Ano VII | Número 7 | Rio de Janeiro 2017 | Brasil (Segunda Fase)
NOS PASSOS DO PASSEADOR:
O RIO DE LIMA BARRETO ENTRE MISÉRIA E GRANDEZA,
O DIÁRIO DE DRUMMOND OS AMORES NA VIDA E NA OBRA DE
CAMÕES Opinião / Crônicas / Poesia Conto / Ensaio / Artigos
PEN CLUBE DO BRASIL Fundado a 2 de abril de 1936 e filiado ao PEN Internacional de Londres DIRETORIA (2016/2019) Presidente: Cláudio Aguiar Vice-Presidentes: Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado e Ricardo Cravo Albin Secretário Executivo: Edir Meirelles Conselho de Curadores: Bernardo Cabral, Domício Proença Filho, Godofredo de Oliveira Neto, Luiza Lobo, Nelson Melo e Souza, Reynaldo Valinho Alvares e Victorino Chermont de Miranda Conselho Fiscal: Francisco de Paula Souza Brasil, Helena Ferreira e Marcia Uebe 3
Expediente REVISTA CONVIVÊNCIA © PEN CLUBE DO BRASIL Praia do Flamengo, 172 / 11º. Andar – Flamengo - Rio de Janeiro / RJ CEP 22210-030 – Brasil - Tel. 21-2556-0461 pen@pencliubedobrasil.org.br - www.penclubedobrasil.org.br EDITORA-RESPONSÁVEL: Marcia Barroca CONSELHO EDITORIAL Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado, Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar, Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira e Ivan Junqueira (in memoriam), Mary del Priore, Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão (in memoriam) e Tânia Zagury PROJETO GRÁFICO: Equipe PEN Clube CORRESPONDENTES Ceará: Roberto Pontes; Paraíba: Elizabeth Marinheiro Pernambuco: Lucila Nogueira; Bahia: Aleilton Fonseca; Minas Gerais: Ronaldo Werneck Brasília: Fabio de Souza Coutinho; São Paulo: Raquel Naveira. Santa Catarina: Péricles Prades; Paraná: Miguel Sánchez Neto Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide–se canje. On demande l´échange. Man bittet um Austausch. Chiesto di scambio. Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Ano VII | Número 7 | Rio de Janeiro | 2017 | Brasil (Segunda Fase) ISSN 1518-9996
SUMÁRIO
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Editorial - CAMINHAR É PRECISO,
Opinião - VEDAÇÃO MACULADA, Ives Gandra, Crônicas - A TRISTE CRÔNICA DE NELLY NOVAES COELHO, Cyro de Mattos, ÓCULOS, Raquel Naveira,
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Poesias - DESPERDÍCIO, Ana Luiza Almeida Ferro, SOLIDÃO, Eliana Calixto,
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À SOMBRA DO BAOBÁ, Marcia Agrau,
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Ensaio - OS AMORES NA VIDA E NA OBRA DE CAMÕES, Cláudio Aguiar,
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ENTRE MISÉRIA E GRANDFEZA, O DIÁRIO DE DRUMMOND, Edmilson Caminha,
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Artigos - UMA LEITURA DE MITO E SAGRADO NOS RASTROS DA DESSACRALIZAÇÃO, Delia Cambeiro,
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NOS PASSOS DO PASSEADOR: O RIO DE LIMA BARRETO, Pedro Karp Vasquez, PROFESSOR É QUEM ENSINA, Tania Zagury, Conto - SUSPEITA, Jorge Sá Earp,
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Registro - PEN CLUBE COMEMORA 82 ANOS DE FUNDAÇÃO COM ENTREGA DE PRÊMIO LITERÁRIO,
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85 COLABORADORES DESTE NÚMERO, 88
Obituário - PEDRO LYRA (1945-2017),
Souvenir do XXXI Congresso Internacional do PEN Clube do Brasil realizado no Rio de Janeiro nos dias 24 a 31 de julho de 1960. (Pires em porcelana 12 x 12 cm)
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Editorial
Caminhar é preciso A Diretoria do PEN Clube do Brasil vem publicando, regularmente, desde 2011, com a periodicidade anual, a revista Convivência, órgão oficial do Clube com a finalidade de divulger estudos e pesquisas culturais e literárias. A linha editorial procura privilegiar, em primeiro lugar, a colaboração espontânea de
associados, aberta a todos os gêneros literários e demais temas
culturais correlatos e também de outros colaboradores interessados nos mesmos temas. A praticidade da publicação digital nos últimos anos tem permitido a sobrevivência desta revista, a imediato leitura e ainda o compartilhamento com nossos associados e o público em geral. Ao mesmo tempo, facilitará a edição física deste veículo informativo, quando permitirem as condições materiais e financeiras da entidade. Neste número colaboram os associados Ana Luiza Almeida Ferro, Cláudio Aguiar, Cyro de Mattos, Delia Cambeiro, Eliana Calixto, Edimilson Caminha, Ives Gandra, Jorge Sá Earp, Marcia Agrau, Pedro Karp Vasquez, Raquel Naveira e Tania Zagury. As colaborações referem-se aos seguinres gêneros: crônica, poesia, ensaio, artigo e conto, além de registros de atividades significativas. CLÁUDIO AGUIAR Presidente do PEN Clube do Brasil
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deral (STF), na abertura – a saber: o deputado Ulisses Guimarães e o senador Bernardo Cabral.
Opinião IVES GANDRA
Saíra o País de um regime de exceção e a EC 26/86, proposta pelo presidente Sarney, objetiva a permitir que a Nação voltasse a viver a plena democracia, com harmonia e independência de Poderes, enunciadas no artigo 2º do texto resultante de quase dois anos de amplo debate entre os representantes do povo e a sociedade. Tão relevante se tornou a temática democrática que decidiram os constituintes ofertar
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Vedação mutilada
a cada Poder ampla autonomia, sem direito à invasão de competências, e atribuindo às Forças Armadas o dever de repor a lei e a ordem – jamais rompê-la – se os Poderes em conflito solicitassem sua ação.
“E, o que é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.”
Pelo artigo 103, § 2º, o Supremo Tribunal nem mesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão do Congresso pode legislar. Pelo artigo 49, inciso XI, o Congresso Nacional tem a obrigação de zelar por sua competência normativa se outro Poder a invadir, e a advocacia e o Ministério Público são funções essenciais à administração da justiça, mas não são Poderes. Por outro lado, a representação popular não existe no Poder técnico, que é o Judiciário – os ministros do STF são escolhidos por um homem só -, mas sim nos Poderes Executivo e Legislativo. Por isso os constituintes conformaram o direito da sociedade de
Durante os trabalhos para a elaboração da Constituição de 1988, participei de audiências públicas e fui consultado, repetidas vezes, por constituintes, pelo presidente e pelo relator daquela assembleia – presidida pelo ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Fe7
eleger os seus membros, que são os seus verdadeiros mandatários.
atos anteriores deveriam ter sido examinados previamente à eleição ou ser examinados após o fim do mandato.
Apesar de ser parlamentarista desde os bancos acadêmicos, isto é, desde a distante década de 1950, e apesar de a Constituinte ter procurado adotar tal sistema, alterado na undécima hora para o presidencial de governo, o certo é que o regime plasmado na Lei Suprema foi o de dar ao presidente da República a função maior, o topo da pirâmide governamental, com preservação de responsabilidade funcional durante o período para o qual foi conduzido. Essa é a razão pela qual o afastamento de um presidente (artigos 85 e 86 da Carta Magna) se reveste de todo um rito composto de freios e contrafreios e de garantia de defesa não extensível a todos os outros cargos da administração federal.
A não responsabilização do presidente transcende a figura do próprio presidente, pois objetiva não permitir que a condução do governo – sempre presumivelmente a favor da sociedade – seja prejudicada por atos isolados, mesmo que graves, que pudessem vir a ser, pelos reflexos na cidadania, prejudiciais à própria cidadania. Assim é que exatamente no artigo mais grave, que diz respeito ao afastamento do presidente da República, houve por bem o constituinte afastar a hipótese de atos fora do exercício do mandato como tema de responsabilização. Nesse particular, bem agiu o exprocurador-geral Rodrigo Janot ao não permitir que houvesse investigação do presidente no concernente à contribuição da Odebrecht a campanha eleitoral do presidente da Fiesp em São Paulo.
É que, devendo a vontade popular ser respeitada, só como exceção das exceções pode ser o presidente responsabilizado e afastado. Foi essa a origem do § 4º do artigo 86 da Constituição federal, cuja dicção é a seguinte: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”.
A reabertura, pela atual procuradora-geral da República, de tal investigação, sob a justificativa de que “investigar” não é “responsabilizar”, com aval de eminente ministro da Suprema Corte, a meu ver, representa nítida violação do Texto Supremo. Uma investigação com claro intuito de responsabilização já macula a vedação constitucional.
Por nenhum ato anterior ao seu mandato um presidente da República que chegar ao cargo pelos meios permitidos pela Constituição pode ser responsabilizado, visto que o que pretendeu o constituinte preservar foi a vontade popular, pressupondo que
Embora não tenha visto fato delituoso no episódio de contribuição à mencionada campanha – na época não 8
era proibida a contribuição de empresas –, não entro no mérito de se ela corresponderia ou não a qualquer espécie de contrapartida (o atual presidente à época não comandava o País), visto que a questão é apenas jurídica e constitucional. Quem investiga quer responsabilizar e a responsabilização é vedada pela Lei Suprema, no § 4º do artigo 86 da Constituição Federal. A Carta Magna não fala em ser denunciado, mas em ser responsabilizado, razão pela qual o preclaro ministro Edson Fachin não deveria ter aceitado o pedido da chefe do “parquet”.
(a da Previdência e a tributária), pois ficou parado durante todo aquele período na expectativa da atuação congressual. Com todo o respeito que sempre tenho pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, tenho a impressão de que o combate à corrupção – que apoio, naturalmente – não pode sobrepor-se aos textos da Lei Suprema. O excessivo protagonismo de algumas autoridades, que ultrapassam os limites permitidos pela Carta da República, estão se constituindo no grande obstáculo ao desenvolvimento do Brasil, apesar de algumas sinalizações de melhoria. E, o que é pior, causando profunda insegurança jurídica, visto que de há muito os três Poderes deixaram de ser harmônicos e independentes, desde que um Poder técnico assumiu funções políticas, que a Constituição não lhe outorgou.
Graças a denúncias mal elaboradas pelo antigo procurador-geral da República, rejeitadas pela Câmara dos Deputados duas vezes, o Brasil foi rebaixado três vezes pelas agências internacionais de rating, no momento em que estava o Congresso preparado para discutir algumas das mais essenciais reformas de que o nosso País necessita
(Artigo publicado no Estado de S. Paulo – Coluna Espaço Aberto. Terça-Feira, 6 de março de 2018).
9
Crônica
Cyro de Mattos _________________________________________
Artes, no Memorial da América Latina,
A triste crônica
em 1992, concedido ao meu livro O menino camelô. Ela foi a relatora da comis-
de Nelly Novaes Coelho
são julgadora, que contou ainda com a participação de Tatiana Belinky e Pascoal Mota. Quanta alegria conhecer aquela mulher baixinha, de sorriso afável, olhos no óculos de lente grande que viam e compreendiam o que estava no mundo para ser alcançado. Dali para frente mantive correspondência regular
com umas das
intelectuais mais lúcida em nossas letras, portadora de um discurso simples, mas rico de análise, que impressionava bastante. Que bênção! O tom de suas cartas era sempre atencioso, deixava a
Nelly Novaes Coelho é uma dessas cria-
minha alma pingando ternuras. Tive
turas belíssimas que encontrei na vida.
uma boa surpresa quando recebi comen-
Intelectual de expressão enorme, erudi-
tário como autor infanto-juvenil no seu
ta, sensível, solidária e ética. Tive o
esplêndido Dicionário crítico de literatura
grande prazer de conhecê-la quando fui
infantil e juvenil brasileiro. Outro belo
receber de suas mãos O Grande Prêmio
susto que eu tive foi quando vi minha
da Associação Paulista dos Críticos de
ficção de contista ser objeto de estudo 9
no monumental volume Escritores bra-
Novaes Coelho, como os iluministas de
sileiros do século XX. Nessa obra, de novo
ontem,
ela demonstra ser uma ensaísta de fôle-
tensa com erudição, consciência crítica
go vasto, que tem conhecimento notá-
e lucidez de pesquisadora dotada de
vel dos meandros da escrita, da vida e
santa paciência. É muito pouco o que
do contexto dos escritores estudados na
estou informando sobre a bagagem,
obra. Ao escrever esse livro, Nelly No-
atuação e produção de uma intelectual
vaes Coelho ainda estava em plena ati-
incansável como a Nelly. Por seus feitos
vidade intelectual. Tinha 91 anos, idade
literários incríveis, ela merecia as me-
em que muitos já penduraram suas fer-
lhores homenagens em vida. Quando
ramentas de trabalho.
indiquei com os escritores Caio Porfírio
desincumbe-se da jornada ex-
Vale a pena lembrar que com 752
Carneiro e Nicodemos Sena o seu nome
páginas, 1401 verbetes, o Dicionário críti-
para ser distinguido com O Trofeu Juca
co de escritoras brasileiras, de Nelly Nova-
Pato da União Brasileira de Escritores
es Coelho, registra de modo condigno
(SP), foi vítima de um processo eleito-
“a voz de
mulheres que vêm dando
ral duvidoso, e seu nome não foi su-
seu testemunho de vida e ideais, por
fragado. Mas ela era maior do que certas
meio da Palavra”. Dado que a literatura
atitudes deploráveis e honrarias dessa
é forma ampla de conhecimento dos
espécie.
humanos no mundo, a obra que foi or-
Soberba como ensaísta e, como
ganizada pela escritora renomada, Dou-
professora universitária, contribuiu pa-
tora em Letras da USP, reveste-se de
ra a formação de inúmeras gerações no
pontos elevados na valorização do cor-
campo das Letras. Sua família ignorou a
po literário brasileiro.
grandeza dessa mulher incomum. ficar doente,
Ao registrar inúmeras vozes femini-
Ao
foi blindada pela família,
nas de todos os estados brasileiros, em
que não permitiu a visita dos amigos,
sua contribuição enciclopédica, Nelly
lhe tinham afeto, e de seus admiradores. 10
Quando entro em minha casa, prendo
Crônica
Raquel Naveira
os cabelos e coloco óculos, assumo mi-
_________________________________________
nha verdadeira identidade. É aí que posso circular livremente entre meus livros, buscar papéis nas estantes, ob-
Óculos
servar com calma os ponteiros dos relógios.
