Revista Convivência n. 3/2013

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Convivência

Leia neste número: ESPECIAL TÓPICO ENTREVISTA POESIAS CONTOS ARTIGOS TEATRO

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PEN CLUBE DO BRASIL Fundado a 2 de abril de 1936 Filiado ao PEN Internacional de Londres

Convivência REVISTA DO PEN CLUBE DO BRASIL

Segunda Fase Ano III - Número 3 Rio de Janeiro – 2013 - Brasil

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PEN CLUBE DO BRASIL DIRETORIA (Triênio 2011/2013) Presidente: Cláudio Aguiar Vice-Presidentes: Clair de Mattos e Cecília Costa Conselho de Curadores Antonio Carlos Secchin Antonio Fantinato Neto Délio Mattos Godofredo de Oliveira Neto Ivan Junqueira Reynaldo Valinho Álvarez Ronaldo Mourão Conselho Fiscal Ana Arruda Callado Helena Ferreira Francisco de Paula Souza Brasil ● Sede Social Própria: Praia do Flamengo, 172 – 11º Andar Flamengo – Rio de Janeiro / RJ CEP 22210-030 – Brasil Tele-Fax: (21) 2556-0461

www.penclubedobrasil.org.br pen@penclubedobrasil.org.br

Imagem da Capa: Clarice Lispector. Escultura de Dirce Cavalcanti

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CONVIVÊNCIA / REVISTA DO PEN CLUBE DO BRASIL ISSN 1518-9996 EDITORA-RESPONSÁVEL Cecília Costa

CONSELHO EDITORIAL Alcmeno Bastos, Ana Arruda Callado, Antonio Carlos Secchin, Cláudio Aguiar, Délio Mattos, Geraldo Holanda Cavalcanti, Godofredo de Oliveira Neto, Helena Ferreira, Ivan Junqueira, Mary del Priore, Reynaldo Valinho Alvarez, Ronaldo Mourão e Tânia Zagury

CORRESPONDENTES Ceará: Roberto Pontes Paraíba: Elizabeth Marinheiro Pernambuco: Lucila Nogueira Bahia: Aleilton Fonseca Minas Gerais: Ronaldo Werneck Brasília: Fabio de Souza Coutinho São Paulo: Raquel Naveira Santa Catarina: Péricles Prades Paraná: Miguel Sánchez Neto Rio Grande do Sul: Flávio Loureiro Chaves ● Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje. On demande l´échange. Man bitter um Austausch. Chiedesi scambio.

Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

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Sumário EDITORIAL ESPECIAL PEN Clube comemora 77 anos de fundação e outorga medalhas de honra ao mérito TÓPICO Uugaretti e Bruna Bianco: “Conversando, Ungaretti gesticulava”, Francesca Cricelli Ungaretti e Bruna Bianco: Ilumino-me de amor, Sebastiano Grasso O Serchio, o Nilo, o Sena, o Isonzo, o Tibre e o Rio Tietê. A vida do poeta atravessa as águas dos seis rios, Giuseppe Lupo ENTREVISTA Alfredo Pérez Alencart: Referência literária e cultural em Salamanca, Cyro de Mattos POESIAS Marcia Agrau Tanussi Cardoso Tereza Cristina Meireles de Oliveira Francisco Caruso CONTOS Companhia, Jorge Sá Earp O Relógio, Clair de Mattos Dois contos de Laura Esteves Invasão noturna, Márcia Agrau ARTIGOS Eu não existo sem você (O primeiro centenário de Vinícius de Moraes), Fabio de Sousa Coutinho O princípio da igualdade e a não discriminação, Ives Gandra Homenagem a Stella Leonardos, Helena Ferreira Homenagem a Marita Vinelli, Cláudio Aguiar TEATRO Monólogo para um ator, Maria Helena Kühner COLABORADORES

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EDITORIAL

Volta a circular Convivência, a revista do PEN Clube do Brasil, em segunda fase, formato digital, mantendo a periodicidade anual e não a semestral como inicialmente fora idealizada. As condições objetivas, quase sempre, impõem situações adversas. Apesar disso, dois fatores chamam a atenção: o interessse demonstrado por parte dos sócios em colaborar espontanemanete com a Revista e a alta qualidade dos textos oferecidos à divulgação. Esses aspectos confirmam a trajetória de Convivência e estimulam a direção do Clube a manter o veículo como suporte editorial destinado especificamente à divulgação de ideias e pesquisas literárias. A aproximação cultural e literária que o PEN Clube do Brasil busca com os Centros italianos de Milão e de Roma, merece destaque no tópico dedicado ao poeta Giuseppe Ungaretti, talvez um dos escritores italianos que tenham vivido com mais intensidade o sentimento de brasilidade. “O Brasil – disse o poeta em Vita d’un uomo: viaggi e lezioni (Milano, Mondadori, 2000) – mais do que qualquer outra, é a terra que subverteu minha linguagem e lhe deu o timbre que ela tem hoje”. Assim, com Ungaretti, o PEN Clube do Brasil inicia esses “Encontros Literários Brasil-Itália”, na esperança de que as abordagens de Francesca Cricelli, Bruna Bianco, Sebastiano Grasso e Giuseppe Lupo funcionem como os primeiros estímulos de intercâmbios capazes de promoverem no próximo ano atividades não só vinculadas à publicação em revistas, como ora ocorre, mas, também, que ganhem espaços nos dois países, e efetive-se mediante a realização de simpósios alternados entre os dois países. Neste número, além da entrevista que o poeta Alfredo Pérez Alencart concedeu ao escritor Cyro de Mattos, nosso associado, comparecem os poetas Tanussi Cardoso, Marcia Agrau, Tereza Cristina Meireles de Oliveira e Francisco Caruso com suas mais recentes produções. A ficção ficou a cargo dos contistas Jorge Sá Earp, Clair de Mattos, Laura Esteves e Marcia Agrau. Enquanto o jurista Ives Gandra dissertou sobre o princípio da igualdade e da não discriminação, o escritor Fabio de Sousa Coutinho lembrou o centenário de nascimento do poeta Vinicius de Moraes, centenário, aliás, também comemorado pelo PEN Clube por ocasião da passagem dos 77 anos de sua fundação. Outras homenagens foram prestadas às associadas Stella Leonardos e Marita Vinelli, vez que ambas completaram 90 anos de idade. Por fim, para confirmar o permanente apoio que o PEN Clube sempre tem dado à arte dramática, a associada Maria Helena Kühner publica o seu mais recente texto teatral: Monólogo para um ator. Cláudio Aguiar Presidente do PEN Clube do Brasil

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ESPECIAL PEN C LUBE DO BRASIL COMEMORA 77 ANSO DE FUNDAÇÃO E OUTORGA MEDALHAS DE HONRA AO MÉR ITO Associados e amigos do PEN Clube do Brasil comemoraram no dia 8 de abril os 77 anos de fundação. A festa ocorreu em nossa sede social do Flamengo, Rio de Janeiro. Na ocasião, além da outorga das medalhas de Honra a personalidades que prestaram no ano passado relevantes serviços ao Clube Literário, o escritor e crítico musical Ricardo Cravo Albin proferiu a conferência "Vinicius, poeta da paixão na MPB", em homenagem ao centenário de nascimento do famoso poeta, compositor e diplomata brasileiro Vinicius de Moraes. As medalhas de honra ao mérito, que levam os nomes de Cláudio de Souza e Barbosa Lima Sobrinho, ambos ex-presidentes deste Clube Literário, foram concedidas, respectivamente, ao Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti, SecretárioGeral da ABL, entregue por sua esposa, Dirce Cavalcanti, e, ao Dr. Maurício Vicente Ferreira Júnior, Diretor do Museu Imperial de Petrópolis, entregue pelo conferencista da solenidade, o escrsitor Ricardo Cravo Albin.

A concessão da Medalha de Honra ao Mérito Barbosa Lima Sobrinho coube ao Embaixador e Acadêmico Geraldo Holanda Cavalcanti em reconhecimento a seu constante apoio junto à Academia Brasileira de Letras, notadamente aos esforços que são desenvolvidos por todos os que integram a direção e o quadro social do PEN Clube do Brasil no sentido de solucionar pendências administrativas. Já a Medalha de Honra ao Mérito Cláudio de Souza foi concedida ao Dr. Maurício Vicente Ferreira Júnior, Diretor do Museu Imperial, de Petrópolis, por seu trabalho de restauração da "Casa de Cláudio de Souza", integrante da estrutura daquele Museu e, também, por ter criado, no ano passado, as condições para a formalização de Convênio de Cooperação entre o PEN Clube do Brasil e o Museu Imperial.

