca: eight centuries of scholarship. Salamanca: Editiones Universidad de Salamanca, 1992. BOAVENTURA, Edivaldo M. Educação não-formal e preparação para o trabalho. In: SOUSA, Paulo Nathanel P. de, SILVA, Eurides B. Educação: escola e trabalho. São Paulo: Pioneira, 1984. p. 259-274. CAMPOS, Hélio. Capoeira na escola. Salvador: Edufba,2001. ____. Capoeira na universidade: uma trajetória de resistência. Salvador: Edufba, 2001. ____. Capoeira regional: a escola de mestre Bimba. Salvador: Edufba. GÓES, Odilon J. D. A experiência da potencialidade didático– pedagógica da arte capoeira como veículo da educação não formal nos níveis de educação pública e privada nas escolas da cidade de Salvador da Bahia — Brasil. 2014. 484 f. Tese (Faculdad de Educación) —Universid Salamanca, Salamanca, 2014. LIMA, Lúcia Correia. Mandinga em Manhatten. Salvador:

2016 ( no prelo). SAN PEDRO, Luis, E. Rodríguez. Bosquejo histórico de La Universidad de Salamanca. Espanha.

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:D IV U AÇ LG ÃO

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TO FO

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DOCUMENTO E MEMÓRIA


DE REPRESA A SALTO TEXTO Maria Helena Kühner

A

convite da Comissão da Verdade, dei–lhes meu depoimento em 5/5/2014, no Arquivo Nacional do RJ. Ao final de longa entrevista (2 hs. e meia), recebi das entrevistadoras uma sugestão: por que, sendo escritora e tendo, como militante política, participado ativamente dos movimentos surgidos de 1960 em diante, sentido na pele o período da ditadura, vivido exílio e clandestinidade, pensado e escrito sobre as mutações da segunda metade à virada do século, não escrevia uma autobiografia? Pois é necessário fazer ver, sobretudo às novas gerações, como esses fatos retratam o pensar e agir de um tempo de grandes mudanças; fazer sentir o que significaram em termos humanos, que marcas deixaram também no afetivo, no emocional, na psique de cada um que os viveu; dar consciência de que muitos dos atos então praticados representam crimes que desejamos afastar em definitivo da História de todos os tempos e povos. A sugestão ficou instigando minha mente. E, em meio ao silêncio e às indecisas construções de névoa da memória, as lembranças começaram a surgir. Fazendo rever todo um caminho e história, pessoal e coletiva: da casa para a rua, da rua para a praça, da praça estrelando o espaço em direções várias, que iriam gerar o mundo inquieto, mutante, caótico, instável e provocador da virada do século. E apontando encruzilhadas que exigiam escolhas. Uma delas, marco importante: o me ver e me sentir mulher, item 1º da resposta ao quem sou eu? com que me interrogava. A busca de resposta levando a olhar detidamente os ‘modelos’ femininos em torno e os traços com que então se desenhava este ser mulher. E a decidir que “o caminho que é caminho não é o caminho” (Lao–Tse), ou seja, que não via o ser esposa e mãe como destino único e ‘natural’ da mulher. E também não queria o rosto fragmentado vindo da mitologia grega — ou Atenas / Minerva, sábia e guerreira, ou Afrodite/Venus, sensual e amorosa, ou Hera/Juno, esposa e mãe — desafiando a mulher que quisesse ser inteira a desenvolver todas as suas possibilidades. Ocorreu–me, então, recorrer à experiência de outras mulheres, ao ex–per–ire que diria o que extraíram dos caminhos percorridos, seus acertos, desvios, perdas, ou possíveis pontos cardiais de novos rumos por traçar. Mas, onde ver essas experiências, como foi sonhado, vivido, sentido, pensado, sofrido, buscado, realizado, comemorado esse percurso? Onde ver os passos de um passado que tivesse deixado marcas ou pegadas, de um caminhar em direção ao horizonte aberto dos possíveis, em busca de... quê? No princípio era o verbo. As palavras. Encantam. Convidam. Evocam. Provocam. Pressionam. Denunciam. Gritam dentro da mente. As palavras. Registrando, revendo, trocando idéias, vivências, impressões,

