Revista Convivência n. 8/2019

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Expediente REVISTA CONVIVÊNCIA © PEN CLUBE DO BRASIL Praia do Flamengo, 172 / 11º. Andar – Flamengo - Rio de Janeiro / RJ CEP 22210-030 – Brasil - Tel. 21-2556-0461 pen@penclubedobrasil.org.br - www.penclubedobrasil.org.br

EDITORA-RESPONSÁVEL: Marcia Barroca CONSELHO EDITORIAL Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado, Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar, Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira e Ivan Junqueira (in memoriam), Mary del Priore, Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão (in memoriam) e Tânia Zagury PROJETO GRÁFICO: Equipe PEN Clube Capa: Ítalo Didot sobre Bico de pena de Cavani Rosas

CORRESPONDENTES Ceará: Roberto Pontes; Paraíba: Elizabeth Marinheiro Pernambuco: Lucila Nogueira; Bahia: Aleilton Fonseca; Minas Gerais: Ronaldo Werneck Brasília: Fabio de Souza Coutinho; São Paulo: Raquel Naveira. Santa Catarina: Péricles Prades; Paraná: Miguel Sánchez Neto Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide–se canje. On demande l´échange. Man bittet um Austausch. Chiesto di scambio.

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Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Ano VIII | Número 8 | Rio de Janeiro | 2019 | Brasil (Segunda Fase) ISSN 1518-9996

PEN CLUBE DO BRASIL Fundado a 2 de abril de 1936 e filiado ao PEN Internacional de Londres DIRETORIA (2016/2019) Presidente: Cláudio Aguiar Vice-Presidentes: Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado e Ricardo Cravo Albin Secretário Executivo: Edir Meirelles Conselho de Curadores: Bernardo Cabral, Domício Proença Filho, Godofredo de Oliveira Neto, Luiza Lobo, Nelson Melo e Souza, Reynaldo Valinho Alvares e Victorino Chermont de Miranda 3 Conselho Fiscal: Francisco de Paula Souza Brasil, Helena Ferreira e Marcia Uebe


SUMÁRIO EDITORIAL PERTENCIMENTO E CONVIVÊNCIA………..……………………… ..……. . 6 TÓPICO AMEAÇAS Á LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL ATUAL……….. 10 DOSSIÊ PEN CLUBE DO BRASIL PRESENTE AO ENCONTRO DE CENTROS PEN AMERICANOS EM BUENOS AIRES……………………………………. 13 MAPA DAS VIOLAÇÕES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL EM 2017…………………………………………………………. 15 ATUALIZAÇÃO DE CENTROS PEN. O CASO BRASILEIRO…………….. 24 MANIFESTO DE LAS MUJERES DEL PEN INTERNACIONAL…………... 28 EL MANIFESTO DE PEN INTERNACIONAL SOBRE DERECHOS DE AUTOR…………………………………………………….... 30 ARTIGOS DO MITO À POESIA: DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA, Carmem Teresa do Nascimento Elias………………………………………... 35 O DIÁLOGO NECESSÁRIO ENTRE O DIREITO E A FILOSOFIA, Ives Gandra……………………………………………………………………. 45 UM AFAGO AO RIO, Ricardo Cravo Albin………………………………… 53 A COLORIDA TÚNICA DOS BUGRES, Diego Mendes Sousa……………. 59 AFIRMA PEREIRA. UM TESTEMUNHO DE ANTONIO TABUCCHI (UMA LEITURA), Délia Cambeiro………………………………………….. 69 CLAVE DA SOLIDÃO EM FERNANDO PESSOA, Cyro de Mattos ……... 77

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CONTOS UM CONTO DE NATAL, Cláudio Aguiar………………………………...… 83 O JANTAR SUBTERRÂNEO, Jorge Sá Earp……………………………....... 89 UM FERIADO SURREALISTA, Luiza Lobo………………………………... 97 SOB À SEMELHANTE SUPERFÍCIE, Carmem Moreno…………………... 101 POESIA SONETO INGLÊS FORA DE HORA, Luiz de Miranda……………………... 104 POESIAS DE REYNALDO VALINHO ÁLVAREZ……………………….... 106 QUERO, Ana Luiza Almeida Ferro …………………………………….…..... 116 E ROMPEU EM DOIS CAMINHOS, Carmem Teresa do Nascimento Elias…………………………………….. ..... 119

COLABORADORES……………………………………………………….... 120

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EDITORIAL

PERTENCIMENTO E CONVIVÊNCIA com satisfação que a

PEN Clube do Brasil e no

direção do PEN Clube

ISSUU, provedor internacional,

do Brasil oferece a seus

que poderá ser acessado pelo

É

associados e amigos o oitavo

link:

número da revista Convivência,

https://issuu.com/penclubedo-

órgão

brasil

oficial

deste

Clube

Literário voltado para a publi-

Convocamos os associa-

cação de pesquisas e estudos

dos e amigos do PEN Clube

literários e culturais. Seguindo

a

para o fortalecimento do senso orientação

de pertencimento a esse Clube

adotada desde o reaparecimento

Literário, bem como dos natu-

desta revista Convivência, em

rais

sua segunda fase, em 2012,

Pertencer a uma entidade asso-

foram publicados oito números

ciativa, via de regra, decorre

em formato digital no portal do

diretamente do interesse comum

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laços

de

convivência.


de observar e contribuir com

congregaram-se em torno da

seu exemplo para o cumpri-

promoção da literatura e da

mento da

defesa da liberdade de ex-

própria

missão definida na

constituição

da

en-

pressão, sobretudo animados

tidade. No caso do PEN Clube

pela alegria do encontro sob o

do Brasil, sem dúvida, a sua

império de salutar convivência

missão precípua – promover a

e, também, da sigla PEN, sím-

literatura e defender a liberdade

bolo,

de expressão – constitui a razão

Shakespeare, significa ―caneta‖.

primordial de quem se filia a ele

Os jantares mensais, a partir de

e passa a dedicar-se e a viver

então, adotados por todos os

tais objetivos, aliás, consagra-

Centros PEN que surgiram em

dos na Carta de Princípios do

vários continentes, longe de

PEN Internacional, órgão re-

serem tomados como simples

sponsável pela formação de

―salões

ampla rede integrada por cerca

vaidades, modismos ou sabores

de cento e cincoenta Centros

gastronômicos extravagantes‖,

PEN espalhados em vários con-

constituiram-se em oportuni-

tinentes.

dades para que escritores de

que

para

na

língua

exibição

de

de

vários naipes e tendências fir-

A convivência, por sua

massem ou estreitassem amiza-

vez, tem sido a prática adotada

des e aproximações voltadas

desde a fundação do PEN In-

para

ternacional, ocorrida em Lon-

consecução de objetivos

comuns e, inclusive, integração

dres, em 1921, quando Poetas,

de

Ensaistas e Novelistas, na con-

gerações

propensas

a

viverem desarmadas de suas

dição de cultores da palavra,

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rígidas opções ou convicções

Neste

número,

sem

pessoais. Fazia-se necessário,

perder de vista esses focos,

como ainda ocorre até hoje,

colocamos em destaque temas

afirmarem valores relevantes e

abordados em dossiê e tópico,

defensáveis da vida em todas

nos quais ficam evidentes a

suas dimensões. Naquela época

posição deste Clube Literário

e na seguinte década dos anos

em defesa da liberdade de ex-

30 do século passado, centenas

pressão na mais recente cúpula

de

discutiram

de Centros Americanos reali-

problemas e buscaram soluções

zada em julho de 2018, em

para os conflitos reais armados

Buenos Aires, bem como as

pelos nefastos interesses fratri-

vividas no momento atual da

cidas provocados pelas lideran-

vida brasileira quando escritores

ças que estimularam, por ex-

e demais cultores da palavra são

emplo, a Segunda Guerra Mun-

ameaçados e privados de cum-

dial e, depois dela, a longa fase

prirem suas nobres missões; em

chamada de ―guerra fria‖.

artigos são publicados temas de

escritores

vivo interesse por nossos sócios

Daí que, nos dias atuais,

Ives Gandra, Carmem Teresa

o PEN Internacional vem estimulando

ações

do Nascimento Elias, Ricardo

voltadas

Cravo Albin, Diego Mendes

especificamente para a tradução

Sousa, Délia Cambeiro e Cyro

e direitos linguísticos, a paz, os direitos

das

mulheres

e

de Mattos; em contos aparecem

a

os ficcionistas Cláudio Aguiar,

liberdade de expressão.

Jorge Sá Earp, Luiza Lobo e Carmem

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Moreno;

e,

em


poesias, comparecem Luiz de

números já publicados, bem

Miranda,

Valinho

como se disponham a conhecer

Álvarez, Ana Luiza Almeida

mais de perto e a visitar ou a

Ferro e Carmem Teresa do

revisitar o PEN Clube do Brasil,

Nascimento Elias.

seja em seu espaço físico na

Reynaldo

Esperamos, assim,

sede social da cidade do Rio de

que

Janeiro, seja por meios digitais

os leitores desfrutem da leitura

disponibilizados

desta revista e dos demais

em

nosso

portal oficial ou no Facebook. Cláudio Aguiar Presidente do PEN Clube do Brasil

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TÓPICO

Ameaças à liberdade de expressão no Brasil atual

DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO dade destinada a congregar escritores e profissionais da palavra do país com vistas a estimular a criação literária, a edu-

O

PEN Clube do Brasil, filiado ao PEN Internacional, sediado em Londres, na condição de enti-

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cação artística, a concepção universalista dos bens da cultura, vem manifestar, publicamente, preocupação com notícias veiculadas pela mídia brasileira, que, de fato, caracterizam a prática de atos de cerceamento ao livre pensamento e ao exercício da liberdade de expressão de jornalistas, escrito

vância às normais legais pertinentes ao Estado Democrático de Direito. Tal requisito, indispensável ao funcionamento de uma imprensa livre, representa meio eficaz para aplicação de mecanismos de livre e construtiva crítica às ações governamentais, administrativas e institucionais, a fim de evitar abusos que distorcem fatos, sejam para alcançar fins políticos, sejam para obter vantagens pessoais inconfessáveis.

res, radialistas e blogueiros. Impõe-se, portanto, cumprir os instrumentos legais pertinentes ao pleno funcionamento das instituições, não se permitindo que esses profissionais da palavra sejam perseguidos, direta ou indiretamente, por pessoas ou entidades que, em última análise, têm a obrigação de proteger o pleno exercício de suas atividades profissionais.

Assim, o PEN Clube do Brasil repudia qualquer ato de censura à livre circulação de ideias no país, conforme Carta de Princípios seguida por cerca de cento e cinquenta Centros no mundo, integrantes da comunidade de escritores do PEN Internacional, os quais têm como lema: promoção da literatura e defesa da liberdade de expressão.

A independência e a imparcialidade no exercício da coisa pública requerem obser-

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DOSSIÊ

Delegação brasileira: Escritores Silvie Debs, Fábio Coutinho, Cláudio Aguiar e Getúlio Neves

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PEN CLUBE DO BRASIL PRESENTE AO ENCONTRO DE CENTROS PEN AMERICANOS EM BUENOS AIRES

O

PEN Internacional, sob a presidência da escritora Jennifer Clement, com o objetivo de aproximar mais a rede mundial de Centros afiliados em função de objetivos comuns, além de promover anualmente congresso em algum país previamente selecionado, vem estimulando e coordenando a realização de encontros continentais. Em 2015, quase todos os Centros americanos reuniram-se na cidade do México. Agora, durante os dias 23 a 29 de julho, os Centros PEN americanos, por meio de seus delegados, compareceram a Buenos Aires para discutirem no Centro PEN Argentina, presidido pela escritora Luisa Valenzuela, temas da atualidade sobre a mulher, a paz, a tradução e os direitos linguísticos e a liberdade de expressão.

O PEN Clube do Brasil esteve presente ao Encontro, representado por seu presidente, escritor Cláudio Aguiar, acompanhado dos membros titulares Fabio de Sousa Coutinho (Presidente da Associação Nacional de Escritores, de Brasília) e Getúlio Neves (magistrado e historiador Presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo) e da professora da Universidade de Strasbourg, escritora Sylvie Debs, sócia correspondente do Centro brasileiro na França. Na ocasião, Aguiar apresentou dois informes: o primeiro sobre a situação do PEN Clube do Brasil no que diz respeito à organização funcional e às atividades culturais e literárias; o segundo sobre o mapa das violações cometidas no Brasil contra a liberdade de expressão de escritores, de jorna-

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listas e de comunicadores (rádios AM, FM e televisiva), além dos que atuam por meio de blogs, sites e redes sociais da Internet no decorrer de 2017.

divulgou em ato especial o Manifesto das Mulheres aprovados por aquela entidade mundial, chamando a atenção para o papel e a importância da mulher na sociedade contemporânea.

Ademais dos diversos temas discutidos pelos delega dos dos Centros PEN presentes, a presidente do PEN Internacional, escritora Jennifer Clement

Também foi apresentado o Manifesto sobre Direito Autoral aprovado pelo PEN Internacional.

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MAPA DAS VIOLAÇÕES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL EM 2017 CLÁUDIO AGUIAR, Presidente do PEN Clube do Brasil

Apresentação

O

PEN Clube do Brasil vê com enorme preocupação a consolidação de práticas de violações ao livre exercício da liberdade de expressão de escritores e de profissionais da palavra e, de modo particular, dos chamados comunicadores (jornalistas, blogueiros e radialistas). As considerações feitas a seguir apoiam-se em informações e relatórios realizados em 2017 e divulgados por algumas instituições brasileiras, a saber: Artigo 19, organização não governamental londrina que mantém agência no Brasil, Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Atlas da Notícia, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (PROJOR).

Violências anunciadas Como se tratasse de algo previamente anunciado, todos nós já sabemos que os comunicadores, considerados profissionais da palavra, que atuam em blogs, sites, jornais e revistas, rádios (AM ou FM), TVs ou outros veículos de expressão escrita, inclusive, livros são, potenci-

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almente, os alvos prediletos do crime organizado, de grupos criminosos ou pessoas que resolvem, por conta própria, calar vozes de quem tem a obrigação de divulgar notícias e informar a população. Esses comunicadores estão referenciados como pessoas que poderão pertencer ao quadro social do PEN Clube do Brasil (art. 5º, do Estatuto), vez que o Centro brasileiro ―congrega escritores e profissionais da palavra residentes no Brasil comprometidos com a atividade do pensamento e da criação literária e educação artística, afins com o espírito e a mensagem do PEN Internacional‖.

Estímulo da impunidade Há, pelo menos, duas constatações lamentáveis: a primeira indica que todos os anos, sobretudo a partir de 2012, quando algumas entidades passaram a catalogar e a denunciar essas violações com maior rigor, a exemplo da organização não governamental Artigo 19, as vítimas são, via de regra, pessoas vinculadas a pequenos veículos de comunicação, radialistas, blogueiros e jornalistas situados em diversas cidades brasileiras; a segunda constatação decorre do fato de que os governos e os órgãos integrantes do Poder Judiciário praticamente cruzam os braços, de certo modo revelando-se coniventes com os responsáveis pela prática criminosa, porque, sem dúvida, deveriam concentrar esforços na apuração e proceder o julgamento e responsabilização dos culpados. Infelizmente, isso não acontece.

Censura e Autocensura Por causa da clara ineficácia desses órgãos do sistema governamental, cada vez mais os responsáveis pela prática criminosa de atos, quer de forma objetiva, quer de modo indireto, terminam por transformar a impunidade em um móvel capaz de estimular a continuidade desse processo odioso.

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Monitoramento e apuração. As tendências consolidam dados O atual cenário das violências contra a liberdade de expressão, a rigor, nos últimos seis anos tem se consolidado numa espécie de gradação dos seguintes eventos: ameaças, tentativas e assassinatos. O levantamento de dados foi capaz de identificar com clareza o fato de que quase todas as violações são perpetradas contra os comunicadores. Por outro lado, ficou patente o comprometimento de agentes do Estado, especialmente da área política, como responsáveis pelo mando da prática de tais violações. A seguir, surgem os casos de quase ou nenhuma conclusão dos processos instaurados para apurações dos crimes por quem deveria investigar: o Poder Judiciário. Ainda mais: inúmeros casos de perseguições caracterizam-se primeiro pelas ameaças, evoluem para tentativas e, por fim, ocorrem os lamentáveis assassinatos. Exemplo dessa situação ocorreu recentemente com o radialista Jairo Souza, de Bragança, cidade situada a 220 km de Belém, assassinado há poucos dias após sofrer ameaças e tentativas de morte por causa de denúncias feitas em seu programa de rádio ―Pérola Show‖. Foi morto a balaços ao chegar no seu local de trabalho por dois homens ocupantes de uma moto. (Cf. Relato no jornal online da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) – Maio/2018, Rio de Janeiro).

Ampliação da violência contra comunicadores de opinião Essas violações são levadas a cabo principalmente contra comunicadores ou profissionais da palavra, escrita ou falada, em diversas cidades brasileiras. Ao longo dos últimos seis anos chegaram a 177 violações, distribuídas em 115 ameaças, 34 tentativas de morte, 4 sequestros e 24 homicídios.