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TÓPICO

Giuseppe Ungaretti e o Brasil UNGARETTI E BRUNA BIANCO: “CONVERSANDO, UNGARETTI GESTICULAVA” O poeta, de 79 anos, com a mulher amada - a qual tinha 27 anos, conhecida um ano antes em São Paulo. Francesca Cricelli Em novembro de 1967, Giuseppe Ungaretti viaja para Buenos Aires, a convite da Olivetti argentina, a qual também se incumbia de promover apresentações culturais entre literatos italianos e sul-americanos. Em sua companhia estava Bruna Bianco, que Ungaretti havia conhecido um ano antes em São Paulo. Após alguns dias, os dois de Buenos Aires se deslocam para Bariloche. A viagem foi documentada por inúmeras fotografias, que foram guardadas em uma arca por mais de meio século. Essas fotos documentam a chegada ao aeroporto e longos passeios na idílica cidadezinha, situada aos pés dos Andes. Temos notícia que o cônsul italiano desta localidade havia sugerido a Ungaretti adquirir um lote na nova Bariloche, que estava nascendo. A proposta havia suscitado um razoável interesse no poeta que expressou o desejo de fazer um presente à sua amada, pois ela poderia, em companhia de seus irmãos, alcançar a “Courmayeur argentina” durante os finais de semana. O vínculo de Ungaretti com o Brasil datava desde sua primeira viagem à América Latina, que ocorreu 1936, na ocasião de um convite do PEN CLUB argentino. Na mesma ocasião a Universidade de São Paulo lhe havia ofertado a cátedra de Literatura italiana. O poeta prontamente aceitou-a e em seguida mudou-se com toda a família para São Paulo. Permaneceu em São Paulo até 1942, quando retornou com a esposa Jeanne e a filha Ninon para a Itália. Após trinta anos ocorre o encontro de Giuseppe Ungaretti com Bruna Bianco, em São Paulo. Um encontro realmente extraordinário. Gostaríamos de ouvir isto através do testemunho pessoal de Bruna Bianco. Francesca Cricelli - Quando e aonde você conheceu Ungaretti?

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Bruna Bianco - No dia 26 de agosto de 1966, em São Paulo, no Hotel Cá d´Oro, no centro da cidade, naquela época ainda situado a rua Basílio da Gama. Ungaretti tinha vindo ao Brasil via marítima, e se deslocava para os vários compromissos em companhia do professor Bettarello, do Instituto Italiano de Cultura. Naquela ocasião do nosso primeiro encontro, Ungaretti me apresentou o professor Bizzarri e sua esposa, Paulo Emilio Salles e sua companheira Lygia Fagundes Telles, os pintores Flávio Carvalho e Emiliano Di Cavalcanti. Com esses conhecidos e principalmente com o Flávio Carvalho, que era muito boêmio, fomos ouvir samba, em bares próximos à Praça da Republica. Conheci, outrossim, na ocasião desse primeiro encontro, Eunice Catunda, o professor Antonio Cândido e Mario Schoemberg, um físico, residente na Bahia. FC – Por qual motivo Ungaretti se encontrava no Brasil? BB - Tinha vindo visitar a túmulo do filho Antonietto, falecido em 1939, com somente nove anos, devido a uma apendicite mal curada. Esta fatalidade lhe proporcionou profunda e incomensurável dor, que foi expressa na poética do livro “Il dolore”. FC – Que aconteceu nos dias que se seguiram ao encontro de vocês? BB - Ungaretti viajou para o Rio de Janeiro, para se encontrar com alguns amigos, entre outros Vinícius de Moraes. Esta sua estadia no Rio deveria durar uns dez dias, no entanto, retornou a São Paulo, quase imediatamente, para ficar em minha companhia. E ficamos juntos esses dez dias, até a sua volta à Itália. FC – Como passavam o tempo juntos? BB - Conhecemos toda a cidade de São Paulo e, muitas vezes, íamos aos jardins da Água Branca; e também ao Bairro do Morumbi, que estava nascendo. Algumas vezes almoçamos no Restaurante Fasano, que se encontrava na Avenida Paulista, esquina com a Rua Augusta. FC – São Paulo, mas também Buenos Aires e Bariloche...

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BB - Em novembro de 1967, Ungaretti e eu viajamos para a Argentina – antes Buenos Aires e a seguir Bariloche -, isto a convite da Olivetti. FC – Você conhecia a poesia de Ungaretti? BB - Toda aquela que havia sido editada. FC – Quais as diferenças entre o poeta e o homem? BB - Nenhuma. A singularidade da poesia de Ungaretti é inseparável da singularidade de sua pessoa. Isso tudo era evidente na harmonia de seus movimentos e no seu sorriso, como demonstram as fotos feitas durante esta viagem. “ Vivo com a profunda convicção que a vida merece todo o esforço de ser um homem”, esta frase foi dita a um jornalista do jornal de Buenos Aires “Clarin”. E “ Vita d´un uomo” foi o título de sua obra, editada em 1966, um ano antes de sua viagem para Argentina, editada por Arnoldo Mondadori. Desta obra em edição de bolso “pocket book” ( paper-back), com 106 poesias, foram vendidas, entre agosto e novembro do mesmo ano: 300 mil cópias. FC – Um volume considerável, também naquela época... BB - Sem dúvida. Ungaretti era homem incansável e determinado. “ O trabalho, o trabalho é a única salvação, e prova irrefutável do espirito. Vivo, muitas coisas acontecem, ilumino-me. Quando me expresso, sinto-me realizado”, assim explicava ao jornalista do Clarín, com aquela indeturpável alegria infantil, mas nunca separada de uma lucidez claríssima. FC – O que era poesia para Ungaretti? BB - Pode-se responder com a expressão também transmitida a uma jornalista da revista argentina: “ CONFIRMADO” datada 23 de novembro de 1967: “ Uma missão e um trabalho. Creio que a missão/incumbência do poeta seja romper com tudo. Para mim em 1919, tratava-se de quebrar o mundo dos “endecasillabi” (alexandrinos) retumbantes, forjados por D´Annunzio. Atualmente outras coisas devem ser quebradas. D´Annunzio foi um grande poeta, talvez um dos maiores da Itália. Nunca o encontrei, mas se isto tivesse ocorrido o teria sem dúvida homenageado. No entanto, uma coisa é uma homenagem pessoal, de pessoa a pessoa, e a outra é o compromisso artístico. Toda a minha primeira poesia, quase todo o meu primeiro volume, L´Allegria, é uma demolição do verso “ dannunziano”. É necessário romper sempre, romper tudo, para que o espírito possa prosseguir adiante. A poesia se exaure em uma única mensagem: é o espírito que atravessa a palavra para alcançar a forma. Na palavra estão escondidos segredos misteriosos que afloram quando se aproximam de outras palavras, em virtude da colocação de um verso, e muitas outras possibilidades casuais. Tomamos como exemplo Apollinaire. O leio há cinquenta anos , porem me falta coragem para traduzi-lo para o italiano. Non seus versos há uma sonoridade parisiense inconfundível, alguma coisa que vai além do significado dos vocábulos.

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Quando Apollinaire fala do bom ladrão e de Maria Madalena, de forma quase imperceptível a sua sonoridade é de uma midinette de Paris, na ocasião da catequese dominical“. Enquanto conversava sobre esse assunto, Ungaretti gesticulava no ar come se estivesse trabalhando a argila. FC – Natureza e razão, memória e inocência. BB - Ungaretti sempre reconheceu que a oposição entre natureza e razão, nas palavras de Leopardi, aliás melhor entre a memória e inocência , como insistia em dizer, era mais evidente no Brasil, e sobretudo em São Paulo, onde a natureza e a cidade se harmonizam como uma orquestração barroca. FC – Tem algum escrito inédito de Ungaretti que lembre a sua viagem a Argentina? BB - Somente uma anotação à margem de uma sua fotografia, datada dia 19 de novembro de 1967: “ para a Bruna: o viajar não é” un peu mourir”, mas sim ” vivre” mais e apreender a viver. Ungà”. FC – Por que ele não escreveu algo sobre a sua viagem? BB - A Argentina desde 1966 estava sob um regime de Ditadura Militar, que dourou até 1973. Apesar, deste não ter sido tão cruel, como o posterior, sempre havia uma perseguição para os que eram contrários ao regime. E esta situação incomodava muito a Ungaretti. No entanto ele escreveu poesias, as quais em número limitado de 80 cópias viriam a ser publicadas no ano de 1968, por ocasião das comemorações dos seus 80 anos. O título dessa edição foi Diálogo, pois continha também poesias de Bruna como respostas às de Unga. Recordo que este livro continha um carvão do pintor Alberto Burri. O poeta era muito conhecido na Argentina. Quem havia divulgado a sua obra? Acredito que um de seus divulgadores tenha sido Gherardo Marone, figura realmente extraordinária: advogado e homem de letras, nascido em 1891 na cidade de Buenos Aires filho de pais “salernitanos”. Havia se formado na Itália em 1904, quando a sua família havia retornado para o país de origem. No ano de 1914 Marone fundou a revista “A Diana” e através desta havia colaborado concretamente na difusão da obra de Ungaretti. No ano de 1939 Marone retorna a Buenos Aires, como professor de Literatura italiana e colaborador da Sociedade Dante Alighieri. Dois anos antes de falecer ele funda, sempre a Buenos Aires, o Instituto di Studi Danteschi. Durante a nossa viagem à Argentina tivemos o prazer de encontrar os representantes deste Instituto. Nesta ocasião o poeta lembrou saudosamente o amigo, falecido em 1962 na cidade de Napoli.