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sentimentos. Com–movendo. Demovendo. Promovendo. Compartilhando com outros. Os outros, presenças onipresentes. Mesmo se anônimos e invisíveis, presentes. As palavras. Que permitem ir além das aparências, mergulhar no interior, próprio e de outros, repetir, reviver, como tantos, a eterna inquietação humana de saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Instigando a buscar, desvelar e revelar o próprio sentido da vida. E escrever. A palavra escrita. Registrar. Reler, desfrutar, pensar, repensar o visto, o dito. Tentando ir às raízes de comportamentos e atitudes, com o encanto e espanto diante de sua diversidade e multiplicidade imprevista e imprevisível nos seres humanos. Escrever. Transmitir. Comunicar. Comunicar: vital. A escrita trabalhando, oficineira teimosa, essa matéria impalpável e única — a palavra — apelo e desafio, sedução e entrave, elo que liga, desliga, religa. Escrever.

Seria resposta a fala de Hécuba às Troianas, ao dar–lhes a imagem–modelo da mulher: “Uma boca silenciosa, um rosto sempre sereno, eis o que eu oferecia a meu esposo”? Teria sido assim a vida das mulheres, ao longo de gerações? Penélopes silenciosas, tecendo os minutos de uma espera sem fim, sem aceno de esperança ou mostra de um possível desespero, suas agulhas, ponteiros de um tempo circular, em perpétuo e vazio retorno, um tempo sempre igual, sem mudanças, sem contornos novos na linha de um horizonte imóvel? Vida feita de ausências, da necessidade ou da falta de um Ulisses, onipresente ausência. Ainda não visto, ou, se nunca vindo, marcando nessa ausência uma inelutável e definitiva derrota em seu destino de mulher? As explicações convergentes das ciências humanas iriam aprofundar tais questões. Mostrariam, no século

Re–ligar. Busca e captura da energia amorosa da união pelo verbo. Mas onde a palavra, a fala, a escrita feminina expressando o que foi vivido, a pressão que lançou ao ex–terior tudo que as palavras são capazes de dizer, projetando e desenhando no espaço as ondas que agitavam o mar de sua vida embaixo? Silêncio. Ausência de respostas. Virada para os anos 60, Faculdade, curso de Letras, onde supunha poder ter respostas. E encontrando o quem sou eu? dos movimentos sociais que então surgiam (de estudantes, de operários, de mulheres, de comunidades, de gays), buscando re–conhecer, definir e expressar a própria identidade. Personalizando, em vez de abstrair e generalizar, Sabendo, ou intuindo, que o que digo quando falo EU, minha história própria e particular é minha forma de chegar ao mais geral, que só o EU diz, e que o diá–logo já será a fala outra, diferente e semelhante. E pluralizando as perguntas, indo à trajetória daquele silêncio: onde o equivalente feminino ao quem sou eu com que Édipo já se interrogava?

XV, Maquiavel aconselhando a seu príncipe “Divide para dominar” e no século XIX, a constatação de Freud, de que “a sociedade se organizou repressoramente”, com sua ordem social alicerçada no domínio e controle. Descreveriam essa sociedade patriarcal, regida pela Lei do Pai, na qual a mulher seria apenas um “segundo sexo’ (Simone de Beauvoir). O que todos os idiomas comprovariam ao personificar os seres humanos, a espécie humana, toda a humanidade, dizendo o homem (“a luta do homem com a Natureza”, as realizações do homem moderno, etc) seja com a palavra que designa o gênero masculino. O que até a linguagem coloquial espelharia ao falar da mulher como costela de Adão, braço direito do homem, ou do homem como a cabeça do casal — sem atentar sequer para a monstruosa figura de dois seres humanos com uma só e única cabeça. Exibiriam, na literatura, personagens femininas, da desafiante Antígona à doce Julieta ou à histórica Joana d’Arc criadas e expressas com desenho, visão e voz de autores masculinos. “Mme. Bovary c’est moi”, lembra Flaubert... Comprovariam, assim,