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Diagnóstico do cenário Os levantamentos mostram, ainda, a existência de cenário propício à prática das violações principalmente nas cidades de porte médio e pequenas, justamente onde os controles policial e judicial, apesar de existentes, tornam-se vulneráveis por alguns atos de corrupção generalizada instaurados no Brasil e também por falta de vontade política de erradicar essa prática criminosa. No relatório de 2017, divulgado pela organização não governamental Artigo 19, os especialistas recorreram ao trabalho feito por duas instituições voltadas para o estudo dessa situação: o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (PROJOR) e Atlas da Notícia. Essas entidades identificaram o cenário como sendo uma espécie de zona denominada ―deserto de notícias‖. Assim, ficou delimitado o mencionado cenário: ―De todas as 5.570 cidades mapeadas o Atlas identificou que 1.125 possuem ao menos um jornal impresso ou online. Entretanto, mais que 4.500 municípios ficaram de fora, pois ali supostamente não se produz nenhum veículo impresso ou online local. Essas cidades compõem o chamado ―deserto de notícias‖, que abriga cerca de 35% da população do país (aproximadamente 74.774.262 habitantes, considerando que a população brasileira atual é de 213.640.750 e tende a crescer todos os dias). Além disso, mesmo dentre aquelas que têm veículos próprios, 416 delas – reunindo mais de 15 milhões de habitantes – possuem apenas um jornal impresso ou online‖. (Cf. dados em https://www.atlas.jor.br/) Convém assinalar que as pesquisas sugerem a existência de um contingente de pessoas vulneráveis, porque o espectro de suas análises abrange os jornalistas, os blogueiros e os radialistas, todos considerados comunicadores comunitários. Não esquecer também que metade das violações ocorridas durante o ano de 2017 se deram exatamente

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nessa área chamada de ―deserto das notícias‖ e contra esses profissionais da palavra.

O fulcro das ocorrências: o interior do País Esse quadro oferece, ainda, uma constatação cruel e lamentável: exatamente onde a escassez de meios de comunicação se apresenta mais frequente as práticas de violações à liberdade de expressão proliferam com maior facilidade. Numa apreciação ampla dos dados, constata-se que as regiões com maiores ocorrências comportam-se na seguinte ordem: Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, nas quais se pode observar também uma gradação dos menores para os maiores índices de qualidade de vida.

A conivência do Estado Ao lado disso, apesar das garantias constitucionais dos direitos sociais aos cidadãos, fica patente a ausência de ação efetiva dos mecanismos de proteção legal atribuídos ao Estado, nas três esferas de poder: federal, estadual e municipal. Inclusive, não se pode deixar de salientar, os de segurança pessoal. Esse fato, como salienta o relatório da agência Atlas da Notícia, tem provocado: ―... um cenário tão amplo de escassez de informações, (onde) as violações contra comunicadores tornam-se especialmente sensíveis. O silêncio dessas pessoas é um dos fatores que podem sustentar e mesmo ampliar o deserto de notícias‖.

Incidência das quantificações O padrão de gravidade das violações ocorridas em 2017 aparece concentrado na figura do comunicador. Bastará verificar os 27 casos de agressões graves consolidados na pesquisa: 2 de homicídios, 4 de sequestros e 21 de ameaças de morte. Todos eles foram perpetrados

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contra comunicadores, ou seja, jornalistas, blogueiros e radialistas. Além disso, os casos relacionam-se diretamente às notícias veiculadas e estas a desmandos ou atos de corrupção.

Abordagem qualificada Vale observar, ainda, que existe relativo equilíbrio na qualificação dos eventos com os perfis profissionais das vitimas: 37% correspondem aos radialistas; 33% aos blogueiros e 30% aos jornalistas. Um dado curioso salta aos olhos dos analistas desses dados: 73% dessas pessoas agredidas já haviam sofrido anteriormente algum tipo de ameaça ou violência por conta do exercício de sua profissão.

As regiões violentas Creio merecer referência especial um caso curioso ocorrido no ano de 2017: o Ceará figurou como o Estado mais violento. Isso concorreu para que a região Nordeste ficasse com 56% das ocorrências mais graves. Dentre os 27 casos de violações, 7 ocorreram no Ceará, superando, inclusive o estado de São Paulo, que teve apenas 5. Essa constatação, no mínimo, aponta para aquela circunstância já salientada, ou seja, no sentido de que as regiões menos favorecidas pelo desenvolvimento social apresentam-se mais expostas a esse tipo de agressão e de impunidade. Além disso, a pesquisa revelou que as violações, em geral, ocorreram em cidades pequenas, ou seja, obedecendo a seguinte gradação: 69% em cidades com população inferior a 100 mil habitantes; 23% em cidades médias com 100 a 500 mil habitantes; e apenas 8% para cidades com mais de 500 mil habitantes, consideradas grandes. Os dados até agora recolhidos e analisados correspondentes aos últimos seis anos, portanto, indicam que quanto menor o índice de veiculação de notícias entre a população maior é a possibilidade de ocorrerem atos de violações de liberdade de expressão.

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Boas e más notícias: redução dos casos e seletividade do crime organizado Dentro desse universo de fatos negativos, apontamos um dado positivo: os dados relativos a 2017 indicam redução quantitativa de eventos de violações com mortes. Apesar disso, ao lado da boa notícia vem atrelada outra ruim: a presença do Crime Organizado na execução das ameaças, das tentativas de mortes, dos sequestros e dos assassinatos.

Dois exemplos marcantes Na abordagem de fatos relacionados a violações à liberdade de expressão talvez não caiba considerações exaustivas sobre algumas possibilidades. No entanto, não se pode deixar de comentar que, se as comunidades envolvidas direta ou indiretamente com a barragem do Fundão, de Mariana, em Minas Gerais, tivesse maior nível de informação com as consequentes possibilidades de veiculação de denúncias, com certeza, os responsáveis pelo empreendimento e as autoridades seriam pressionadas a tomar medidas emergenciais capazes de evitar ou minorar o tamanho das tragédias humana e ecológica que se abateram sobre a população. Outro fato que menciono aqui com o objetivo de alertar para outros tipos de violações à liberdade de expressão que continuam sendo cometidos no Brasil, diz respeito aos conflitos de talhe fundamentalista que ora se espraiam pelos vários campos das atividades humanas, encontrando campo fértil nas áreas da religião e da política. Quero me referir à censura que, aparentemente, segundo afirmam alguns otimistas, encontra-se abolida no Brasil desde o final da ditadura militar, ocorrido em 1980. Isso não é verdade. Infelizmente a censura, sobretudo a que parte de certos meios arredios ao cumprimento das leis e aos princípios basilares dos direitos humanos, ainda constituiu espectro ameaçador.

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Um típico exemplo de intolerância a esses princípios aconteceu no ano passado no âmbito das artes cênicas com as proibições de encenação da peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, da dramaturga inglesa Jo Clifford, autora considerada transexual e cristã. Várias proibições foram decididas, ora por autoridades municipais de algumas cidades, ora por governos de estado, ora, até, por sentença judicial exarada por magistrado paulista. Essa peça chamou a atenção do público não só pela singularidade do tema, mas, também, porque, entre nós, no Brasil, infelizmente, ainda perdura, vez por outra, a nefasta prática homofóbica que resulta em assassinatos de travestis e transexuais. A peça de Jo Clifford apresenta uma espécie de monólogo dentro de um ritual em que Jesus Cristo, vindo a este mundo, surge nos dias de hoje na pele de travesti. Relatos bíblicos conhecidos são narrados numa perspectiva contemporânea, circunstância que, de fato, proporciona ao publico a possibilidade de refletir sobre a opressão e a intolerância sofridas por transgêneros e minorias em geral. A crítica especializada viu no espetáculo a presença de mensagem amorosa, de perdão e de aceitação do travestido como chave do espetáculo, buscando, enfim, atrair o olhar do espectador para os estigmas da marginalização e do preconceito reinantes entre os seres humanos. As censuras, curiosamente, ocorreram em locais tão diferenciados quanto surpreendentes, como, por exemplo, na cidade de Jundiaí, grande centro populacional de São Paulo, esta, a maior capital do País, mas, também, na pacata e pequena cidade de Garanhuns, em Pernambuco, distando cerca de 300 km do Recife e, ainda, no Rio de Janeiro, por iniciativa do prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, que considerou a peça ofensiva à religião. Apesar disso, a peça foi liberada em Porto Alegre pelo juiz José Antônio Coitinho, que, em sua sentença, argumentou: "Não se pode simplesmente censurar a peça O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu sob argumento de que estamos

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em desacordo com seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir o desenvolvimento humano "a liberdade de expressão precisava ser preservada e citou, ainda, o atentado ao jornal sátiro francês "Charlie Hebdo".

Conclusão Para finalizar, constata-se que as violações à liberdade de expressão contra os comunicadores, conforme dados apresentados ao longo dos últimos seis anos, demonstram o descaso das autoridades governamentais e as situam num cenário onde os baixos índices de qualidade de vida concorrem diretamente para agravar a situação e instaurar a impunidade. Como se isso já não fosse preocupante, agora, surge gravidade maior: a presença do Crime Organizado como órgão executor dos crimes de ameaças, tentativas, sequestros e, por fim, assassinatos de jornalistas, blogueiros e radialistas, os chamados comunicadores.

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ATUALIZAÇÃO DE CENTROS PEN. O CASO BRASILEIRO CLÁUDIO AGUIAR, Presidente do PEN Clube do Brasil

A

s atividades do Centro brasileiro, quer no plano administrativo, quer no plano de ações literárias e culturais, nos últimos anos estiveram voltadas mais para o esforço de corrigir distorções ou desvios. As de natureza administrativa, por exemplo, ameaçavam a base material do Clube, ou seja, o seu patrimônio imobiliário, ademais das elevadas obrigações de pagar impostos e taxas legais e outros compromissos pertinentes ao funcionamento de qualquer associação cultural sem fins lucrativos. Em relação às atividades literárias e culturais a entidade também enfrentou dificuldades, que, aliás, remontam, em grande parte, ao passado do Centro. Mesmo assim, no que se refere às atividades mais recentes, o Centro conseguiu cumprir importante agenda de eventos semanais, todos, evidentemente, vinculados à sua precípua missão de promover a literatura e de defender a liberdade de expressão. Aliás, essa missão, desde sua criação, em 1936, constitui o objetivo fundamental mantido no Estatuto atual com a seguinte redação: ―Art. 5º O PEN Clube congrega escritores e profissionais da palavra residentes no Brasil e comprometidos com a atividade do pensamento e da criação literária e educação artística, afins com o espírito e a mensagem do PEN Internacional‖.

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A história do Clube, agora contada no livro comemorativo dos 80 anos, revela a existência de períodos diferenciados por características singulares. As fases são as seguintes: - fase que vai da criação, em 1936, em plena ditadura Vargas, até o final da Segunda Guerra Mundial (1945); - fase democrática que se estende de 1945, data da redemocratização até o momento em que foi instaurada a ditadura militar no Brasil em abril de 1964; e, - fase da abertura democrática ocorrida em 1984 à chegada dos primeiros anos do atual milênio. Essa rápida periodização pode trazer alguma luz para se entender as características sociais e políticas que nortearam as ações de algumas diretorias do Centro brasileiro durante essas fases. E mais: permitirá identificar, ainda, alguns motivos determinantes da consolidação de imagem do Centro brasileiro. Na primeira fase, por exemplo, liderada pelo fundador, escritor Cláudio de Souza, o PEN Clube do Brasil cumpriu basicamente seu papel em consonância com as diretrizes emanadas do PEN Internacional e atuou corajosamente em alguns momentos, quando enfrentou adversidades políticas surgidas durante a Segunda Guerra Mundial, ao reagir às provocações de grupos fascistas ou nazistas defensores da censura, da supressão dos princípios democráticos, dos direitos humanos, da livre manifestação de pensamento e de liberdade de expressão. A seguir, nas outras fases históricas, notadamente durante os vinte anos de ditadura militar instaurada em 1964, infelizmente, o Centro brasileiro ficou em silêncio e deu a impressão de que concordava com aquele estado de exceção. As consequências desse longo silêncio, que, aliás, se prolongaram de maneira clara por todo o período pós-ditadura, trouxe ao Centro a imagem de uma entidade literária marcada pelo clima de convivência dissociado de suas finalidades estatutárias. O Clube, então, passou à prática constante de atividades que o assemelhava cada vez mais a uma ―academia de letras‖ ou a uma associação de poucos amigos.

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Nos últimos anos, sobretudo, após a chegada do novo milênio (a partir de 2005), o PEN Clube do Brasil vem, efetivamente, tentando abandonar essas ideias acadêmicas ou gremiais, pautando suas ações dentro do espírito de associação mundial de escritores e profissionais da palavra vivido pelos demais Centros. Essas barreiras são conhecidas e continuam a ser combatidas por nossa gestão, que tem dirigido seus esforços para as seguintes prioridades: - trazer o Clube para a prática de suas finalidades estatutárias em consonância com os princípios emanados do PEN Internacional; - ampliar o quadro social com o ingresso de maior número de escritores e profissionais da palavra mais jovens, por entender que esta alternativa é caminho capaz de fortalecer a entidade para as ações futuras. A direção do Centro brasileiro, justamente por causa dessas barreiras, tem ampliado o espectro de suas ações no sentido de atrair a participação efetiva de seus associados, porque entende que este ainda é o melhor remédio para reduzir o estigma negativo de uma imagem histórica que perdurou durante algumas décadas no âmbito da entidade. Para finalizar, convém destacar algumas iniciativas e realizações levadas a cabo pelo Centro brasileiro, principalmente desde 2011, que, segundo entendo, significam nova maneira de gerir a entidade e ao mesmo tempo trazê-la para o fiel cumprimento de sua missão: - articulação com o PEN Internacional e outros Centros; - insistir na programação e na realização de atividades literárias e culturais vinculadas especificamente aos chamados Comitês integrantes da estrutura do PEN Internacional, ou seja, paz, mulheres, tradução e direitos linguísticos e liberdade de expressão; - ter mantido contato com o ICORN, desde 2012, com o objetivo de apoiar a criação de condições objetivas no Brasil para receber escritores refugiados de outros países de acordo com as recomendações do PEN Internacional;

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- dar maior visibilidade dos trabalhos realizados pelo Centro às comunidades brasileira e internacional mediante a Internet e inclusive por intermédio de Boletins Informativos mensais, desde 2011, a fim de dar visibilidade de nossas ações às comunidades brasileira e internacionais; - criação de Portal de Internet; - restauração em 2011 do Prêmio Literário Nacional PEN Clube do Brasil criado em 1938 e paralisado há várias décadas, sendo as premiações oferecidas anualmente até o presente momento; - reestruturação dos jantares anuais do Centro como meio de dar continuidade e consolidar antiga tradição de salutar convivência entre filiados e amigos; - presença do Centro brasileiro a alguns eventos de caráter internacional, a exemplo dos realizados na Sérvia, México e agora aqui na Argentina; - restauração da revista Convivência, órgão oficial do Centro, destinada à divulgação de ideias literárias e culturais, em segunda fase sob formato digital; - publicação de livro comemorativo dos 80 anos de fundação do Centro brasileiro, no qual foi possível trazer à luz a sua história em várias dimensões; - cumprimento de agenda semanal com eventos literários e culturais durante todo o ano, na qual são realizados encontros com escritores, lançamentos de livros, café literário para estudo e discussão de obras literárias fundamentais, atos sobre efemérides literárias, etc. Assim, cremos estar o Centro brasileiro cumprindo suas finalidades e buscando atualização e integração com os demais Centros do mundo, a fim de que os princípios básicos que norteiam a promoção da literatura e a defesa da liberdade de expressão encontrem maiores espaços entre os homens.

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MANIFESTO DE LAS MUJERES DEL PEN INTERNACIONAL

E

l principio primero y fundacional de la Acta Constitutiva de PEN afirma que ―la literatura no conoce fronteras‖. Estas fronteras se concibieron tradicionalmente como los límites entre los países y los pueblos. Para muchas mujeres en el mundo —y hasta hace relativamente poco tiempo para la mayoría—, la primera, última y quizá la más poderosa frontera era el umbral de la casa que habitaban: el hogar de sus padres o su esposo. Para que las mujeres tengan libertad de expresión, el derecho a leer, el derecho a escribir, deben tener el derecho a deambular física, social e intelectualmente. Hay pocos sistemas sociales que no miren con hostilidad a una mujer que camina sola. PEN cree que la violencia en contra de la mujer, en todas sus formas, presente tanto en los muros de un hogar o en la esfera pública, crea peligrosas formas de censura. Alrededor del planeta, la cultura, la religión y la tradición son con frecuencia valoradas por encima de los derechos humanos, y usadas como argumentos para alentar o defender que se dañe a mujeres y niñas. PEN cree que el acto de silenciar a una persona es negar su existencia. Es un tipo de muerte. Sin la plena y libre expresión de la creatividad y el conocimiento de las mujeres, la humanidad está llena de carencia y aflicción. PEN endorsa los siguientes principios aceptados internacionalmente: NO VIOLENCIA: Acabar con la violencia contra las mujeres y las niñas en todas sus formas, incluyendo las legales, físicas, sexuales,

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psicológicas, verbales y digitales; promover las condiciones en las cuales mujeres y niñas puedan expresarse con total libertad, y asegurar que toda violencia de género sea investigada y castigada y que las víctimas sean compensadas. SEGURIDAD: Proteger a las mujeres escritoras y periodistas y combatir la impunidad ante los actos de violencia y acoso contra mujeres escritoras y periodistas en el mundo y en las redes. EDUCACIÓN: Eliminar la disparidad en todos los niveles educativos, promoviendo el acceso a una educación de calidad para mujeres y niñas y asegurando que las mujeres puedan ejercer plenamente su derecho a leer y escribir. IGUALDAD: Asegurar que las mujeres tengan igualdad con los hombres ante la ley, condenar la discriminación contra las mujeres en todas sus formas y tomar todas las medidas necesarias para eliminar la discriminación y asegurar la plena igualdad de todas las personas para el avance y desarrollo de las mujeres escritoras. ACCESO: Asegurar que las mujeres tengan el mismo acceso a la gama completa de derechos civiles, políticos, económicos, sociales y culturales; facilitando así su plena y libre participación y su reconocimiento en los medios y en el amplio espectro de las diversas formas literarias. Asimismo, garantizar el acceso igualitario de mujeres y niñas a todos los medios de comunicación, como vehículo para la libertad de expresión. PARIDAD: Promover la igualdad en la participación económica y garantizar que las mujeres escritoras y periodistas sean empleadas y remuneradas a la par de los hombres y sin ninguna discriminación.