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UNGARETTI E BRUNA BIANCO. ILUMINO-ME DE AMOR Sebastiano Grasso No ano de 1936, atendendo ao convite do PEN Argentina, Giuseppe Ungaretti (1888-1970) faz a sua primeira viagem à América Latina. Nesta ocasião a Universidade de São Paulo o convida para ocupar a cátedra de Literatura italiana. O poeta aceita e se muda para o Brasil, onde ficará até o ano de 1942, quando retornará à Itália devido à guerra. Em agosto de 1966, retorna ao Brasil e conhece Bruna Bianco durante sua estadia na cidade de São Paulo. Bruna atualmente é sócia do PEN Itália. O poeta na época com 78 anos e Bruna com 26. Ela, nascida em 1940, no Piemonte na pequena cidade de Cossano Belbo, a seis quilômetros de Santo Stefano Belbo, cidade natal de Cesare Pavese. Bruna havia ido morar no Brasil com a família no ano de 1956. Entre o poeta e ela constrói-se um alicerce de emoção profundamente intenso, que para Ungaretti chega a ser febril. Nas suas palavras, ele reencontrou a juventude, e escreve na poesia: 12 de setembro de 1966 “Sei comparsa al portone/ in un vestito rosso/ per dirmi che sei fuoco/ che cosuma e riaccende/[...] percorremmo la strada/ che lacera il rigoglio/ della selvaggia altura./Ma già da molto tempo/ sapevo che sofrendo con temeraria fede,/l’età per vincere non conta”. E o dia 13 de setembro de 1966 Bruna responde: “un vagante raggio ebbe la luce,/tenue filo dell’anima/ del mio bacio donato/ solo da desiderio./ Ma dall’esilio ci libererà/ l’ostinato mio amore.” Ungaretti retorna a Roma. Entre os dois apaixonados há uma grande troca de cartas e versos. Publicamos a página .., a carta inédita de Ungaretti, datada 8 de agosto de 1967, enviada a Bruna Bianco, de Roma para São Paulo. Ungaretti e Bruna se reencontram o ano seguinte. O poeta é convidado pela Olivetti argentina para participar de um júri de um premio literário e nessa ocasião ele concede várias entrevistas à imprensa argentina e encontra muitos poetas italianos e sul americanos. Juntos descobrem a beleza de Buenos Aires e de Bariloche, na Patagônia argentina. Destas viagens temos o testemunho através de várias fotografias inéditas que publicamos com exclusividade. A relação entre eles se faz sempre mais intensa a medida que o tempo passa. Em fevereiro de 1968, em homenagem aos 80 anos do poeta, Fógola edita em pequeno livro: Dialogo, poucas cópias, destinadas a presentear

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os amigos, e que contém 9 poemas de Ungaretti e 5 réplicas de Bruna, enriquecido com uma “Combustione”(Combustão) de Alberto Burri. Na apresentação o poeta explica: “ [O livro] é constituído de poesias minhas, nas quais, ao me dar conta da minha idade, ouso declarar que o amor só pode se extinguir com a morte”. Ungaretti incluirá Dialogo 1966-1968 nos MERIDIANI MONDADORI: todas as poesias, editado no ano de 1969. “Nove poesias de amor, uma conclusiva era da poesia de amor, mostrando-nos os sinais mais elevados de seu trabalho” escreve na introdução Leone Piccioni-. “Pode-se observar, por exemplo, uma composição estupenda embora desesperada, e feliz e dramática e tranquila, no conjunto, em uma aceitação serena, mas ainda em contraste vital, como a de título La conchiglia: não creio que Ungaretti tenha outrora alcançado tamanha grandeza inventiva”. A forte ralação continua também quando o poeta retorna à Itália. Umas duas vezes Ungaretti retorna ao Brasil; e outras tantas a Bruna viaja para a Itália. Ela desejava fortemente que o poeta se mudasse para São Paulo, mas infelizmente os sinais da doença começam a aparecer. A derradeira mensagem vem através de uma dedicatória escrita num livro de edição “não comercial”, com data de 6 de novembro de 1969: “ o meu amor por você arde sempre debaixo das cinzas, Unga”.

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O SERCHIO, O NILO, O SENA, O ISONZO, O TIBRE E O RIO TIETÊ A VIDA DO POETA ATRAVESSA A ÁGUA DOS SEIS RIOS Giuseppe Lupo A vida de Giuseppe Ungaretti pode ser percorrida ao longo dos seus rios, que são nada menos que seis: Serchio, Nilo, Sena, Tibre e Tietê. Cada um deles corresponde a uma temporada da vida do poeta e, também de um ou mais tempos de poesia. O Serchio lembra as origens dos pais do poeta que emigraram da Toscana para o Egito. Nesse país Ungaretti nasce em fevereiro de 1888, ai permanecendo até o ano de 1912, quando viaja pela primeira vez para Paris, com o propósito de seguir seus estudos na Sorbonne. Durante sua estadia tem a oportunidade de conhecer e frequentar os expoentes da Vanguarda: Apollinaire, Boccioni, De Chirico, Palazzeschi, Papini, Prezzolini, Savinio, Soffici. Após o Nilo e o Sena vem o rio Isonzo: de fato Ungaretti se alista como soldado e participa da Primeira Guerra mundial, lutando na região da Itália: o Carso, aonde corre o rio Isonzo. Desta experiência de guerra nascem duas edições: Il porto sepolto ( 1916) e Allegria di naufragi ( 1919), edições essas que serão consolidadas em 1931 no volume l´Allegria. Este período, que marca a primeira fase de realização de obra em versos ( definida por Ungaretti como “ allegro” ou “ carsico”), termina com o retorno do poeta a París no ano de 1918. Aqui, após dois anos, se casa com Jeanne Dupoix. O quinto rio que segue a vida de Ungaretti é o Tibre. De fato, o poeta se muda para Roma no ano de 1921 e se torna amigo do grupo de intelectuais que participam da revista LA RONDA ( 1919-1923); a seguir ele frequenta os ambientes da chamada “ Scuola Romana” , constituída de artistas ligados a galeria de arte: “ La Cometa”: desde Scipione a Mafai, da Raphaël a Cagli. Na Roma de monumentos barrocos, de formas presentes de Michelangelo, de pinturas renascentistas, de cúpolas e de igrejas, a poesia de Ungaretti desabrocha na sua segunda temporada, cujo resultado emerge na edição Sentimento del tempo ( 1933), mais tradicional na forma de linguagem que a anterior, tendo adquirido expressões temáticas da Mitologia e reflexões a respeito da dimensão da memória, devido ao contágio com a filosofia de Henri Bergson. Em Roma, na qual o sentido do apocalipse religioso margeia com a redescoberta de uma antiga identidade cultural, Ungaretti fica até o ano de 1937, quando se muda para o Brasil aonde ensinará na Universidade de São Paulo, retornado a Roma após cinco anos em 1943, para a mesma cátedra junto a Universidade: “ La Sapienza”. Apesar desse retorno à Itália ,e dos primeiros reconhecimentos de sua obra ( é nomeado Acadêmico), inicia o período de maior tormento de sua existência. Roma, ocupada pelas tropas alemãs nazistas,

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recém saído de lutos familiares ( o irmão e o filho), determinaram uma fase delicada da vida de Ungaretti, que desafoga na edição de Il dolore ( 1947): uma dor pública e privada, de uma nação inteira e de cada individuo que a compõe. Este é também o momento em que a conversão ao Cristianismo, ocorrido em 1928, determina a visão de uma humanidade protendida para um ancoradouro final, que, na sua poesia coincide com o despertar religioso para a Terra promessa ( 1950): edição de forte conotação bíblica, na qual termina e abrange o grande tema do nomadismo, chave de leitura da inteira poesia de Ungaretti, expressão de uma parábola que tem seu começo com o paradigma do exílio, da viagem para espaços desérticos e remotos até concluirse em uma dimensão salvadora e oportuna. Esta é a imagem que define o epílogo da experiência “ungarettiana”, contemplada na edição última de Vita d´un uomo ( 1969), publicada um ano antes de sua morte ocorrida em Milano no mês de junho de 1970. INEDITI 3 UNGARETTI RETORNA A ITALIA APAIXONADISSIMO E NO DIA 8 DE AGOSTO DE 1967 ESCREVE A SUA “ PEQUENINA” “Te amo, amor, e por motivos que não são fúteis, nem é capricho, nem por qualquer ímpeto bestial”. Assinado Unga.” Roma, 8 de agosto de 1967. Pequenina, Encontrará anexa a carta para a Vovó1. É uma carta escrita como manda o coração, e me permito dizer, a gentileza. Sou uma pessoa agressiva às vezes, e, quem me conheceu em outros tempos, sabe que fui um homem de uma intolerância e de uma violência, que, hoje, ao lembrar-me disto, sinto vergonha. Os anos, as amarguras – também muitas alegrias hoje só lembranças – me fizeram, não domesticado, mas me tornaram infinitamente menos impulsivo. Na verdade, porém, mais secreta então, enquanto hoje tornou-se norma observada de forma pública, a gentileza – e talvez no passado eu havia sido violento pela gentileza – é o ímpeto interior que hoje regula a minha vida: a gentileza. Gentil de forma soberba, é você. Não tem um olhar seu, uma sua sílaba, uma expressão de sua alma que não sejam ditados pela sua espontânea gentileza, e pela sua sábia arte da gentileza. Obrigado, amor. Te amo, amor, e por motivos que não são – e você bem 1

A Vovó: Erothides de Barros Monteiro, avó de uma colega e grande amiga de faculdade de Bruna, que assim a chamava carinhosamente. A vovó acompanhou Bruna nas primeiras viagens que esta fez com Ungaretti a Belo Horizonte e Salvador – Bahia, quando pretendiam descobrir juntos a diversidade do barroco mineiro e baiano. Bruna havia solicitado a companhia da Vovó já que não ousava pedir ao seu pai a permissão de viajar sozinha. Já na viagem ao Peru, quem acompanhou Bruna foi a querida amiga Cecilia de Barros Monteiro ( neta de Erothides); na viagem a Venezia quem acompanhou Bruna foi a prima Lauretta Bianco.