que o que era dito de mulheres, sobre mulheres, ou mesmo para mulheres, era sempre de mulheres “faladas por”, mas permanecendo silenciada a voz própria, o EU que diz. Daí a conclusão de que “a história da cultura universal é um fenômeno avassaladoramente (o termo é do autor, o grifo nosso) masculino... e a tradição intelectual do Ocidente produzida e canonizada inteiramente por homens, e constituída sob pontos de vista masculinos”. (R. Tarnas). Como fala este silêncio! Este silêncio fala, ou responde, ou até grita quando em voz única ou solitária, como a de uma Herrade de Landsberg, que no século XII seria autora de uma enciclopédia, que só surge em seu nome por ser Abadessa de um convento em um tempo em que a Igreja tinha grande poder. Ou faz pensar no que este silêncio diz quando lembramos que Heidegger distingue e define o ser humano como “o ser da linguagem”.

seu fundo, ora abrindo suas comportas para lançar–se em salto ou cachoeira que, liberando a energia de suas águas, poderia vir a gerar luz e calor novos para todos. Mas saber não é viver. Mesmo aqui no Brasil vemos que algumas respeitáveis Autoras, embora tendo já expressiva e válida produção nas letras, só viriam a ter maior, ou pleno reconhecimento, após aquelas décadas. Exemplo emblemático, o de Cora Coralina, nascida em 1889 e que só teria seu primeiro livro publicado em 1965, aos 76 anos. Razão por que coordenamos com alegria o Concurso de Dramaturgia Feminina do Projeto La Scrittura della Differenza, que hoje se desenvolve em 8 países, 3 da Europa e 5 da América Latina, visando a valorizar e a difundir a fala e a escrita femininas. O Concurso aqui registrou o expressivo número de 104 mulheres, de 14 estados, buscando vez e voz, fazer–se ouvir, registrar suas falas, expor seus temas.

O que permite entender porque nós, mulheres que vivemos a ruptura de princípios, valores, comportamentos e atitudes que marcam as décadas de 60 e 70 em diante, afirmamos ter sido um imenso salto qualitativo dar fala à mulher, quebrando 2.500 anos de silêncio. Reivindicando seu direito à fala e sublinhando nessa reivindicação o direito à diferença, não mais como sinônimo de subtração ou diminuição que o termo matemático designava, mas como afirmação de um rosto e voz próprios. Sabíamos que a imagem–modelo posta por Eurípedes em boca de Hécuba, em coerência com os tempos, era uma imagem de submissão, de repressão, de passividade e dependência. Que queríamos mudar, dando à Mulher não só voz e fala próprias, estímulo a fazer–se ouvir e ser presença, como substituindo a submissão pelo companheirismo, a repressão pela manifestação e ação, a dependência pela liberdade de decisão e escolhas de vida. Um salto: a silenciosa e aparente placidez de uma imensa represa de águas contidas dentro de altos muros, bloqueando seu livre curso e ocultando as correntes que se agitavam em

Temas que, significativamente, têm por foco a consciência de si, em rever–se e interrogar–se sob as mais diferentes formas. Ou buscar distinguir–se das outras consciências e do mundo, lugar de encontro com outras consciências. Retratando as complexas relações humanas de um mundo em que a quebra de limites e barreiras se tornou paradigma. Questionando e debatendo atitudes, princípios, valores. Instigando à reflexão, à ação, à transformação, capazes de renovar e inovar. Ou seja, já conscientes do valor de sua fala, do valor da palavra, e da importância e validade do escrever. Conscientes de que assim contribuímos para chegar a uma sociedade não mais autoritária e vertical, de dominantes e dominados, e sim a uma sociedade mais aberta e livre, que seja realmente lugar de convivência e de união de socii, i.e, de aliados, diferentes e iguais, em busca de um viver em comum. Utopia? Se utopia é o sem lugar (ainda, diríamos) pode ser também um sonho, ou possível esboço de um pro–jeto capaz de nos lançar adiante.