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EL MANIFESTO DE PEN INTERNACIONAL SOBRE DERECHOS DE AUTOR

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partir del Estatuto de la Reina Ana de Gran Bretaña (la primera ley de derechos de autor) de 1709, la humanidad reconoce la necesidad de promulgar leyes para proteger la propiedad intelectual. En 1886, se aceptó el Convenio de Berna para la Pro-

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tección de Obras Literarias y Artísticas, después de haber sido defendido por Víctor Hugo. Fue entonces, y es ahora, una idea ilustrada para reconocer cómo la creación y el descubrimiento individual elevan nuestra humanidad colectiva. La independencia económica del autor y su autonomía son fundamentales para la libertad de expresión, y promueven la diversidad de voces, lo que a su vez fomenta la democracia. Denegar a los autores la capacidad de obtener una recompensa monetaria por sus obras creativas, es denegar el valor de las obras y el medio de vida de sus autores. El uso de la propiedad intelectual de un autor sin compensación justa, y en ausencia de una excepción legal legítima de los derechos de autor, es un robo. PEN International cree que hoy en día, más que nunca, los derechos del creador individual están en peligro por las nuevas tecnologías, las políticas y las leyes. PEN defiende la protección de los derechos de autor de todos los escritores en todas las partes del mundo, y declara lo siguiente: 1. El autor es el dueño de los intereses morales y la propiedad intelectual de cualquier obra que haya creado hasta el momento en que expiren los derechos de autor. 2. Los derechos de autor incluyen los siguientes usos de las obras: reproducción (ya sea analógica o digital), adaptación (incluida la traducción), publicación, representación y el uso digital, que incluye la transmisión de las obras en todos los trayectos digitales y en todas las plataformas digitales. 3. Los derechos morales incluyen: el derecho del autor a atribuirse la autoría de la obra, y a no atribuirse falsamente la autoría de las obras de las que no haya sido autor, así como el derecho a garantizar que su obra no se someta a tratamiento despectivo perjudicial para su reputación como autor.

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4. Los autores deben tener el derecho de comerciar libremente con los derechos de autor de sus obras. 5. Corresponde al autor decidir si quiere cobrar, así como fijar el precio, por el uso de su obra. 6. PEN International reconoce que hay casos en que los gobiernos puede considerar que es de interés público legislar excepciones a los derechos exclusivos de los autores sobre las obras que crean. Cualquiera de estas excepciones no deberá perjudicar injustamente los intereses morales y económicos legítimos del autor. Por ejemplo: - Cuando las obras no están disponibles comercialmente en formatos accesibles a las personas con dificultades para la lectura, las excepciones en las legislaciones nacionales deben permitir que la reproducción se haga a favor o por una persona con dicha discapacidad en un formato accesible, sin que se produzca una infracción del derecho de autor. Cualquiera de dichas copias realizadas para personas con dificultades para la lectura sólo debe realizarse después de que se haya llevado a cabo la búsqueda de una copia comercial. - Las resoluciones judiciales, legislación, reglamentos y otros instrumentos legales deberán estar a disposición de los ciudadanos. La fiel reproducción sin modificaciones de estas obras no debería ser una infracción de los derechos de autor. 7. Los legítimos intereses económicos de los autores en las obras que crean incluyen todos los mercados existentes y potenciales para sus obras. 8. Los sistemas de gestión de derechos digitales aplicados a las obras deben ser apoyados por la legislación sobre derechos de autor cuando sea necesario, a fin de que los propietarios de derechos de autor ejerzan sus derechos de autor sobre las obras. 9. Las reproducciones digitales de una obra realizada a una escala significativa, cuando no exista una excepción ni haya autorización del autor de la obra, constituyen piratería. La legislación nacional de-

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berĂ­a contener medidas sancionadoras pertinentes para prevenir la piraterĂ­a, a la vez que garantiza que el acceso legĂ­timo a las obras no se vea obstaculizado.

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ARTIGOS

―Condenado a passar a vida como Sísifo passaria a eternidade, carregando grande sofrimento, uma ‗pedra em vida‘, o homem, tão cansado e fraco, cai como pedra de si mesmo, para no dia seguinte recomeçar toda a peregrinação, novamente...‖ (Carmem Teresa do Nascimento Elias)

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DO MITO À POESIA: DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA CARMEM TERESA DO NASCIMENTO ELIAS

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a transversal da criação textual, entre a intertextualidade e a hermenêutica, multiplicidades de ressignificações e releituras abrem amplo escopo para os universos de autores e suas obras. Proposital, ou inconscientemente, autores, pensamentos e textos confluem entre si em esferas objetivas e/ou subjetivas. Como destaca Octavio Paz, ―cada texto é único e, simultaneamente, a tradução de outro texto. Nenhum texto é inteiramente original porque a própria linguagem em sua essência já é uma tradução. Em suma, assim como uma palavra ganha sentido dentro de um texto, um texto ganha sentido dentro de um contexto, e contextos, dentro de uma intertextualidade‖. Assim, significações tecem-se a uma obra ao confrontá-la com outras nas quais certos elementos são escritos e inscritos. Grandes obras literárias, não raro, são releituras de grandes clássicos reinterpretadas ao tempo do autor, e sementes para novas obras em séculos futuros. Por ter recebido o legado da cultura grega, a literatura ocidental se desenvolve, por um lado, reconstruindo mitos que, de maneira simbólica,

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explicam a vida humana; por outro lado, dando voz a questionamentos filosóficos. Com este ponto de partida, o presente trabalho oferece uma breve análise comparativa entre o mito de Sísifo, um soneto de Camões e um poema de Carlos Drummond de Andrade.

O mito de Sísifo: Resumo dos principais acontecimentos

Pastor de ovelhas e filho de Éolo, o deus dos ventos, Sísifo o mais ardiloso dos homens. Ao perceber que seu rebanho diminuíra, Sísifo arquitetou um plano para desvendar o ladrão. Marcou suas ovelhas, seguiu o rastro, e ao encontrar o responsável, vingou-se. Seduziu e engravidou a filha do malfeitor. Certa vez, presenciou Zeus raptando Egina. Aproveitando-se do fato, Sísifo, em troca da construção de um poço para sua cidade, entregou o deus. Como consequência, Zeus pediu que seu irmão Efaístos o levasse para o Hades, mundo subterrâneo onde viviam as almas condenadas. Sísifo, ardilosamente, compactuou com sua esposa para que não fosse enterrado, pois o pretexto para arquitetar seu retorno seria organizar seu funeral. Foi concedido a Sisífo a volta por três dias, apenas. Contudo, ao voltar à superfície, ele restabeleceu sua vida normal como se nada tivesse acontecido. Vendo o absurdo de tentar enganar a morte, Zeus ordenou que o conduzissem novamente ao Hades e que lá recebesse um castigo exemplar: rolar diariamente uma enorme pedra morro acima até o topo e, uma vez lá, ser abatido pela exaustão e deixar a pedra soltar-se e rolar morro abaixo, num processo que se repetiria pela eternidade.

Considerações acerca do mito Maneira simbólica de ―recontar‖ a criação do mundo por meio de divindades, semideuses e homens, os mitos constituem a própria gestação da Literatura. No mito de Sísifo são examinados valores como código de conduta, honra, persistência, perseverança e estoicismo. Entre os atributos

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de Sísifo destacam-se: ser filho do vento (símbolo de movimento), construtor de uma grande cidade, homem possuidor de ética quanto à conduta desregrada dos deuses e de senso de justiça contra o roubo e a apropriação indevida. Por outro lado, ele mesmo também tem falhas em seu caráter: é vingativo, traiçoeiro e enganador. Sua tragédia é justamente enganar os deuses, criando, assim, no eixo central da história, o grande embate da civilização grega entre o antropocentrismo e o teocentrismo, confronto este que transcorre por todo o mito. Sísifo, em momento algum, deixa-se abater. Supostamente derrotado pelos deuses em sua condenação eterna, ele persiste honrosamente a carregar diariamente sua pedra (cruz?) ao alto do morro (um calvário? Fonte de Ressureição? Libertação diária?). Sísifo foi realmente vencido pelos deuses, ou terá ele, com bravura e estoicismo, superado a própria condenação? Como definir Sísifo em seu martírio: homem, deus, semideus? Valendo de uma contextualização na emergente filosofia grega, Heráclito, pré-socrático considerado pai da dialética, atesta que tudo é movimento e que nada pode permanecer parado. O devir, a mudança que acontece em todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam, coisas frias esquentam; o que ascende, descende e tudo que descende, ascende. A realidade acontece, então, não em uma das alternativas, posto que ambas são apenas partes de uma mesma realidade que se expressa na mudança, na guerra entre os opostos. Esta guerra é a realidade. O filósofo ainda considera que, nessa harmonia, os opostos coincidem da mesma forma que o princípio e o fim, em um círculo; ou a descida e a subida, a construção ou o desperdício do esforço, pois é o mesmo caminho o de descida e o de subida. Igualmente, a vida e a morte. Tudo é um grande fluxo no qual nada permanece o mesmo, pois tudo se transforma e está em contínua mutação, sujeito ao tempo e à sua relativa transformação. Heráclito sustenta que só a mudança e o movimento são reais, e que a identidade das coisas iguais a si mesmas é ilusória. Para Heráclito tudo flui na doutrina dos contrários, onde se cria uma espécie de luta constitutiva do logos indiviso. Sísifo é o obreiro do HOMEM, o grande construtor material e engenheiro da depuração da moral e da ética, na luta da capacitação do

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homem perante a vida. Nessa dualidade, que na superfície é uma guerra, no fundo é harmonia entre os contrários, a lei universal da Natureza. E se Sísifo não para jamais, então ele não morre... Ele, filho do vento, é o próprio movimento!

A literatura camoniana Saltam-se os séculos. O Renascimento recupera o pensamento grego. Camões insere-se, cronologicamente, em um período que coincide com importantes transformações no pensamento, na vida e no percurso histórico e literário do Mundo Ocidental. Embora a obra de Camões seja ampla e variada, o seguinte soneto será o foco neste estudo. Oh! Como se me alonga de ano em ano A peregrinação cansada minha! Como se encurta e como ao fim caminha Este meu breve e vão discurso humano! Vai-se gastando a idade e cresce o dano; Perde-se em um remédio que inda tinha; Se por experiência se adivinha, Qualquer grande esperança é grande engano. Corro após este bem que não se alcança; No meio do caminho me falece; Mil vezes caio e perco a confiança. Quando ele foge, eu tardo; e na tardança, Se os olhos ergo, a ver se ainda parece, Da vista se me perde e da esperança. Nos versos é possível estabelecer comparações com Sísifo, apesar de uma visão oposta, desanimadora, de desistência e sucumbência. Ou seriam os opostos que se completam segundo Heráclito? O soneto aborda uma reflexão interior sobre o valor da vida perante as dificuldades, as impossibilidades, as irrealizações e a morte. A vida, semelhante à punição de Sísifo, é descrita no soneto como uma longa e ár-

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dua jornada, resultante apenas em cansaço e desilusão, angústia e sofrimento. O abatimento revela-se não apenas um cansaço físico, ou material, mas um cansaço decorrente do pesar de uma consciência que se autoavalia e julga derrotada pela vida e pelo Tempo. O homem no soneto camoniano não luta mais contra deuses, mas, guerreia contra si mesmo. Derrota, estática, fim do movimento? Seria uma contradição a Heráclito? Seriam o suicídio e a morte únicos destinos como Albert Camus questionará séculos depois? Os fundamentos da filosofia do existencialismo que surgiriam alguns séculos mais adiante expressamse visivelmente no soneto camoniano. A palavra ‗peregrinação‘ simboliza a própria vida como busca constante por ideais em combate contra o tempo. Alonga-se o tempo, alonga-se o espaço, a distância. Esse alongar-se torna a angústia interminável, maior do que o próprio ser ou a própria vida. Em outras palavras, estamos diante do questionamento básico do Existencialismo, da absurda insensatez da vida, pois até a esperança é perdida. Em termos de escolhas lexicais, destaca-se a aliteração de sons nasais, que, pelo alongamento que conferem às vogais, reforçam o alongamento do estado negativo e sofrido do poeta: ―como – mealonga – ano – em – ano – cansada – minha- fim- caminha‖. Essas escolhas de vocabulário fazem com que os sons do poema remetam à própria peregrinação, ou à própria ação prolongada do tempo. Por outro lado, em contraste à condição humana, ao tempo, ao sofrimento interminável, Camões sobrepõe a oposição da brevidade e a insignificância da vida em ―breve e vão discurso humano‖. O envelhecimento é a deterioração (‗cresce o dano, sem remédio‘), perda da esperança e ‗desintegração do EU‖: “Corro após este bem que não se alcança No meio do caminho me falece Mil vezes caio e perco a confiança”. Condenado a passar a vida como Sísifo passaria a eternidade, carregando grande sofrimento, uma ‗pedra em vida‘, o homem, tão cansado e fraco, cai como pedra de si mesmo, para no dia seguinte recomeçar toda a peregrinação, novamente... Nesse aspecto, o Soneto de

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Camões é uma grande releitura do mito grego trazido para o questionamento do homem perante si mesmo. Em outro salto temporal, Sísifo será relido e reelaborado por Albert Camus, em 1941, ao introduzir a filosofia do Absurdo, que se resume, em curtas palavras: ―o esforço inútil de uma pessoa, em seu árduo e rotineiro trabalho, que nunca será concluído e do desejo humano de ser eterno, como os deuses, vencendo a morte.‖ No século XX, Albert Camus, pai na filosofia do ABSURDO, retomou o mito no contexto sócioeconômico moderno para explicar a condição humana. Para Camus a vida era tal como Sísifo: uma rotina diária, sem sentido próprio, determinada por instâncias como a religião e o sistema capitalista de produção resumido a levantar de manhã, trabalhar, comer, reproduzir, sem o menor sentido, algo que se impõem ao indivíduo sem que ele participe dessa estruturação, sem escolhas, assim como uma punição dos deuses. O mito serve para mostrar que, seguindo as ideologias dominantes, seremos punidos com a mesmice: ―A vida do homem é fútil em busca de um sentido, unidade e clareza diante de um mundo ininteligível e desprovido de eternidade‖. No tocante a este aspecto, Camus vai se preocupar com o suicídio; Camões, com a iminência da morte; Sísifo, com a eternidade. Entretanto, Camus descreve o início do absurdo da existência humana alegando que grande parte de nossa vida é construída sobre a esperança do amanhã, do amanhã que nos aproxima da morte, nosso último inimigo... e desde o momento que o absurdo é reconhecido, ele se torna a mais angustiante das paixões. E caminho para o suicídio...‖ Camus vê Sísifo como representante do Homem que ama a vida, odeia a morte e é condenado a uma tarefa sem sentido e, embora reconhecendo a ausência de sentido, continua a executar sua tarefa diariamente. Para Camus, Sísifo é uma alegoria do homem moderno, caracterizado, principalmente, pelo operariado. Se para Camus, Sísifo é uma alegoria do homem moderno do operariado, o Soneto de Camões é uma descrição inicial, uma apresentação deste homem Moderno, fragmentado, desiludido, que surge no Renascimento ao afastar-se de Deus, e cujo sofrimento será o apogeu do Romantismo, alguns séculos mais tarde, período em que o pró-

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prio Camões passa a ser um poeta mitificado em Portugal, principalmente, por Almeida Garret. E além do Romantismo, esse homem Moderno, cuja essência foi tão bem descrita e sentida por Camões, será vastamente esmiuçado pela filosofia do século XX (Hiedegger, Jaspers, Nietzche) No último terceto ( ―Se os olhos ergo, a ver se ainda parece / Da vista se me perde e da esperança‖), o ―erguer os olhos‖ conduz ao alto, como à montanha de Sísifo. Para o céu em busca de um Deus? Para um plano idealizado e subjetivo? Para o Mundo das Ideias de Platão? Para o futuro? Para a eternidade? Para a morte? Para a própria Vida. Em suma, Camões nos apresenta um soneto em que o Homem, em sua condição meramente Humana, antropocentrista, é um ser perdido em si mesmo diante das antíteses da existência... ou seriam as antíteses, como enumeradas a seguir, o ponto de equilíbrio entre os movimentos? Tempo que alonga x encurta De ano em ano x breve Gastando x cresce Perde-se x tinha Esperança x engano Remédio x dano Corro x falece, perde Bem x não se alcança Tardo x foge Caio x ergo Tais antíteses representam a peregrinação no embate com a existência, pela tomada de consciência da inquietação da alma no dilema do ‗ser versus o não ser‘. Enfim, a temática clássica de Shakespeare (1564 a 1616), sucessor de Camões. Para fechar esse elo brevemente construído entre Shakespeare e Camões, eis uma passagem de Macbeth, em tradução livre e simplificada: “O amanhã, o amanhã, o amanhã Rasteja passo a passo, dia a dia E todo nosso passado ilumina os tolos No caminho para a morte...