“Mais tarde, lendo a novela
Fui uma criança míope, angustiada, até que comecei a usar óculos e en-
Manuelzão e Miguilim, de
xerguei com alegria e perfeição o que
Guimarães Rosa, uma narra-
estava escrito no quadro-negro, tão con-
tiva profundamente lírica, que
fuso para mim. Os óculos representaram um grande alívio, uma libertação.
recria a vida captada pela
Mais tarde, lendo a novela “Ma-
perspectiva de uma criança,
nuelzão e Miguilim”, de Guimarães Ro-
identifiquei-me com o momen-
sa, uma narrativa profundamente lírica,
to mágico em que Miguilim
que recria a vida captada pela perspectiva de uma criança, identifiquei-me
descobre um universo novo e
com o momento mágico em que Miguilim descobre um universo novo e lindo,
lindo, depois que um senhor
depois que um senhor vindo de fora lhe
vindo de fora lhe emprestou
emprestou os óculos. O menino nem podia acreditar! Tudo era diferente: as
os óculos.
coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas, as formiguinhas 11
passeando no chão. Chegou a ter tontu-
com primor estandartes com cruzes da
ra. Olhou para todos com força. Olhou
cristandade. Naquela época nublada,
os matos escuros de cima do morro, a
retratada no livro As Brumas de Avalon,
casa, a cerca de feijão-bravo, o céu, o
cheia de magos, bruxas, druidas, sacer-
curral, o quintal. Olhou o gado, o verde
dotes cristãos, a neblina separava o fim
dos buritis. Agora ele sabia como era
de uma era e o início de outra. Ela vi-
bonito o Mutum, lugar em que vivia.
veu um romance proibido com um dos cavaleiros da Távola Redonda, Lancelo-
Por ser míope, nunca me interes-
te. Seu amor por dois homens ao mes-
sei por corridas, praia, carros, esportes
mo tempo desestruturou a unidade
ou pelo mundo exterior. Para mim o
utópica do reino de Camelot. Ao final,
mundo sempre foi feito de sombras.
tornou-se monja, quase cega, expiando,
Sentia-me bem lendo, fazendo tarefas,
ardendo como uma tocha sagrada de fé
enfeitando meu caderno com cromos e
e amor pulsante, acima das circunstân-
canetas coloridas. Confortável era o
cias adversas das paixões. Isso nos faz
meu interior. Belos os meus devaneios e
acreditar que nossos defeitos e limita-
sonhos.
ções estão no controle de Deus, pois Ele
É um fato: os míopes são afeitos à
nos ama como nos criou, como somos.
leitura, aos trabalhos manuais, aos bor-
A existência dos óculos remonta
dados, aos pequenos detalhes e meca-
aos egípcios. O filósofo chinês Confúcio
nismos. Os óculos são símbolos de sa-
já os utilizava sobre o nariz como um
ber, cultura, erudição, alma estudiosa,
compasso. Lâminas feitas com pedras
intelectual. Atrás das lentes, um olho
semipreciosas cortadas em tiras, que
olha o tempo e o outro, a eternidade.
permitiam ver de perto, eram joias vali-
Contam que a rainha Guinevere,
osíssimas.
esposa do lendário rei Artur, da Breta-
Matemáticos
e
cientistas
anônimos do Oriente e do Ocidente es-
nha, era míope. Excelente artesã, tecia 12
tudaram a incidência da luz em espe-
rados e redondos; Marilyn Monroe com
lhos esféricos. Os óculos sempre tive-
seus óculos escuros de gatinho, retira-
ram seu lugar na história da humani-
dos antes da dose de barbitúricos, gata
dade: os monges nas bibliotecas, os je-
suicidada.
suítas com seus saltérios, os funcioná-
É um prazer sempre renovado
rios das coroas, os homens de letras.
ajeitar os óculos no rosto com as mãos,
E depois veio o charme da moda:
as hastes envolvendo as orelhas. Más-
o aviador com seus óculos verdes, ray
cara de vidro. Valioso instrumento. Lu-
ban; John Lennon com seus aros dou
neta potente. Quando prendo os cabelos e coloco os óculos, torno-me clarividente.
13
Poesial
Desperdício Ana Luiza Almeida Ferro Ardente o Sol abriu-lhe um sorriso quente mas ela pensamento na Lua cheia de estrelas nem notou. Frondosa a árvore ofereceu-lhe uma copa generosa mas ela sem raízes fincadas à revelia do tempo nem descansou.
14
Agradável a brisa acariciou-lhe o topete indomável mas ela cabeça-de-vento cabelo na venta nem piscou. Bela a paisagem pintou-lhe um primor de tela mas ela sem horizonte conhecido à sombra do arco-íris nem parou. Vigoroso o mar aportou-lhe um barco portentoso mas ela sempre ao largo na crista da onda nem navegou.
15
Solidão Eliana Calixto Solidão é palavra tão temida Que só serve ao poeta em seu lirismo Que perplexo se lança em tal abismo A fugir das desditas desta vida
16
Solidão é espectro assustador Que apavora o mais forte seareiro Desatento, ele enxerga o mal primeiro Vergastado, só sente a própria dor Solidão não é sempre a parca louca Que ferindo e gritando com voz rouca Amedronta o mais lídimo asceta Solidão é amiga benfazeja É farol, é inspiração que adeja Pelos céus onde sonham os poetas!
17
À sombra do baobá Marcia Agrau Venho de estranhas árvores antigas: londrinos plátanos, eretos maricás, longilíneas palmeiras holandesas... e o mais tradicional dos baobás. Direis de mim: é louca e mentirosa; se apoia nessa coisa fantasiosa, seus direitos, liberdades da poesia.
18
Semeia pelo mundo, escandalosa, se arvorando escrever em verso e prosa contra-sensos naturais a cada dia. Quem me conhece, entanto, compreende quão verdadeira eu sou sobre esta história. Faltam-me outras árvores à memória mas a verdade permanece a quem me entende. E é por isso que hoje estou aqui, a reverenciar o velho baobá plantado pelo avô de minha mãe, enraizado aqui, em Paquetá. Quanta gente passou à sua sombra! Quanta gente parou, olhou, marcou, feriu o tronco que a todos assombra pelo tamanho e aqui deixou “para sempre” gravado seu recado ora de amor sincero, ora encantado, apenas pelo impulso de deixar seu nome “para sempre” eternizado no tronco deste velho baobá. Não passa na cabeça dessa gente que a árvore não fala mas que sente os cortes que a vêm desfigurar, que mesmo que ela viva mais que a gente, nem ela é permanente, e um dia, no futuro, irá tombar. Não são as árvores o que permanece. Das atitudes é que não se esquece. Dos gestos, das palavras. Dos princípios São eles que eternizam na verdade. São eles traduzindo a qualidade 19
de uma existência honrada e sem vícios. Dizem que em Paquetá, à lua cheia, as obras dos cientistas, dos artistas, dos poetas, são murmuradas pelas águas inquietas marulhando aos que as ouvirem, sobre a areia. O velho Caetano, eu posso vê-lo, na sombra deste imenso baobá: os óculos, o branco do cabelo, a voz que intuo firme e carinhosa e as marcas do estudo e da bondade que saem de seu rosto e se enraízam no solo da pequena Paquetá... Marcia Agrau Rio,23/09/95
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lendo aquele soneto que define em cada
Ensaio
verso o que seja Amor. Diz o poeta:
Cláudi Cláudio Aguiar o________________________________________
“Amor é um fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente;
OS AMORES NA
É dor que desatina sem doer;
POESIA E NA VIDA DE
É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário por entre a gente; É nunca contentar-se de contente;
CAMÕES
É um cuidar que ganha em se perder; É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?” Neste soneto, de saída, em cada verso, a definição do que seja Amor salta aos olhos e aos ouvidos do leitor atento. Aparecem as mais curiosas afirmações, quase todas, a retratar jogo
Nada mais provocador e aliciante do
de oposição. Além do mais, sempre
que começar a falar sobre os amores na
tocadas pelo sentido da sutil
vida e na poesia de Luís de Camões
imponderabilidade daquela faísca que 21
desencadeia o sentimento amoroso
“Amor e gentil coração são a mesma
como algo que não sabemos o que seja,
coisa”.
mas gostamos dele e o apreciamos como
No entanto, vale lembrar que
uma grande dádiva e, por isso, o
Cervantes advertiu:
chamamos de Amor.
“Do Amor em desatino qualquer bem
O Amor sempre me pareceu algo
em mal converte”.
difícil de ser definido, porém, ao mesmo
Talvez isso ocorra porque, como
tempo, fácil de ser compreendido. Compreendido, não; talvez seja melhor
disse John Dryden:
dizer, sentido.
“O Amor é a mais nobre fraqueza do espírito”.
Muitos poetas e pensadores, ao longo dos tempos, definiram o Amor. O
Montaigne, em seu tempo, quase o
mesmo ocorreu com a ideia do que seja
mesmo da geração de Camões, definiu o
Arte, por exemplo, tida por elevadas
Amor como sendo “um desejo
mentes como sendo tudo aquilo que
impetuoso por algo que nos foge...”
sabemos o que é, porém, não
O poeta Luís de Camões, de
conseguimos definir.
maneira reiterada, trouxe o Amor aos
Sobre o Amor entre o homem e a
versos das Rimas - integradas pelos
mulher é velho e de autor anônimo o
Sonetos, as Canções, as Sextinas, as
provérbio que diz:
Odes, as Elegias, as Oitavas, as Églogas
“O homem persegue a mulher até que
e as Redondilhas - misterioso
ela o caça.”
sentimento que Emilio Myra y Lopez considerou como um dos quatro
A propósito, sobre o mesmo assunto,
gigantes da alma ao lado da ira, do
Dante disse:
medo e do dever. 22
qual prepondera, de um lado, o fervor
Em Os Lusíadas, a magistral obra épica da poesia portuguesa com
pelo prazer amoroso e, de outro, a
reconhecimento universal, será possível
tristeza pela impossibilidade de atingir-
encontrar a força do Amor exercendo o
se a plenitude no curso breve de uma
seu papel aliciante e prazeroso,
vida.
sobretudo nas intenções do Velho do
O poeta, depois de definir tantas
Restelo com sua ancestral sabedoria ou
vezes o Amor, como se ainda achasse
nas cenas que saltam dos versos da
pouco, noutro Soneto, talvez com
“Ilha dos Amores”, onde o Amor parece
remorso do que dissera no último verso
envolver os amantes sob um clima de
do famoso poema, ou seja, – “Se tão
pan-erotismo.
contrário a si é o mesmo Amor” – mesmo empregando o sentido
O Amor parece nos remeter a uma ideia utópica que a filósofa Maria
interrogante e não o afirmativo, de
Zambrano resumiu como sendo a
forma contundente, parece retratar-se
nostalgia e a esperança que verberam
no seguinte Soneto, que afirma:
em campos opostos no coração humano.
“Quem diz que Amor é falso ou
Outro filósofo, o extraordinário José
enganoso,
Ortega y Gasset chamou de
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
fragmentária essa sensação de falta de
Sem falta lhe terás bem merecido
sentido da totalidade da vida. Algo,
Que lhe seja cruel ou rigoroso.
digo eu, que se perde como o olhar posto no horizonte, aquele que vai ao
Amor é brando, é doce e é piedoso.
infinito ou a lugar algum.
Quem o contrário diz não seja crido; Seja por cego e apaixonado tido,
A poética de Camões, portanto, aponta para a oposição revelada numa
E aos homens, e inda aos deuses,
espécie de movimento pendular, no
odioso. 23
Quão cedo de meus olhos te levou.”
Se males faz Amor, em mi se vêem;
Talvez sejam dispensáveis maiores
Em mi mostrando todo o seu rigor,
explicações sobre o sentido e o alcance
Ao mundo quis mostrar quanto podia.
desse pronunciado lamento por causa Mas todas suas iras são de amor;
da partida da amada. O mesmo
Todos estes seus males são um bem,
argumento, antes usado por Petrarca,
Que eu por todo outro bem não
constituiu moda na poesia italiana. No
trocaria.”
entanto, para enfatizar o propósito de
Outro momento elevadíssimo e
nossas considerações em torno do Amor
emblemático na poesia lírica de Camões
que paira nos versos do poeta luso - por
aparece recolhido no poema que diz:
ele mesmo chamado de amor ardente – creio valer a pena salientar que a dor da
“Alma minha gentil, que te partiste
perda da amada é tão forte que o
Tão cedo desta vida, descontente,
desditado amoroso chega a proclamar
Repousa lá no Céu eternamente
sua decisão de cedo também partir desta
E viva eu cá na terra sempre triste.
vida. Fica, assim, salientada a
Se lá no assento etéreo, onde subsiste,
imponente imagem da irresistível
Memória desta vida se consente,
saudade, razão pela qual o eu lírico
Não te esqueças daquele amor ardente
impõe uma condição plausível: também
Que já nos olhos meus tão puro viste.
partir, desde que tenha a oportunidade de ficar, no Céu, junto à Amada. Este é,
E se vires que pode merecer-te,
sem dúvida, na unanimidade da critica
Alguma coisa a dor que me ficou
camoniana, o mais elevado momento da
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
lírica amorosa no alvorecer da literatura portuguesa. E, além do mais, como
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
veremos no final desses breves
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
comentários, o dito neste poema de 24
Camões parece guardar em si uma forte
irreparável. Prepondera em toda sua
dose de real verdade amorosa que
lavra poética o desassossego pela
“ardeu” no interior do coração do poeta,
presença do calor do fogo que “arde
talvez com maior ardor quando, após
sem se ver”, de maneira invisível,
mais de catorze anos de permanência,
impondo ao poeta a constante fuga em
deixou as terras do Oriente para voltar a
busca não apenas de distantes rincões
Portugal.
do Oriente, - Índia, África – onde, repetimos, passou mais de catorze anos,
Dos amores na vida de Camões
mas, também, possuído por algo que
A vida do poeta explica, em
sempre lhe fugia das mãos ou do
grande medida, a tendência flutuante de
coração ferido. E não só fugiam as
suas paixões, nunca duradouras e nem
misteriosas forças do Amor, mas,
capazes de produzir permanências
inclusive, roubaram-lhe o Parnaso com
amorosas. As perdas, mais do que as
toda a safra original de poemas líricos.
vitórias, deram o tom sombrio da
A sua vida, portanto, transcorreu
visibilidade do fogo, dos efeitos da dor,
em um clima de dúvidas e de incertezas.
das feridas que assinalam nos mapas de
Nada lhe foi fácil. O seu nascimento
nossas vidas as marcas de experiências
aparece marcado por poucas
frustrantes, de momentos de solidão
informações. Sequer se sabe, ao certo,
insuportáveis, do medo de sentir-se
onde nasceu. Coimbra ou Lisboa?
abandonado por quem se ama, etc.