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DOCUMENTO E MEMÓRIA

CLÁUDIO DE SOUZA, UM HOMEM DE TEATRO TEXTO Sergio Fonta

DRAMATURGO CLÁUDIO DE SOUZA LEMBRADO NO PEN CLUBE DO BRASIL

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

No dia 3 de dezembro de 2014, o PEN Clube realizou evento para lembrar os “60 Anos de Morte do Acadêmico Cláudio de Souza”, ocorrida a 28 de junho de 1954. A homenagem constou das seguintes palestras: “A vilegiatura petropolitana de Cláudio de Souza”, proferida por Maurício Vicente Ferreira Júnior, Diretor do Museu Imperial, de Petrópolis e “Cláudio de Souza, um homem de teatro”, por Sergio Fonta. Ocorreram, ainda, a exibição do vídeo: “Cláudio de Souza que eu conheci”, produzido pela Casa de Cláudio de Souza e a exposição de fotografias sobre o homenageado. Agora, em 2016, por ocasião da passagem dos 140 anos do nascimento do autor de Flores de sombra, a revista Convivência, a seguir, publica o texto da palestra proferida por Sergio Fonta.

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Casa de Cláudio de Souza -Fachada principal. (Foto: Museu Imperial Ibram Minc).


Dramaturgo Cláudio de Souza com fardão da ABL. Posse em 1924. (Foto: Acervo PEN Clube).

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ão existe nada mais fugaz do que uma peça de teatro. Um livro permanece na memória, repousa pleno em uma estante ao alcance da mão, por mais que despenquem e–books do teto ou da mídia; um filme permanece em nossas retinas pelos cinemas e dvds, um disco permanece, não importa que formato tenha: CD, vinil, ou mesmo acetato, para fazermos uma viagem no tempo; uma tela permanece nos museus, nas paredes das casas, nas galerias de arte, em nossos olhos por Matisses, Picassos, Portinaris e todos mais. Uma peça de teatro, não. Dura uma, duas, talvez três horas, envolve e revolve nossa emoção a partir da entonação de um artista, guarda–se um movimento de olhar ou de andar dentro de um palco, ou um grito, num riso, um abraço comovente entre dois personagens que se amam, uma luz. Ela dura apenas um período, esta luz. É rápido. Quando acaba uma sessão, só existe a palavra Fim em nosso pensamento. E quando

acaba uma temporada existe aquela precisão: definitivamente Fim. Uma peça de teatro é uma história que passa, uma fagulha de memória, nada mais. Se uma peça de teatro não dura nada, quanto durará um homem de teatro? Ah, este pode durar mais, dependendo de suas ideias, de suas atitudes, de sua obra, de seu legado. Aí, sim, então, o teatro fica mais forte, mais duradouro. Aí, sim, nós encontramos, por exemplo, o dono desta Casa, o verdadeiro dono desta Casa em que estamos agora: linda, humana, refinada e... permanente, o PEN Clube do Brasil, legado de Cláudio de Sousa à cultura nacional, que aqui morou com sua esposa, D. Luiza, durante muitos anos até seus últimos dias. Deu grandes festas, reuniu os mais expressivos intelectuais do país e mesmo do mundo, algumas vezes, iluminou mentes, promoveu encontros, discussões. Fez a sua história ajudando a construir a história de muitos. Foi um grande médico e um dramaturgo de enorme projeção em sua época. Escreveu dezenas de peças e uma delas, Flores de sombra, da qual falaremos um pouco mais adiante, foi o seu maior sucesso. Mas antes, falemos do homem, do paulista Cláudio de Souza. Ele nasce em São Roque, a 20 de outubro de 1876, e morre no Rio de Janeiro, a 28 de junho de 1954, portanto, há 60 anos, efeméride que hoje, nesta tarde, o PEN Clube relembra e rende as merecidas homenagens. Cláudio forma–se em Medicina e inicia carreira em São Paulo, chegando a dar aulas de terapêutica, mas abandona a profissão em 1913 e entra de vez para as letras, quando cria romances, contos, ensaios, artigos e textos teatrais, além de volumes ligados à área médica. Sua vocação para o exercício da palavra, no entanto, vinha de longe, pois, já aos 16 anos, enviava colaborações para jornais cariocas, sendo redator do Correio da Tarde aos 17 e, em seguida, do jornal Cidade do Rio. Escreve nada menos que 31 peças e 29 livros, muitos desses trabalhos com edições ou encenações na França, Espanha e Itália. Entre seus livros estão As mulheres fatais, de 1928, com 15 edições no Brasil, As conquistas amorosas de Casanova (1931), O humorismo de Machado de Assis (1939), O teatro luso–brasileiro do século XVI ao XIX (1941), Os últimos dias de Stefan Zweig (1942) e Pirandello e seu teatro, em 1946. No teatro sua obra é vasta, porém, pouco conhecida, embora tenha sido ele o autor de Flores de sombra, um dos maiores sucessos do ator Leopoldo Fróes. Ainda com