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A vida é um conto, narrado por um idiota, Cheio de som e de fúria, Significando Nada” A pedra de Drummond Passam-se os séculos. O Existencialismo é abraçado na literatura romântica e moderna. No Brasil Carlos Drummond de Andrade oferece seu encontro com Sísifo: No meio do caminho No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. Entre Heráclito e Camus, entre o Movimento que a tudo governa, e o Existencialismo que joga ao abismo do Absurdo, afinal, diante da pedra e da peregrinação drummoniana cabem as indagações: Estaríamos diante do estático, da pedra paralisante, do fim da linha? Que é movimento e o estático para Drummond? Apesar da repetição que se alonga nos versos, destaca-se todo o conteúdo resumidamente em um verso: ―Jamais me esquecerei de que no meio do caminho havia uma pedra.‖ Nesse verso sintetizador destacam-se:

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1) O emprego do tempo futuro (jamais me esquecerei )... portanto a pedra rola na lembrança, mas o poeta avança para o futuro... a pedra diária rola para frente como o movimento constante de Heráclito; 2) A pedra está no MEIO do caminho... faz parte do percurso, mas não seu final; e, 3) HAVIA uma pedra... O tempo verbal do poema é o passado, indicando que a pedra foi superada... o caminho continua para frente. Em suma, a pedra, a dor, o sofrimento, o peso, apresentam-se como pedra bruta que vai sendo contínua, repetida e insistentemente lapidada... A lapidação da vida, por meio do processo de burilar os obstáculos pela superação, perseverança e estoicismo. Que seria a pedra de Sísifo, Camões e Drummond, senão a pedra alquímica, a pedra da lapidação da existência e da alma humana? Que mais seria senão a pedra filosofal? Que mais seria senão profundo movimento de autoconhecimento do próprio homem por meio de sua palavra, sendo a palavra a pedra filosofal na literatura...?

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Sócrates

―É notável verificar as lições de Sócrates. Acredita-se que suas ideias foram pouco modificadas, na exegese platônica, visto que só as conhecemos por força dos diálogos de Platão.‖ (Ives Gandra)

Platão

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DIÁLOGO NECESSÁRIO ENTRE O DIREITO E A FILOSOFIA IVES GANDRA

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a aventura humana sobre a terra. É que a Filosofia permite conhecer, no plano não metafísico, mas existencial, os caminhos que tornam um ser humano distinto de qualquer outro ente vivo no planeta, em que a inteligência, unida ao espírito

m meu livro O Estado, à luz da História, da Filosofia e do Direito (Ed. Noeses, 2016) procurei mostrar a estreita relação entre a Filosofia, o Direito e a História, estando as três ciências sociais em intensa relação para explicar

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ou à alma, permite ao homem perscrutar os seus últimos fins, formulando teorias, que por melhores que se apresentem esbarram na limitação própria de nossa inteligência e na apertada conexão entre o ser que conhece e o objeto conhecido (relação ontognoseológica).

povos, através do direito costumeiro e não escrito no início, tomando pouco a pouco forma com as leis anteriores a Hamurabi, como de Lipit-Ishtar, UrNammu, Shulgi e outros. É, todavia, a partir dos pré-socráticos gregos e da tríade admirável do período áureo ateniense, que a filosofia molda o direito, redirecionando os costumes para a estabilidade dos ordenamentos jurídicos, escritos ou não, que conformaram, principalmente, o Ocidente, à luz dos ensinamentos dos três filósofos (Sócrates-PlatãoAristóteles).

Os fundamentos filosóficos, todavia, à medida que o homem ganhou consciência maior da vida social e do progresso próprio que a inteligência foi abrindo para o aperfeiçoamento de suas relações, impactaram, de forma tosca, os primeiros aglomerados tribais, sendo gradativamente trabalhados, por primitivos pensadores, principalmente após a transformação da escrita em forma de veiculação do pensamento, num longo crescimento, que tem nas Cavernas de Lascaux e de Altamira e nas pinturas rupestres do nordeste brasileiro seus pontos de partida.

O próprio Império Romano só ganha a sua dimensão valorativa do direito, como instrumento de conquista, por força da indiscutível influência que o pensamento grego exerceu em todas as áreas do conhecimento em Roma, mas principalmente na Política. O livro clássico de Fustel de Coulanges, sobre a Grécia e Roma, mostra a similitude, inclusive nos deuses, dos dois países, mas a superioridade romana na cristaliza-

À evidência, tal despertar conformou a história da humanidade, pois, de rigor, passou a ser a história da vida social dos

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ção de todo este conhecimento, no Direito.

resumo das teorias e doutrinas de mais de 500 filósofos grecoromanos de expressão. Desde os tempos dos pré-socráticos até a decadência do império romano do ocidente, eles refletiram sobre a principal das ciências humanas, aquela que perscruta as verdadeiras riquezas da natureza do homem e sua inserção na ordem universal. Todos eles, sem exceção, escreveram obra de porte. Os pré-socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles e toda a plêiade de pensadores que os seguiu, procuraram, alguns, inovar a sua teoria (epicurismo e ceticismo), outros, compatibilizá-la com as religiões, como, por exemplo, Fílon, em relação ao judaísmo e Plotino, na busca de preservação da religião romana, em face do cristianismo. Todos eles, entretanto, procuraram adaptarse aos conhecimentos pertinentes ao século em que viveram.

Quero, todavia, neste breve artigo fixar-me, fundamentalmente, em quatro diálogos de Platão relacionados ao Direito, que me parecem essenciais para entender a influência maior que o pensamento grego exerceu sobre Roma, mas principalmente, as lições de filosofia, de cidadania e de respeito às leis, neles demonstrados. Trata-se de, perfunctoriamente, lembrar quatro discursos relacionados ao julgamento de Sócrates, que o levou à morte, de autoria de Platão (Eutífron, Apologia, Críton e Fédon). Estou convencido de que, após as lições da tríade maior da filosofia grega, toda a produção posterior foi periférica, visto que os grandes temas já tinham sido abordados pelos três mestres maiores da busca da sabedoria e da verdade.

É notável verificar as lições de Sócrates. Acredita-se que suas ideias foram pouco modificadas, na exegese platônica, visto que só as conhecemos por força dos diálogos de

Guillermo Fraile, na sua monumental História da filosofia, editada em 10 volumes pela BAC da Espanha, apresenta o

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Platão. Percebe-se nelas evolução de postura, principalmente na concepção dos grandes temas de reflexão - os deuses, o homem, a alma e a lei - e nos quatro "diálogos-chave", que desvendam o choque entre o indivíduo e a ordem da cidade, da lei e da eternidade. Como grande parte da minha reflexão jurídica recaiu sempre sobre o choque permanente entre o indivíduo e o Estado - seja na primeira das trilogias (O Estado de Direito e o Direito do Estado, O Poder e A nova classe ociosa), seja na segunda (Uma visão do mundo contemporâneo, A era das contradições” e A queda dos mitos econômicos) -, e mais recente nos três breves estudos (Uma breve teoria do poder, Uma breve teoria sobre o constitucionalismo e Uma breve introdução ao Direito) compreende-se minha particular preferência pelos quatro diálogos sequenciais, em que Sócrates, o protagonista, prevê o seu futuro julgamento, aceitando-o (Eutífron). Defende-se com argumentos irrefutáveis, mas que não foram considerados. Tendo

sido condenado (Apologia), nega-se a fugir, quando instado a fazê-lo por seus discípulos, mesmo sendo sua fuga desejada por seus injustos julgadores (Críton). Faz, então, considerações sobre sua morte, no cárcere, definindo-a como uma abertura para a eternidade e libertação da prisão humana (Fédon). O choque entre o indivíduo pleno, consciente de seus direitos e de sua razão e o Estado - cujo poder, na maior parte das vezes, é conquistado por oportunistas despreparados, que o ambicionam para utilizálo em proveito próprio, e não para servir ao povo - fica nitidamente retratado, nos quatro diálogos, como uma lição futura para ser aprendida por políticos e governantes, no dia em que se dispuserem a servir, mais do que a serem servidos. Arthur Clark, notável escritor de ficção científica, equiparado em sua época a Isaac Asimov, num de seus contos idealizou um corpo sideral, onde uma civilização só era go-

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vernada por aqueles que não desejariam governá-la. Naquela democracia, quem mostrasse ambição e interesse pelo poder era automaticamente afastado de qualquer disputa, pois estaria pensando mais em si próprio do que no povo.

cidadão, às leis de sua cidade, esperando que a justiça prevalecesse. E sua defesa, na Apologia, é devastadora, não deixando qualquer acusação sem resposta. Sua condenação, entretanto, não difere daquela com a qual os detentores do poder afastam os indivíduos capazes de lhes mostrar - como na velha fábula do rei da roupa invisível - a intriga, a adulação e a mentira. Persiste, ao longo da história, uma concepção de Estado segundo a qual os sociais e politicamente inconvenientes devem ser eliminados.

Em Eutífron, ao aconselhar amigo seu a submeter-se ao julgamento, acreditando nas leis da cidade, que sempre respeitara, Sócrates procura mostrar que a justiça decorre da certeza de que os que a dirigem são capazes de preservar cada cidadão, assim como de dirigir a cidade, mantendo uma relação de equilíbrio e estabilidade que permita realçar os valores da comunidade.

Quando Carl Schmitt, em sua teoria das oposições, declara que a arte opõe o belo ao feio, a moral, o bem ao mal, a economia, o útil ao inútil e que a política opõe o amigo ao inimigo, não faz senão relembrar as lições maquiavélicas de que é bom o governante, mesmo que mal, se não perder o poder, e mal o governante, mesmo que bom, se o perder. Por esta razão, em todos os períodos da história, em todos os espaços

Por esta razão, tendo a opção de não se submeter ao julgamento de sua "polis", quanto à falsa acusação de ministrar à juventude corrosivos ensinamentos, bastando para isto dirigir-se a qualquer outra cidade-estado, que o acolheria com as honras que seu talento merecia, preferiu mostrar o profundo respeito que tinha, como

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geográficos, nas democracias, as campanhas para conquistar o poder objetivam apenas destruir a imagem do adversário, e nas ditaduras, a própria vida e a liberdade dos que se opõem.

jar, pois é a libertação da prisão corporal para a eternidade. De rigor, mostra que, nesta passagem pela terra, nada somos e iludimo-nos quando pensamos deter qualquer forma de poder real. Isso porque todo poder é transitório, visto que somos todos condenados à morte, uns nela vendo a libertação pela vida que levaram e outros temendo-a por não terem vivido uma vida digna de merecer a eternidade.

A lição de Sócrates sobre esta oposição permanente entre o indivíduo, na luta por suas aspirações maiores, e o Estado que, segundo Helmut Kuhn, não constitui senão uma simples estrutura do poder, é tão atual quanto o foi, à época e o será, no futuro, até o fim dos tempos.

Nos dias que correm, estas permanentes oposições, entre o indivíduo e o poder, entre a justiça e a lei feita pelos governantes - mais em benefício deles próprios do que no do povo, como afirmava Hart -, entre o bem e o mal, entre o temporário e o eterno, encontramos, pela pena de Platão, nas lições duradouras, de Sócrates, que influenciaram todas as gerações de juristas e pensadores, a luz exclusiva da reflexão filosófica.

Em Críton, o filósofo não acata as sugestões de fuga que os discípulos lhe propõem e que os julgadores tolerariam, com um argumento imbatível: que pensariam seus discípulos, que sempre o tinham ouvido falar no respeito à lei da cidade, vendo-o não respeitá-la, fugindo ao seu cumprimento, ou seja, à pena de morte? Para dar o exemplo a seus discípulos e a todos os que sofressem perseguições futuras, declara aceitar a morte que, como termina por concluir, em Fédon, é o que mais o ser humano deve dese-

São estas algumas considerações que faço sobre a íntima relação entre a Filosofia e

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o Direito neste brevíssimo estudo para a Jornada ULBRA de Filosofia do Direito, relembrando velhas lições daquele Mestre e de seus dois sucesso-

res, trindade esta até hoje insuperada na filosofia. Quanto mais os leio, mais me convenço, não só insuperados, mas insuperáveis.

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UM AFAGO AO RIO RICARDO CRAVO ALBIN

Este Almanaque, tramado pela coragem do editor Luiz Cesar Faro, desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais vigorosa, os muitos de seus sortilégios. Que brotam torrenciais por todos os poros dos cariocas que amam a cidade. Sim, porque os há de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos ritmos e dos muitos requebros sensuais, que a redimem dos malfeitos e da inadmissível violência.

H

á pouco foi editado um livro chamado apropriadamente de Almanaque Carioquice. Os dois nomes que impõem o título já representam uma originalidade. Claro que a palavra Almanaque remete à saudosas publicações de mais de século e meio que, digamos, resumia ou definia assuntos específicos daqueles tempos, acompanhados quase sempre por chistes e caricaturas. Quanto à Carioquice, o nome foi consagrado ao encimar a hoje famosa revista trimestral do mesmo título, editada pela Insight Produções, com responsabilidade de pauta a cargo do Instituto Cultural Cravo Albin.

Este livro, sim, um LivroAlmanaque, se acode das miudezas e de detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato

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do que é a entidade (por que não?), chamada de Espírito Carioca. De resto, esta entidade fez desabrochar poemas e crônicas torrenciais sobre a magia do Rio. Transcrevo trecho de uma das minhas preferidas, feito pelo carioca que mais se impregnou não só das belezas, mas das verdades (muitas delas nuas e cruas) impostas pela cidade, Lima Barreto. Vale ler este fragmento sagaz do escritor carioca que define seu amor pelo Rio, então uma cidade já surpreendente da segunda década do século XX.

que se assentou. Reflitamos um pouco. Se considerarmos a topografia do Rio, havemos de ver que as condições do meio físico justificam o que digo. As montanhas e as colinas afastam e separam as partes componentes da cidade. Esse enxamear de colinas, esse salpicar de morros e o espinhaço da serra da Tijuca, com os seus contrafortes cheios de vários nomes, dão a cidade a fisionomia de muitas cidades que se ligam por estreitas passagens. A ―city‖, o núcleo de nosso glorioso Rio de Janeiro, comunica-se com Botafogo, Catete, Real Grandeza, Gávea e Jardim, tão somente pela estreita vereda que se aperta entre o mar e Santa Thereza. Se quiséssemos fazer o levantamento da cidade com mais detalhes, seria fácil mostrar que há meia dúzia de linhas de comunicação entre os arrabaldes e o centro efetivo da cidade.

―Este Rio e muito estrambótico. Estende-se p‘ra aqui, pr‘a ali; as partes não se unem bem, vivem tão segregadas que, por mais que se aumente a população, nunca apresentará o aspecto de uma grande capital, movimentada densamente. -Toda cidade deve ter sua fisionomia própria. Isso de todas se parecerem é gosto dos Estados Unidos; e Deus me livre que tal peste venha a pegarnos. O Rio é lógico com ele mesmo, com a sua Bahia o é com ela mesma, por ser um vale submerso. A Bahia é bela por isso; e o Rio o é também porque está de acordo com o local em

É que Rio de Janeiro não foi edificado segundo o estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas, ela sofreu, como todas as cidades espontâneas, o influxo do local em que se edificou e das vicissitudes

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sociais porque passou, como julgo der dito já.

em espichada conversa sobre os prazeres, sobre a música, sobre a alegria de viver e de sorver a beleza. Ao final, já caindo uma noite chuvosa e úmida, Vinicius de despede e, docemente, como era de seu feitio, agradece ao casal, dizendo que acabara de viver naquelas duas horas a intensidade da magia do Rio – ―estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o poeta do samba carioca, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa, e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar, e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco. Saravá!‖

Se não é regular com a estreita geometria de um agrimensor, é, entretanto, com as colinas que a distinguem e fazem-na ela mesma‖, conclui Lima Barreto este preciso e original perfil da cidade. Certa vez., lá pelos anos 60, em domingo plúmbeo e ainda por cima chuvoso, estava almoçando no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Depois de ter mergulhado em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira, e mimoseada com outros segreditos mais (a grande quituteira jamais confessou, mas sempre desconfiei que ela batizava o molho com uma cachaçinha sabiamente perfumada com cascas de limão, guardada a sete chaves lá no fundo do armário da cozinha), eis que chega, nada mais, nada menos, Vinicius de Morais, acompanhado pelo filho Pedro. O poeta toma assento, pede a branquinha que reluzia à mesa, e pergunta à Zica pela carne-assada, degustada por ele lenta e galhardamente. Fixei para sempre na memória a cena dos dois poetas,

Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, na boca da noite chuvosa, na soleira do barracão de Cartola e Zica, a definição mais eloquente e inamovível da magia da cidade de São Sebastião. Os editores da Insight, a partir da solidez de pesquisas históricas e de queimar pestanas (deduzo...) em busca da enormidade da literatura sobre o Rio e sua musica, põem de pé um livro que representa uma contribuição de essência, para quem quiser saber, mais e melhor, sobre sua moldura visceral e

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única, a cidade de onde ela flui e se enfeitiça.

chancelada pela famosa revista trimestral Carioquice, que já cumpriu 11 anos de levantamentos das coisas, das gentes e dos fazeres cariocas.

As surpresas das revelações que se seguem traduzem, com precisão e bom senso, o crucial desvelar que forma e identifica o milagre do Espírito Carioca. Logo, logo, em capítulos especialmente incandescentes para mim, os editores adentram surpresas de originalidades. E deságuam na contemporaneidade da cidade, através de lugares estratégicos que os turistas desconhecem.