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sabe – nem fúteis, nem um capricho, nem qualquer ímpeto bestial. Amo você. Amor, alma e corpo. Um corpo que é a medida certa e o cofre de uma alma como jamais existiram. Fiz a reserva em um vagão-leito para Genova. Chegarei às primeiras horas do dia 20, descansarei até a hora de ir para o porto, que está próximo ao meu hotel, Hôtel Principe, e verei novamente Bruno, mas em Bruno verei novamente você, e é por isso, para sentí-la mais perto – sempre sinto você muito perto, dentro de mim mesmo -, mas Bruno será como se você estivesse aqui, como se também você estivesse aqui, ele a deixou a pouco tempo, e também Marco estará lá. Os três , estão no meu coração. Acredito que Marco possa me buscar no Hotel, já que é muito próximo do porto – repito. Talvez pudesse me acompanhar durante o almoço. E se estivessem presentes outros familiares, bem-vindos! Chegando Bruno e Marco2 a Roma, gostaria de lhes mostrar diversas coisas. Aqui nasceu o Barroco. Roma é a cidade barroca mais extraordinária do mundo. Trabalharam aqui Bernini e Borromini. De Borromini gostaria de lhes mostrar algumas obras. Foi o arquiteto mais fantástico que o mundo teve, talvez o maior em todos os sentidos. Vinha do Ticino. Morreu jovem, suicidou-se. Seus monumentos são poços de equilíbrio, as diversas formas se sustentam, com uma harmonia insuperável, e também os objetos que coloca um sobre outro, uma montanha de objetos, um ilusionista de circo. E ainda desejo que descubram os Etruscos. Será que poderiam me acompanhar até as escavações de Pompei e Ercolano? Seriam visões indeléveis para sempre. Também os Museus de Napoli, são ricos até a loucura. Como ficaria feliz de lhes mostrar como foi grande, como será sempre grande a Itália, arte e conhecimento. Não temos outros caminhos, são caminhos-mestres Não esqueça que o meu endereço é: Hôtel dei Congressi Per Giuseppe Ungaretti Roma, (Eur) Viale Shakespeare, Italia Meu amor, você sabe que o meu amor por você aumenta a cada segundo? Já não sei mais viver longe de você. Você é a gentileza mais gentil do mundo. Amo-a, amo-a, amo-a. Beijo-a Unga’ Manda-lhe uma saudação afetuosa Marianni3 Para Valdeoir Rego4 irei enviar o livro assim que for ao centro e terei a oportunidade de procura-lo.

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Marco e Bruno são os irmãos de Bruna. Marco estudava engenharia na Universidade de Torino, e Bruno tinha viajado por um mês para a Itália para visitar o irmão. Ungaretti havia se afeiçoado muito a Marco, que era um pouco poeta e tocava o piano de ouvido, tanto que chegou a compor para ele alguns textos ( até o presente inéditos) para a musica do mesmo. 3 4

Ariodante Marianni ( 1922 – 2007) foi secretário de Ungaretti. Rego ( 1930-2001), etnólogo, e pesquisador do folclore brasileiro.

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ENTREVISTA

Alfredo Pérez Alencart: Referência Literária e Cultural em Salamanca por Cyro de Mattos Vamos conversar agora com Alfredo Pérez Alencart, poeta peruanoespanhol, profesor de Direito do Trabalho da Universidade de Salamanca, Espanha, colaborador de revistas e jornais culturais importantes, membro da Academia Castelhana e Leonesa e da Poesia. Para ele, devemos clamar contra qualquer injustiça, impunidade ou atropelo da dignidade humana, sem conivência com as políticas que ferem os justos direitos dos homens. Cyro de Mattos – Você foi homenageado por escritores e artistas de quatro continentes por sua obra poética e trabalho incansável em favor da cultura. O que significa para você A Arca dos Afetos? Alfredo Pérez Alencart – Significa a prova evidente de que existe a generosidade do ser humano, de que nem sempre triunfam as demandas e as invejas no mundo das letras. Também significa que algo bom terei semeado no coração de tantos amigos e conhecidos para que me tenham dedicado formosos e profundos poemas, ensaios, esboços biográficos e pinturas. Arca dos Afetos é um volume em que Verónica Amat, apoiada em minha querida Jacqueline, soube aferir todas as vertentes de minha escritura poética. Com mais de duzentos e trinta escritores e artistas que se reuniram para dar-me esse abraço fraterno, certamente isso me trouxe a lágrima de uma emoção feliz. Devo permanente gratidão aos que nesta Arca estão presentes, mas também a outros muitos poetas e narradores que me fazem chegar testemunhos e refelexões sobre minha obra e pessoa, ao se Inteirar através dos meios de comunicação desta homenagem gestada desde minha Salamanca. CM – E a poesía? Para que serve? Vale a pena fazer poesía hoje quando a linguagem que prevalece na sociedade é a da imagem, som e meios computadorizados? APA - A Poesia nada vale, por isso mesmo se torna imprescindível. Como não são todos que podem ter acesso aos diamantes, é assim também a Poesia, um bem raro, uma senhora taciturna para seres que têm outras prioridades aparentemente mais importantes. Os poucos são muitos: entenda-se isto como aquilo que certas vozes poéticas enchem de novos sentidos o mundo que habitamos. Que fazer com os ruidos, as imagens, as tecnologías que inundam tudo? Nada, e eis que alguns desses inventos ajudam em parte a divulgação da própria Poesía. Ressalte-se que o poeta não carrega âncoras porque sempre aguarda sinalizações ou se encarrega de transmiti-las. Sempre está na contracorrente das modas e não se intimida ante o medo que inunda cada época da História. Eis que a poesía vale a pena porque desde o Princípio permanece impregnada do futuro: ela sabe piscar com seus

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pressentimentos ao largo de séculos, mas também transita na realidade cotidiana quando seus cultores clamam contra injustiças sociais, proferem o fluxo de Eros e cortejam companhias, elevam orações a Deus e ao verbo encarnado, são líricos e elegíacos ante o mundo que sangra e o planeta se contamina… A Poesia é o futuro, e o futuro é o resplendor de uma criança; também o Amor soberbo à altura de outro Gólgota com linhagens nunca vistas. Poesia, insondável permanência. CM – Qual o compromisso do poeta perante esse mundo que prioriza o estômago, o sexo e o poder como sentidos exclusivos da vida, desviando-se cada vez mais dos valores éticos e espirituais? APA – O maior compromisso do Poeta deve ser o de comunicar a poderosa ilusão de sua mensagem. E para isto, além de ser suficiente no clima de sua Linguagem, primeiro deve romper as fronteiras entre o corpo e o espírito: nem estar flagelando a alma do outro, nem atender apenas à fome da pele ou do desejo amoroso: nada de alardes superficiais nem retratos complacentes ou desfigurados no mais íntimo do ser humano. Bom frisar, o poeta deve saber que o poder é uma mortalha ávida para os que não acreditam nela com o seu não valor. Em geral o poeta descrê desse tipo de poder e se afasta das cobiças e perversões que mais oferecem essa forma de relevância política, econômica e afins. Sempre no Poeta autêntico o que deve ser cultivado é o comportamento ético, a prevalência do justo e o solidário, a entrega por causas à primeira vista perdidas. E, claro, ter uma exigência suprema com relação a seus frutos: só deixar degustar a excelência de sua seiva, não o que falta para amadurecer. Há que comover, poeticamente, o coração dos outros. CM - Nascido no Peru, radicado há anos na Espanha, como você conseguiu se adaptar ao contexto cultural e universitário de Salamanca? APA – Vivo há cerca de vinte anos em Salamanca. Mas antes, em minhas raízes, a Espanha já estava muio presente em razão da emigração de meu avô paterno à Amazonia peruana. Ele era de Asturias. Além disso, minha avó vinha dos Troncoso da Galícia. Quanto a mim tem sido uma nova travessia até às origens , o retorno a um chão que parcialmente me pertencia. Salamanca converteu-se em minha cidade-mãe. Penso que este casamento vem se consolidando porque eu a escolhi: estar em Salamanca foi minha escolha antes de de chegar a ela para realizar estudos jurídicos. Isto quer dizer que não é minha cidade de adoção, mas de eleição. Aquí sou profesor de Direito do Trabalho desde 1987. E aquí tenho podido corresponder a tão grata acolhida, dando parte de minhas energias para estender pontes entre Salamanca e a Iberoamérica. Também entre Salamanca e outros países do mundo. A Literatura, em geral, e a poesía, em especial, têm sido os pilares na consolidação desta plataforma cultural de tão gratificantes frutos. Um deles, o mais apreciável, é o Encontro de Poetas Iberoamericanos, que no mês de outubro celebrará a XVI Edição, dessa vez para homenagear Fray Luís de León. Sob o plano pessoal, devo dizer que um bom número de escritores passam em meu gabinete, visitam-me, trazem-me suas obras estimadas e levam algumas minhas. É um intercambio fecundo para o meu ser, muito generoso, que sensibiliza a um simples provinciano universal. CM - Dono de um discurso vigoroso, sua linguagem transita com suficiência tanto no épico como no lírico. Como você situa Cristo na Alma no conjunto de sua obra, livro que impressiona pela recorrência à metáfora e à imagen, na busca incessante de um eco que salde dois mil anos de todo o peso terrestre, finitudes e contradições,