Depois de tantas considerações
Os dados biográficos de Luís de
feitas por biógrafos do poeta, a exemplo
Camões, apesar da espantosa escassez,
de Manuel Correia, terminou
apontam para a dimensão angustiante
prevalecendo a cidade de Lisboa. É que
de seu viver amoroso, aliás,
Correia, por volta de 1613, ao comentar
qualificando-a como se fora uma perda
a edição príncipe de Os Lusíadas, tendo 25
sido, aliás, amigo pessoal de Camões,
Casa da Índia, encontrou um registro
afirmou ter o poeta nascido em Lisboa.
que dava conta de que o poeta em 1550
Isso, de certa forma, não supriu a falta
estava com 25 anos. Logo, afirmou
de documentos objetivos, porém, serviu
Sousa ter nascido Camões com relativa
para diminuir o tamanho ou o volume
margem de segurança em 1524 ou 1525.
do vazio que paira sobre as origens do
Como vemos, tudo na vida do
famoso poeta.
autor de Os Lusíadas situa-se nas rendas da incerteza. Nada pode ser
Essa situação lembra o caso de outro grande poeta, consagrado como o
afirmado com absoluta segurança.
primeiro gênio da poesia universal:
Sejam os dados mais triviais da sua
Homero. Por causa do enorme vazio
vida, sejam os mais especiais e ligados
sobre suas origens, sete cidades gregas
aos seus sentimentos amorosos, como
disputam a primazia de ser o berço de
veremos mais adiante.
nascimento do autor da Odisseia:
O seu vinculo maternal também
Esmirna, Colofón, Atenas, Quios,
terminou por se esconder no rol das
Rodas, Argos, Ítaca e Salamina.
obscuridades. Até a notícia de que a mãe, Ana de Sá, morrera por ocasião do
Se a dúvida prevaleceu quanto ao lugar de nascimento de Luís de Camões,
parto de Luís de Camões, nunca foi
o mesmo aconteceu em relação à data de
confirmada. Há a suposição de que
nascimento, ocorrida, segundo vago
outra mulher, chamada Ana de Macedo,
registro biográfico, num período em que
fora a segunda esposa de seu pai, Simão
estava “reinando D. Manuel, pelos anos
Vaz de Camões. No entanto, para o
de 1517”.
biógrafo António Salgado Júnior, “talvez aquele Macedo (da segunda
Faria e Sousa, um de seus
mulher) seja simples lapso”, embora
primeiros biógrafos, ao compulsar
outro biógrafo bem mais antigo do que
documentos existentes nos acervos da 26
Salgado tenha afirmado que a mãe pode
Exemplo: o verso de uma elegia em que
ter usado simultaneamente Sá e
o poeta refere-se ao termo “desterrado”.
Macedo. Como vemos são escassos ou
Severim concluiu, de maneira
pouquíssimos os registros biográficos
terminante em suas considerações que
do poeta.
Camões foi “desterrado” de Lisboa e declarou-se longe dela e saudoso,
Ainda que Camões não tenha
registrando em tom adversativo:
nascido em Coimbra, mas, segundo alguns biógrafos, em Lisboa, o fato é
“mas em lugar donde vê as águas do rio
que ele morou em Coimbra. Ali parece
(Tejo) que para lá correm”.
ter vivido as suas primeiras experiências
No afã de esclarecer o lado
amorosas, tema de nossas breves
desconhecido do poeta, alguns
considerações.
biógrafos posteriores referiram-se a diversas localidades geográficas e, a
Há um fato sobre a vida de Luís de Camões que não poderia faltar em
partir delas, ampliaram de tal sorte a
nossas considerações: alguns biógrafos
ideia do possível desterro sofrido por
resolveram preencher os vazios de sua
Camões, que, como escreveu Severim,
vida com informações que não
em Lisboa,
correspondem à realidade, sobretudo
“continuou algum tempo, até que uns
porque carecem de provas documentais.
amores que, segundo dizem, tomou no
Uma delas, alimentada por Manuel
Paço, o fizeram desterrar da Corte”.
Severim de Faria, refere-se ao desterro
Vale repetir que o cronista
do poeta. Severim deu ao termo desterro sentido diferente ao usado pelo
escreveu: - “...até que uns amores que,
poeta, ou seja, o fato de referir-se
segundo dizem”. A afirmação não
Camões a simples mudança e não a
aparece escorada na certeza
castigo no sentido de punição efetiva. 27
A verdade é que nunca se soube
documental, porém, na expressão vaga e
ao certo se tal fato ocorreu. A ilação do
duvidosa – “segundo dizem”.
biógrafo, mais uma vez, funda-se na
Esse mesmo raciocínio, relativo ao
produção poética de Camões.
desterro, foi utilizado por outros
O mais interessante é que, ao
historiadores para justificar a ida do poeta ao norte da África e depois a
longo dos anos (e, por que não dizer,
Índia. Há fortes indícios de que a
dos séculos?), de tanto ser repetida a
ampliação da abstrusa ideia do
informação, parece ter virado verdade.
“desterro” foi tirada por Severim do
A assertiva biográfica revela-se aceitável
verso de uma Elegia que diz:
porque o poeta, quando chegou a Índia, já levava a deformidade. Com efeito, em
“Aquela que de amor descomedido”.
uma das sete cartas atribuídas a Camões
Severim, então, concluiu que o
existe a referência ao lamentável evento.
poeta se declarava estar entre
A tal lesão o poeta se refere como sendo
“estrangeira gente” e dali subiu “ao
uma consequência de
monte de Hércules Tebano do altíssimo
“coisa já antiga e notória nele em
Calpe...”, etc., ponto em que, de repente,
Portugal”.
desembocava numa estadia em África.
Menciona, também, o fato de as
Ora, o espantoso é que o biógrafo
damas dali o alcunharem de
Severim juntou mais algumas referências - quase todas originadas dos
“Diabo” e também de “Cara-sem-
versos do próprio poeta - e concluiu que
olhos.”
da ida do poeta a Ceuta, face ao
Ao longo dos tempos essa
confronto com os Mouros, ali foi ferido
construção biográfica foi aceita sem
“de um pelouro no olho direito com que
reservas e todos os demais biógrafos a
o perdeu”.
chancelaram. 28
funcionar como se fora o registro civil
No entanto, a versão da perda de um olho do poeta em terras de África,
de nascimento de Luis de Camões. Por
como bem lembrou o biógrafo Salgado
isso, fixaram como sendo 1579 o ano de
Júnior, terminou por cair também no
sua morte. Faltavam, ainda, o mês e o
terreno da dúvida, porque ninguém se
dia.
preocupou em questionar a
A inscrição da campa dizia:
circunstância de que no início da frase
“Aqui jaz Luís de Camões,
do biógrafo Severim de Faria consta o
Príncipe dos Poetas de seu tempo.
termo “parece”.
Viveu pobre e miseravelmente e assi
A referência às sete cartas
morreu, no ano de 1579. Esta campa lhe
atribuídas a Camões como únicos
mandou aqui pôr Dom Gonçalo
documentos reais e capazes de trazer
Coutinho, na qual não se enterrará
luz sobre alguns episódios de sua vida,
pessoa alguma”.
termina por se constituir em algo
Como lembra Salgado Júnior, mais
improvável no que diz respeito a autoria delas, porque hoje apenas três
tarde, diante da necessidade das
são dadas como verdadeiras.
medidas judiciais ligadas à herança de bens (parte destinada à mãe de
Merece ser mencionado aqui o fato
Camões), surgiram novas informações
de permanecer a dúvida sobre mais um
documentais que levaram a fixar a data
dos marcos fundamentais da vida do
da morte do poeta em 10 de junho de
autor de Os Lusíadas: a data de sua
1580.
morte.
Vale acrescentar, aqui, de
Durante muito tempo, devido ao
passagem, que essa data se consolidou
seu epitáfio gravado na campa rasa da
tanto na biografia do grande poeta que
Igreja de Santa Ana, os biógrafos
se tornou a data nacional de Portugal.
concluíram que aquela inscrição deveria 29
Talvez seja o único pais que louva o solo
remotas vozes da poesia. Simónides,
pátrio com a força extraordinária de um
poeta grego nascido por volta de 556 a.
poeta.
C., e morto em 468 a. C., ficou famoso por seus epigramas, que assinalam o
Dos amores na poesia de Camões
início do período arcaico da poesia.
Antes de desenvolver, ainda que
Além do mais, ele ficou conhecido
com brevidade, algumas considerações
por ter sido um dos primeiros que
sobre o Amor como assunto na poesia
cultuaram a poesia numa dimensão
de Camões, creio prudente e
profissional, ou seja, tomando-a como
esclarecedor tecer alguns comentários a
um ofício, e por receber, então,
respeito das influências que devem ter
remuneração ou o que hoje chamamos
incidido sobre o tema do Amor
de direito autoral. Ele trouxe à
abordado de maneira tão avassaladora
expressão poética a necessidade de
na poesia camoniana. Até no corpo de
revesti-la com o esforço da elevação de
sua obra épica por excelência – Os
mérito criativo, singular, especial,
Lusíadas –, o poeta incrustou um veio
enfim, numa palavra: grávida de
lírico de comovente significado: “A Ilha
reflexão. A poesia com ele deixava de
dos Amores”. Verdadeiro oásis
ser um mero artifício. Por isso, ele
iluminado pela presença do Amor,
cunhou uma nova dimensão ao fazer
móvel prenhe de lances imagéticos de
poético, definindo-o como se fora a
convincente pan-erotismo.
poesia, ao mesmo tempo, uma pintura.
Às impressões do que seja Amor,
A crítica moderna, vale
além das referidas por inúmeros autores da literatura universal,
acrescentar, como o fez Antonio José
nos faz
Saraiva, professor da Universidade de
recordar Simónides, também chamado
Lisboa, afirmou ter Camões definido a
de Simónides de Ceos, uma das mais
poesia como “a pintura que fala”. 30
(SARAIVA, Ob. cit., p. 33). No entanto,
imaginação e não mediante ação
essa definição ou ideia pertence a
aparentemente mediúnica ou milagrosa.
Simónides, que escreveu:
Conta Quintiliano, famoso
“A pintura é uma Poesia silenciosa e a
professor de retórica da Roma antiga,
Poesia é uma pintura que fala”.
que Simónides, após ficar conhecido como a primeira pessoa a exercitar com
Essa definição de Simônides
rigor a arte da Memória, um dia foi
refletia, no seu tempo, a visão do
contratado para fazer um recital num
homem grego sobre o poder da
evento onde se comemoravam as
representação da imagem além do
proezas de atletas cultores do
realismo nu e cru. Era a presença do
pugilismo. Após o recital, veio o
testemunho da mimesis, ou seja, aquele
banquete em honra do atleta vitorioso.
esforço criativo que avança em direção
Simónides, então, em dado momento,
ao influxo memorial e o restabelece no
foi instado por dois jovens, que lhe
plano poético. Simônides, com sua nova
disseram aguardá-lo fora do salão, onde
visão poética, fez com que a Memória
tinham algo importante a lhe dizer. Ao
deixasse de ser um mero recurso de
sair, Simónides não encontrou os jovens
reflexão de índole religiosa, mediante a
lá fora do salão. De repente, neste
qual se conhecia o passado, o presente e
momento, o salão desabou sobre todos
o futuro, submetendo todas essas
os convidados, esmagando-os
variantes temporais à dimensão do
mortalmente. Nem mesmo os parentes
sagrado. A poesia de Simónides
mais próximos que acorreram ao local
abordou, portanto, nova visão, ao
foram capazes de reconhecer os corpos
utilizar o poder da Memória como
das vítimas. Foi Simónides quem
extraordinária possibilidade de o Poeta
conseguiu lembrar-se com precisão de
entrar no além e atingir o mundo
cada convidado, indicando o local onde
invisível a partir de sua própria 31
estiveram sentados momentos antes do
os galhos com o esplêndido racimo
desastre. Assim, cada corpo foi
maduro,
identificado.
e que possa umedecê-lo sempre o sereno
Esse episódio da vida de
da noite que sua boca de ancião tão doce
Simónides serviu para realçar o poder
respirava.”
da Memória, incorporada como eficaz
Camões, bem mais tarde, no seu
recurso em seus epigramas, inclusive
tempo, a repetiu. Essa afirmação não é
mencionando o Amor como veio
de toda descabida, pois o poeta
fundamental.
português, com efeito, conheceu bem os
Cito, agora, um dos epigramas de
epigramas do poeta grego, como vemos
Simónides, no qual aparece a misteriosa
em uma de suas Elegias, aliás,
força que anima o amante a desfrutar do
privilegiando o positivo efeito da
Amor mesclado ao som da música que
Memória, que assim começa:
vibra de uma lira sob o efeito do “deus
A Elegia segue construída sob a
vinho”:
inspiração da Fortuna e da Aventura,
“Videira, mãe da uva e do vinho que
terrena e marinha, e também do Amor
tudo apaziguas,
que “manda na vida escassa”; mas que
possa a teia de tuas gavinhas tortuosas
“no mundo está de sorte que na virtude
florescer, exuberante, no chão fino e
só de um lindo objeto tem um corpo,
coroara estela da tumba do tebano
sem alma, vivo e forte”.
Anacreonte, para que ele, festeiro e
Curiosamente Camões ressalta na
ébrio do vinho a que é tão
Elegia consagrada a Simónides as ideias
[dado],tangendo sua lira amante de
vinculadas ao sentido da lembrança que
rapazes noite afora, sob a terra, tenha
deve presidir a imaginação do poeta, ou,
acima da cabeça
noutras palavras, à memória, tema de 32
Essas referências platônicas
constante preocupação do poeta grego. Camões, em sua Elegia, refere-se
ficaram difundidas, sobretudo mais
claramente ao tema quando diz:
tarde, nas famosas Enéadas, de Plotino (204/205 d. C.).
“O poeta Simónides, falando
O filósofo egípcio, por exemplo,
Co capitão Temistocles, um dia, Em cousas de ciência praticando,
na Enéada III, aborda o Amor, situando
Ua arte singular lhe prometia,
suas observações numa espécie de
Que então compunha, com que lhe
interpretação da doutrina platônica do
ensinasse
Amor visto como sentimento humano e
A se lembrar de tudo o que fazia;
também como algo divino ou originado
Onde tão sutis regras lhe mostrasse
da própria divinidade.
Que nunca lhe passassem de memória
Platão assinala que o Amor, visto
Em nenhum tempo as coisas que
como “paixão amorosa” ou como
passasse.
“loucura amorosa”, manifesta-se na
Bem merecia, certo, fama e glória
alma em presença da beleza sensível
Quem dava regra contra o esquecimento
como se fora a recordação da Beleza
Que enterra em si qualquer antiga
suprasensível. Quer dizer esta ficará
história.”
sempre acima daquela. Ora, Plotino aproveitou a ideia
Uma outra influência notável
platônica e a ampliou ao trazê-la à
surge na poesia camoniana a partir das
concepção filosófica do Amor
referências feitas, diretas ou indiretas,
acrescentando dois ingredientes
ligadas ao pensamento de Platão,
importantes: primeiro, o Amor tomado
principalmente oriundas do Banquete e
como algo misto e paradoxal, porque
de Fedro.
capaz de produzir efeitos contrapostos decorrentes da dualidade Amor X 33
Demônio, ligados ao desejo da Alma; e,
ações humanas, enquanto que o “gesto
em segundo lugar, o Amor visto como
divino” situa-se nas marcas profundas e
algo a ser possuído em caráter perpétuo
indeléveis da própria alma.
e natural pela força imanente da Beleza.