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Público na estreia de As Mãos de Euridice no PEN (Foto: Acervo PEN Clube).

Elenco de Flores de Sombra dirigido porFroes. (Foto: Acervo PEN Clube).

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Sergio Fonta (esq.) e Mauricio Vicente Ferreira Jr (dir.) falam na Homenagem a Cláudio de Souza (Foto Acervo PEN).

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Cena de Flores de Sombra (Foto: Acervo PEN Clube).

18 anos escreve a comédia Mata–a ou ela te matará, montada Clube do Brasil, fundado pela Cia. Ismênia Santos. Depois vêm Eu arranjo tudo, em por ele em dois de abril 1915, O assustado das pedrosas, Um homem que dá azar, O de 1936, primeiro aqui turbilhão, A sensitiva, Os bonecos articulados, O galho seco, na Praia do Flamengo, uma por ano até 1922. Logo após, escreve A matilha, A arte terreno de sua antiga de seduzir, A renúncia, Os arranha–céus, O grande cirurgião casa, demolida para e, por fim, Fascinação, em 1936, entre muitas outras. Junto a que se construísse este Fróes tenta organizar em Paris a Cia. Franco–Brasileira de prédio, que funcionou Comédia, que representaria em francês apenas textos brasicomo sua residência leiros e correria o mundo, mas o projeto não vai adiante. nos três últimos andares, Membro da Academia de Ciências de Lisboa e da mas também como uma Academia Brasileira de Letras, eleito em 1924 e seu presiespécie de casa interdente em 1938. Na ABL ocupou a cadeira nº 29 — cujo Estreia de As Mãos de Euridice nacional do escritor até no PEN — Ator Rodolfo Mayer em patrono é Martins Pena e o fundador, Artur Azevedo — cena. (Foto:Acervo PEN Clube). ele reformar um imóvel nada pouco, não é mesmo? — tendo sucedido a Vicente de que possuía no centro da Carvalho. Seu sucessor na ABL foi o escritor Josué Montello. cidade, na Av. Nilo Peçanha, nº 26, onde, a partir de 1945, Em seguida, vêm José Mindlin e, desde 2009, o embaixador passa a existir a sede social do PEN Clube e a fazer história. e escritor Geraldo Holanda Cavalcanti, aqui presente e que Ali Cláudio de Sousa construiu um pequeno teatro de mais foi, inclusive, presidente do PEN Clube no triênio 2004– de 200 lugares, onde célebres nomes do teatro brasileiro 2007 e atual presidente da ABL. fizeram leituras de peças, e também artistas que iniciavam Mas a menina–dos–olhos, entre tantas que teve, como suas carreiras frequentando as atividades culturais do PEN, sua casa em Petrópolis, hoje transformada em um centro como o diretor e professor Luiz Osvaldo Cunha, que está cultural cuidado com tanto carinho por Maurício Vicente aqui presente e que assistiu a muitas apresentações no Ferreira Júnior, aqui ao nosso lado nesta mesa, foi o PEN teatrinho da Nilo Peçanha. Uma, no entanto, entra para os