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dominações e desigualdades. Fale um pouco desse livro. APA – É a mais completa de minhas criações. Foi gestado em cinco anos, mas o parto durou três meses. De fato é um poema extenso, dividido em cinco partes, que se fracionam em dez textos de treze versos cada uma. Nele está contida minha dupla fé: a crença na Poesia e em Cristo . Por acaso isso não é o mesmo, posto que o Amor engloba tudo? Cristo é um Poeta cujas parábolas atravessam séculos, cujos exemplos calam no mais profundo dos seres sensíveis, cuja missão é assumida por aqueles que amam o próximo. Uso um idioma mesclado de castelhano antigo e certos neologismos deste século: tem força e, ao mesmo tempo, ternura , pode parecer prosa, mas possui o ritmo que faz dançar as sílabas… Como poeta, dou-me o direito ao divino e o exerço neste livro, que é oração, mas também atrito contra hipocrisias e fariseísmos contemporáneos, religiosidades ociosas, que não cumprem com a imensa preocupação social, disseminada nos Evangelhos e nos profetas. Corpo e alma não estão cada um no seu lado, configuram um Todo, que merece reviver com nova luz. CM - Quais os poetas que mais lhe influenciaram? APA - Píndaro, Vallejo, Salomón, Rilke, Romualdo, Cernuda, Job, Dario, Bashô, Baquero, Horácio, Pessoa, David, Quevedo, Isaías, Gangotena, Hölderlin, Eclesiastes, Perse, Ovidio, Tundidor, Nezahualcóyotl... Ampla seria a relação de poetas que transitam dentro de mim ou que me carregam em suas costas: assumo como minha essa linhagem e me considero um pequeno elo na cadeia poética que não se funde jamais. CM - Com uma obra reconhecida, varias vezes premiada, o que vocè diría aos poetas que querem fazer de sua vocação um projeto de vida? APA - Que tenham os olhos como faróis porque a Poesia é o sol dos cegos. Fazê-la um projeto de vida é saber que, ainda no meio do deserto, saberão encontrar o oásis que salva. Para isso, não se fixem nas ganâncias materiais: nada de um iate poderá levar o seu caixão, mas, sim, algum lembrete no qual se anotem uns versos do viajante ou o Cantar atribuído a Salomão. Tradução: Cyro de Mattos

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POESIAS Marcia Agrau O POEMA Ferido de mortal beleza (Mário Quintana)

Um poema como a água do arroio, entre as pedras, no piquenique de domingo. Como o som de um violino, rompendo a madrugada chuvosa, numa estreita rua de Viena. Um poema silêncio. Sem outra condição que não a de ser apenas um poema. Ferido de mortal beleza. Nascendo para a vida. Pronto. Alçando voo.

URBANO para Baudelaire e Drummond

tudo deságua nas calçadas: o esgoto o sangue a chuva que caiu de madrugada a urina do mendigo o sonho da moça na sacada tudo deságua nas calçadas: o vômito do “bêbado noturno” aquele plim-plim da TV os ecos da gargalhada as flores murchas de um buquê tudo deságua nas calçadas: o bandaid descartado

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restos do chinelo de plástico o último capítulo da novela as notícias do Fantástico

tudo a calçada devora ela tem dentes caninos fome de canibal e te toma de assalto mas a margaridinha teimosa ― que não é flor do mal ― sem nem dar por isso surge humilde sorrateira pela fresta do asfalto

À SOMBRA DO BAOBÁ

Venho de estranhas árvores antigas: londrinos plátanos, eretos maricás, longilíneas palmeiras holandesas... e o mais tradicional dos baobás.

Direis de mim: é louca e mentirosa; se apoia nessa coisa fantasiosa, seus direitos, liberdades da poesia.

Semeia pelo mundo, escandalosa, se arvorando escrever em verso e prosa

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contra-sensos naturais a cada dia.

Quem me conhece, entanto, compreende quão verdadeira eu sou sobre esta história . Faltam-me outras árvores à memória mas a verdade permanece a quem me entende. E é por isso que hoje estou aqui, a reverenciar o velho baobá plantado pelo avô de minha mãe, enraizado aqui, em Paquetá.

Quanta gente passou à sua sombra ! Quanta gente parou, olhou, marcou , feriu o tronco que a todos assombra pelo tamanho e aqui deixou “para sempre” gravado seu recado ora de amor sincero, ora encantado, apenas pelo impulso de deixar seu nome “para sempre” eternizado no tronco deste velho baobá.

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Não passa na cabeça dessa gente que a árvore não fala mas que sente os cortes que a vêm desfigurar, que mesmo que ela viva mais que a gente , nem ela é permanente , e um dia, no futuro, irá tombar.

Não são as árvores o que permanece. Das atitudes é que não se esquece. Dos gestos, das palavras. Dos princípios . São eles que eternizam na verdade . São eles traduzindo a qualidade de uma existência honrada e sem vícios.

Dizem que em Paquetá, à lua cheia , as obras dos cientistas, dos artistas, dos poetas, são murmuradas pelas águas inquietas marulhando aos que as ouvirem, sobre a areia.

O velho Caetano, eu posso vê-lo, na sombra deste imenso baobá : os óculos, o branco do cabelo, a voz que intuo firme e carinhosa e as marcas do estudo e da bondade que saem de seu rosto e se enraízam no solo da pequena Paquetá... (Rio,23/09/95)

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Três Poemas de Tanussi Cardoso

ANTES DO POEMA soluço sobressalto salto sem rede precipício sede sacrifício início do improvável imprevisível fio cio de coxas brilho feira de peixe fruto surto de agonia rinha fogão de lenha ferro quente fogueira rompendo chão margem sem beira senha capim crescendo nos muros em água parada murro adágio desafinado

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relógio em hora errada rosto em lago frio insone noite de breu num beco vazio eu

UM POETA para Ricardo Alfaya Olho a montanha. Alguém me pergunta: - O que é a montanha? - Não sei... A montanha é só o que vejo. O que se vê não se sabe. - E o além da montanha? - Ah, isso eu sei... É tudo o que posso tocar!

8 MOTIVOS DA CIDADE Arpoador: Miragem: sol no olho em viagem. Aterro: A lua alua alhures: alva, olhos alumbra. Botafogo: O barco: punhal abrindo o mar. Jardim Botânico: Sair por aí a exercitar pássaros.

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Pedra do Leme: Pousada em cima do monte, uma asa sem pássaro chora. Praça dos Paraíbas: Ninguém ouse dizer, “o amor não existe.” O que fazem os velhos, nas tardes, derramando ternura sobre os pombos? Rocinha: A pipa no ar dissimula o ato de cortar. Ágil, baila ao vento o drible certeiro, empinando o bico pro céu, moleque e vitoriosa. Subúrbio: O vento faz dançar - bailarinas orientais – as folhas nos quintais.

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Teresa Cristina Meireles de Oliveira

MULHER, PÉROLA E ESPELHO – sobre quadro de Reynaldo Fonseca –

Circunscrita ao quadro, ela, no entanto, movimenta o olhar para fora dele: ali reside seu interesse – no que não vemos, apenas pressentimos, senhora de seu gesto. As pérolas dos brincos compõem, em clássica postura, o discreto levantar dos lábios, esse sorriso sério, o fundo sóbrio, a cardinalícia veste que mal descreve qualquer decote. que exibe o espelho – firme, robusta, segura – completa o cabelo colhido e tão composto que mecha teimosa quase desmente.