A propósito dessa dualidade Amor versus Demônio, nos diz Camões,
Essa intrincada e profunda análise de Plotino, sempre voltada para a
com sobrada lucidez amorosa, que no
definição platônica do que seja Amor,
poema acima, ao referir-se a suposta
não me parece estar fora do pensamento
oposição:
camoniano, quando este aborda o
“Foi convertida em fonte, que fazia
elevado sentimento humano em sua
A dor ao sofrimento doce e leve.”
plenitude. Disse Platão, repetido pelas palavras de Plotino, que “o amor é um
Com efeito, além do mais, ao mesmo
sentimento originado nas almas, mas
tempo, induz a lógica da inspiração do
que também o chamamos de demônio e
poeta a nos dizer que:
ao tratar de seu nascimento, explica detalhadamente como e de quem ele
“De lágrimas de honesta piedade,
nasceu”.
Lágrimas de imortal contentamento!”
Ora, esse dom dual – divino X
Estamos, enfim, diante de “vivas
demoníaco – que Camões também
faíscas” ou, sem querer apelar para boas
trouxe para sua poesia, muitas vezes,
metáforas, diante do Amor Amor ou do
ora tratando-o como felicidade, prazer,
Amor Demônio, ou seja, do que consola
esperança, alegria, etc. e, ora, noutras,
e do que desespera.
como lágrima, sofrimento atroz, difusos
Ouçamos, portanto, na íntegra, a
pensamentos, piedade, dor, etc., parece,
ideia do poema:
enfim, consubstanciar-se na necessidade de viver o “gesto humano” a partir das 34
Camões, com certeza, deve ter lido
“Amor, que o gesto humano na alma escreve,
El collar de la paloma, o mais belo livro
Vivas faíscas me mostrou um dia,
escrito sobre o Amor no âmbito da
Donde um puro cristal se derretia
língua árabe, sobretudo nos tempos de
Por entre vivas rosas e alva neve.
suas viagens às terras do Oriente.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Ibn Hazm de Córdoba, ao
Por se certificar do que ali via,
descrever com maestria o que seja a
Foi convertida em fonte, que fazia
“Essência do Amor”, em inúmeras
A dor ao sofrimento doce e leve.
passagens referiu-se ao prazer e ao
Jura Amor que brandura de vontade
desespero de quem ama além do
Causa o primeiro efeito; o pensamento
esquecimento:
Endoudece, se cuida que é verdade. Olhai como Amor gera, num momento,
“¡Oh esperanza mía! Me deleito en el
De lágrimas de honesta piedade,
tormento que por ti sufro. Mientras
Lágrimas de imortal contentamento!”
viva, no me apartaré de ti. Si alguien me dice: "Ya te olvidarás de su amor", no le contesto más que con la ene y la
Se, com Plotino, o Amor
o.”
camoniano ganhou a força da interpretação filosófica a partir do
Aqui o poeta árabe, sem dúvida,
pensamento de Platão, na Espanha,
nos faz recordar o mesmo sentimento
precisamente em Córdoba, séculos
contido naquele terceto emblemático de
depois viveu ideias assemelhadas o
um Soneto de Camões que começa
magnífico poeta Ibn Hazm de Córdoba,
assim: “Busque Amor, novas artes, novo
por volta de 994 a 1063, exatamente no
engano,…” e cujo final vem arrematado
auge da dominação árabe com toda sua
com a aquela mesma imagem de tom
riqueza cultural, filosófica e literária.
misterioso que nos afeta o coração como 35
No Inferno terminou assim:
se nos acertasse a disparada flecha de Cupido:
“Virgílio e eu, logo após, nos elevamos,
“Amor um mal, que mata e não se vê,
Té que do ledo céu as cousas belas
Que dias há que na alma me tem posto
Por circular aberta divisamos:
Um não sei quê, que nasce não sei onde. Saindo a ver tornamos as estrelas.”
Vem não sei como, e dói não sei porquê.”
No final do Purgatório: “Como de planta as folhas renovadas
Neste ponto da exposição, não
Mais frescas na hástea mostram-se, mais
resisto e trago a lume, aqui, mais uma
belas,
curiosidade, pelo menos para mim: será
Puro saí das águas consagradas
que Camões ao falar tanto sobre o Amor também recorreu ou pensou nos passos
Pronto a me alar às lúcidas estrelas.”
amorosos percorridos por Dante? Dante Alighieri, na Divina
No Paraíso, Dante terminou o seu
Comedia, recorreu ao Amor associando-o
monumento poético com essa belíssima
à ideia das estrelas ou ao fulgor delas no
imagem sobre o Amor, tomando-o como
campo aberto do infinito celestial. Ele as
a grande mola que move o Universo:
chamou de “coisas belas”, qual luz a resplandecer no universo. De tanto
“À fantasia aqui valor fenece;
gostar da imagem estelar, como se fora
Mas a vontade minha a ideias belas,
algo a persegui-lo sempre, o poeta
Qual roda, que ao motor pronta
florentino recorreu de maneira reiterada
obedece,
à mesma imagem nos finais do Inferno, Volvia o Amor, que move sol e
do Purgatório e do Paraíso. Vejamos:
estrelas.” 36
Vamos, então, referir os casos de mulheres reais que poderiam servir
Dos amores na vida de Camões
como motivos suficientes para informar
Numa abordagem dos Amores na vida
a temática amorosa de Camões.
de Camões não poderia faltar um
Isabel Tavares – Seu primeiro
comentário, ainda que brevíssimo, sobre
amor foi Isabel Tavares, sua prima de
as suas possíveis amadas, afinal ele não
segundo grau, conforme registros
só foi o criador da “linguagem do
biográficos descobertos em sua árvore
amor”, como afirmou o poeta Alberto
genealógica. No entanto, não faltou
da Costa e Silva, porém, com certeza,
quem afirmasse ser Isabel a mesma
também, viveu o Amor em toda sua
Belisa que o poeta cantou em vários de
intensidade.
seus poemas. Essa curiosa identificação,
Em seus inúmeros poemas
mais uma vez, retornou ao ponto das
aparecem mulheres e entidades
incertezas, porque se baseou na
mitológicas que constituem símbolos
decifração do nome Belisa como
eficazes, mediações poéticas
anagrama de Isabel. A propósito desse
expressivas a exemplo das sombras, dos
processo de elaboração poética, vale
sorrisos, das vestes deslumbrantes, dos
observar que o uso de anagramas na
olhos verdes, dos olhares meigos,
construção de poemas, naquele tempo,
dóceis, amargos ou cáusticos, quase
constituía meio corriqueiro e ancestral
sempre anunciadores de lágrimas e de
herança dos poetas de naipes e origens
choros tantas vezes pronunciados.
diferentes.
Todos esses sentimentos e emoções
Natercia e Liso – A referência ao
alimentam o lirismo camoniano com
casal numa poesia de tom campestre foi
sobrada ênfase.
mencionada da mesma forma do caso de Isabel. Essa vinculação, no entanto, 37
parece ser eco da influencia de Petrarca
ser encontrados nos versos líricos de
na poética de Camões. Influência que,
Camões. A origem nobre de Catarina de
em grande medida, refletiu-se na
Ataíde, porém, jamais se conformaria ao
temática e na estrutura poética não só
estilo rebelde e até arruaceiro do poeta
de Camões, porém de outros poetas
quando, então, viveu em Lisboa.
daquele tempo. A poesia de Petrarca, o
Naturalmente por isso, antes de sofrer o
poeta italiano, ficou marcada pela
mencionado “desterro” que alguns
presença da musa Laura, assim como
historiadores afirmam ter sido por causa
Dante fixou em sua Divina Comédia as
da impossibilidade de prosperar o amor
virtudes e a beleza de Beatriz. Da
da fidalga Catarina com um poeta
mesma forma Camões merecia ter
plebeu. Essa versão romântica seria
também a sua musa. Mais tarde, já no
desmentida rotundamente, porque,
século XVII, o crítico Faria e Sousa
como é sabido, Catarina de Ataíde, além
insistiria na tecla dos anagramas e
de ter sido casada com outro fidalgo,
decifraria Natercia como sendo Caterina
faleceu em 1551, antes, portanto, da
e Liso como Lois.
partida de Camões para o Oriente. Francisca de Aragão - Foi uma
Catarina de Ataíde – Catarina ou Caterina entrou na lenda de ter sido
admirável senhora da Casa de Aragão,
uma das mulheres desejadas ou amadas
berço de nobres de Espanha, mulher
por Luis de Camões, sobretudo porque
possuidora de uma beleza
seus dotes físicos denunciavam traços
deslumbrante. O único fato que se pode
do perfil estimado pelo poeta em seus
especular como motivo de aproximação
versos líricos: mulheres de cabelos de
do poeta a esta senhora, parece ter sido
ouro, de sorrisos tristes dirigidos às
um mote que ela, movida por alguma
escondidas ao suposto amante, etc.
curiosidade poética, mandou a Camões,
Todos esses adereços poéticos podem
a fim de que ele fizesse a respectiva 38
glosa. Ao devolver o poema a D.
sensação de fugir completamente da
Francisca de Aragão, Camões mandou-
lenda e se prender a um profundo e
lhe dizer:
marcante Amor vivido, de fato, por Camões. É impossível a alguém, mesmo
“Se forem bons, é mote de Vossa Mercê;
que se chame Luís Vaz de Camões,
Se forem maus, são as glosas minhas”.
compor versos tão equilibrados na estrutura, no conteúdo e na carga de
Todos os demais casos de
sentimentos, sem que a eles não exista
possíveis amores vividos na vida real
um fio condutor ou registro
pelo poeta, não passam de simples
experimental e veraz que o converta em
especulações. Em verdade, eles se
realidade.
alinham no plano da imaginação
Quem foi Bárbara?
poética, como de resto era comum aos poetas da época buscar musas e
Segundo o historiador literário
beldades para ilustrarem situações
Xavier da Cunha, Bárbara foi uma
expressas nos poemas criados.
mulher oriental que Camões amou com todas suas forças. Era uma mulher de
Um caso, no entanto, contado pelo próprio poeta e testemunhado por um
“raro encanto, negros cabelos luzentes,
fiel amigo, mencionarei como
olhar quebrado e intenso, feições
sinalização de amor verdadeiro vivido
finamente moldadas num âmbar quente
pelo autor das Rimas.
e a graça coleante esguia e silenciosa, calada e rendida das mulheres
Bárbara, a escrava - O caso
orientais...”.
contado sob impressionante tom de veracidade e coerência amorosa nas
Faria e Souza, a quem coube, já no
famosas Endechas dirigidas a Bárbara
sec. XVII, poucas décadas após a morte
escrava, em verdade, apesar de carecer
do poeta, a primazia de organizar a
de documento que o comprove, nos dá a 39
publicação das Rimas, assim justificou o
com as suas “Lusíadas”, como ele diz
fato de Camões ter escrito o poema
nelas. E ali se lhe afogou uma moça
sobre Bárbara, a escrava:
china que trazia com quem vinha embarcado e muito obrigado e a quem
“Escreveu o meu Mestre este
compôs depois aquele soneto que
Poema ao assunto de estar enamorado
começa “Alma minha gentil...” e em
de uma escrava sua: e não só escrava,
suas obras se chama Dinamene”.
mas ainda em cima negra: que, enfim,
Ainda que não se tenha a certeza
era de carne o meu Poeta. Se a escrava era sua como parece, sucedeu isto na
absoluta de que a “moça china” é a
Índia, porque de lá só trouxe para
mesma Bárbara, a escrava, não resta
Lisboa um escravo natural de Java, que
dúvida de que somos quase forçados a
se chamava Antonio”.
pensar que Dinamene, por significar a adaptação portuguesa do nome de uma
Onde, afinal, ficou Bárbara?
nereida ou ninfa da mitologia grega,
O historiador Diogo do Couto
nada mais foi do que um recurso
encontrou nos arquivos da Biblioteca do
adotado pelo poeta para simbolizar a
Porto documento que se refere ao
perdição da sua verdadeira amada nas
célebre naufrágio de Camões, ocorrido
águas de Java.
na foz do Mecon, aliás, o mesmo
De qualquer sorte, para concluir,
naufrágio referido pelo poeta no Canto
lerei as Endechas à escrava Bárbara, que
X de Os Lusíadas.
o primeiro compilador das Rimas, Faria
Assim se reporta o mencionado
e Souza, disse serem dedicadas
documento:
“A uma cativa com quem
“...vindo de lá (da China) se foi perder
(Camões) andava de amores na Índia,
na costa de Sião onde se salvaram todos
chamada Bárbara.”
despidos; e o Camões por dita escapou 40
Me parecem belas
Bárbara, portanto, seria o grande troféu amoroso que o poeta trazia do
Como os meus amores,
Oriente para Portugal, porém, o destino
Rosto singular,
lhe foi adverso e Bárbara perdeu-se
Olhos sossegados,
afogada nas águas turbulentas do
Pretos e cansados,
oceano. O poeta sintetizou a trágica
Mas não de matar.
perda com essa imagem de Bárbara: Ua graça viva,
“Presença serena
Que neles lhe mora,
Que a tormenta amansa;
Pera ser senhora
Nela, enfim, descansa
De quem é cativa.
Toda minha pena.”
Pretos os cabelos, Onde o povo vão
Para terminar, eis o poema em sua
Perde opinião
totalidade:
Que os louros são belos.
“Aquela cativa
Pretidão de Amor,
Que me tem cativo,
Tão doce a figura,
Porque nela vivo
Que a neve lhe jura
Já não quer que viva.
Que trocara a cor.
Eu nunca vi rosa
Leda mansidão,
Em suaves molhos,
Que o siso acompanha;
Que pera meus olhos
Bem parece estranha,
Fosse mais fermosa.
Mas bárbara, não.
Nem no campo flores, Nem no céu estrelas 41
Presença serena Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Toda minha pena. Esta é a cativa Que me tem cativo, E, pois nela vivo, É força que viva.” Bibliografia consultada FRENZEL, Elizabeth. Diccionario de Argumentos de la Literatura Universal. Madrid: Editorial Gredos, 1976.
CAMÕES, Luís de. Obra completa. Organizada por António Salgado Júnior. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguillar, 1988.
GAVILANES, José Luís y António Apolinário, Editores. Historia de la Literatura Portuguesa. Madrid: Cátedra, 2000.
____Os Lusíadas. Org. António José Saraiva. Figueirinhas / Porto: Padrão – Livraria Editora, 1978.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Grega e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
____ Os Lusíadas. Comentado por Augusto Epifânio da Silva Dias. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1972.
IBN HAZ DE CORDOBA. El collar de la Paloma. Tradução de Emilio García Gomez. Madrid: Alianza Editorial, 1980.
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DANTE, Alighieri. A Divina Comédia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2014.
ZAMBRANO, María. El hombre y lo divino. México: Fondo de Cultura Econômica, 1973.