anais da memória teatral nacional: As especial, pela trajetória do brilhante mãos de Eurídice, de Pedro Bloch. Foi intelectual que foi. ali que houve a primeira apresentação A ação de Flores de sombra da obra mais famosa de Bloch com se passa no interior de São Paulo, o igualmente famoso ator Rodolfo em uma fazenda, na época atual, Mayer. Ocorre que, além das leituras, sabendo–se que a peça foi escrita em autores testavam, no teatro do PEN, 1916. A matriarca da família, Dona algumas de suas peças ainda inéditas Cristina, aguarda a chegada do filho antes que elas fossem para o palco Henrique, após longa ausência. Ao das salas da Praça Tiradentes e da contrário do pai, fazendeiro, ele optou Cinelândia. O monólogo, pela voz e pela carreira militar e é hoje tenente pelo carisma de Mayer, foi apresenda Marinha. Para apreensão de Dona tado pela primeira vez em 1950 e a Cristina, o filho trará visitas: Cecília, Capa Flores de Sombra ideia era que fosse levada em apenas por quem nutre uma paixão secreta, e uma récita. Mas o êxito da peça foi tão surpreendente que sua mãe, Madame Cardoso, esposa de um ministro, ao lado as apresentações se sucederam no PEN Clube, uma após de Oswaldo, seu amigo de infância e cidadão do mundo. outra, sempre lotadas, e ela acaba sendo transferida para Tudo temperado com outro amor secreto, o de Rosinha, um dos teatros da cidade e entra em temporada normal, que gosta de Henrique desde criança. O texto, na verdade, com um sucesso cada vez mais avassalador. Rodolfo Mayer entrelaça amores ingênuos numa teia de comédia sentitorna–se um ídolo e Pedro Bloch vê As mãos de Eurídice mental. A interiorana Rosinha ama secretamente Henrique, singrar o mundo, interpretada pelos maiores atores de cada que ama secretamente a urbana Cecília, a qual se apaixona país onde foi encenada, atingindo, até hoje, mais de 60 mil pelo anárquico Oswaldo que, por sua vez, será o responrepresentações. Mas a primeira foi no PEN Clube do Brasil... sável pelo inesperado desfecho da peça. É o que se poderia Cláudio de Sousa deve ter ficado muito feliz com esta chamar hoje de um dramalhão bem sucedido e bem escrito oportunidade. Tão feliz como ficou com o estrondoso êxito que, de quando em quando, torna–se uma comédia leve e que sua peça Flores de sombra obteve em sua estreia no inteligente. O autor faz severas críticas ao francesismo da Teatro Boa Vista, em São Paulo, a 22 de dezembro de 1916, época e curiosas referências ao século XX, que então surgia. neste mês de dezembro em que estamos, há 98 anos... Flores de sombra transforma–se no carro–chefe de Leopoldo Como nos contam Sábato Magaldi e Maria Thereza Fróes, um ícone da ribalta daquele tempo e, encenada no Vargas em seu livro Cem anos de teatro em São Paulo, a Rio de Janeiro em 1917, no Teatro Trianon, atinge perto de imprensa vibra com Flores de sombra. O crítico do Diário trezentas representações. Popular apregoa: “Esta comédia, eu creio, é a obra prima do Aqui, nesta sala, na sede brasileira do PEN Clube que, teatro brasileiro”. O Correio Paulistano: “Assistir à represen- como já dissemos, foi a última residência do escritor, deixada tação de Flores de Sombra é deleitar–se com tudo quanto como herança, encontra–se este belo vitral, aqui atrás desta existe de suave lirismo, de dolente evocação e aromal poesia mesa, representando uma cena justamente de Flores de na alma dos nossos provincianos. (...) No conjunto é talvez Sombra. Quis o dramaturgo que ela se perpetuasse como a melhor comédia das que se escreveram no gênero”. E no sua marca mais legítima. Foi a maneira que Cláudio de Sousa jornal O Estado de São Paulo: “A literatura teatral paulista escolheu para ficar para sempre em sua casa, em seu palco, conta desde ontem com mais um trabalho consagrado: a em sua vida, em nossa memória. Um vitral não é fugaz. Ele comédia do dr. Cláudio de Souza, Flores de Sombra. (...) está aqui na frente de todos guardando para sempre e de A atriz Apolônia Pinto merece bem a primazia de nossos modo extremamente original a cena de uma de suas peças, aplausos. O autor não poderia encontrar quem melhor se talvez a mais querida por ele. Não podemos voltar no tempo, escondesse na velha fazendeira paulista”. ao Teatro Boa Vista, em São Paulo, em 1916, nem ao Trianon, Quando organizei o livro O esplendor da comédia e o no Rio de Janeiro, em 1917. Mas podemos ver uma de suas esboço das ideias: dramaturgia brasileira dos anos 1910 a 1930, cenas em pleno 2014, com o milagre da permanência e lançado pela Funarte há dois anos, fiz questão de incluir no da perenidade. O teatro de Cláudio de Sousa está vivo e volume esta obra de Cláudio de Sousa, para que o fundador aqui entre nós. do PEN Clube ocupasse o lugar que lhe era devido em nossa memória dramatúrgica, embora ele tenha se destacado, em Sergio Fonta, PEN Clube do Brasil, 3 de dezembro de 2014.