Tudo é aparente nesse mundo de traços firmes e áureas vestes. A mão que se levanta ostenta lâmina embaçada que pouco define no traço revelado:

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não sabemos ao certo de quem é a face parcamente entremostrada.

Há silêncio nos elementos e nas cores sobre a pulsação contida, ininterrupto estrondo sob o cosmo arrumado.

– A quem estendes, senhora, o espelho guarnecido? É a ti, senhora, que procuras, ou é de um outro que buscas a imagem? De quem queres, senhora, reproduzir a face? Onde encontrar, senhora, a reta do teu olhar se a linha oblíqua conduz à tua quase displicente, forjada emulação?

Enigma, ela também nos olha – o poder que possuímos quando olhamos um ponto e, ao mesmo tempo, seu entorno – e contempla mais o dentro que o fora, paisagem interior, e o olhar – esse – se desdobra cheio de sinais que apenas auscultamos como quem pressente a tempestade nas gotas que tilintam na janela.

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Francisco Caruso FRAGMENTOS À Cristina Silveira

Diante do teu corpo, cedo, muito cedo, me dei conta que, em teus poros, encontro fragmentos de mim. E os guardo silenciosamente.

À flor da pele, ao sentir pleno teu eu, tento rastreá-lo antes que de mim se vá. E a ele tento reunir meu íntimo.

Nesse momento de raro enlevo, ao nosso suor, embriaga-me teu cheiro. Sem que saibas, renovado e feliz, reconstruo-me inteiro.

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CONTOS

COMPANHIA Jorge Sá Earp

Cê pode me trazer mais um? Agora.

Só que não foi agora. Ele ainda atendeu outras pessoas, bateu um papo com o colega e só aí veio trazer o seu uísque. Mas antes passou um pano no balcão de fórmica preto. - Hoje num tem muita gente. - Ah isso depende. Tem noite que começa assim mas que depois enche. A gente nunca sabe. Ela se vira de novo pra pista de dança dando ligeiro giro no banco. Mordisca a unha. - Já sábado tava cheio. - Ah... sábado sempre enche. – e ele começa a chacoalhar a coqueteleira. Ela sempre achou charmoso essa performance dos garçons, quer dizer, dos barmen. É como se eles tocassem uns instrumentos. Não maracas porque maracas me dá vontade de rir. Não tem aquela música da Elis Regina... - Conheço não. Como é que é? - Ah... eu não sei cantar. – depois do ah... expressou um sorriso entre encabulado e coquete. - Então como é que eu posso saber? – ele despeja a mistura berrantemente colorida dentro do copo e aplica uma cereja na borda. - Deixa pra lá. – executa o mesmo meio giro com o banco e seus olhos vão bater na esfera espelhada pendente do teto. Em seguida baixam para o único casal na pista dançando sem-graça. - Pôxa, mas tem tempo que a senhora não vem aqui. – ele se debruça no balcão com um sorriso acanhado. - Mas eu não vim no sábado? - Mas ficou pouco tempo. - Não gosto de multidão. Ele se afasta do balcão e alarga o sorriso, mostrando os dentes bem alinhados.

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Seu rosto mesmo fica mais bonito. - Mas tava reclamando que hoje não tinha ninguém... - Ah, nem oito nem oitenta, Carlos Eduardo... - Amilton... Puxa, é a segunda vez que a sra. me trata de Carlos Eduardo. De onde é que a sra. tirou esse Carlos Eduardo? - Ah, desculpe. Nem eu sei. É... Amilton num tem nada a ver com Carlos Eduardo. Que cabeça a minha! (dá um gole no uísque com gelo e soda) Sabe, eu sou péssima pra nomes... Não consigo... - Ah, eu também. Troco o nome de todo mundo! Já troquei até o da minha mãe! - Ah, não: de mãe não é possível trocar não; nome de mãe ninguém troca. Os dois riem. Um homem grisalho pede um uísque, especificando a marca, pro barman. Depois lança um sorriso malicioso pra ela. Ela vira o banco na direção contrária ao homem grisalho e se vê no espelho entre dois assentos no fundo. Sentado um casal se beija com furor. - Falando nisso... já que a sra. costuma frequentar essa boate... será que eu podia lhe perguntar o seu nome? - Pode sim: mas só se você parar de me chamar de senhora. (Ao mesmo tempo ela pensa que o homem grisalho até que não era tão mal assim. Acho que ele viu eu conversando com essa intimidade com o garçom, quer dizer, o barman, e foi se sentar nem sei onde. Azeite!) - Odete. - Prazer, D. Odete. Quer dizer: prazer em conhecer o seu nome. Nome bonito, Odete. - Era o nome de uma tia minha. Eu não gosto, não. Ele se afasta reflexivo, quase se encosta nas prateleiras forradas de garrafas e volta a sorrir. Só aí então debaixo daquele foco de luz indireta é que Odete percebeu que Amilton quando sorria, exibia uma covinha. Será que ele tinha olhos verdes ou era a iluminação da boate que provocava esse efeito, essa ilusão de ótica? - Continuo gostando. Ele cruzou os braços fortes. - De que? - Do nome, uai. - Cê é mineiro? - Nunca te contei, não? - Não.

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- Contei sim. - De onde? - De BH mesmo. Aí Odete retrucou que gostava muito de BH apesar de ter ido lá só quando pequena para visitar Ouro Preto e as grutas de Maquiné. Os pais queriam ver Ouro Preto, mas tia Odete – que morreu solteirona – tinha loucura para conhecer as grutas de Maquiné e Cordisburgo. Ela vivia me arguindo: “Qual a diferença entre estalactite e estalagmite?” E eu tinha que responder, senão ela não saía do meu pé. Cordisburgo por causa de Guimarães Rosa. - Aquele cara escreve esquisito... - Li há muito tempo no colégio. Obrigada pelo professor de Português. Achei um saco. Acho que porque era obrigado. - A gente não deve fazer nada obrigado. - Concordo plenamente, Amilton: em gênero, número e grau. Cê pode me servir outro? - É pra já. Odete ficou então com medo que Amilton fosse pensar que ela era alcoólatra. Já era o terceiro. Não; depois desse chega; Odete vai pra casa que já é tarde e descansa. Pra cama direto. Se é que ela vai conseguir dormir. Não; vai sim. Se não conseguir, liga a televisão. Mas aí a Letícia ou o Diogo acorda e vem reclamar que a televisão está alta. Às vezes podem vir os dois. Pelo menos ela não põe mais o som alto. Afinal... é uma arte saber viver em comum... Onde é que ela leu isso? Ou viu numa novela? - Tá aqui o seu uísque. - Brigada. (suspiro) Amilton. (o homem grisalho e de blazer voltou e também pediu outro uísque. Sorriu de novo pra ela. Não, ela não era uma qualquer... Não ia sorrir de volta que nem uma mariposa. O Amilton era simpático. E só. Garçom foi feito pra fazer companhia. E só. Não quero ser classista, não, mas... mamãe já dizia... - Olá. - Boa noite. - Tá sozinha? - Tou esperando um amigo. - O amigo tá demorando um bocado... - Por favor, eu quero ficar tranquila. O homem grisalho se afasta pedindo desculpas. Deve ser casado. Não vi aliança no dedo dele, mas é claro que você só vem de aliança pra boate se vier com a mulher ou com o marido. Eu até que com esse anelzinho aqui, de bijuteria... podia

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dizer... só pra afastar os inconvenientes. Puxa! Mulher não consegue ficar em paz numa boate, sozinha, sem que venha um chato desses... não, ele não é mal mas é que – sabe? – depois que eu me separei... - A senhora... Desculpe. É, você me disse que era separada. - Divorciada. - Ela roda o gelo no copo e abaixa a cabeça. Começa a gostar daquele momento e daquele lugar, afinal tinha ido ali mesmo para espairecer, pra ventilar a cabeça. Os filhos não gostavam muito dessas saídas, mas, puxa, a Letícia e o Diogo tinham que entender. Mas Odete dizia que tinha ido ao cinema com a Roberta. E que depois – diria amanhã – tinha ido tomar uns chopinhos no Bar Lagoa. - Cê disse que tem dois filhos? - É, um casal. - E tem muito tempo que você se divorciou? Odete hesita; acha que está dando intimidade demais pro barman. - Seis meses. - É coisa recente. - Pode me dar mais outro? – Amilton sorri e pisca o olho. Será que minha voz está pastosa? Ah não:depois desse eu vou. É o último. Definitivamente. Só faltava essa agora: eu virar uma bêbada, divorciada, cotovelo no balcão de boates. E o pior: amiga de garçom. Ah! Garçom e barman é tudo a mesma coisa! “Se o Carlos Eduardo me visse aqui... E se de repente ele entra? Ele sempre gostou do Jirau...” - Brigada. A partir de agora não trato ele mais pelo nome; só digo obrigada e pronto. Só mais esse uisquezinho e vou me embora. Ih, estou ficando repetitiva. Mas comigo mesma não tem importância. O que eu não posso... Olha só o cara grisalho me encarando de novo. Não, não dá pra vir sozinha aqui. Se a Beta não tivesse arranjado aquela desculpa esfarrapada para não sair com ela... A verdade é que a Beta queria ir ao cinema, e Odete estava era com vontade de conversar. Tomar uns chopinhos. Mas a Beta devia estar cheia dos seus desabafos, das suas histórias com o Carlos Eduardo, dos chifres que ele tinha botado nela, primeiro com a colega de trabalho, depois com aquela garotinha que ele tinha conhecido sabe-se lá como e onde. - Tá muito pensativa... - É. Tou cansada. Hoje é quarta-feira. Trabalhei muito. - Trabalha em que? Dois casais se acotovelaram dos dois lados dele. Atrás também alguém empurrava. Pediram drinques ao Amilton, e ela nem pôde responder que tinha uma loja de artigos para presentes. Bobagenzinhas, coisas de decoração, essências de perfumes, bijuteria. Aquele anel mesmo...