Vinícius de Moraes, com sua reconhecida paixão pelo Rio, me entregou um texto do seu amigo Álvaro Moreira, que leu na íntegra em palestra feita no Museu da Imagem e do Som, lá por volta de 1971 e que guardei com carinho e cuidados. Transcrevo: ―A terra carioca tem o tempo da vida contado às avessas. Os anos vão passando, ela vai ficando mais nova. Quem a procura, na lembrança dos dias coloniais, encontra uma velhinha tristonha, de nome cristão e vista fatigada, em frente ao mar... Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Durante a permanência de D. João VI, a velhinha desaparece. E lá está, entre uivos da rainha doida e os primeiros lampiões urbanos, uma grave matrona, vestida sem gosto nenhum...

Há uma configuração audaciosa e necessária de veredas totalmente inéditas. Ainda sobra espaço para a placidez da música clássica carioca nas igrejas centenárias. Sim, que ela também existe e sempre existiu, ostentando desde o princípio do século XVIII, virada do XIX, a opulência do Padre José Maurício, um mulato genial, que nas horas vagas se dava o prazer de compor lânguidas modinhas e até, há quem afirme (o nosso Dicionário Cravo Albin on-line) um tanto atrevidas.

Com D. Pedro I, ei-la chegada ao outono, já bem posta, aparecendo nas igrejas, nos salões, no teatro... A Regência deixa-a na mesma idade. Pelo meio do Segundo Império,

Portanto, a longa e maturada história dos pilares desconhecidos, quase sempre obscuros, do carioca está bem aquinhoada neste Livro-Almanaque,

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dança tudo... É linda!...‖. Álvaro Moreira, tal como Vinícius, e Noel Rosa no samba ―Cidade Melhor‖) mimoseavam o Rio como cidade feminina, cheia de dengos, feitiços, e belas formas.

ela rejuvenesce escandalosamente... Quando se proclamou a República, andava a terra carioca nos seus vinte anos... De então para hoje, ficou assim... Menina e moça pouco a pouco se desembaraçou, perdeu o ar acanhado, quis viver... O corpo tomou o ritmo das ondas, a graça das árvores esguias. Tem um resto de sonho nos olhos, o voo de um desejo alegre nas mãos... Mulher bem mulher, a mais mulher das mulheres... Conhece o presente. Advinha coisas deliciosas do futuro. Mas, não lhe falem em datas, épocas, feitos, criaturas do passado... Não lhe falem, que se atrapalha. Em compensação, enumera todos os costureiros e chapeleiros de Paris... diz de cor a biografia de todos os artistas de cinema... entende de esportes como ninguém entende... Conversa em francês, inglês, italiano, espanhol... Ama os poetas... Toma chá, com furor... E

A convergência a que me referi ao início deste texto (embora o Almanaque da Carioquice) mereça páginas e páginas a não acabar, o que, aliás, é tentação perigosa para mim tão íntimo da matéria), pode ser avaliada ao se desdobrar cada capítulo. A trama de uma sequência canônica sem paralelo, as surpresas urdidas pela cidade, parecem mesmo convergir. E convergem para a avaliação de um cadinho de bons resultados, sintetizados, insisto sempre, na miscigenação, na descontração, na leveza da alegria do Rio, na absorção do todo. Que é redentor pela originalidade, e majestático pelo fazer e viver carioca.

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―Perguntei o que tinham para comer e a mais velha levantou uma sacola branca de supermercado com um peixe miúdo, dentro. Aquilo, apenas aquilo, seria o almoço das sete pessoas e mais nada.‖ (Diego Mendes Sousa)

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A COLORIDA TÚNICA DOS BUGRES DIEGO MENDES SOUSA ―Ouça branco, preste atenção. Quando eu era deste tamanho, eu costumava dormir no braço do meu pai, assim. E ele me contava: „você vai crescer diferente dos seus irmãos. Eles brigam muito, você não. Você se dá bem com as pessoas. Você vai ser amigo de todo mundo, você vai manter o nosso povo unido (...). Um dia, no futuro um outro povo desconhecido, e eles serão capazes de exterminar com a gente. Você quem vai manter o nosso povo unido.‟Então desde pequeno eu já sabia. Então, branco, branco começou a matar, e foi aí que ccomeçou a guerra.‖ Raoni Metuktire

I - Indigenismo humanitário

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omo sou Rondoniano, herdeiro da coragem e do humanismo do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, e este também, detentor do pensamento “Morrer se preciso for, matar nunca”, inspira-me relações profundas pela causa indígena. Defendo o Indigenismo Humanitário, conceito adjetivo inventado por este escriba humanista. Na recepção da sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), na cidade de Cruzeiro do Sul, no Estado do Acre, onde hoje atuo como Indigenista Especializado, deparei-me com um grupo de brasileiros e

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estrangeiros, dentre eles, belgas, franceses e alemães, que buscavam autorização para ingressarem em terra indígena e, com isso, aprenderem e conviverem com os prazeres exóticos dos nativos do Vale do Juruá, floresta amazônica.

Neste ínterim, eu coletava – entristecido - alimentos perecíveis no almoxarifado do Órgão e preparava, sozinho, cestas básicas para distribuição aos indígenas em vulnerabilidade social, quando um rapaz loiro, alto, olhos claros e com perfil dos ‗States‘, mas falando fluente o português, indagou-me sobre o que estava a fazer com tantos alimentos. Respondi em tom seco e de revolta: ―iremos doar aos indígenas Kulina e Ashaninka que vivem sofridos, na extrema miséria, no município de Feijó, às margens do Rio Envira.‖

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Detalhe, os Kulina são chamados de Madija (madirrá), que significa ‗os que são gente‘. E imperdoável, ironicamente, eles viverem humilhados e massacrados.

O Norte Americano ficou mudo. Creio que tenha sido o choque brutal das minhas palavras reais. Ele carregava uma larga mochila, própria para expedição e, pelo que percebi, já havia participado de rituais indígenas pelos rincões do Acre. O susto dele era esperado, afinal, o que é vendido aos visitantes é o colorido dos imensos e belos cocares ao ritmo dos barulhos silenciosos da natureza, bem como os grandes ―festivais‖ patrocinados pelo turismo ecológico, a troco de poucos e muitas vezes a interesses outros, que são minados por política financeira ao cofre do não índio. Sei, desde cedo, da sabedoria popular, que contra fatos não há argumentos. E a caridade, como em São Francisco, deve pautar os nossos atos como seres humanos: quem dá aos pobres, empresta a Deus!

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II - Primeiro contato A manhã passava da metade das suas horas. Recordo de ter olhado o relógio de pulso que marcava dez horas e vinte e dois minutos. Era quinta-feira, dia 13 de dezembro de 2018, e chovia. Há exatos seis meses havia ingressado no Indigenismo. E nessa meia dúzia de tempo, ainda não havia viajado a cidade de Feijó, que fica a duzentos e tantos quilômetros de Cruzeiro do Sul, onde, felizmente, fui lotado pela Administração Federal. A primeira visão foi o Rio Envira. A segunda, uma família Ashaninka que rumava para a sua pequena cabana à margem desse mesmo rio. Na caminhonete, estavam Jair, nosso motorista, Ruama, colega de trabalho, Altair, minha mulher e apaixonada pela causa indígena, e eu. De repente, Jair começou a buzinar com o intuito de atrair os indígenas, sem sucesso. Ruama abriu a porta do carro, e sem poder descer, por causa da lama envolta, começou a acenar para o pequeno grupo de índios. Os Ashaninka ficaram paralisados, por medo ou talvez pela circunstância de opressão e de discriminação que sentem, diuturnamente, pela força desumana do não índio. Na realidade, pareceu-me que estavam acuados e não acreditavam que alguém pudesse sentir o desejo de conversar com eles. De forma cinematográfica, os Ashaninka ficaram sem reação e, de maneira inesperada, porque tive a ideia de mostrar-lhes o colete da Fundação Nacional do Índio (Funai), que estampa um belíssimo cocar na sua logomarca, eles correram desesperados em direção ao veículo em que estávamos, como quem vê a miragem no deserto. Como quem vê Deus e a sua redenção. Percebi que a Funai é uma grande mãe e que os índios se sentem protegidos por nós, indigenistas especializados. Compreendi então, a minha missão.

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Quando chegaram mais próximo, vi três crianças tímidas, sujas e tristes, e quatro adultos, sendo dois homens e duas mulheres, e uma delas, bem idosa. Perguntei o que tinham para comer e a mais velha levantou uma sacola branca de supermercado com um peixe miúdo, dentro. Aquilo, apenas aquilo, seria o almoço das sete pessoas e mais nada.

III - As túnicas dos Ashaninka Desembarcamos do carro, no centro de Feijó, no Acre, próximo ao mercado público. Rapidamente, atraídos por uma quantidade expressiva de alimentos que carregávamos na carroceria do veículo, diversos indígenas - homens, mulheres e crianças - inclusive de colo, começaram a nos cercar. Altair estava enfeitiçada com as cores dos povos Ashaninka, que, pela influência peruana originária, usam túnicas. Estávamos sob a fluência do Rio Envira, mas também sabia da existência dos Ashaninka do Rio Breu, do Igarapé Primavera e os do Rio Amônia, onde vive o estro de Milton Nascimento, Benki, consagrado no fino álbum Txai. Observei em detalhes, vi túnicas pretas, marrons, amarelas, azuis claras, vermelhas, verdes, outras de tons ocres ou crus e até mesmo multicoloridas. Essa roupa exótica os protege das adversidades vividas. O fascínio, a emoção mais profunda, ocorreu quando os tocamos em saudação, além do sorriso espontâneo no rosto de cada um deles. Quanta energia contida nessa gente, que, apesar da opressão social, emanava fluídos extraordinários! Altair não escondia a felicidade no olhar e nos gestos. Tão inacreditável, que me disse encantada, "peguei na mão de um autêntico índio!" Não contive a comoção interior. Os txais passaram a residir em nós. E para curiosidade do leitor não iniciado no xamanismo, revelo o significado da fortaleza anímica da sonora expressão indígena Txai: "mais que amigo, mais que irmão,

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a metade de mim que habita em você, a metade de você que habita em mim".

IV- Respeito e resignação nos Madija Nas adversidades da vida, para quem enfrenta a fome cara a cara, deparar-se com farta quantidade de alimentos gera reações esperadas: ou atacar ou pedir ou furtar. Os indígenas Madija ou Madiha, cuja pronúncia é Madirrá, causaram-me enorme surpresa! Nunca tinha visto tanta resignação, essa forma de desistência brutal ante as dores e os sofrimentos permanentes enfrentados no existir. O branco civilizado - posso estar equivocado - teria a atitude natural de acometer a fila, de assaltar o carregamento de esperança, que levávamos no lombo de ferro do veículo. Mas não, os Madirrá estavam ali, de maneira indiana, não falavam a Língua de Camões. Somente entendiam gestos. Também eu desconhecia a Língua deles, a Kulina, com exceção de raríssimas palavras delicadas, como dsamarini {o habitat da água}, nami {terra} e meme {céu}. Para esses indígenas que convivem bem com os Ashaninka, a ponto de ter identificado Madija, vestido de Ashaninka, pois estes, tradicionalmente, usam túnicas e, aqueles, roupas coloridíssimas, mas normais ao citadino comum, como vestidos, saias, blusas, bermudas e camisas. Algo mais me chamou a atenção: os Pés Descalços e Achatados. Lembrei-me da procissão de São Francisco de Assis na minha Parnaíba (Piauí) natal. Os Madija pisam na terra acreana sem medo. O lamaçal onde moram em suas ‗pilotis‘ precárias, à beira de rio... Nos casebres com teto de palha, privam sogro e genro e filhos. Famílias enormes, mais de dez, conforme o ritual desse povo. Decerto, há uma sofreguidão nos Madiha que ainda desconheço. Sei que aprendi. Eles nos ensinam sem saber se a gente se redime diante do impossível; uma aula digna e soberana sobre o intolerável.

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V - Ignorância e egoísmo do Homem Comum “Quê que esses índio quer aqui na cidade? Deviam tá caçando jabuti pá comer.”, foram os termos utilizados, como resposta, por um homem branco comum, ao indagar Altair a quem seriam destinadas as cestas de perecíveis que trazíamos de Cruzeiro do Sul para Feijó, ambas na geografia acreana, sob sol e chuva, mormaço da floresta mais que verde, mais que linda, deste pedacinho da Amazônia Legal. Os versos de Lorca assaltaram-me. Foi-me impossível esconder, pois um poeta não esconde sensibilidade. “Verde que te quero verde. Verde vento. Verdes ramas. O barco vai sobre o mar e o cavalo na montanha”.

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Povos Madija (Os que são gente). Foto: Heine Herner, 1986

No caminho até Feijó, vi diversos rios: o Juruá, o Liberdade, o Boto, o Gregório, o Acurauá e o Envira. Vi também gado pastando nos vales verdinhos da região. Penso que com tanta riqueza, com a natureza como berço do homem, como o egoísmo e a desumanidade podem estar tão latentes em nós? Pela primeira vez, fiquei diante de uma Samaúma, árvore sagrada para os povos indígenas. Para eles, o gigante vegetal, que pode alcançar sessenta e cinco metros de altura, é madre mor da humanidade. Nós, os homens brancos comuns, temos por mãe, o capital.

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Nossa ignorância vem dos costumes. Nosso egoísmo vem do instinto de crer que tudo que há, pode nos pertencer, porém, sempre esquecemos que o ritmo da vida merece desprendimento e abdicação. Os indígenas sobrevivem porque sabem renunciar. Não ferem, não agridem, não ocupam espaços que não lhes pertençam. Vivem o Carpe Diem e primam pela coletividade. Altair permaneceu calada e o sujeito, autor da colocação inapropriada, engoliu a sua inveja, a sua desdita. Os indígenas Ashaninka e Madija ouviram aquilo e com a expressão de derrota, cabisbaixos pelo cruel destino, o barulho da chuva silenciou. Cá, nos meus pensamentos de bardo que valorizam o símbolo, imagino que Tupã chorou.

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Escritor Antonio Tabucchi

―O nome de Tabucchi é de conhecida importância nacional e mundial no que toca à literatura italiana e alguns de seus romances foram adaptados para o cinema - por exemplo, Afirma Pereira.‖ (Délia Cambeiro)

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AFIRMA PEREIRA. UM TESTEMUNHO, DE ANTONIO TABUCCHI (UMA LEITURA) DÉLIA CAMBEIRO

A

literatura portuguesas da Universidade de Siena, um apaixonado por Portugal e sua

ntonio Tabucchi (Pisa, 1943; Lisboa, 2012) foi professor de língua e de

cultura, pesquisador e tradutor de Fernando Pessoa e de Carlos

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Drummond de Andrade, além de cidadão português.

tragédias políticas de então serviram de mote para as artes e grande parte das obras continua a nos instigar, provocando-nos a um contínuo questionamento, não só pela sua importância criativa, mas pela repercussão do tema tratado de maneira contundente, por autores que participaram direta ou indiretamente dos acontecimentos. Tal acervo artístico, sem dúvida, é o registro da memória coletiva, a denúncia do clima doloroso que pairava sobre a Europa. As inúmeras obras sobre o tema apontam momentos de violentos choques de cunho políticoideológicos em um continente submetido por incontrolável vontade de poder de chefes dominadores, sanguinários. A produção literária guardaria rastros e reflexos de situações que nos alertariam quanto à terrível e trágica fase da História, certamente passível de se repetir, em qualquer época, de causar, outra vez, mais de cem milhões de mortos se pensarmos nos três regimes totalitários anteriormente mencionados. As palavras de inúmeros escritores, porém, tentaram representar os instantes abissais e extremos em que a dignidade e a liberdade humanas estiveram sacrificadas. Em Afirma Pereira ouve-se

Dentre os vários títulos que nos deixou, apenas destacamos Os três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio; Noturno indiano. O nome de Tabucchi é de conhecida importância nacional e mundial no que toca à literatura italiana e alguns de seus romances foram adaptados para o cinema - por exemplo, Afirma Pereira. Um testemunho 1 e Noturno indiano - e vários deles traduzidos em outras línguas. O romance aqui sugerido para leitura trata da subida de regimes totalitários na Europa, mais especificamente, em Portugal e na Espanha. A matéria desenvolvida tem como pano de fundo histórico a memória da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), faz menções ao Portugal sob Antonio Salazar, cita também Benito Mussolini e Adolf Hitler. A trama se desenrola no quotidiano de Pereira, um jornalista em Lisboa, durante o verão de 1938. A Europa dos anos 30 viveu um traumático rastro de histórias pessoais e familiares, irreversivelmente marcadas por sangrentos acontecimentos coletivos gerados pelo comunismo, fascismo e nazismo. As

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aguçada voz contra a injustiça e a prepotência de figuras genocidas centralizadoras do poder.

tentava acercar qual fosse o ofício do historiador e o do ficcionista, na obra de matéria histórica. Como bem sabemos, o filósofo já estabelecia que:

Tentaremos examinar, nesse entrelaçamento de História e Literatura, o romance de Tabucchi no que toca à linha do romance histórico. para tanto, mencionaremos algumas visões críticas. O romanesco e o historiográfico encerram diversos autores, que discutem o diálogo entre ficção e história, porém, apesar da importância desses nomes, quanto à poética e à sociologia do romance, aqui não poderão ser visitados devido aos limites desse sucinto trabalho.

1. Daqui por diante mencionaremos o romance de Tabucchi da forma mais conhecida: Afirma Pereira [...] não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa, [...] diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso, a poesia é algo mais filosófico e sério do que a história, pois, principalmente, refere aquela o universal, e esta o particular. Por ―referir-se ao universal‖ entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade de verossimilhança, convêm a tal natureza; e, ao universal, assim entendido, visa à poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens [...].