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POESIA


Três Poemas de Carmen Moreno

HERANÇA Carmen Moreno

Existem os asilos e o exílio do velho, hóspede dos herdeiros. Prostrado na poltrona, macula a estética da sala: fraldas por trocar, manias e silêncio. O velho e seu alto custo — barganhado, sua língua trôpega, sua dentadura afogada no copo. Para que serve o velho e seus passos débeis, sua fala fraturada, seus dias sem amanhã? Para que serve o velho e sua história esmaecida, ante os dias férteis dos entes que amou? O velho e a surdez da casa (a eutanásia homeopática da parentalha). Para que servem os filhos do velho?

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INDAGAÇÕES SOBRE O COMEÇO DO FIM

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De que recanto do amor o pássaro da morte levou no bico o teu beijo? De que célula adoecida alastrou–se, sorrateiro, o desencanto — o cancro? Quando teu olhar nublou os raios que acendiam nosso quarto e a ascensão do fogo rendeu–se à gravidade qual balão apagado em queda lenta? Em que subterrâneos do fim o cinismo tecia seu golpe absoluto? Que atávicos ruídos neguei ouvir, curvando–me à cegueira? Em que átimo de tempo o rumor do silêncio apartou nossos corpos? Quando o chicote da língua roubou das palavras o afago? Em que instante invisível a semente apodrecida alojou–se sob os tacos da casa, rompendo a liga dos tijolos, a proteção das telhas, o ânimo dos abraços? Quando, em tuas veias, o gotejar do tédio virou sangramento interno e a verdade internou–se na ala dos doentes terminais? Quando a mentira, adornada de afeto, deformou o primeiro traço do teu rosto? Com que barro o artista barroco erigiu, na praça do meu peito, tua máscara verossímil (tão bem talhada) tombada, de súbito, no chão do deserto? Quando (analfabeto de mim) não pude ler nos teus gestos a sílaba traiçoeira? Quando o bafo do abandono mudou o hálito das bocas e a mudez (ora implacável) lançou nas salivas o gérmen do último verbo?


FOTO: SHININMYSTICICE


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DESTINO Para Ivan Junqueira

O morto não mora onde o corpo se expõe no último traje. Não cessa ali — sob o assédio dos olhos na caixa fria. Jaz, na derradeira vitrine do rito, apenas a casca oca (que seus sonhos e medos já não guarda). Inútil pranteá–lo em flores e confissões na masmorra de mármore. Sob a lápide, apenas pele e destroços. Sua dor volátil migrou para o invisível, rumo ao sol. O morto não mora no ossário, na urna de cinzas prometida ao mar, nos tesouros que guardava, no quarto que o aguardava. Não cessa no tiro, no corte, ou quando, amorosa, a morte o elege no sossego da noite. O morto não morre.