42
Artigos _________________________________________
ENTRE MISÉRIA E GRANDEZA, O DIÁRIO DE DRUMMOND
tem caprichos. Do conjunto sacrificado
Edmilson Caminha
salvaram-se algumas páginas que hoje reúno em livro”. É O observador no escritório, editado pela Record em 1985.
“Por que se escrevem diários?”,
Seletivamente, o autor publica o
perguntou Carlos Drummond de An-
que anotara sobre colegas escritores ‒
drade, para concluir que “há de ser por
Mário de Andrade, Vinicius de Moraes,
força de motivação psicológica obscura,
Guimarães Rosa, Manuel Bandeira ‒ e
inerente à condição de escritor, alheia à
figuras da política: Luís Carlos Prestes,
noção de utilidade profissional”. Con-
Getúlio Vargas e Castello Branco. Muito
fessa que, por muitos anos, encheu ca-
pouco acerca da família ‒ conversa com
dernos com anotações sobre o dia a dia,
um tio, cartas da mãe e do pai, a filha
que jamais pretendeu viessem a ter im-
Maria Julieta que se tranca no quarto
portância documental. “O impulso de
para escrever. Drummond diz pouco da
escrever para mim mesmo, em caráter
intimidade dos seus e de si próprio, por
autoconfessional, ditou os feixes de pa-
pudor ou pela crença de que, sem inte-
lavras que fui acumulando e que um dia... destruí. Mas a própria destruição 43
resse para o leitor, não deve torná-la
Significativamente, Drummond reco-
pública.
nhece os “caprichos” da destruição: deu fim ao diário, mas não a todas as notas;
Os registros de natureza familiar
por que salvou algumas páginas, e ou-
permaneceram, assim, desconhecidos
tras não? Pedro Augusto repete, ao
até agora, quando o neto do escritor,
apresentar o livro, a explicação do avô
Pedro Augusto Graña Drummond, re-
quando entrevistado por Maria Julieta:
solveu divulgá-los no livro Uma forma de
“Para o caso em que algum neto se inte-
saudade: páginas de diário (São Paulo :
ressasse um dia em lê-las e assim pu-
Companhia das Letras, 2017), ano em
desse sentir que existe uma continuida-
que se lembram as três décadas da mor-
de na família, ‘um rio de sangue que flui
te de quem os anotara. Pergunte-se, en-
através de uma geração para outra’”.
tão: por que dar a conhecer, depois de
Quem sabe, ainda, pela “motivação psi-
tanto tempo, trechos do diário que a
cológica obscura”, inconsciente, de que
Drummond parecera melhor continuas-
um dia os leitores comuns viéssemos
sem inéditos? Respondo: simplesmente
também a conhecê-las, desejosos de ne-
por havê-los escrito, pois ninguém põe
las escutar “o eco de um tempo aboli-
no papel o que não se queira venha a ser
do”, como consta à entrada de O obser-
lido, hoje, amanhã ou daqui a cem anos.
vador no escritório.
Assim também com outros artistas: ab-
Cético, Drummond sabia, já disse-
surdo pensar no compositor de uma sin-
ra o amigo Bandeira, que “a vida é vã
fonia criada para que orquestra nenhu-
como a sombra que passa”, uma lenta e
ma a apresentasse; ou em um pintor
melancólica procissão rumo ao grande
cujas obras fossem para sempre escon-
mistério. Assim, com a precisão de ta-
didas no celeiro de uma fazenda; ou no
lentoso repórter e o estilo de quem sabe
teatrólogo que escrevesse dramas sob a
escrever, relata a doença e a morte de
condição de que sequer fossem lidos...
entes queridos. Em 1954, volta a Itabira 44
para acompanhar, com parentes, a exu-
Um ano antes morrera José, nasci-
mação dos restos da mãe: “Sob o sol in-
do com problemas de saúde, como se lê
tenso (...) pouco a pouco a terra foi sen-
no diário: “Metade do corpo dele era
do removida a golpes de escavadeira,
vermelha e ardia em febre. A outra me-
enxada, picareta e pá (...). O primeiro
tade, quase fria. O menino cresceu difícil
osso a aparecer foi um maxilar, que nos
e cacete. Seus nervos eram destrambe-
pareceu não pertencer ao corpo de Ma-
lhados. Tudo isso talvez explique meu
mãe, pelo fato de estar fora do caixão,
irmão, seu isolamento selvagem, sua in-
mas pouco depois Ofélia conseguiu arti-
capacidade de ternura (...)”. Solteiro,
culá-lo com a caixa craniana, que estava
confidencia ao mano o caso que tem, há
lá dentro, e que surgiu pesada de terra,
14 anos, com uma senhora casada, o que
nela se distinguindo apenas as cavida-
a levou a desquitar-se do marido. Cha-
des das órbitas e o círculo da garganta.
ma-se Aída, que surpreende o escritor
Com um pedaço de madeira Altivo e
ao dizer que José também é dado às mu-
depois eu o esvaziamos do conteúdo
sas, chegou até a escrever um poema,
terroso.” O irmão a que se refere morre-
“O cavalão”, de que terá sido, certamen-
ria em 1961, Drummond viaja do Rio a
te, a única leitora.
Belo Horizonte, para o enterro: “Altivo
Ao sabê-lo doente, Drummond
já estava no caixão, o corpo coberto de
visita-o muitas vezes em Belo Horizon-
flores, na sala de visitas. A extrema ma-
te, mas tem de pegar de volta, no mes-
greza e a velhice do rosto não impediam
mo dia, o avião que faz a ponte Pampu-
que este se mostrasse sereno. (...) Conta-
lha‒ Santos Dumont: “Maravilhosa vi-
ram-me que nos últimos dias a falta de
são do Rio iluminado, ao chegarmos. 55
apetite se tornara total; a fraqueza era
minutos de voo: 1 e 5 da madrugada.
enorme, e uma ferida se formara nas
Não há táxi no aeroporto. Caminho a pé
costas, pelo atrito com a cama.”
até a Praça 15, onde, já desanimado, 45
consigo fazer um motorista recolher-me
do livro. Enfermo, o poeta de Libertina-
em seu carro, trazendo-me a Copacaba-
gem, sempre tão cioso dos assuntos
na.” Bons tempos aqueles, em que um
amorosos, faz revelações ao colega que
poeta podia andar pela noite carioca,
o visita no hospital: “Eu sempre evitei
sem o menor risco de ser assaltado ou
me complicar mantendo casos com mu-
morto por delinquentes que hoje man-
lheres de temperamento difícil. Acho
dam na cidade...
que esse negócio de trepar deveria ser uma coisa simples; duas pessoas se en-
Em 1968, Maria suicida-se com 25
contram e, como se desejam, vão dormir
comprimidos de um tranquilizante.
juntas, sem necessidade de romance.
Drummond a vê no necrotério: “Lá es-
Justamente para evitar casos complica-
tava o corpo de minha pobre irmã, reco-
dos é que tenho deixado de comer muita
berto por um lençol, em cima da essa. O
mulher boa nesse mundo.”
rosto tinha a brancura de sempre, com
Bandeira mantinha, então, relacio-
um leve tom amarelado que a morte lhe imprimira; os cabelos muito pretos, e o
namento com Lourdes Alencar, “desqui-
queixo amarrado por um pedaço de ga-
tada e violenta”, que lhe infernizou a
ze”. Em meio à miséria dos que sofrem
vida. Ante a pressão da companheira
para morrer, o autor de Claro enigma
para que se hospitalizasse, ameaçou ati-
emociona-se com a grandeza humana
rar-se pela janela. “Hoje, teve desfecho o
dos sobrinhos que dão tudo de si pelos
episódio da Casa de Saúde S. Marcelo,
pais doentes, e de mãos dadas vão com
no Leblon: a direção da casa pediu-lhe
eles até o embarque para o desconheci-
que se retirasse com Manuel, em face da
do.
situação criada pela irritabilidade e intransigência da acompanhante (...)”. Os
Manuel Bandeira e Rodrigo Melo
amigos unem-se para socorrer o poeta,
Franco de Andrade são os amigos fra-
com grandes problemas financeiros:
ternos que preenchem a segunda parte 46
mente, não tenho jeito para isso.” Foi
conseguem-lhe mil dólares mensais do Itamaraty, como pagamento de direitos
eleito Cyro dos Anjos, autor de O ama-
por publicações da obra no exterior, e a
nuense Belmiro. Mais uma proposta, dias
interferência pessoal do então ministro
depois: “Josué Montello, por intermédio
do Trabalho, Jarbas Passarinho, para
de Rodrigo [M. F. de Andrade], convi-
que lhe reservem um bom apartamento
da-me, não sei com que autoridade, pa-
no Hospital dos Servidores. A dureza
ra membro do Conselho Federal de Cul-
com que a morte nos iguala a todos é
tura, que dentro em breve renovará os
cruamente descrita: “No necrotério dos
seus titulares. Claro que não topei.”
fundos do hospital, o pobre Manuel, já
Essas, as páginas mantidas em se-
vestido, jazia à espera de caixão. A boca permanecia aberta, e nela se introduzira
gredo por quem as salvara da destrui-
um chumaço de algodão.”
ção. Pode-se concluir que o diário de Drummond, mais do que apenas uma
Peregrino Júnior, no cemitério, diz
forma de saudade, oferece-nos outra lei-
ao poeta de A rosa do povo considerá-lo o
tura: ilusoriamente distintos uns dos ou-
único em condições de ocupar a vaga de
tros, chegaremos a termos nivelados por
Bandeira na Academia. “Respondi-lhe
baixo. Não importa se Carlos, José, Ma-
que não; qualquer bom escritor preen-
ria ou Manuel: teremos vivido, todos, a
cherá bem a cadeira, não sendo necessá-
miséria e a grandeza inerentes à huma-
rio que seja um poeta ‒ e eu, definitiva
na condição.
47
_________________________________________
Uma leitura de mito e sagrado nos
eternas experiências do homem. Devido à dificuldade de serem apreendidas no impulso original e à corrosão efetuada no âmbito do tempo, além de as culturas dar-lhes um significado racional, surgiram inúmeros conceitos que as subverteram. Assim, confunde-se mito valores essenciais do ser humano - com mitologia - elenco mitológico de deuses e heróis; ou, então, aproxima-se a instituição religiosa da experiência particular do religare sagrado concebido como a força indivisível, arcaica, o impulso inicial, não burilado ainda por raciocínio ou razão. Quanto aos liames existentes entre mito e sagrado e ao desgaste proporcionado pelo tempo em seus conceitos, Ernst Cassirer, em Essencia y efecto del concepto de símbolo, sugere ter acontecido tal fenômeno durante o curso da história das religiões. Para ele, “evidencia-se o fato de tais categorias estarem sempre ligadas a elementos míticos, sendo difícil, até, fixar[-se] um on
rastros da dessacralização Delia Cambeiro IL-UERJ/PEN Clube
Muitas são as questões sobre a dessacralização do mundo. É inegável que os valores laicos proporcionaram a passagem de figuras consideradas sagradas, divinas, a novos ídolos de cunho secular, histórico. Na tentativa de perceber esse processo real, lento, porém, progressivo e drástico de laicização, retoma-se a fala de estudiosos, em busca de provável discernimento para o assunto. Com tal objetivo, deve-se recordar que em meio ao universo epistemológico do século XX circularam teorias e teóricos algumas vezes discordantes sobre mito e sagrado, categorias interligadas e reveladoras, por traduzirem primitivas, 48
to onde termina o mito e começa a religião” 1.
fundar e de constituir o real, de reconhecer um caráter imutável para as coisas, permitiria ao homem mítico adaptar-se às normas da tradição e permanecer em compasso diverso ao do processo dinâmico e irreversível da história. Como o caráter essencial da experiência mítica é colocar em prática uma realidade indissociável, o homem do tempo mítico, então, “escrevia” sua iniciativa - sua “história”- de forma ainda não fragmentada. Sob esse olhar, assinala Gusdorf, o mito não é só “um ancoramento no mundo, uma espécie de geografia cordial e existencial, [...] na extensão objetiva, mas, um ancoramento transcendente no mundo” 4. Assim percebido, mito une-se “ao primeiro conhecimento que o homem tem dele mesmo e do que o rodeia, [além de ser] a estrutura do próprio conhecimento”5 de um mundo envolvido por incógnitas e por mistérios do sagrado. O homem de que fala Gusdorf conheceu uma realidade global e nela exercia uma iniciativa ainda não fragmentada, pois, naquele espaço, dialogavam homem, natureza e sobrenatureza, permitindo que convivessem o visível e o invisível.
Lucien Lévy-Brülh, ao estudar o tema, sublinha que mito é "a carcassa sem interesse nem importância que subsiste com os elementos místicos evaporados", onde se encontra infiltrada a ideologia dominante. Ressalta que, para o homem dos tempos míticos haveria uma espécie de aversão às “operações discursivas do pensamento [...] resultantes “de hábitos espirituais, [...] e não de uma radical incapacidade” 2. Na intenção de iluminar o campo dos estudos de mito e de sagrado como impulso inicial, outras falas teóricas refletem sobre os componentes essenciais dessas categorias, tentam decifrar suas cargas polissêmicas e repensar a profundeza de suas mensagens. Georges Gusdorf, na obra Mythe et métaphysique, referindo-se ao “homem pré-categorial”, salienta que para o pensamento arcaico “tudo já está disposto e definido no mundo, abdicando-se de qualquer tentativa de desequilibrar a ordem” 3. Na perspectiva pré-lógica, a percepção mítica carece de discurso crítico-reflexivo, delineando-se, assim, uma consciência não problematizada, receptora passiva dos mitos e dos rituais. Tal maneira de
No clássico O sagrado e o profano, Mircea Eliade parte da definição também utilizada por Roger Caillois de que “sagrado é aquilo que se opõe a profa-
1
CASSIRER, Ernst. Essencia y efecto del concepto de symbolo. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. p.163. 2 LÉVY-BRÜLH, Lucien. Les fonctions mentales dans la société inférieure. 9. ed. Paris: Alcan, 1928. p.434. 3 GUSDORF,Georges. Mythe et metaphysique. Introduction à la philosophie. Paris: Flamarion, 1984. p.68.