Escolhemos a palavra dos professores Alcmeno Bastos e a de Pedro Brum, pois são de grande valia sobre o tema. Aqui também estará presente o crítico e escritor Mario Vargas Llosa. Antes de Vargas Llosa, Bastos e Brum, referente à simultaneidade do fictício e do referencial, a leitura do romance de Tabucchi levou-nos, mais uma vez, a Aristóteles. A questão do veio da ficção e o do referencial já fora inquirida em sua Poética e ainda continua a despertar a atenção de vários estudiosos. O filósofo grego

Como podemos observar, Aristóteles traçava um contraste entre factual, universal, ficcional e particular como critérios de diferença entre o fazer do historiador e o do poeta, sob a mira da verossimilhança. Considerou que o historiador apresentava fatos acontecidos, já os

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narrados pelo poeta ―por liames de verossimilhança‖, poderiam acontecer e ter acontecido.

a verdade histórica. Porém, mesmo que esteja repleta de mentiras - ou melhor, por isso mesmo - a mentira conta a história que a história, que escrevem os historiadores, não sabe nem pode contar. [...] Porque nos enganos da literatura não há nenhum engano‖. No entender de Bastos, em Introdução ao Romance Histórico, ― [...] a ficção contemporânea [...] só reforça a certeza de que a matéria de extração histórica tem um passado, circula no universo cultural e é a referência inevitável. [O] aproveitamento da matéria de extração histórica [...] é [...] o espaço específico de atuação do homem‖. Em seu Teorias do Romance, Pedro Brum nos indica que ―[...] é possível definir como romance histórico, na atualidade, os relatos que privilegiam [...] eventos e personagens pretéritos, cuja relevância comporta uma feição historicista [...]. [...] A presença da História [...] manifesta-se como um dado constante na caracterização do gênero‖.

Apesar de parecer simples e de tudo já surgir solucionado, a relação entre ficcional e factual ainda causa algumas inquietações críticas, no que toca à invenção literária e aos dados da realidade histórica acolhidos na obra. Estivessem os críticos preocupados em definir se tal modalidade narrativa fosse apenas uma forma diferenciada de registro historiográfico, ou em conceder à História um papel significativo como tela de fundo para a ficção, a verdade é que a recepção do romance histórico junto ao público ganharia espaço e seria bem significante. O fato é que, ao laçar os fios da história e o da ficção, o romancista sugere inúmeras e possíveis leituras dos fatos históricos, deleitando o leitor, atestando seu desejo de trazer à luz e de (re)inventar e manifestar literariamente o que permaneceu no passado. No rastro dos discursos sobre o processo de ficcionalização da matéria de cunho histórico, é interessante assinalar a opinião de Vargas Llosa, em La verdad de las mentiras: ―[a] verdade literária é uma, e outra

Em concordância com as orientações críticas anteriores, no que se refere à História, em Afirma Pereira, ouvimos falar e contar a respeito dos chefes do fascismo e dos comandantes da

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a morte, pensava: ―esta cidade fede a morte, a Europa fede a morte‖.

Guerra Civil Espanhola agindo em direção ao poder. Além da situação de Portugal, sob o domínio de Salazar, sabemos da atmosfera opressora do fascismo na Itália e a da Guerra Civil, na Espanha, e em outros polos de violência, por intermédio de um narrador, que nos conta o que ouviu do testemunho do protagonista Pereira daí, constantemente repetir: ―Afirma Pereira‖. As notícias se divulgam por intermédio do diálogo entre personagens que desfilam pelo Café Orquídea. Uma interessante personagem é o garçom do Orquídea, que frequentemente passa, em rápidas falas, a resenha dos acontecimentos para Pereira, quando de suas idas ao bar para as habituais limonadas e omeletes de ervas.

Em sua vida sem mudanças ou novidades, dois fatos haveriam de influenciá-lo em sua decisão de não se imiscuir em assuntos políticos mas que provocariam a mudança de seu destino. O primeiro fato se refere à admissão, como colaborador das Efemérides, de um empenhado antifascista chamado Monteiro Rossi, sempre acompanhado de Marta, outra militante. Só depois de contratálo, Pereira compreenderia serem impublicáveis os artigos do ativista, devido aos perigos a que o jovem se exporia, com os ferrenhos ataques dirigidos às figuras do governo português, por intermédio de nomes da Literatura. Outro fato a marcar suas convicções aconteceu durante o verão, ao decidir passar uma semana em uma clínica, para tratamento de saúde. Ao voltar para Lisboa, no trem, conheceu uma senhora judia, que lhe confessou estar de partida para os Estados Unidos, pois os acontecimentos que ocorriam em toda a Europa, em especial na Alemanha e em Portugal já a preocupavam. Ao saber que Pereira era jornalista, pediu-lhe que fi-

A trama se desenvolve na Lisboa de 1938, onde vivia este jornalista encarregado da coluna de Efemérides e da página cultural do vespertino Lisboa. Radicalmente preocupado com a morte, sentia ter sua vida parada ao ficar viúvo e, como resultado da solidão, sempre dialogava com o retrato da falecida mulher, a quem se dirigia para comentar o quotidiano vivido. Com obsessivas reflexões sobre

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zesse algo, denunciasse os instantes difíceis na Europa, dissesse o que sucedia, expressasse e exercesse sua liberdade de pensamento. A aproximação de Pereira com Monteiro Rossi e com Marta, sérios ativistas, também o encontro com a passageira no trem, concorreram para fustigar a faísca da conscientização política no protagonista e para abrir o sentimento de revolta contra a situação de Portugal. O último capítulo se fecha com a coragem de Pereira mandar publicar em seu jornal a notícia sobre o assassinato de Monteiro Rossi, vítima de espancamento, durante ―uma lição de patriotismo‖, no apartamento do jornalista. De posse de um passaporte falso, após intrincada trama, Pereira partiu para a França.

ção frequentadora do café Orquídea e das ruas de Lisboa mesmo que, às vezes, abafadas pelo temor - açoitam com a palavra consciente o instante de crise histórica, eternizada na obra de Tabucchi. Finalizamos essa leitura com Emile Cioran, filósofo romeno de expressão francesa, que assim nos adverte, em seu Breviário da decomposição, quanto à sede de poder: ― [...] O importante é mandar: a isso aspira a quase totalidade dos homens. Se tem em suas mãos um império, uma tribo, uma família ou um criado, empregue seu talento de tirano, glorioso ou caricatural: todo um mundo ou uma só pessoa está às suas ordens. Assim se estabelece a série de calamidades que provém da necessidade de primar... [...].‖

Sem dúvida, Afirma Pereira é o palco pelo qual desfilam conhecidas figuras históricas da Europa à época dos eventos apontados e discutidos no livro. As personagens fictícias, conscientes da situação questionam, em vinte e nove capítulos, o doloroso impasse que arrasava não só Portugal, mas, também, como já acentuado, outros países europeus. As vozes dessa imaginada popula-

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2002. BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: Eduerj, 2007.

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CIORAN, Emile. Breviário de decomposição. 2.ed. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

TABUCCHI, Antonio. Afirma Pereira. Um testemunho. Trad. Roberta Barni. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

SANTOS, Pedro Brum. Teorias do romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: Ed. da UFSM, 1996.

VARGAS LLOSA, Mario. La verdad de las mentiras. 3.ed. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1992.

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―O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão...‖

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CLAVE DA SOLIDÃO em Fernando Pessoa CYRO DE MATTOS angústia, o delírio do sonho e o milagre que a poesia rara externa quando cumpre saber o mistério que nos cerca na existência. Poeta essencial do pensamento dotou a Europa de poderosa razão no poema, com

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ernando Pessoa é um poeta de grave meditação. Sua poesia possui acuradas interpelações, o pensamento argumentativo refere-se ao que somos, fomos e imaginamos ser no futuro. De sua voz escorre a

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a carga de uma lírica das mais importantes no século vinte. Visões nos versos que se fixam na vertigem das solidões imaginárias são produzidas através de raciocínios inteligentes. Convergem perplexidades no discurso, que, se estende para solidões do fim do mundo em cada um de nós, seus versos são como mãos que nos tocam no enleio de respostas para as mesmas incógnitas. Pessoa escreve versos com magistral domínio da rima e da métrica. Muito de seu espantoso fazer poético é visto como resultado de vivências de estados imaginários. Nas intenções que empreende para alcançar o sonho, conhecimento de que na vida tudo é ilusão, sonhar é sabê-lo, tenta decifrar as formas invisíveis. O poeta de personalidade complexa chega a conclusões que reduzem as visões da existência ao nível de ideias altas. Sentimentos tornam-se sedimentados em conceitos merecedores de uma leitura que não se compraz com o deleite para a mística do ornamento. Ressoam no discurso feito com a tristeza de coisas reais, sob o convívio de vagos receios e fortes anseios. Há uma conexão de ricas construções poéticas com vi-

brantes razões e saídas de uma loucura lúcida servindo de análise da existência. Um vínculo de gravidade e grandeza no que ele sabe dizer sobre o enigma do mundo com os outros, nas partes em que alcança com sua criativa marca pessoal, apoiada em imagística superior e pungentes visões oblíquas. Às vezes seus versos iluminam o ser com uma música finda que fere, mas que continua acordada no contínuo movimento da vida. Essa música que emana do sonho é para Pessoa a vida em si e contra si mesma, intensa do sim e do não. O poeta conhece depressões, passeia por ínvios caminhos, vê as coisas se transformarem ou permanecerem duradouras, sem perdas, em cada estar no mundo. Sabe que nesta independência é que repercute com a sua voz neutra o enigma de tudo. Vozes contrárias existem no que o poeta tenta escutar, tornadas alheias aos que vivem e morrem na vida breve. Há momentos críticos, e são inúmeros, em que o poeta se perde por entre os caminhos do tempo ido. Nesta tristeza que numa ordem absoluta faz o céu sem luz e não cura a alma de seus males profundos. Roça no poeta a verdade de que lhe é im-

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possível decifrar as formas sem formas, “essas coisas lindas que nunca existirão...‖

outra vida, dizendo-lhe que a morte chega cedo nessa substância oculta, que não se desvenda. ―Breve é toda a vida”, confessa. Como numa espécie de andaime, que lhe é posto pelo eu poético, seus versos ecoam da vida breve por entre grandes mistérios, assombrosos abismos. As ondas atormentadas do mundo habitam as zonas da imaginação alimentadas pela razão de viver desse poeta incrível.

No rio ao pé de salgueiros Passaram as águas em vão, Com tristezas de estrangeiros Passaram pelos salgueiros As ondas, sem ter razão. Na alquimia própria do poeta eterno, que detém o tempo, a inaugurar novos sentidos, seus versos transformam sentimentos em pensamentos cristalizados. Plasmam tudo que vê e sente na decorrência de quem reconhece a terra e o céu na beleza de ser em si, mas que não dependem de quem durante a vida ―perdeu a alma para os ter.‖ No céu amplo de desejo, o homem retraído, preso à solidão de tudo, faz de Pessoa um poeta de penetrante enfrentamento elucidativo do ser. Ele nos diz que é amante da beleza, embora reconheça que tudo é em vão. Mostra ter saudade do poeta da alma alheada, que ficou para trás em dado momento, escrevendo os versos que chegavam sem lhe exigir nada. Em contrapartida, o seu ser profundo é tomado de confusão absurda quando começa a saber que a terra é feita de céu. Aparece dentro dele como se fosse de

O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... Neste mundo, que ele não sabe se é sonho, realidade, onde tudo é deixado, só temos a certeza única que passamos como sombras do que fomos. Conflitos que na alma geram a terra e o céu, por onde passam as mesmas sombras, não deixam que o poeta mude o hábito de escrever versos fingidos como vínculo de interiores graves diante do mundo, os quais quase sempre trazem essas coisas vestindo nadas. A lembrança do passado dá ao poeta a consciência de que só teve a vida mentida, feita

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de mágoas que não cessam, no rio que flui sem volta, e trégua. Rio subterrâneo, que relacionado com outros símbolos o poeta não sabe de quais terras vem e para onde vai. A vida vivida incerta, na esperança que pouco alcança, não apreende o tédio dessa substância oculta. Tudo isso consiste a energia que alimenta o poeta na construção de seus versos, suas verdades e dúvidas, cheias de argumentos dotados de questões sérias. A vida por ser complicada faz com que Pessoa tenha olhos para ver por meio da razão, que lhe deram como guia. Se a razão é guia que ilumina a obstinada fé e a ciência cega, reflete-se de seus versos uma voz brilhante numa espécie de loucura lúcida. É pouco chamar de talentosa essa maneira de se comportar o eu poético, pois sem dúvida é formada de altíssimo pensamento de horas fundas, profundas, singularíssimas, solitárias, mas a um só tempo plurissignificativas como aferição da existência. Diferentes no poeta que tem olhos para ver, separar, distinguir, juntar, compelido para que tente decifrar a existência no exterior em que ele se vê perdido como num deserto. Passageiro confuso, vê a noite vinda como

nada, a vida como sonho. Na clave da solidão, para alcançar as sombras sem formas, Pessoa urde o artifício do caminho, e é também como ele esquece um pouco dele mesmo. Para além de conhecer esta vida breve, fingidos os seus versos soam neste cancioneiro por onde as coisas escoam com o seu ritmo para coisa nenhuma. A alma do poeta remoinha nas portas do enigma, a vontade deseja penetrar muros. Isso o força a reviver, ler o que está em si e diante de si, exprimir em silêncio e com intensidade o tempo que teve sonhado e o perdeu nos anos. Ter alguma certeza nas coisas desta vida, nessa loucura do querer compreender, o poeta acha ser difícil, há uma solidão imensa em tudo. E ele só acredita que se sente quem na existência caminha enganado. Se ver é enganar-me, Pensar um descaminho, Não sei. Deus quis dar-me Por verdade e caminho. Evocação do homem através do verbo mágico, discurso instigante em usual pensamento do real vestido de sonho, dotado de arguta argumentação da inteligência, tudo

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mais Fernando Pessoa revela no seu Cancioneiro (Obra poética, Ed. Aguilar, Rio, 1960). Mostra o quanto experimenta sua natureza de poeta eterno, diferente e sozinho, no exercício da literatura de excepcional qualidade. Emissário da vida a morrer e a iludir, transmite, como uma fonte que não cessa, o quanto ausculta através da imaginação, questiona por meio dos abismos da razão. Como um ser solitário, que a certa altura vê no outro ―um cadáver ambulante que procria.‖ Sentir esse poeta genial, que à vida dá assomos e esga-

res, sinta quem lê o seu célebre poema ―Autopsicografia‖: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração.

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CONTOS

Bico-de-pena de Maria Júlia

Quem me visse andar daquela forma em plena noite de Natal poderia afirmar com segurança: ―Acabei de ver uma alma de outro mundo!‖ Cláudio Aguiar

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UM CONTO DE NATAL CLÁUDIO AGUIAR

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izem os psicanalistas que são quatro os gigantes da alma: o medo, a ira, o amor e o dever. Não sei qual deles me levou hoje, durante as primeiras horas dessa noite de Natal, a cometer a proeza de enfrentar um deles. Como se deu? Eu caminhava da Praça das Acácias para minha casa e pensava nessas coisas que assaltam nossa mente, muitas delas sem nenhum motivo preconcebido. Continuei a andar, quase distraído e, de repente, do nada, não sei por qual motivo, chegou-me uma pergunta sobre a origem da força misteriosa que alimenta as acácias em sua longevidade e também na beleza de suas flores, ostensivamente expostas às alturas, como se elas desejassem anunciar tal fenômeno aos olhos dos mortais, nem sempre, aliás, atentos a coisas tão maravilhosas. Envolvido em minhas soturnas e, às vezes, arriscadas imaginações, pensei também noutro mistério impressionante que diz respeito ao reino vegetal: a flor de lótus. Ela nasce e sobrevive dentro d´água, de preferência não necessariamente limpa, como se fosse um peixe. No entanto, de fato, trata-se apenas de um vegetal. Daí, a sensibilidade

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humana, sobretudo a dos orientais, procurar a explicação para o mistério da formação das cores e das formas espetaculares da flor do lótus exatamente na conjunção de duas forças: uma, espiritual, e, outra, material. A primeira, invisível, porém, intuída; a segunda, visível e sempre capaz de nos causar deslumbramentos. Antes de atingir a esquina da rua, justamente no local de onde já divisava a minha casa, entre as árvores, com a frente para o este, posição que, segundo os supersticiosos, traz boa sorte, lamentei que a noite começasse a encobrir todo o mundo. Somente uma tênue e fraca luz, relativamente distante, permitia ver a casa e outras mais distantes. Levantei a vista e não vi ninguém ali por perto. Eu, sozinho, voltava de caminhada habitual, seguido, apenas, pelos meus pensamentos, desarmados e tomados pelo clima natalino daquele final de ano, inclusive, indiferente ao perigo que sempre ameaça qualquer mortal, porque o perigo não chega somente pela força física movida pelas mãos dos malvados e cruéis seres humanos, mas também por outros meios, a exemplo do provocado por esses animais que se arrastam pelo chão: cobra, lacrau ou escorpião. Não pensemos nos sobrenaturais – inclusive o raio ou o corisco – vindos da imensidão do céu. Afinal, nunca estaremos livres do perigo, pois, para tanto, bastará estar vivo. Como se estivesse aparecido por geração espontânea, do nada, eis que vi, do outro lado da rua, um homem, já idoso, bem mais velho do que eu, parado e a olhar para mim. Não me foi possível verificar se ele ria ou se apenas apresentava ar de gente séria, porque a relativa escuridão impedia-me de constatar qual o seu real estado de ânimo. Recordo que ele vestia calça e camisa brancas – branquíssimas, singularmente alvas –, com mangas compridas. Ao baixar a vista, chamou-me a atenção o fato inexplicável de ele estar calçado com sapatos velhos, amarrotados e gastos, os cadarços soltos, frágeis, quebradiços. Só agora, ao recordar aquela inusitada imagem, ocorreu-me pensar que aquele homem andara muito e vinha de longe... Tão rápido quanto fora o surgimento do homem no outro lado da rua, como se o lapso de tempo fosse só um piscar de olhos desarmados para o inusitado, algo misterioso também me impeliu a parar e a observar os seus gestos de saudação com os braços dirigidos para mim.