Poemas inseridos no livro PARA FABRICAR ASAS (Ibis Libris), de Carmen Moreno.

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Três Poemas de Ana Luiza Almeida Ferro

O NÁUFRAGO Ana Luiza Almeida Ferro

À espera do chamado, encharco o meu pensamento do que emerge de dentro, do que submerge de fora dos ventos que colho, das entranhas que alimento borbulham ideias no caos oceano do eu em mora. Qual náufrago agarrado à tábua, órfão de seu barco contemplo as nuvens, que me ignoram e passam afundo sob os pedregulhos com que atiro e arco torno à superfície das águas que sitiam e enlaçam. Ah, quisera eu ser levada por ondas encrespadas à ilha de Morus, do nunca e de depois-de-amanhã aonde assomam sereias que não querem ser fadas. Mas a chuva cai e os sonhos enrijecem no sangue a carruagem de Apolo procura os domínios de Pã e eu me debato embalde, e mergulho no mangue.

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O NĂ UFRAGO II

Do f o r t e da ilha vislumbro os meus sonhos delirantes a bordo de um barquinho que se esvaece p o u c o

a

d e v a g a r na extrema linha

revista CONVIVĂŠNCIA

do horizonte.

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p o u c o


FOTOS: BEAU FINLEY


FOTOS: DIVULGAÇÃO


O NÁUFRAGO III

O náufrago é o eu cercado os lados

de outrem

por todos.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO


Claire Leron

POR QUEM OS SINOS DOBRAM? Claire Leron

Por quem os Sinos dobram? Sempre me perguntei mas sem dar uma real importância. Porém, agora, o badalar dos sinos trazem a minh'alma um eco vazio, vazio e sem fim... Como se passasse por mim, através de mim, indo buscar no infinito um lugar para parar. Um porto seguro onde pudesse de alguma insana maneira, trazer alguém de volta. E de um jeito pleno, preencher este enorme vazio, sem, obviamente, conseguir. Continuo ouvindo o seu badalar eterno, até vejo-os dando voltas em torno das cordas que os prendem tentando em vão prosseguir... Mas, meus pobres Sinos, não se esforcem, não tentem mais, é impossível atingir o seu intento, nunca, mesmo com o som forte, poderão alcançá–los. E, hoje, tristemente, eu entendo, tenho a certeza que jamais gostaria. Já compreendi por quem os sinos dobram... ... por mim. Por mim, que fiquei completamente só nestes picos altos e sombrios, esperando, esperando, por todos que não voltarão... Os sinos dobram, não por eles, mas, certamente, dobram por mim! 65


FOTOS: WILLAS


Raquel Naveira

RICARDO REIS NO RIO DE JANEIRO Raquel Naveira

Encontrei Ricardo Reis Certa vez Na esquina do Flamengo, Estava magro, Caminhava trôpego, Os olhos fitos na baía de Guanabara, Andamos entre palmeiras, Ele me falou da infância, Do colégio jesuíta, Das lições helenistas E, saudoso monarquista, Lembrou das caravelas Que chegaram ao Brasil Exatamente Naquela paisagem bonita. Senti–me com Lídia Quando ele disse que minha testa branca Ficaria bem coroada de rosas (Rosas que se apagam tão cedo), Abelhas voavam ao nosso redor E as folhas estalavam aos nossos pés. Netuno está quieto Sob as águas tranquilas, Ninfas passeiam Com asas de libélulas Enquanto as Parcas Tecem os fios de nossas vidas; Logo será noite, Após o ouro de Apolo Segue–se a prata de Diana E a chama estremece. Por algum tempo Ficamos mudos, Inscritos na consciência dos deuses, Depois seguimos rumo à igreja da Glória, Ele contou que não temia a morte, Que fugia da dor E lutava contra a timidez.

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Audit贸rio da Sede Social do PEN Clube do Brasil

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