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Ai, Carlos Eduardo! Por que você foi tão filho da puta! – o grito ecoou na sua cabeça, quase extravasou garganta afora. Mas já pensou uma mulher fina como eu soltar um berro dentro da boate, mesmo que ninguém ouça por causa da música alta e depois cair de bruços bêbada sobre o balcão? Decadência. Não a “divine decadence” da Liza Minelli mas outra horrível, nada divina. - Desculpaí: demorei, né? É que o meu colega ali sozinho num dá conta desse povo todo. – e Amilton apontou com o queixo o garoto alourado na outra extremidade do bar, que realmente parecia atarantado com a súbita chegada da numerosa clientela. - Então me dá mais um. Cê não pode brindar nem unzinho comigo? Não, eu sei, cê tá trabalhando... Amilton se achegou bem perto do rosto de Odete a tal ponto que ela sentiu o seu bafo quente. - Unzinho até que eu posso. Mas tem que ser malocado. Odete reparou então nas veias proeminentes do braço moreno de Amilton. - Tou achando ocê muito triste hoje, Odete. No sábado ocê tava mais animada, mais alegre. - Alegre? eu? - É... Tava até bem... assim... bem espevitada. - Espevitada? Ai, meu Deus, e o que foi que eu fiz? Fiz alguma coisa demais? - Fez nada... Tava só alegre. Espevitada foi maneira de falar. - Ah bom... - Ah bom... – o barman repetiu com um sorriso largo, franco, e tocou seu copo no dela. Ele tinha os olhos brilhantes. Não devia ter sido o primeiro drinque que bebia. - Isso aqui não é uísque, não, uai. - E é o que? - É um coquetel que eu inventei eu mesmo. Eu chamei de Uai Not. - Uai Not? – Odete soltou uma gargalhada e inclinou o corpo e a cabeça para trás. Dessa vez não se sentiu mais vulgar. – e como é que é a receita? - Olha: a senhora... desculpa... ocê conhece angostura? Pois é: é assim, desse jeito ó: O disk-jóquei aumentou a música: botou I will survive com Diana Ross. A pista ficou lotada. - Deixô provar um pouquinho. - Tomaí.

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Odete achou o coquetel doce demais e disse isso no ouvido de Amilton. - Uai e mulher gosta de bebida doce, sô. - Mas eu não sou qualquer uma. O riso franco de Amilton dominava a tela inteira àquela hora, que ela nem sabia qual era, nem queria saber, nem pensava em hora, o rosto dele dominava a tela inteira do seu filme com trilha sonora de Diana Ross. E sobreviveu. Na manhã do dia seguinte sentada na borda da cama, com um gosto amargo na boca, uma sede danada e uma mecha caída em cima de um dos olhos, Odete não se lembrava do trecho da noite em que saíra do Jirau. A última cena estampada na memória era ela dentro do carro do Amilton. Os dois em frente à portaria do seu edifício na Barão da Torre em Ipanema. E do beijo. Do beijo se lembrava. Dos lábios carnudos e quentes de Amilton, dos braços fortes dele enlaçando-a e do coração disparado. Em seguida olhares ternos trocados e o hálito dele. - Cê é uma coroa gostosa, Odete. Ela só gostou do adjetivo, do substantivo é claro que não. Pelo menos foi sincero – se consolou. - Sabe, Odete? – Amilton se debruçou no volante fazendo cara de vítima. – Eu ando meio cheio daquela boate... É que trabalhar de noite cansa. Cansa muito. Cê num dorme e dormir de dia num é a mesma coisa. A gente num descansa como se tivesse dormindo de noite. Apesar de bêbada, ela escutava os passos sorrateiros da voz de Amilton e antevia a porta onde almejava penetrar. - Quem sabe, cê num tá precisando de alguém assim pra te levar no teu trabalho? Cê me disse mesmo que num gosta de dirigir... Eu sou fissurado em dirigir. Odete o fulminou com o olhar. Amilton guardava uma expressão cândida de espera. - Eu podia ser seu chofer... Subitamente eclodiu a cena na memória dela batendo com força a porta do carro, lutando com as chaves, o dedo apertando fundo o interfone, o porteiro vindo abrir sonado e o mergulho entre os lençóis. Carlos Eduaaardooo! – agora podia gritar: mas ainda assim com a voz sufocada no travesseiro. Milão, 21 de agosto de 2013.

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O RELÓGIO Clair de Mattos - Nossa! O Alfredo vai me matar. Deixa de onda mulher. Teu marido é um santo, comparado ao meu. Até que nem. Quer saber? Eu acho o Beto fora de série. Além disso, um gato. Quem dera eu, o Alfredo fosse um tico, do que o Beto é. Você fala de boca cheia. Cuidado! Olha o buraco! Cecília desviou o carro num repente. As rodas giraram como mariposas míopes, mas a moça conseguiu recuperar o equilíbrio do Peugeot. Mais uma dessas e a embreagem vai pro brejo. Sem falar nos amortecedores, que já deram o que podiam e não podiam. Também, Matilde, só mesmo você pra me fazer dirigir por essas estradinhas perdidas no fim do mundo. Não exagera, Cília. Estamos seguindo direitinho o mapa que o pessoal do Patrimônio Histórico cedeu. A Fazenda deve estar a poucos quilômetros. Você vai ver que maravilha. Início do século dezenove, ainda com os afrescos de época. Claro que mal conservada. Os proprietários, apesar da ascendência nobre, são muito pobres. Vivem do leitinho de umas poucas vacas esquálidas. Mas vamos fazer uma bela reportagem. Garanto. E eu garanto que o Alfredo vai me dar a maior bronca por arrebentar o carro desse jeito. Isso vai. Como brotando do nada, surgiu numa curva do caminho um velho puxando sua carroça de milho. Cecília tentou desviar, e na tentativa, o automóvel balançou, rodopiou, rangeu os freios e caiu de bico no córrego que contornava a vereda pedregosa. Algum tempo passou baixo o silêncio costumeiro do entardecer na roça. Matilde acordou primeiro. Tonta, desgrenhada, ainda sem entender direito o que acontecera, sacudiu Cecília: Acorda mulher. Acorda que entramos numa fria. Você bateu feio. Cecília abriu os olhos atordoados: - O que houve ? Batemos, querida. Só isso. Está machucada ? Que sangue é esse, na sua cabeça? Sei lá. Acho que enfiei o crânio no painel. Mas, gozado, não está doendo. E você? Também se feriu ? Parece que sim. Estou sangrando no pescoço.

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E Agora? Cadê o velhinho na carroça? Sumiu. Talvez tenha ido buscar ajuda. Desliga o carro criatura. Não vê que está saindo fumaça do carburador? Pode explodir a qualquer hora. Vamos sair daqui rapidinho. As portas da frente estavam emperradas, mas Matilde conseguiu abrir um pequeno vão na parte traseira, e por ali passaram as duas, espremidas, se arranhando nas ferragens. Conseguiram subir o barranco circundante e atingiram o topo da colina próxima. Exaustas, sentaram no capim úmido e observaram o estrago. O carro adernado na vala era um montão de ferro e cromados retorcidos. Perda total, disse Cecília. E. Parece que não sobrou nada. Agora concordo com você. O Alfredo vai ficar uma arara. Começou a chover miúdo, aquela chuvinha rala que costuma descer sobre os campos nas tardes de verão, alimentando a braquiária. As duas resolveram buscar abrigo, patinhando sobre o capim, ralando pernas e braços. Afinal encontraram, não muito longe, um antigo curral abandonado, parco de telhas, cochos vazios acolhendo apenas folhas mortas e insetos. Não é nenhum Copacabana Palace, mas bem melhor que o relento, disse Cecília. De pleno acordo, amiga. Será que o velhinho foi buscar ajuda? Acho que sim. Ele deve ter visto o acidente. Claro que viu. Então, se for esperto, a essa hora Alfredo e Beto já foram informados. Como? Tonta! Então não deixamos as bolsas no carro? Endereço, telefone,CPF, está tudo ali. É só procurar. Está certa. Acho que fiquei meio burra, depois da batida na cabeça. Deixa de bobagem Tilde. Estamos numa enrascada daquelas, e isso, minha filha, deixa qualquer um de miolo mole. Na há neurônio que resista. A noite caiu inteira, rápida como um tombo, sem luzes nem brilhos, nua feito deusa pagã esquecida de adornos. Matilde espiou o céu negroso em busca de alguma estrelinha. Nada. Somente aquele manto escuro vestindo a morraria deserta. Que horas serão? Cecília perguntou. Não sei. Meu relógio quebrou no momento do acidente. O meu ... perdi. Deve ter caído quando batemos. Mas pelos meus cálculos, não deve passar das nove. Só nos resta esperar por socorro, e isso deve acontecer somente pela manhã, quando o sol surgir.