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Ao mesmo tempo em que ouvia suas palavras, quase inaudíveis e abafadas, me chegava a estranha sensação de boa amizade, de confiança, de camaradagem. Tive dúvidas de que aquilo tudo partisse dele. Olhei para os lados e para o alto e vi que não havia nenhuma outra possibilidade de estar ali, naquele momento, outras pessoas. Somente eu e ele. Sem que eu conseguisse explicar o motivo, continuei a sentir que as sensações me chegavam com a mesma intimidade de voz familiar. Ele, então, repetiu a frase: - Eu te conheço muito bem, Levi. Fiquei impassível por um átimo de tempo. Afinal, ele sabia o meu nome! Eu temia olhar para ele e a ouvir outras verdades ali pronunciadas. No entanto, ao mesmo tempo, pensei: eu preciso encará-lo. Aí, fechei os olhos com firmeza e os abri em sua direção. Olhei para o rosto do homem e só me ocorreu raciocinar com extrema velocidade, porém, sucumbido à dúvida, ou seja, se devia ou não ficar ali: ―Por que procedo assim? Devo ignorá-lo, sair apressadamente a correr de onde estou?...‖ Confesso que não me chegou naquele instante outra resposta adequada para o impasse. Com a mesma rapidez, sem que eu fosse levado por algum impulso objetivo, vi-me a caminhar, com passos decididos, em direção ao homem. Ao me aproximar dele, de forma resoluta, estendi-lhe a mão. Houve da parte dele, creio, certa indecisão, porém, logo ele resolveu também me estender a mão. Ao segurá-la com firmeza, pressenti que a mão dele estava fria, quase gelada. E mais: parecia tremer. O nosso diálogo foi limpo, sincero e rápido: – Boa noite, senhor. – falei. – Boa noite, Levi. Estou desamparado e tenho frio... – Por que o senhor não vai para sua casa? – Moro longe daqui. [...] O senhor não poderia me arranjar um lençol?

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– Um lençol? – Fiquei de imediato surpreendido com aquele pedido. – Eu não tenho lençol aqui, senhor. – Então, boa noite... – Boa noite. Tudo vai passar... Ele seguiu, com passos lentos e indecisos, em direção oposta à minha. Somente quando cheguei próximo da porta de minha casa, resolvi olhar para trás, afinal, aquele desconhecido sabia o meu nome e dissera conhecer-me bem. Assustei-me: não havia ninguém na rua. Tive vontade de voltar em sua direção para conversar com ele, saber o que se passara com aquele homem, dizer-lhe que iria buscar um lençol, que não agira assim antes porque eu estava, então, possuído por um medo atroz. Pensando nisso, porém, sem interromper os movimentos, o mais rápido possível entrei em casa. Na primeira cadeira que encontrei na sala de estar sentei-me pensativo e assaltado por uma visão que me chegava de dentro da alma: aquele homem, na verdade, não era um estranho, um desconhecido. Chegava-me de modo impetuoso a sensação de que aquele homem era a imagem de meu pai. Ela vinha do além, de uma região que eu não sabia onde ficava, porém, ao mesmo tempo, não conseguia apagá-la de minha mente. Sequer me ocorreu pensar quando o vi diante de mim, que isso poderia ser uma sensação verdadeira. Agora, frente à obrigada reflexão, recordava que meu pai falecera há mais de uma década e que a imagem daquele homem parecia muito com a de meu pai. Sobretudo pela claridade que eu vira incidir em seus olhos quando, minutos antes, ele me olhara e apertara minha mão. Só agora, transtornado, percebia que do frio da mão daquele homem vinha um apelo intraduzível para mim. Fiquei mais aturdido quando, de súbito, ali sentado, recordei que fora por aquela rua que eu andara com meu pai pela última vez quando ele viera me visitar. Levantei-me da cadeira e comecei a andar de um lado para o outro, numa autêntica caminhada estacionária, tamanho o meu desapontamento. Voltei a sentar-me e a pensar se, por acaso, a minha atitude não fora ordenada por algum gigante da alma: o medo, a ira, o

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amor ou o dever. Fui, então, eliminando cada um deles na medida em que comparava o seu significado com a minha atitude. Ao final, cheguei à conclusão de que o mistério e a dúvida persistiam, porque, assim como a Natureza, aparentemente sem motivo, nos oferece as belezas das acácias e da flor de lótus, a primeira a crescer misteriosamente pelo ar puro e, a segunda, imersa no lodo ou na lama impura que guarda a água estagnada, eu, ali, rendido ao espanto, não sabia dizer a mim mesmo se errara ou se acertara ao negar o lençol para o homem que me dissera sentir frio. De repente, fui assaltado pela imagem de uma pequena, porém, atraente árvore de Natal que minha mulher colocara sobre a mesinha de centro. Fixei o olhar sobre as flores naturais dispostas sobre a base da pirâmide, alongadas para o alto e, talvez assaltado mais por algum mistério do que pela lógica racional, vi que elas eram flores de Acácias. Corri para o quarto e retirei abruptamente o lençol da cama e, sem que minha mulher testemunhasse, saí a correr para a rua, enrolando o lençol nas agitadas mãos, enquanto alargava os passos. Convenci-me de que dentro de poucos instantes alcançaria o homem e lhe entregaria o lençol para, pelo menos, aplacar, em parte, o seu frio. Depois de alguns minutos a correr no rumo em que ele partira, verifiquei que a distância e o tempo passados eram suficientes para alcançá-lo. No entanto, não encontrei ninguém. Também constatei que não havia a possibilidade de ele ter entrado por alguma variante ou encruzilhada. Elas não existiam naquele trecho do logradouro. Parei e fiquei desolado com o lençol nos braços. Enquanto o frio começava a crescer e o vento a passar com maior força, eu não conseguia afastar de mim a imagem de meu pai a andar comigo naquele mesmo pedaço de rua. Ele andava ao meu lado, alegre, a me contar histórias de nossa vila natal, de onde, um dia, ainda jovem, eu saíra para conhecer o mundo e construir vida nova. De repente, vi aproximar-se de mim algumas pessoas que vinham em sentido contrário ao que partira o homem que eu procurava. Resolvi abordá-las:

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– Boa noite. Vocês, por acaso, viram um homem todo de branco? – Não vimos ninguém, senhor – disse-me um deles. Eles passaram e continuaram a conversar animadamente, enquanto eu, com o branco lençol em meus braços, depois de algum tempo, resolvi voltar para casa. A cada passo que eu dava naquela noite de Natal, mais me convencia de que fora visitado por um gigante da alma chamado Amor, porém, desperdiçara a oportunidade de vivê-lo em toda sua intensidade. Então, parei e disse para mim mesmo: ―Que devo fazer com este lençol?‖ E, mais uma vez, levado por estranha decisão, como se estivesse dominado por intenso frio, abandonado e acompanhado pela solidão e pela saudade de meu pai morto, o abri e o envolvi sobre meu corpo inteiro e avancei em direção à minha casa. Quem me visse andar daquela forma em plena noite de Natal poderia afirmar com segurança: ―Acabei de ver uma alma de outro mundo!‖

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O JANTAR SUBTERRÂNEO JORGE SÁ EARP

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omo gosto muito de comprar roupas, tendo ido fazer uns exames médicos de rotina em Botafogo, me surpreendeu uma vitrine num velho casarão de uma pequena rua residencial daquele

bairro. Entrei na loja. O interior do casarão havia sido inteiramente renovado com cores claras e móveis modernos. Tinham me chamado atenção uma camisa xadrez e uma suéter de cor mostarda. Talvez o dia chuvoso

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tivesse propiciado o desejo de variar meus agasalhos, apesar de estar bem protegido com um pull-over azul marinho. Uma moça simpática (como assim aprendem ser os vendedores) foi logo se dirigindo a mim pressurosa, e informei-lhe meu desejo apontando a vitrine. Ligeira ela me dirigiu ao setor de camisas e suéteres masculinas, não negligenciando em me oferecer outros modelos. Sem qualquer resistência a apetrechos de indumentária, me deixei levar pela cordial vendedora e acabei dentro da cabine sopesando não só suéteres e camisas como duas calças (de que nem estava precisando).

cessidade, como também por receio de insuficiência de fundos bancários. Decidido afinal pela camisa e suéter descobertas logo de início na vitrine e mais uma calça e duas camisas, abri a cortina novaente trajado como entrara na loja. O grande salão de vendas com todos seus balcões e cabides estava imerso na mais completa escuridão. Ao fundo as portas de ferro de portas e janelas abaixadas e um tenebroso silêncio pairava dentro da loja. Sobraçando as roupas pretendidas, exclamei em voz alta: ―Mas está tudo fechado? A esta hora? Mas ninguém me avisou nada!‖ Olhei meu relógio: já passavam das seis. Ao mesmo tempo que resmunguei por dentro sobre o fechamento antecipado da loja (―em Botafogo devem fechar mais cedo do que em Ipanema e Copacabana‖), me espantei da longa e despercebida duração em que gastara dentro da cabine, pois calculava haver ali chegado por volta das quatro da tarde.

Despi-me completamente para em seguida vestir todas as roupas, trocando-as várias vezes de modo a examinar no espelho as melhores combinações. A mocinha me perguntava do lado de fora se camisas, calças e suéteres haviam caído bem, se haviam assentado bem em meu corpo ou mesmo, com a minha permissão, abria uma ligeira fresta da cortina para emitir sua opinião, que sem hesitar era sempre positiva. Com muita pena, desisti de uma calça e de uma camisa pela razão apontada acima, quer dizer, falta de ne-

Sem saber que atitude tomar, me sobrevieram ansiedade, medo e pânico. Atirei as roupas em qualquer lugar, dei uma volta pela loja para ver se ainda havia alguém ou mesmo a

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minha atendente imbuída de um mínimo de paciência e gentileza para com um cliente que lhe renderia uma generosa comissão. Nada: nem um fiapo de luz nem um telefone funcionando de onde pudesse acionar meu grito de socorro para o agora tão ansiado mundo exterior.

Do teto pendia um lustre veneziano com matizes avermelhados. Senti-me um invasor. Sobre as paredes quadros a óleo, um relógio e um console coberto de serviços de prata e porcelana. Premi os olhos a fim de verificar as horas na pêndula quando ouvi vozes. Encosteime a um canto e esperei. Temia a chegada dos donos da casa, que certamente se alvoroçariam ao se deparar com um estranho em casa. De súbito prorrompeu um casal de meia-idade: ambos bem apessoados, bonitos. Percebi que vinham de uma discussão acalorada, só que não entendia o teor de suas palavras. De início, pensei tratar-se apenas de rumores inarticulados, porém logo concluí que falavam uma língua estrangeira. Encostei-me mais à parede, esforço inútil pois eles pareciam ignorar minha presença. Custei um pouco para me dar conta de que realmente não me viam. Então eu tinha ficado invisível? Ou estava eu no meio de um sonho? Teria adormecido inesperadamente na cabine? Mas como? Não havia tomado nenhum remédio, meus exames apresentaram ótimos resultados,

Foi quando então me virei para dentro: pude ver meu reflexo no espelho no fundo da cabine. Estranha reação me conduziu para lá a passos lentos. Toquei então a superfície lisa e fria, e ele deslizou em um movimento para dentro. Transpus o limiar e dei com um corredor descendente e escuro. Quem sabe não levaria aquela espécie de surpreendente passagem secreta à ansiada saída? Desci a rampa com cautela. Um silêncio tumular me rodeava. Após alguns segundos ou mesmo minutos, divisei um ponto de luz ao fundo, ponto que se foi expandindo em mancha branco-amarelada até clarear tudo à minha volta: me vi dentro de uma sala de jantar forrada de papel cor-de-rosa mate, com uma mesa comprida ao cento ricamente posta com louça, talheres de prata e copos de diversos tamanhos de cristal.

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eu voltava mesmo contente da consulta médica e tampouco comera algo pesado no almoço.

que se impusera em minha vida, pudesse perguntar-lhes o meio de sair para a rua), olhei para trás na tentativa de buscar a porta ou a fresta por onde entrara. Nada vi; as paredes se mostravam roseamente cerradas, compactas. Desnorteado, angustiado não vi outra solução a não ser deixar aquele cômodo e procurar avidamente a porta principal. Ou a dos fundos – pouco importava. Caí então numa outra sala quadrada, esta forrada de papel marrom axadrezado, com outro belo lustre, só que não veneziano, que devia servir de centro distribuidor da casa ou de hall. À minha frente ou à direita de quem sai do corredor, dei com a sala de visitas onde convidados e anfitriões conversavam com animação sentados confortavelmente em sofás e poltronas.

O casal seguia discutindo, e o tom de voz de ambos cada vez aumentava mais. Os gestos também adquiririam meneios agressivos à medida que caminhavam naquele espaço relativamente restrito. Em seguida a um dado momento em que o homem erguera o braço como se ameaçasse esbofetear a mulher (seriam casados? – foi o que pensei desde o momento em que entraram na sala), ouvi outras vozes acompanhadas de risos. A mulher, que não demonstrara amedrontamento diante da mão espalmada do homem, apontou para a porta e saiu de cena. Ele permaneceu uns instantes ali, na sala de jantar, olhando pratos, talheres e copos, com uma expressão entre tédio e fadiga. Por fim saiu também com os ombros encurvados e murmurando algo para si.

Virei meu olhar para frente ansiosamente em busca da porta de entrada, já que onde eu me encontrava deveria ser o saguão. De repente à minha esquerda abriu-se uma porta com a rapidez e a mobilidade dessas de restaurante que dão para a cozinha; sem trancas. Dali surgiu um homem uniformizado que abriu um sorriso radiante

Novamente sozinho e com o sentimento de intrusão cada vez mais intenso (no fundo, desejava que eles me vissem, me inquirissem para que lhes narrando minha peripécia ou a situação esdrúxula

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para mim. Então deixei de ser invisível inopinadamente?

falo nem inglês nem tenho pendor para qualquer outro idioma.

O mordomo se dirigiu para mim, ele um homem alto, ligeiramente robusto, meio calvo, de costeletas e sanguíneo de pele, e fez um gesto como se cumprisse a obrigação de me guiar até o salão.

Estaquei no limiar da porta da sala de visitas. Como é comum nessas situações, todos os convidados cessaram as conversas, um súbito silêncio pairou no ar e os olhares caíram em cima de mim. Senti um fluxo sanguíneo aflorar às faces, embora não tenha ruborizado dada a tez morena da minha pele. De qualquer modo, tremi, titubeei, vacilei em entrar, situação aplacada logo pela anfitriã que pressurosamente se levantou e se dirigiu a mim com a gentileza de quem estava esperando o seu convidado de honra ou, pelo menos, o de sua eleição. Inteiramente estupefato, a ponto de sofrer um ataque apoplético e cada vez mais convencido, por outro lado, de que estava imerso em sonhos dos quais ansiava por escapar, respondi ao gesto de me deixar conduzir pela mão da anfitriã ao assento a mim destinado.

Minha aflição atingiu o ápice: como iria me apresentar numa recepção onde era um completo estranho? Supliquei então ao mordomo que me indicasse a saída, porém ele não só não entendia ou fingia não entender uma palavra do que eu dizia como insistia em me empurrar para a arena dos convidados. Devo dizer que apesar de gostar de comprar roupas, detesto ir a festas em que conheço apenas poucas pessoas. Só curto reuniões de amigos íntimos. Me constrange profundamente chegar num lugar onde sinto os olhares cheios de curiosidade dirigidos para mim perguntando-me de quem se trata a minha pessoa. Ainda mais numa situação bizarra como aquela, numa casa onde falavam uma língua estrangeira, eu que não

Estranhamente ela me chamava de Leopoldo. E não menos estranhamente eu agora não só compreendia o que eles estavam falando como todos os presentes entabulavam conversa comigo de maneira natural. Re-

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solvi então aceitar a farsa, vestir a personagem e me esforcei em representar meu papel. A comida e os vinhos não poderiam ser melhores.

demais convivas que longos e ininterruptos anos uniam nossa amizade. Tendo deixado com alívio de ser o centro de atenções, as conversas retomaram seu rumo natural. Percebi que o belo anfitrião volta e meia dirigia um olhar de través para mim. Procurava responder-lhe com um sorriso amável quando me dei conta de que sua mulher me lançava olhares fulminantes a princípio suspeitosos e, em seguida, flamejantes de ira.