4 5
49
Ibid. p.103. Ibid. p.203.
no” 6, e daí elabora uma natureza suscetível de se revelar como sacralidade cósmica, de permitir que as realidades se tornem sagradas, hierofânicas, que se transformem em “outra coisa”, diferente da condição normal, quotidiana, profana. Deste modo, os inúmeros gestos de consagração a que Eliade se refere, como a dos espaços, dos objetos, dos homens e do tempo, revelam a permanência de um incorruptível valor sagrado no ser do homem. Na concepção deste autor, a descoberta das hierofanias abriga uma revelação espontânea de valores religiosos, independente do nível histórico em que esteja o indivíduo ou a coletividade que faça a descoberta reveladora do sagrado. Segundo suas palavras, tem-se, portanto, uma forma de reminiscência cognitivo-salvadora para o homem moderno, habitante de um mundo dessacralizado, mundo da ciência e da técnica, tempo de mudanças e de valores em constantes conflitos. O sagrado, na concepção hierofânica da natureza, resiste ao profano, sua realidade se reveste de um sentimento perene, porque acima de tudo transcende. Ainda para o estudioso romeno, mito “relata um acontecimento que teve lugar em um tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos” 7.Com tais pala-
vras¸ Eliade utiliza uma definição ambígua, pois o que relata é a lenda, a narrativa mítica, a mitologia, mas não o mito. Relato estaria no domínio da mitologia, que, para Gusdorf, já traduz algo apartado do contexto em que brotou, mostrando-se já bastante desfigurado em sua natureza. Já o termo mitologia insinua um investimento de reflexão, um desejo de sistematização, ainda ignorado pelo homem religador da idade mítica. O mito-narrativa equivale ao conto e à lenda, servindo apenas de elemento para as mitologias representantes de uma forma tardia, degenerada, fossilizada, do mito primitivo de cunho vivo e eficaz. Percebe-se, sem dúvida, nas reflexões gerais de Eliade, características do sagrado-potência e o pressentimento do totalmente outro, do absolutamente diverso, desenvolvidas pelo comparatista das religiões Rudolf Otto, na famosa obra O sagrado. As teses de Otto sugerem o sentimento de certo temor e de reverência perante “aquilo que, por sua natureza e proporções, ultrapassa toda a medida” 8. Otto substituiu sagrado por “numinoso”, isso neutraliza certos valores de cunho ético, em que sagrado tomaria acepção de bom. Para ele, numen é uma categoria e uma essência, apontando-o como instância psicológica incapaz de
6
CAILLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Trad. G. C. Franco. Lisboa: 70, 1988. p.33. 7 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Trad. R. Fernandes. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. pp. 27-28.
8
50
OTTO, Rudolf. O sagrado. Trad. J. Gama. Lisboa: 70, 1992. p.62.
ser explicada ou racionalizada, podendo apenas ser sentida. Sendo assim, numen se torna acessível pela emoção e pelas reações psicológicas que provoca, nunca se apresenta racionalmente compreensível, já que “é objeto de qualidade e de natureza exterior ao eu e não podemos conhecê-lo por conceitos”9. Segundo Otto, os predicados racionais não esgotam a noção de divindade e sob tal concepção se encontram, ainda, o mito e a religião. Para o teólogo, o numinoso despertaria a experiência do terror místico, o “mysterium tremendum, “o totalmente outro, o alienum [...] já fora do domínio das coisas habituais” 10; tais coisas habituais, para Eliade, já pertenceriam ao “espaço amorfo do quotidiano indiferenciado” 11. O mistério da divindade e a majestas da absoluta superioridade do poder exercido encerram um componente harmonioso. A este elemento profundamente perturbador, inebriante da ação do numen, Otto chama de fascinans, portanto, entre o “fascinans atraente” e o “tremendum repulsivo” 12, forma-se a via da coincidentia oppositorum, a harmonia de contrários, com destino à identificação mágica de si mesmo com o numen. Na qualidade de categorias que, por suas essências, guardam raízes de foro arquetípi-
co, de cunho eterno, mito e sagrado confirmam, modernamente, a permanência e a continuidade do indisível, do “totalmente outro”, pois, no espírito humano, vive uma lembrança de evidente natureza arcaica. Tal lembrança se manifesta na forma de angustiosa nostalgia de um sentido coeso, não fragmentário, ainda existente, apesar de tudo, nas sociedades atuais, afirmam os estudiosos.
9
13 MIELIETINSKI, Eleazar. A poética do mito. Trad. P. Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 28. 14 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Trad. C. F. Bezerra. São Paulo: Palas Athena, 1999. pp. 32-33.
Em A poética do mito, de Eleazar Mielietinski, mito é um “princípio eternamente vivo, que desempenha função prática também dentro da sociedade atual [...]” 13. Além deste mitólogo russo e após citarem-se teóricos e teorias que discorreram sobre mito e sagrado pergunta-se, então, qual a função de mito e de sagrado para a humanidade? Alguns pressupostos importantes não poderiam aqui ser amplamente desenvolvidos e com o objetivo de amarrarem-se as discussões vem Joseph Campbell, em O poder do mito, enunciar quatro funções do mito que, infelizmente, aqui serão apenas citadas: mística; cosmológica; sociológica; e pedagógica 14. E, afinal, para fechar essa brevíssima leitura de mito e sagrado, indagase agora: qual a relação entre tais cate-
Ibid. p.21. Ibid. p.39 11 ELIADE, op.cit. pp.27-28-29-50. 12 OTTO, op.cit. pp.49-51-54. 10
51
gorias e o texto literário, com o qual tanto trabalhamos? Observa Mielietinski 15 que:
partir da voz de Mielietinski, confirmase o poder do texto simbólico a resgatar o sagrado primacial, em que todos os atos do viver possuem uma força secreta. Em verdade, o homem atual, empenhado em desligar-se de fundamentos ancestrais e baseado somente no discurso reflexivo de conteúdo histórico não mais consegue ler, tão facilmente, o sentido de sagrado cujas raízes continuam vivas, pois, a substituição de figuras sagradas e divinas por outras de cunho profano e histórico atualizareatualiza, de forma dissimulada, mitos e valores eternos da humanidade. Ainda com Mielietinski, entende-se que mito e sagrado - mesmo dissimulados são princípios eternamente vivos, que desempenham “função prática também dentro da sociedade atual [...]” 16 (grifos da autora). Pontuou-se no início desse ensaio a dessacralização das sociedades atuais, mas, talvez agora, chegue-se a perceber a existência de uma dinâmica antagônica de inesgotável e imperceptível - mas contínua - sacralização do mundo: o que, certamente, daria uma larga discussão, em provável estudo posterior.
[...] a literatura está geneticamente relacionada com a mitologia [...] e, particularmente a literatura narrativa [...]. Esse domínio da mitologia na cultura contribui para a manutenção, em diferentes medidas, dos traços da forma simbólica de arte. [...] Eu diria que enquanto o emprego da mitologia [...] permanecia característica onipresente e universal da literatura, o valor do mito ainda não se extinguira completamente. [... ] Nos séculos XV-XVIII, as imagens e motivos da mitologia e, posteriormente, da bíblica são um arsenal da metaforicidade poética, uma fonte de temas e uma singular linguagem formalizada da arte. [...] O mitologismo é um fenômeno característico da literatura [...] quer como procedimento artístico, quer como visão de mundo que dá respaldo a esse procedimento [...]. Dessa forma, após ouvir as vozes críticas citadas, conclui-se que o sagrado primordial é o espaço do não-limite, é a geografia simbólica em que se elidem todos os liames. Sem dúvida, a
15
16
MIELIETINSKI, op. cit. pp. 329-331-350.
52
MIELIETINSKI. op.cit. p.28
na exposição e no livro Do reino encantado, e Eduardo Simões, autor dos expres-
Pedro Karp Vasquez
sivos ensaios fotográficos dos Cadernos
_________________________________________
de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles.
Nos passos do
No que me diz respeito, tive a
passeador:
oportunidade de participar do evento
O Rio de
Brasil, em outubro de 1989, com a expo-
Lima Barreto
quez, embrião de um livro ainda a ser
inaugural do Centro Cultural Banco do sição O Rio de Machado por Pedro Vaspublicado. Mostra requisitada em 2008
“Uma cidade se transforma quando transforma o observador,
pela Academia Brasileira de Letras, para
que passa a olhá-la de outra forma.
os festejos do centenário de morte do
Antonio Carlos Secchin
Bruxo do Cosme Velho.
Obras literárias sempre inspiraram os
De Machado de Assis a Lima Bar-
fotógrafos. No Brasil o caso mais ex-
reto foi uma passagem natural, em vir-
pressivo é, sem dúvida alguma, o de
tude tanto das similitudes quanto das
Maureen Bisilliat, que produziu livros
discrepâncias existentes entre ambos.
baseados em romances ou poemas de
Descendentes de escravos nascidos no
Mário de Andrade, João Cabral de Melo
Brasil imperial eles souberam impor os
Neto, Euclides da Cunha, Jorge Amado
respectivos talentos literários de forma
e Guimarães Rosa. Merecem igualmente
insofismável, muito embora, por razões
destaque Evandro Teixeira, com seu li-
de temperamento ou quiçá de predesti-
vro sobre Canudos a de hoje, depois do
nação cármica, tenham ocupado posi-
Conselheiro, Gustavo Moura, que inter-
ções antagônicas na escala social. Divi-
pretou o universo de Ariano Suassuna
dindo-se entre o funcionalismo público 53
e a escrita, com forte atividade na im-
que foi cancelada em virtude da crise no
prensa, o primeiro conquistou “a glória
Ministério da Cultura, que chegou a ser
que fica, eleva, honra e consola”, na
extinto no começo do governo Temer e,
qualidade de presidente vitalício da
depois de reativado, teve três ministros
ABL. Ao passo que o segundo amargou
em menos de um ano. Parecia até que a
o opróbrio público, a internação no
falta de sorte que perseguiu meu xará
Hospital de Alienados e a indiferença
parcial (Afonso é meu segundo nome)
da Academia, que o recusou em seus
continuava a persegui-lo. Porém, insis-
quadros em duas ocasiões diferentes.
tindo na homenagem ao nosso grande
Iniciei o projeto sobre o Rio de
Dom Afonso Henriques, que soube con-
Lima Barreto muito antes de sua mere-
quistar com a pena afiada o respeito que
cida consagração na Festa Literária de
seu predecessor português foi obrigado
Paraty, em 2017. Tinha, inclusive, uma
a conquistar com a espada, reproduzo
exposição agendada no Espaço Cultural
aqui algumas fotografias deste projeto
Eliseu Visconti da Biblioteca Nacional
ainda em curso.
54
◄ Esta imagem da Biblioteca Nacional em obras me agrada pelo tom surrealista e, sobretudo, pela figura do “lobo solitário” no primeiro plano, que, para mim, simboliza Lima Barreto a perturbar o coro dos contentes com suas invectivas e ironias.
◄ A Avenida Central (atual Rio Branco) foi objeto de diversos textos de Lima Barreto, que encarava com extrema desconfiança o projeto de modernização de inspiração francesa do prefeito Pereira Passos. O que existe de significativo nesta imagem é o cartaz do VLT mostrando um bemsucedido e feliz casal negro de classe média, possibilidade que até mesmo um visionário como Lima Barreto não se arriscaria em antecipar.
Lima Barreto escreveu com frequência sobre futebol, esporte que começava a adquirir popularidade em seu tempo e persiste até hoje como “a paixão nacional” e uma das raras vias abertas para a ascensão social do contingente mais
.
humilde da população
Apesar de acreditar que “o subúrbio é o refúgio do infeliz”, Lima Barreto era morador de Todos os Santos e usuário constante dos trens da Central, que possibilitaram a expansão da cidade em direção à Zona Norte graças aos ramais da própria Central e da Leopoldina. Hoje o metrô atende diversas destas localidades, enquanto outras são servidas pelos trens metropolitanos da Supervia.
Lima Barreto se insurgiu contra o desmonte do Morro do Castelo, núcleo inicial de povoação do Rio de Janeiro. Lamentava em especial a destruição da cidade de feições portuguesas para a implantação da metrópole afrancesada, que ele considerava destituída de alma e de verdadeira relação com nossa realidade. Caso ele visse em que se transformou a Esplanada do Castelo, com a igreja de Santa Luzia perdida em meio aos arranha-céus, haveria de protestar ainda mais.
◄ Em uma de suas crônicas Lima Barreto confessou que gostava de apreciar as moças no Centro justamente quando estava barbado e mal vestido, pois, assim como Baudelaire, ele também gostava de épater la bourgeoisie. Como costuma acontecer com os grandes tímidos, ele era mais um voyeur que um paquerador e certamente iria apreciar a independência das profissionais liberais deste novo milênio, que não vivem mais à sombra marital.
A passagem de Lima Barreto pela Escola Politécnica não foi nada agradável. Sentia-se desprezado e perseguido, como de fato era por ser negro e de origem humilde, de modo que acabou abandonando o curso antes do término. Ainda assim, ele haveria de lamentar profundamente o atual estado do prédio, que hoje abriga o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais do Rio de Janeiro. Parece inclusive que Camões preferiu dar costas ao edifício, para não vê-lo profanado por centenas de pichações.
◄ Nascido no período imperial, Lima Barreto foi levado pelo pai para testemunhar nas ruas a comoção popular provocada pela Lei Áurea, assinada exatamente no dia do seu aniversário de sete anos, pois assim como Dom João VI ele também era um taurino do dia 13 de maio. Faleceu no dia 1º de novembro de 1922, quando o país celebrava o centenário da Independência com a grande exposição realizada à beira-mar, na área aterrada com o desmonte do Morro do Castelo em um paradoxo bem brasileiro: festejar o passado sobre seus escombros.
◄ Preocupei-me em incluir algumas imagens de Niterói neste projeto, pois Lima Barreto morou certo tempo na cidade, na qualidade de aluno do Liceu Popular (convertido em Liceu Nilo Peçanha em 1931). A escola era então uma das melhores do país, igualada apenas pelo Colégio Pedro II, do outro lado da baía. Pouco antes de Lima Barreto estudou ali outro rapaz que também deixaria o nome marcado na história da imprensa nacional, porém como empresário: Irineu Marinho, fundador do jornal O Globo.
Tania Zagury instância, é mais fácil do que gerir democraticamente, que requer diálogo, empatia e capacidade de comunicação – para se falar o mínimo. Independentemente, porém, de o modelo de relações interpessoais que predomine na sala de aula, admite-se que, se o professor tiver domínio de conteúdo, desejo real de ensinar e alguma formação didática, os resultados, em geral, serão positivos. Quem estudou há quarenta anos quase que só conheceu o professor autocrático. O que não significou, obrigatoriamente, mau ensino. Não se pode, pois, afirmar que é apenas a relação professor x aluno que determina a qualidade do resultado educacional. Professores que pouco se relacionavam com os alunos não eram obrigatoriamente maus professores. Bem como, ontem e hoje, há os queridos e afetivos, mas que em matéria de ensino deixam a desejar.
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Professor é quem ensina
Ser professor nunca foi tarefa simples; mas quando as escolas se regiam pelo Modelo Tradicional, o manejo de classe era, sem dúvida, menos complexo que hoje. A teoria educacional subjacente era: professor ensina, alunos aprendem. Antes que pensem que estou defendendo a volta ao modelo tradicional informo que não se trata disso. Apenas constato que o exercício autocrático do poder, embora indesejável em qualquer
Por outro lado, na sala de aula dos modelos liberais - atualmente considerados os mais adequados - tudo é passível de discussão: do conteúdo à avaliação. A hierarquia de poder é menos visível e, para alguns alunos, inexistente. Alunos opinam sobre o que querem aprender, o que gostam e até como que-
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sionais da área, passaram a atribuir todas as “culpas” ao professor - numa perigosa distorção. Se, realmente, muitas vezes o problema reside na escola, em outras, também bastante frequente, é, de fato, o aluno o responsável pelo seu parco desempenho. Apontar o professor como único responsável pelos fracassos do ensino é mascarar a realidade, especialmente sem uma análise profunda do processo.
rem o que gostam! Torna-se tarefa quase hercúlea conciliar objetivos tão variados, especialmente quando boa parte dos jovens está interessada tão somente em “passar de ano” - se possível, com o mínimo de trabalho. Além disso, apoiados pela crítica – nem sempre real – que fazem aos que classificam como “maus” professores, no imediatismo característico da idade acabam se tornando os mais prejudicados no processo.
Outro exemplo: Sabemos hoje que a avaliação deve ser ampla, e não se pode restringi-la a apenas uma prova, porque assim se cometem sérias injustiças. Só que generalizando erroneamente o conceito, acabou-se constituindo um bordão repetido até por especialistas: “prova não mede nada”. Ocorre que prova mede, sim. E, por vezes, avalia com mais precisão do que certos tipos de avaliação (dita qualitativa), na qual se instala a farsa dos trabalhos de grupo que nada acrescentam e, muitas vezes, são feitos apenas por um ou dois alunos interessados, enquanto que capa e ilustração se tornam a “contribuição” dos demais. E, assim, dentre estes e outros enganos, assiste-se agora - assombrada a sociedade - a notícia de que os alunos, ao final do Ensino Médio, apresentam graves deficiências de interpretação de textos. Entre outras graves falhas!
A família, hoje, quando tem algum verniz sobre modernas metodologias educacionais, se sente habilitada a opinar sobre aspectos para os quais, na verdade, não se encontra absolutamente capacitada. Muitas vezes ouviram pequena e inexpressiva parte de determinada teoria, a partir do que fazem generalizações (e/ou exigências) que carecem de qualquer fundamento pedagógico. Por exemplo: a ideia de que uma turma na qual 70% dos alunos foram reprovados em uma determinada matéria, teria obrigatoriamente como causa, a atuação docente - plausível pedagogicamente, jamais, porém, a única possibilidade. Décadas atrás, tudo era culpa do aluno, que ‘não havia estudado ou era desatento”. Hoje sabemos que a falha pode estar tanto no processo, quanto na metodologia ou na avaliação. Em consequência, porém, pais e até alguns profis70
enciar o ideário docente. Da Escola Ativa, o aprender a aprender deixou marcas profundas. A Teoria da NãoDiretividade de Carl Rogers alterou inequivocamente a relação professor x aluno ao trazer o modelo psicodinâmico, dos consultórios para a escola. Na prática, significou dúvida e insegurança para os professores. Afinal como transformar teorias tão novas, em real fazer pedagógico? Como atuar para ser um professor não tradicional? Como cumprir o programa, e, ao mesmo tempo, atender ao que o aluno gosta e quer fazer? Como fazer cumprir o contrato de trabalho preconizado por Rogers, numa sala de aula que abriga quarenta alunos, com quereres e objetivos diversos, alguns interessados em aprender, outros movidos apenas pelo utilitarismo? Como superar tantos desafios, se nem problemas simples foram jamais sanados na rede de ensino? Sim, ainda temos mais de 40% de escolas sem esgoto, Brasil afora!
Analisar as causas do problema é preocupação sobre a qual se debruçam todos os que desejam uma escola de qualidade. São vários os elementos que concorrem para a atual situação: a má compreensão de algumas modernas linhas pedagógicas; a rara experimentação prévia; e, pior, o inexistente acompanhamento dos resultados da utilização de cada novo método, para citar alguns. Em conjunto têm consequências graves. Uma delas é a insegurança que mudanças precipitadas ou mal planejadas causam a docentes e alunos. Cada uma delas é sempre apresentada como solução eficaz para os males que afligem a escola brasileira. Ao professor, intimidado pela segurança com que lhe apresentam cada nova “moda” pedagógica, resta calar e levar para sala de aula a coqueluche do momento. Quase sempre com pouco ou nenhum treinamento adequado. E, pouco depois, quando começam a sentir segurança na nova metodologia, a mesma é descartada, dando lugar a outra, mais moderna e, portanto, melhor...
Professores, atônitos, assistiram à derrocada de quase tudo que aprenderam em sua formação. Uma a uma, técnicas tradicionais de ensino são condenadas, banidas, consideradas “antiquadas”. Enquanto isso, e ao mesmo tempo, autoridades educacionais adotam medidas que, para ter possibilidade mínima de sucesso, exigiriam mudanças sig-
Também a relação “professor x aluno” sofreu mudanças nas últimas décadas - e com agravantes! Foi em torno dos anos 1960 que o modelo tradicional de ensino começou a ser contestado no Brasil. As ideias de John Dewey, Maria Montessori e Piaget começaram a influ71
A retenção, a reprovação traumatiza o aluno e é responsável pela evasão escolar, repetem muitos. Então vamos progredir a todos, assim ninguém fica frustrado, pregam autoridades educacionais - quando o que desejam é tão somente melhorar suas estatísticas. E a qualidade? A aprovação absoluta seria espetacular, se, obviamente, estivesse amparada por medidas que realmente dessem ao professor a possibilidade de concretizar um trabalho de qualidade tal, que possibilitasse o real alcance dos objetivos de cada série e de todos os alunos. Aí sim! As vagas estariam sobrando e – melhor que tudo – os alunos estariam progredindo de verdade. Não teríamos o dissabor de ver se revalidar nos exames do próprio MEC, o que cada professor sabe: que o ensino está cada vez pior! A cada ano, mais alunos concluem o Ensino Básico sem saber interpretar um simples texto.
nificativas, a começar pela infraestrutura das escolas. Que não ocorrem... Nesse contexto, a relação professor x aluno torna-se supervalorizada: o bom professor é o que é “amigo” dos alunos, e qualquer intervenção para controle de disciplina é vista como ameaçadora. Essencial torna-se entender as dificuldades. Professor passa a sinônimo de “especialista em relações humanas”. E o termo “professor” nem deve mais ser empregado, segundo alguns. Educador é o que sugere, por mais amplo. Segundo a mesma vertente, quem reprova é mau professor: o rendimento do aluno depende diretamente do trabalho docente, dizem. Se o aluno não aprendeu é porque o professor não trabalhou bem. O que pode ser verdade às vezes! Como se a relação obedecesse a uma causalidade inequívoca! Ignorar que é frequente, em muitas turmas, alunos se encontrarem totalmente despreparados para novas aprendizagens por falta de pré-requisitos, por deficiências anteriores ou por problemas sociais é desconhecer a realidade da sala de aula brasileira. Aprovar cem por cento de seus alunos é desejo de todo professor consciente, porém aprovar quem não alcançou objetivos educacionais mínimos é terrivelmente frustrante; é a condenação do jovem ao fracasso - na vida!
Em que mundo vivemos, em que a ética foi de tal forma esquecida, em função de interesses pessoais? Pobre Brasil! Já é alto o número de professores que, a cada dia, abandona a carreira, assim como estão esvaziados os cursos de formação de professores. A relação pedagógica tem que se embasar numa hierarquia (não rígida nem autoritária), que preserve o professor como autoridade da relação, de mo72
ção professor/aluno não pode ser supervalorizada em detrimento do saber. Professor não é psicólogo! Deve cuidar afetivamente de seus alunos sim, mas sem desvirtuar sua função precípua: ensinar. Professor é aquele que ensina.
do a que possa manter as condições que permitam ocorrer a aprendizagem. Enquanto não concretizarmos essa verdade simples, veremos decair mais e mais o nível do ensino brasileiro. Impossível aprender sem um mínimo de disciplina e organização nas salas de aula. A rela-
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SUSPEITA Conto de Jorge Sá Earp
Depois de esperá-la não sem certa
cruza as belas pernas à minha frente
inquietação, eis que irrompe subitamen-
(não gosto dessas calças por demais
te sala adentro com várias sacolas de
apertadas) e gesticula com agitação,
compras. Levanto devagar os olhos dos
sempre está agitada, e seus olhos me fi-
papeis como que para aparentar indife-
xam. Quando viram em outra direção
rença e admiro uma vez mais sua beleza
fico a busca-los como contas de um gu-
– como se não a visse todos os dias.
de marrom e brilhante que eu lutasse por recuperar.
Quando saio com Helena, como por exemplo sei que vai acontecer hoje
*
na hora do almoço, as pessoas inter-
Notei que o chefe hoje andava tris-
rompem o que estão fazendo só para
tinho. Não gosto. Não gosto de ver ele
babar Helena. Ela tem o que os france-
desse jeito. Conheço ele bem, afinal tem
ses chamam de aplomb.
anos que eu trabalho na firma, o Dr. Lu-
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Desceram para almoçar.
ís Augusto em geral é alegre, expansivo, gosta de fazer brincadeiras, nunca nada
*
de mau gosto, tudo sempre com muito humor, mas um humor refinado, respei-
Helena gostava do Mosteiro ou do
toso, às vezes com alguma ironia... Mas
Eça, mas hoje resolveu escolher o Anco-
sei o que é: como eu disse, conheço-o
ramar. Confesso que senti certo abalo
bem: é D. Helena que não chega. Ela
quando minha mulher sugeriu o restau-
vem quase todos os dias pra almoçar
rante com aquela fisionomia doce, de
com o Dr. Luís Augusto e até agora não
menina meiga, necessitada de carinho.
chegou. Ele fica inquieto. Sou eu quem
Despe a atitude meio máscula de mu-
sempre passa o telefone e sei que quan-
lher decidida e veste essa outra à qual
do eles se falam um pouco antes do
acabo cedendo, não sem deixar de pro-
meio-dia, é pra combinar almoço a uma.
testar que considero um exagero ir al-
Mas agora já são duas, estou aqui almo-
moçar no meio da semana num restau-
çando na cantina e ela nada. Nesses ca-
rante caro. Talvez esse protesto tenha
sos (hoje não é a primeira vez que ela
origem remota na minha educação mi-
dá bolo nele), o Dr. Luís Augusto desce
neira... ou se trate apenas de um reflexo
pra comer sanduíche. Um melancólico
imediato da lembrança da última conta
sanduíche na lanchonete aqui de baixo.
do cartão de crédito de Helena.
Não tem vontade de sentar num restau-
- Vamos! A Solange disse que está
rante e esperar. Não! Espera: a porta da
lindo o novo Albamar. Vista maravilho-
sala está aberta! Justamente quando eu
sa, comida ótima... fui lá quando era pe-
voltava da cantina... D. Helena chegou,
quena com papai.
estou vendo os seus cabelos pretos brilhosos e compridos. E os gestos espalhafatosos. E a sua voz estridente. Agora o chefinho está feliz. 75
nheço bem. Ela sabe que eu não vou fazer o papel ridículo de, na sua ausência, checar se elas viajaram mesmo ou não. Lá vem essa desconfiança de novo que me atormenta, como atormenta todo marido ciumento. O ciúme é a sombra do amor, disse Proust, e eu que gostava É deslumbrante mesmo essa vista
tanto de ler quando era adolescente e
na baía. De repente me distraio e fico
antes de começar a trabalhar. Depois
contemplando a barca deslizando nas
enveredei por esse ramo de finanças e
águas rumo a Niterói, ao fundo as mon-
parece que...
tanhas... Helena interrompe então meu
- Luís Augusto... eu estou falando
devaneio para reclamar minha falta de
com você... Está bom o seu prato?
atenção e vai falando da reforma do
- Tá, tá.
apartamento. Eu já não quero reformar nada. Está bem como está: Helena, eu
- Em que é que você estava pen-
não sei por que você vive pensando em
sando? É na minha viagem, é? Está pre-
reformas... Ela então muda de assunto, o
ocupado porque eu vou gastar muito
que eu acho bom, mas vem me apo-
dinheiro? Não vou, amor, você sabe que
quentar com essa história de viagem
eu sou uma mulher conscienciosa, não
com as amigas para Miami. Não vou
sou louca de estourar o cartão. Você não
perguntar com que amigas. A curiosi-
notou como eu estou muito mais eco-
dade aflora, me faz comichões, incen-
nômica ultimamente?
deia minha garganta, quer explodir, re-
- Ah... muito... Então por que essa
sisto, mas ela vem à tona, vaza como um
história de reforma no apartamento?
vômito, águas que resvalam de uma represa. Helena enumera duas, que eu co76
- Tá bem: esquece a reforma. Luís
beça. Está conversando com aquele seu
Augusto, antes você não era assim... era
amigo que mora em Miami. Será, meu
tão generoso...
Deus? Será que ele vai se prestar ao papel ridículo de pedir ao amigo que ave-
Ela apanha a minha mão e me es-
rigue se D. Helena está mesmo no hotel
tonteia com o seu olhar meigo. Retribuo
que disse que vai ficar em Miami? Que
o olhar, tento sorrir e vejo seu belo rosto
vergonha... e o amigo vai logo perceber
contra o mar azul da baía atrás. Já não
que o Dr. Luís Augusto desconfia de
há mais barcas passando.
qualquer coisa... de que D. Helena não
*
viajou com duas amigas... Homem ciu-
O chefe anda tenso. Percebo logo.
mento é uma coisa horrível. Bem sabe
Não faz piadas, não sorri quando diz
disso minha irmã Dolores, vítima das
bom-dia nem traz aquela carinha suave
implicâncias constantes do marido...
dos dias em que está normal. Anda ner-
Coitada, mais fiel não pode ser...
voso, inquieto com alguma coisa que eu
De repente Dr. Luís Augusto abre
ainda não sei o que é. Por exemplo, ago-
violentamente a porta e sai do gabinete
ra entrou correndo no seu gabinete e ba-
enfiando com pressa o paletó enquanto
teu a porta com força. Consigo ouvir
se dirige para a porta de saída da minha
que está falando ao telefone. Não me
sala.
pediu a ligação, como costuma fazer. É
- Não volto mais hoje, Marieta!
chamada privada, confidencial.
Apanhe os recados e se for alguma coisa
Não sou curiosa, não, mas passa-
urgente, me chama no celular!
dos uns minutos não resisto, os ouvidos
*
coçam, vejo se não vem ninguém, me levanto e caminho pé ante pé até a sua
Quando Helena voltou de Miami,
porta, onde encosto discretamente a ca-
notei sua agitação. Ela era normalmente 77
inquieta, mas dessa vez me pareceu eu-
- Mas o que é que você tem? Mal
fórica em demasia. A princípio, senti
eu chego e você me recebe com essa cara
vontade de desabafar, de lhe atirar em
de enterro! Nem agradece o presente!
rosto sua própria inquietação, mas re-
Me sento e manuseio as gravatas
primi a voz que me pulsava na gargan-
como se estivesse escolhendo amostras
ta. Detesto esse meu temperamento de
de tecido para um sofá. E sem encará-la
sufocar a revolta dentro de mim, mas
pergunto:
sabia que provocar uma tempestade, pelo menos no primeiro momento, iria
- Como foi a viagem?
desencadear uma situação agressiva e
Outra pergunta, no entanto, roça-
embaraçosa para ambos. Além disso,
va o palato e ameaçava articular-se com
Helena sairia forçosamente com menti-
língua e lábios enquanto Helena tagare-
ras, desculpas inverossímeis, difíceis de
lava histórias que soavam falsas ou re-
engolir.
petidas.