À minha frente se sentou um senhor gordo e calvo, muito risonho, como costumam ser os bem nutridos, e uma mulher de cabelos tingidos de acaju, com a idade próxima à dele, menos sorridente sem ser antipática, com um belo colar de pérolas sobre um vestido negro. Ao meu lado uma senhora de cabelos embranquecidos, magra e com suaves olhos verdes. No anular tinha um anel com um rubi faiscante. Ao seu lado um homem macilento de perfil adunco, que se sentava empertigado à mesa, o mais das vezes silencioso. Vestia um terno cinza grafite, assim como o senhor gordo, com a diferença de que este envergava um paletó negro, onde sobressaía uma condecoração. O anfitrião, por sua vez, estava de traje informal, contrastando com sua mulher elegantemente envolta num vestido de musselina azul piscina. Ele me tratava com uma familiaridade surpreendente, com tapinhas nas costas, desde o trajeto do salão até a sala de jantar insistindo em repetir aos

Depois da sobremesa, a hóspede nos convidou a tomar café no salão, onde predominavam – esqueci de dizer – o verde e o creme. Ao ser passada a bandeja com os licores, Piotr – assim se chamava o louro anfitrião –conduziu-me junto a um reposteiro cerrado. Ansiava por abri-lo e devassar a rua lá fora com carros e transeuntes: a paisagem da liberdade. Sim, porque embora rodeado de conforto e luxo, me sentia ainda encarcerado. Piotr aproximava cada vez mais seu tronco robusto para perto de mim, quase oprimindo-me contra a parede, a ponto de lhe sentir o hálito de

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conhaque e inebriar-me com ele e seus olhos de um azul de safira. Não me lembro o que me dizia. Creio que aí suas palavras perderam sentido para mim, voltando a soar como língua estrangeira. Seu rosto quadrado se avizinhando, seus lábios buscando os meus quando escutei os gritos agudos da anfitriã ecoando pela sala. Um tumulto se instalou. Ouvi outras vozes altas, protestos. Imediatamente me desvencilhei de Piotr e corri para o hall onde não vi o mordomo. Abri o que me pareceu a porta principal e me precipitei por um corredor escuro. Ao

fundo pude divisar uma superfície espelhada. Atrás de mim distinguia gritos e mesmo risos. Toquei o espelho, que se abriu para a rua. Sob as luzes dos postes, um carro passou devagar como se procurasse vaga para estacionar. Seguido ao enorme alívio, sobreveio-me, no entanto, a certeza de haver uma ocasião travado conhecimento com o dono da casa. E se abateu sobre mim um arrependimento por não ter ousado permitir que o beijo afinal tivesse se consumado.

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―Mas embaixo do vaso fica o preto velho espiando com o cachimbo na boca. Eles se entendem.‖

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UM FERIADO SURREALISTA LUIZA LOBO

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cordo ao som dos acordes da Marcha triunfal da Aída, na minha cabeça, em ridículo contraste com as ínfimas tarefas do dia a dia. Passarinhada. Outono. As jaqueiras tomam conta de tudo, invadem a Mata Atlântica, inexoravelmente, assim como a China vai devorando o pão nosso de cada dia, e os muçulmanos, nossa falta de hábitos e orações. Tant pis. Agora o rádio toca a Cavalaria rusticana, e à minha porta uma doméstica em busca de uma santa que caiu pela janela sobre o meu ar condicionado. Vejo-a pelo olho mágico. Tem um uniforme quadriculado de cor de rosa e uma rede de faxineira protegendo os cabelos. Diz que é do 903. Mas eu explico que o meu apartamento termina em 04 e a santa não pode ter caído aqui. Ela insiste: – Deve ter quebrado! Olho em todas as janelas, me sentindo um tanto imbecil. A cada dia a mata está mais densa, com as chuvas incessantes, fora de estação. A empregada que trabalha no dia do trabalho (bela contradição) aguarda. Não abro. – Aqui não tem santa... – Mas ela caiu! Deve ter quebrado a cabeça.

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A profissional caminha para cima e para baixo no corredor, sacudindo violentamente as chaves nos bolsos de seu uniforme. Não abro. Tem ladrão que traz um balde com água e sabão, joga embaixo da sua porta, e quando você abre é um assalto. – Fale com o porteiro. Deve ser no apartamento terminado em 03. Aqui não tem. Não abro. Uma vez caiu aqui de casa um porta-lápis de aço com um pequeno pedestal de pinho de Riga e nunca mais o porteiro achou. Ou então não procurou. As pessoas não sabem mais procurar coisas na floresta. Os macacos devem ter pegado. E agora acharam a santa para pôr no pedestal. Devem ter arrastado a santa pela mata e puseram a santa na pianha no alto da floresta. – Deve ter quebrado a cabeça! – repete a serviçal desesperada. Com certeza vai perder o emprego, se é que não foi contratada por hora, no dia do trabalho, que foi feito para descansar. Lá eles armarão um altarzinho, com panos de renda e seda, e cobrirão com folhas secas as lágrimas que escorrem do rosto dela. Mas isso se tiver cabeça. A minha carcereira caminha para cima e para baixo, sacudindo as chaves como de minha jaula. E eu que queria jogar o lixo fora... agora isso, presa ali. Espio-a de novo pelo olho mágico. Ouço ruído nas árvores e rápidos passinhos na floresta. Com certeza eles a esconderam em alguma grota. Gritam entre si. Talvez ela ainda tivesse a cabeça, quando a acharam. Agora, perdeu. O olho mágico está escuro. Ela desapareceu. A música sai do lírico Intermezzo da Cavalaria rusticana para uma vigorosa Cavalgada das Valquírias. Há um rebuliço de patas e passos na floresta. Alguns desceram, em busca da santa, creio. Ligo para a portaria, mas ninguém responde. Engarrafaram a linha. Janelas se abrem e vizinhos gritam pela santa: ―Salve, Maria!‖. Um dia tinha uma baiana toda de branco fumegando o corredor. Deixaram um preto velho embaixo de um vaso da família do lado, que tem aquele mezuzá na porta. Mas embaixo do vaso fica o preto velho espiando com o cachimbo na boca. Eles se entendem. A profissional desgarrada desapareceu. O corredor continua escuro. O dia permanece escuro.

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Talvez eles saibam mais do que nós. Podem até ser futurólogos. Talvez o milagre seja deles. Mas se é deles, para que este fuzuê à minha porta, em pleno feriado? Ligam da portaria: – Ela insiste que caiu no seu ar condicionado. – Não pode! A santa voa? Não pode contornar o prédio. Cai sempre para baixo, não voando de banda. Foi como quando caiu aquele maluquinho do 12º andar, no dia de Natal. Despencou do 03 e não parou no ar condicionado do 04, caiu do lado do 03. – Ele morreu? – Não, sobreviveu, inteiro. O prédio mandou rezar uma missa. – Então foi milagre? – Acho que sim. Milagres acontecem todo dia. Você é porteiro novo aqui. Você sabia que isso aqui já foi um cemitério de escravos? – Credo! Ouço vizinhos comentando que a santa voou e se escondeu na mata. Imagino os macacos caminhando com o andor às costas, em cima a santa, todos vestidos de macaquinhos de circo, com uniformezinhos de cetim, vermelhos e azuis. Não, humano, por demais humano. Fecho a janela. Deixo o mundo não digital lá fora. Se houvesse um rio, apareceria uma santa de pau oco – Aparecida? – um milagre bem à minha janela. Só que não há rio, então não há milagre. E não seria o meu milagre, porque a santa não é minha. Soube por zap que em certas cidadezinhas ainda passa uma banda tocando peças heroicas pelo 1º de maio. Seria mesmo 1º de maio ou 1º de abril? Que dia surrealista. O fato é que desisti de concatenar as ideias.

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―Você se perguntará o que um homem teria deixado de dar a uma mulher para levá-la a procurar outra.‖ Carmem Moreno

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SOB A SEMELHANTE SUPERFÍCIE CARMEM MORENO

N

ão foram as suas cuecas, sempre espalhadas pelo quarto. Nem a última briga ou a soma de todas. Não sabemos o que nos une a uma pessoa e nos afasta de outra. Estou apaixonada. Sinto tristeza antecipada, por saber que vou magoá-lo, e igual

prazer por saber que vou magoá-lo. Você chegará do futebol, suado, músculos lustrados, olhos foscos. Sei que me vê também assim, opaca e silenciosa, carregando pelos cômodos uma incômoda mudez. Você

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inventou a simplificação dos meus questionamentos: colava a boca na minha, calando-me num beijo que nos levava a outras linguagens. Calávamos um discurso para dar lugar a outro menos contraditório. Uma fuga, um ópio, um esconderijo. Calar-me com seu corpo. Acender-me para apagar-me. Uma arma. Em desuso. Sei que há anos não me quer mais. Descobri naquela noite, mas não consegui terminar meus 16 anos de casamento. Olhei os amantes de longe.

nei tanta novidade. Aprendemos que, nesta fase, os afetos se resfriam e os sonhos despencam com os seios. Achava que o amor não poderia surgir de uma fonte aparentemente sem mistérios. Que pudesse sentir tanta atração por um corpo tão familiar em desenhos e cheiros, em textura. Desconhecia as sutis diferenças, as que apenas intuímos sob a semelhante superfície. Quando acaricio seu corpo, tão igual ao meu, toco regiões inusitadas da minha feminilidade. Quando nossas saias se confundem sou mais que uma mulher. Sou tudo que não tem nome. Desaprendo o que aprendi. Contrario o que ensinei. Sou apresentada a mim quando ela come meus traços com suas pupilas amorosas. Seguindo seu desejo sou meu desejo. E passo a querer nós duas. Ver-me, assim, por sua ótica de amante, é desvelar em mim o que, sozinha, seria cegueira.

Em casa, você tentou banalizar: tudo menos me perder, os homens eram assim, não resistiam! Todos os chavões saltavam da cartola. Um mágico tentando animar a plateia com o velho número dos pombos. Acreditei no truque do ilusionista. Mariana era adolescente, racionalizei a importância de um pai presente. Tinha pânico de estar só e usava nossa filha como pretexto.

Você se perguntará o que um homem teria deixado de dar

Estou apaixonada aos cinquenta anos! Nunca imagi-

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a uma mulher para levá-la a procurar outra. O que nos afasta de alguém são sempre excessos e faltas. Nossos excessos e nossas faltas levaram você às amantes, e a mim, ao amor.

Estou apaixonada. Por enquanto, levo algumas roupas apenas. A buzina! Tenho que ir. O chá está quente sobre o fogão.

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POESIA

Foto: Luiz de Miranda e Scliar. Rio, 2004, Academia Brasileira de Letras

SONETO INGLÊS FORA DE HORA Luiz de Miranda A treva é leve o amor é breve a esperança apenas a mão de uma criança a justiça não chega o juiz é cego

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o advogado é férias a paixão é falha o adeus é palha a morte é ordem a fúria é seca o cadáver é perda a glória é quimera o suor é primavera

Porto Alegre,12h20, de 30 de maio de 2019

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POESIAS DE REYNALDO VALINHO ÁLVAREZ

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07/05/2019 1.1 Mas que os das pombas, teu olhar parece ser antes o das águias, que se estende por montanhas e vales. Do alto, pende sobre o mundo ao redor e, no alto, cresce. Esse olhar, que de longe, transparece, brilhando à luz solar e que acende na visão de quem tudo compreende, redimiu toda mágoa que eu tivesse. Teu olhar tudo abrange num segundo e, num só golpe, abarca e lê o mundo como um livro deixado à cabeceira. Esse olhar, eu o tenho aqui comigo, guardado no meu peito, ardente e amigo, como um farol aceso a noite inteira.

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1.2 Teu olhar aquilino me comove e mais do que o das pombas, se dilata por mar, por vales, por montanha e suata, cada planta que viva e se renove. Esse olhar sempre atento inspira e move meu gesto de carinho, mas retrata o mitológico punhal de prata que fere o amor e a solidão deserta. Esse olhar penetrante e circundante faz com que eu sinta mais, sinta o bastante para colher o dia quase extinto. Esse olhar me diz tudo sem dizê-lo enquanto, em vão, desfio este novelo para sair do escuro labirinto.

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1.3 O olhar que vem de ti e não das pombas me atinge como um raio e acenda a palha deste velho celeiro que agasalha lembranças amorosas de que zombas. Sobre o mundo feroz, caiam as bombas. Esse olhar circunvago sempre espalha como que imensa e imperceptível malha da paz profunda em que, cansada, tombas. Esse olhar sobre o espaço se derrama como o passo que evita o chão de lama e o sobrevôo, em vôo de gaivota. Esse olhar, que me abrange, me domina e me leva a cumprir a estranha sina de fazê-lo meu guia e minha rota.

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1.4 Não um olhar de pombas distraídas à margem do caminho que escolheste. Mas um olhar atento, como é este que diriges às faces preferidas. Um olhar para além das tardes idas e das manhãs solares que perdeste. Um olhar como o livro que não leste, que ficasse em estantes esquecidas. Em olhar que me ampara é a bóia que há de salvar o naufrago ou é a jóia que brilhacomo o riso no teu rosto. Este olhar me resgata do caminho em que por todo o tempo vou sozinho carregando o meu último desgosto.

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1.5 Teu olhar corta os ares, ágil flecha que me atravessa o peito, a velha arca que vai guardando o tempo e leva a marca das perdas que carregas como flecha. Teu olhar me surpreende e acende a mecha que afasta a sombra da odiosa parca, como o farol que orienta a barca e a rota do naufrágio então fecha. Teu olhar, mais que as pombas, enche o espaço de um ruflar de asas imensas , como o abraço da legião dos anjos reunida. Teu olhar ilumina meu vazio e o preenche de luz como o pavio que acende a vela que dá brilho à vida.

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07/02/2019 A HORA SOMBRIA De novo a hora sombria, fugidia, esquiva, estranha, enclausurada e muda, que ruge o seu silêncio, tartamuda, e rasga a sua própria fantasia. De novo a hora amarga e sem valia da qual não há ninguém que nos acuda e penetra no peito como a aguda garra mortal da caçadora harpia. De novo, a hora perdida e sem remédio, corroída sem glória pelo tédio e imersa na aridez de seu deserto. Hora morta e sem luz, hora cadente, tombada de um planeta inexistente no bolso do passante a céu aberto.

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07/02/2019 O QUER QUE SEJA No contubérnio morno do desgosto, reflete cada um sobre a proeza de ter sobrevivido à vil tristeza do seu malévolo e infeliz encosto. Quanto murmúrio ou desabafo posto na conta da genérica incerteza com que cada um se oculta sob a mesa para dos outros esconder seu rosto. Não se trata de medo ou de vergonha. Trata-se mais do que cada um sonha entre si e o alter ego, o quer que seja. Trata-se menos do que cada um pensa ser a razão de sua vida intensa que o guia, dá-lhe o rumo e que o maneja

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07/05/2019 O MAPA Passeio pelo mapa que começa na raiz do cabelo que penteias. É uma viagem que se faz sem peias, travas ou freios, nada que a impeça. Essa viagem sem nenhuma pressa, entre vales e os cumes em que alteias tua beleza, mostra quanto anseias por chegar à ventura que não cessa.

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O mapa do teu corpo é mais o tato do que a visão que o abrange no contato das mãos com a pele que se aquece e freme. O mapa digital atinge o pólo e na linha sinuosa do teu colo a nota dedilhada, aguda, geme.

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QUERO Ana Luiza Almeida Ferro

Quero ler a nota de rodapé Quero olhar debaixo do tapete Quero pôr anel no dedo do pé Quero promover o general a cadete Quero viajar na contra-mão Quero me vestir do avesso Quero ficar na frente do canhão Quero perder meu próprio endereço. Quero o dito pelo não dito Quero a flecha do Cupido Quero a serpente do mito Quero o artigo não lido Quero a maçã do Paraíso Quero o quarto mosqueteiro Quero qualidade sem ISO Quero um Sancho Pança arteiro. Quero ver o sertão virar mar Quero conhecer o tal Olimpo Quero beber chá no bar Quero sujar o quarto limpo Quero ter a Idade da Pedra Quero tirar a venda da deusa Quero matar a fome que medra Quero calar o que endeusa.

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Quero a prova sem o ônus Quero o leite lá do peito Quero a passagem sem o bônus Quero o acordo não feito Quero o sonho não sonhado Quero o filme sem corte Quero o fato ignorado Quero a vida na morte. Quero Pasárgada Sem ser amiga do Rei Quero Pandora E sua caixa sem lei. Quero sonhar acordada E jamais despertar Quero voar sem asas E não tombar.

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―Ele preferiu sacrificar o apego e partiu... Deixando a taça do amanhã estilhaçada entre meus dedos.‖

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E ROMPEU EM DOIS CAMINHOS CARMEM TERESA DO NASCIMENTO ELIAS

Nem sempre o desabafo chega rápido. Quando a mágoa se instala no mosto das falas, Não fugindo da loucura que fermentava... Sentenciava o amor à constância do medo.

Não aceito a despedida que embriaga! Nem o silêncio de adegas vazias entre os corpos. Partindo, levando consigo os versos ao acaso... Deixando cristal e rigor dos finos dicionários.

Antes que o pranto avermelhasse, Convidei-o para brindar nosso passado Ele preferiu sacrificar o apego e partiu... Deixando a taça do amanhã estilhaçada entre meus dedos.

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COLABORADORES

Ana Luiza Almeida Ferro é promotora pública do Estado do Maranhão, historiadora e poeta. Carmem Teresa do Nascimento Elias é poeta, ficcionista e artista plástica. Carmen Moreno é poeta e ficcionista carioca. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNI-RIO). Cláudio Aguiar é romancista, dramaturgo e ensaísta. Cyro de Mattos é professor, contista e poeta. Diego Mendes Sousa é poeta, advogado e jornalista. Jorge Sá Earp é diplomata e contista. Luiza Lobo é professora, ensaísta e romancista. Luiz de Miranda é poeta radicado em Porto Alegre (RS). Reynaldo Valinho Álvarez é poeta e ensaista. Ricardo Cravo Albin é musicólogo, ensaista e presidente do Instituto Cultural Cravo Albin.

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