Me abraçou, me beijou (um beijo
- Que tal o hotel? – finalmente
que me deu asco) e atirou sobre a mesa
pergunto.
de centro um pacote comprido como um
- Mudamos.
estojo, que abri sem curiosidade: eram
Diante do meu cenho franzido,
várias gravatas, bonitas até.
esclareceu:
- Achei que você estava precisando de uma nova coleção de gravatas! As
- Elas não gostaram do Hyatt e aí
suas já estão muito batidas! Olha aí: Fer-
mudamos pro Marriott. Sei lá, frescura
ragamo. Você não gosta de Ferragamo?
de mulher. Você sabe como é. Helena percebeu minha desconfi-
- Helena, você sabe muito bem que
ança e tirou logo a resposta precisa do
eu estou pouco ligando pra grifes!
bolso. A resposta útil, a mais convenien78
te e aquela capaz de me enganar facil-
Foi no clube, no clube depois da
mente. Não tem problema, deixa estar:
habitual partida de tênis, enquanto to-
procurei manter a minha fleuma, a fle-
mávamos chope que ouvi do meu ami-
uma do marido enganado que não deve
go Sérgio comentários elogiosos sobre
deixar-se perceber enganado, mas aque-
Miami.
la suspeita de tática por parte de Helena
- E em que hotel você costuma fi-
foi me corroendo por dentro.
car lá?
Durante as refeições, principal-
- No Marriott, of course. – ele res-
mente as dos fins de semana, ficava
pondeu com um sotaque exagerado e ao
mais difícil transparecer um estado de
concluir sua risada, olhou de soslaio He-
tranquilidade, ou melhor dizendo, de
lena, que ruborizava, fenômeno circula-
normalidade nas nossas relações. Nesses
tório que raramente a acometia.
hiatos de sábados e domingos (ah! os almoços em restaurantes e em casa ou
É isso! Meu amigo, meu parceiro
dos pais de Helena ou dos meus, como
de tênis! Filhos da puta! Engoli em seco
era árduo tentar me manter o mais es-
na hora, mas tanto na direção do carro
toico possível, sobretudo quando inva-
de volta do Caiçaras para casa (“O que é
riavelmente se toma uma bebidinha –
que você tem, amor?”), quanto nos dias
um aspirante a estoico com quedas epi-
e nas noites subsequentes (ah! as noites!)
curistas), nesses hiatos de sábados e
imaginava como eu liquidaria Helena e
domingos meus ouvidos nunca podiam
Sérgio. Teria de ser de maneira lenta e
deixar de estar alertas a qualquer telefo-
muito dolorosa.
nema recebido por Helena e meus olhos
*
perscrutavam sem trégua suas reações
O Dr. Luís Augusto volta e meia
quando expostas a outrem.
me oferecia carona. Nunca aceitei. Não gosto de intimidades com colegas de 79
trabalho, muito menos com meus che-
levou prum bar chique no centro mes-
fes. Mas naquela tarde ele se comporta-
mo. Foi ali que mal terminou o primeiro
va de maneira tão inquieta, não parando
uísque (não ousei pedir que ele tomasse
dentro do gabinete, ele que geralmente
cuidado com o álcool já que estava diri-
quase não sai de lá, caminhando agitado
gindo), me confidenciou o que o tortu-
pela minha sala, saindo, entrando, ba-
rava.
tendo portas... tão inquieto que aceitei.
Fiquei horrorizada; com sua sus-
Aceitei não: me ofereci. É, vendo meu
peita e com a forma com que imaginou
chefe naquele estado, os remanescentes
acabar com os dois. Defendi D. Helena.
cabelos em desordem, o rosto vermelho,
Afinal era só uma desconfiança. Só por-
a respiração arfante, os olhos desassos-
que mudou de hotel não queria dizer
segados, perguntei se podia me dar ca-
nada. Mulher é um bicho chato mesmo,
rona. Minha intenção era só fazer um
quando implica com hotel, roupa de
pouco de companhia pro Dr. Luís Au-
cama, roupa de banho, não tem jeito.
gusto. Longe de mim querer me meter
Pode ser a coisa mais chique do mundo.
na vida dele, tentar pescar algum segre-
Batem o pé e até convencem as amigas.
do, esse segredo que o está atormentan-
Outro lado: (e o Dr. Luís Augusto conti-
do, pobrezinho.
nuava entornando) o fato de o Dr. Sérgio gostar do... – como é mesmo o nome
- Não vou desviar o senhor do seu
do diabo do hotel? - ... pois é: isso não
caminho pra casa?
quer dizer que os dois tenham ficado
- Não vai desviar, não, Marieta.
juntos lá. Milhões de pessoas vão e vêm
Quantas vezes já não te ofereci carona?
daquele hotel e outros mil que deve ter
Ele insistiu então para tomarmos
em Miami e dois amigos, quer dizer, co-
um drinque antes. Respondi que não
nhecidos, podem coincidentemente ter
bebia, mas o chefe contestou que estava
as mesmas preferências. Além disso, Dr.
precisando tomar um. Acedi, e ele me 80
Luís Augusto, deixa eu lhe dizer uma
mas não: nem uma coisa nem outra. Até
coisa: o fato da D. Helena ter ficado
que é engraçadinha, tem lábios e pernas
vermelha ou o senhor – com todo o res-
bonitas (reparei quando foi ao banheiro
peito – ter visto ela ficar vermelha, pode
lá naquela bar na cidade) e, por outro
ser só mera impressão do senhor porque
lado, muita capacidade de observação.
já eu fico vermelha à toa, não tá vendo
Depois, se for verdade mesmo e se eu
agora? Só de tá falando com o senhor...
matasse os dois como pretendia (incendiados, presos no elevador), teria de
*
sofrer anos de prisão. Para dor e vergo-
Nem sei como consegui deixar a
nha do Guga. Não vale a pena: mãos
Marieta na Tijuca e depois chegar em
sujas. Não: Marieta tem razão; tudo não
casa são e salvo. Milagres de São Cristó-
passou de mera suspeita. Uma viagem a
vão. No entanto me lembro que a cami-
Miami, uma ridícula viagem a Miami.
nho de casa já me sentia reconfortado.
Troca de hotéis.
Dormi em paz. E em paz acordei com o
Helena e Sérgio estão tão entreti-
belo rosto de Helena ao meu lado: mi-
dos, numa comunhão de conversa que
nha Desdêmona.
parece se esqueceram da minha presen-
Hoje no clube, debaixo desse céu
ça. Imerso nos meus pensamentos, aca-
azul, com Guga brincando de boia na
bei ficando calado.
piscina, os três conversamos alegremen-
Me afasto e vou brincar com Guga
te. O filho de Sérgio também está na pis-
na piscina.
cina, mas já sabe nadar. E ele nem fala
*
mais tanto na mulher como falava quando nos conhecemos.
Retocando minha maquiagem no
Marieta tinha razão. Ela sempre
espelho da caixinha de pó-de-arroz, re-
me pareceu meio burrinha, meio feinha
vejo minha expressão ainda afligida: 81
não, não; ainda bem que neguei. Ne-
Aqui está ele de novo: Luís Au-
guei, não: disse que ia pensar. Ou será
gusto diante de mim me olha com ar de
que nem isso? Depois que senti o rosto
menino travesso. Não posso recusar,
quente de rubor, saí correndo da sala
afinal agora ele é um homem livre de
dele. Que coisa besta se casar com o che-
novo.
fe! Que ridículo! Tantas mulheres mais
Milão, 14 out. 2016.
bonitas que eu...
82
Solenidade de comemoração dos 82 anos do P|EM Clube com entrega do Prêmio Literário Nacional PEN Clube do Brasil ao poeta William Soares dos Santos no dia 30 de abril de 2018.
Registro ________________________________
Cláudio Aguiar destacou as principais realizações levadas a cabo e reiterou a certeza de que a entidade continuará a exercer sua missão fundamental: promover a literatura e defender a liberdade de expressão.
PEN Clube comemora 82 nos de fundação com entrega de Prêmio Literário
A escritora Luiza Lobo, na condição de conselheira, proferiu a saudação oficial em nome do corpo social do Clube.
Os 82 anos de fundação do PEN Clube do Brasil (19362018) foram festivamente comemorados em sua sede social da Praia do Flamengo com a participação de sócios e amigos do PEN.
A seguir, foi entregue o Prêmio Literário Nacional PEN Clube do Brasil 2017, este ano dedicado à poesia, ao poeta William Soares dos Santos, que, na ocasião foi saudado pelo Secretário Executivo, Edir Meireles.
Na ocasião o presidente
84
Obituário _________________________________________
POETA PEDRO LYRA Cláudio Aguiar ali, eu, Pedro e outros escritores brasilei-
Uma das marcantes características de
ros participavam de encontro literário
Pedro Lyra (1944 - 2017) foi o culto da
na Universidade de Évora, recordo que
amizade. Sei disso por experiência pes-
uma de nossas maiores diversões era
soal, pois mantive com ele uma convi-
esperar a noite chegar para, sob o efeito
vência que se estendeu por cerca de
do maravilhoso vinho de Alentejo, ou-
quarenta anos. Depois, sou amigo de
virmos Pedro Lyra declamar, com seu
seus grandes amigos, alguns deles, pos-
entusiasmo de competidor olímpico,
so dizer, quase, ou mesmo, verdadeiros
trechos de Os Lusíadas, de Camões.
irmãos, a exemplo dos poetas Roberto
Além da memória, Pedro Lyra ti-
Pontes e Marcus Accioly, este, também,
nha ideias singulares e posições corajo-
recentemente falecido. Isso para não fa-
sas diante da vida. Agia como artista e,
lar de tantos outros cearenses situados
sobretudo, como poeta. Havia nele a co-
na mesma geração de jovens escritores
erência entre a filosofia e a poesia, bem
que começaram a aparecer nos anos 60.
como entre os efeitos da religião com
Outra característica singular de Pedro
sua carga necessária de fé inabalável,
Lyra era sua prodigiosa e invejável me-
dádiva nem sempre presente na razão
mória. Certa vez, em Portugal, quando
humana e o sopro do ceticismo, que, em 85
certas situações nos induz a seguir um
te dez anos, na condição de colaborador
só caminho.
literário do Jornal do Brasil (1976-85) escreveu resenhas e críticas, aproveitan-
Pedro Lyra foi um poeta de pen-
do essa rica experiência reflexiva para
samentos que podem ser classificados
publicar o livro sobre a produção poéti-
como os de autêntico humanista. Talvez
ca da chamada de Geração-60. Foi,
por conhecer bem aquela passagem de
ainda, pós-doutor em Tradução Poética
Ésquilo, que diz : “... pensar é o mesmo
pela Universidade de Sorbonne, na
que agir”, revelou-se sempre um con-
França e Professor Visitante em univer-
testador, quer no verso, quer na prosa
sidades de Portugal (1986, 1990), Ale-
de sua critica literária e também na de
manha (1987) e França (1989-90, 1993).
seus ensaios. Argumentava sobre os
Pronunciou conferências em diversas
mais diversos temas, indo da conceitua-
instituições de Lisboa e Porto, de Bonn e
ção da poesia à discussão filosófica so-
Colônia, de Viterbo e Roma, de Greno-
bre o destino do Homem.
ble, de Clermont-Ferrand, Pau e Paris.
Pedro Lyra, como bom cearense,
Publicou mais de 30 livros, entre os
viveu numa espécie de diáspora consen-
quais metade são de poesia e os demais
tida, pois, além de Fortaleza, residiu em
nos gêneros de crítica literária e ensaio.
muitas outras cidades, a exemplo de Pa-
Tem poemas e ensaios publicados em
ris, Lisboa, Rio de Janeiro e, por fim, em
vários países da América Latina e da
Campos dos Goytacazes.
Europa e participou de diversas antologias poéticas, no Brasil e no Exterior.
Docente da Universidade de Fortaleza (Unifor) e da Faculdade de Letras
Conquistou os seguintes prêmios
da Universidade Federal do Ceará até
literários: Prêmios "José Albano" da
1981, quando se transferiu para a da
Universidade Federal do Ceará; Prêmio
Universidade Federal do Rio de Janeiro
"Poesia" da Academia Cearense de Le-
(UFRJ), onde lecionou até 1997. Duran86
tras, 1968; Prêmio IV Centenário da
e pugnou pelo sadio e respeitoso conví-
Morte de Camões do Real Gabinete Por-
vio com os seus colegas escritores. Por
tuguês de Leitura. Rio de Janeiro, 1982;
causa de todas essas atividades e, sobre-
Prêmio de Ensaio da Associação Paulis-
tudo, pela qualidade de sua obra que
ta de Críticos de Arte (APCA), 1987. Fi-
repercute dentro e fora dos centros aca-
liado ao PEN Clube do Brasil revelou-se
dêmicos brasileiros, posso afirmar que o
durante décadas um associado interes-
poeta Pedro Lyra sempre estará entre
sado pela missão do Clube: a promoção
nós e perante as gerações futuras como
da literatura e a defesa da liberdade de
digno exemplo de mestre, de poeta e de
expressão – consciente de seu efetivo
ensaista.
pertencimento, vez que sempre buscou (Palavras pronunciadas no velório de Pedro Lyra em 24 de outubro de 2017, Cemitério do Caju, Rio de Janeiro).
87
COLABORDORES DESTE NÚMERO: Ives Gandra (da Silva Martins) é doutor em direito pela Universidade Mackenzie (SP), professor, advogado e escritor, Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO-SP e também integrante do Consea.
__________________________________________
Ana Luiza Almeida Ferro é promotora pública do Estado do Maranhão, historiadora e poeta. Cláudio Aguiar é romancista, dramaturgo e ensaísta. Tem mais de 30 livros publicados, inclusive no Exterior.
Jorge Sá Earp é diplomata e contista. Marcia Agrau é poeta e romancista.
Cyro de Mattos é professor, contista e poeta.
Pedro Karp Vasquez é historiador e critico de arte fotográfica e ensaista.
Delia Cambeiro é professor universitária e ensaista.
Raquel Naveira é poeta e ensaista. Tania Zagury é filósofa, professoraadjunta da UFRJ, escritora com 34 livros publicados no Brasil e no exterior.
Eliana Calixto é médica e poeta. Edimilson Caminha é professor e ensaista.
87
Logomarca registrada no In
stituto Nacional da Propriedade Industrial
Sede Social do PEN Clube do Brasil Praia do Flamengo, 172 – 11º Andar – Flamengo – Rio de Janeiro CEP 22210-060 / RJ BRASIL www.penclubedobrasil.org.br / pen@penclubedobrasil.org.br Tel. (21) 2556-0461