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Será ? Lógico. Amanhece todos os dias desde tempos imemoriais. Aconchegaram-se uma à outra, esperando as horas passarem. O tempo fluiu lasso, lerdo, cheio de preguiça, escoando seus minutos gota a gota, sem pressa. As moças não conseguiram dormir nem um minuto, presas da angústia e do medo. Afinal, um sol mofino, tísico surgiu atrás das encostas espraindo parcas réstias de luz por entre nuvens cinzentas. Cecília sacudiu a amiga: Acho que estou ouvindo ruídos. Vozes. Presta atenção. Puseram-se atentas, as duas. Ouviram com nitidez rumores e gritos. Gente. Havia gente por perto. Certamente o carro fora encontrado. Num átimo, desceram a encosta aos trancos e risos, resvalando nas encostas do barranco úmido. Aproximaram-se do local do desastre. Gritaram frenéticas, acenando como loucas: Estamos aqui. Socorro! Aqui, na colina ! Ajudem,por favor Nenhum sinal de atenção. Debruçavam-se, vários homens sobre os escombros do veículo espatifado. Alguns tentavam retirar o carro do riacho. Outros buscavam padiolas. Falavam alto, todos ao mesmo tempo, nervosos. Alguns choravam. Matilde apertou o braço da amiga: Olhe bem, Cília, aquele ali, de camisa listrada, não é o Beto? É. Claro que é o Beto. Alfredo está logo adiante. Não percebe ? Mas, estão em prantos. Por que? Por que choram? Não sei. Vamos chegar mais perto. Continuaram descendo. Aos gritos, em desespero. Estavam agora bem próximas. Tão próximas que conseguiram ver, estendidos sobre o capim lamacento, os dois corpos ensangüentados e decompostos no desalinho rígido da morte violenta. Pouco adiante, reluzindo na parca luz do dia fosco, o relógio de Matilde.

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Dois contos de Laura Esteves

LOURA FANTASMA – Diacho! O grito de Guiomar tinha razão de ser. Tomar conta daquele velho tonto, só podia ser castigo. Depois de todo estrepado, voltou para casa. Culpa dos três filhos que a obrigaram. Bem que ela protestou. *** – Não quero, também estou velha e cansada. Setenta e sete anos. – Mãe, ele vai para o olho da rua. A outra já mandou o pai embora. A mala ficou lá na portaria do prédio dele. – Na hora do bem bom, a sem vergonha tirou Honório de mim. Agora, roa os ossos. Velho doido ! – O pai não é doido, o que ele tem é uma doença degenerativa. – Balela, está é maluquinho da silva. Esquece tudo. Soube que quase queimou a casa da vigarista e que vive pelado com “as coisas” à mostra. Uma vergonha! – Mãe, nós vamos buscar o nosso pai. Vamos ajudar você a olhar o velho. – Outra mentira, vocês três vivem na rua, têm família. Vai é sobrar para mim. E Guiomar tinha toda a razão: sobrou para ela. Foi uma semana terrível! Honório era uma carga pesada. Vivia urinando nas calças, não mais conseguia comer sozinho, esquecia a luz acesa e a torneira jorrando água. Tentava fugir o tempo todo... vou para Buenos Aires , quero dançar um tango ― vivia repetindo. – Viu mãe? Ele até lembra da viagem. – A viagem não foi comigo, deve ter sido com a outra. Nunca sai do Brasil. E dançar tango... velho tonto. – Mãe, e o médico? – Mãe, mãe... chega! Já marquei para quinta-feira. O pior era a caça à loura. Pobre de Guiomar, tendo que responder a eterna pergunta de Honório: – Cadê a loura que morava aqui?

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– O rato comeu. Foi embora, mas qualquer dia ela aparece, depravado ― respondia a mulher, trincando os dentes. – A loura vai chegar? Eu gosto da loura bonita. – Daqui a pouquinho ela entra por aquela porta. Miséria, ainda tenho que falar de mulheres para este velho safado! Eu não merecia esse fim de vida. – Tenha paciência ― pediam os filhos, preocupados com a situação, com medo de Guiomar desistir e sobrar para eles. – Não me venham falar de paciência. Paciência eu tive a vida toda. Foi ele quem se enrabichou com a mariposa e largou a família. Sempre foi homem de amantes. – Melhor esquecer, mãe. – Como esquecer , se ele me azucrina perguntando, dia e noite, pela vagabunda loura? Uma vagabunda, repito. Um fantasma rondando a minha vida. A loura fantasma! *** Quinta-feira, Guiomar mais tranquila, conseguiu conversar com um desligado Honório. – Agora, vamos tomar um banho, botar uma roupa limpa , porque o doutor nos espera. – Minha loura também vai? – Talvez ― respondeu ríspida . Doutor Garrido ajudou muito. Pediu exames, deu instruções de como proceder e falou, principalmente, de carinho e acolhimento. – Acolhimento, só faltava essa. Vou ter que carregar essa cruz ― resmungou, entre dentes, uma conformada Guiomar. Alberto, o filho mais velho, logo apareceu para saber notícias. – Está vendo meu filho? A casa parece uma sala de aula para crianças. Foi o médico quem mandou colocar avisos em todos os lugares, lembretes escritos com caneta colorida. Um horror! Nem sei se está adiantando. O doutor me disse, também, que ele precisa estar com a família. Próximo sábado, faço um almoço. Josefa vem me ajudar. Quero todo mundo aqui. Sábado, conforme o prometido, vieram todos: filhos, noras e netos. O doente, banho tomado, sorria um sorriso bobo, sentado na cadeira de balanço. E só fazia perguntar: quem é você? quem é você? Solícita, Guiomar apontava e falava o nome de cada um, bem devagarzinho: Alberto, Mário, Celso, Antônia, Lúcia...

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Depois, foram as fotos recentes e, finalmente, os álbuns antigos . Recordações de tempos passados. – Aqui, você em São Lourenço com os meninos. Olha esta foto do Alberto quando entrou para a Faculdade de Engenharia. E esta... – A loura! A loura bonita! Um grito de felicidade saiu do fundo do peito de Honório. Todos se acercaram dos velhos. Álbum nas mãos, Guiomar, perplexa, olhava a antiga fotografia tirada na primeira comunhão do filho caçula. Lá estava ela: linda, jovem, vestido grená, sorriso radiante e cabelos louros pelos ombros.

MUNDO CÃO – Belo par, feitos um para o outro! Linda família, perfeita! Todos comentam sobre “os Queiroz de Almeida”. Ele, executivo de multinacional. Ela, ótima dona-de-casa – um brinco, tudo nos seus lugares, uma perfeição – diploma de jornalista no fundo da gaveta. Presente? Uma festa: viagens para o exterior; jantares; apartamento sempre cheio de amigos; roupas, muitas roupas; jóias, muitas jóias e colégios caros para o casal de filhos. Até o cachorro combina. Um lulu branco e fofo! Cristina não desgruda do cãozinho. Futuro? O infinito e suas possibilidades. Só que o futuro chega cedo e imprevisível. Vira agora. Afinal, vinte anos passam rápidos. Paulo Queiroz de Almeida recebe uma boa indenização e é mandado embora do emprego. – Novas diretrizes para a companhia, fusão... Grupo espanhol chegando... Essas coisas. A boa-vida continua como sempre. – Nada de preocupações, mulher. Emprego o dinheiro em algum negócio, numa livraria com café, restaurante... e “tudo como d’antes no quartel de Abrantes”. O grande executivo adora citações e provérbios. – Sou um intelectual! Um Queiroz! Não perde oportunidade para falar de remoto parentesco – quem sabe? – com o escritor de Póvoa do Varzim. – Queiroz! Vocês são um Queiroz, de Póvoa! – diz, orgulhoso, para os filhos, que pouco entendem daquela euforia paterna, pois nunca leram, absolutamente, nada. E das cidades portuguesas? Nunca ouviram falar. Mas, apesar do suposto parentesco, ele também pouco entende de livros, livrarias e correlatos. E o tal negócio vai por água abaixo. A vida vai se desmontando, também. Os filhos adolescentes

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procuram emprego em lojas de shopping. Cristina empenha as jóias. – Eles aproveitam da nossa desgraça, pagam tão pouco... mas vai dar tudo certo, as vacas magras um dia terminam. Deus é pai – ela se queixa para a irmã mais velha. Cinco anos de penúria. Paulo se ajeita, como pode, na acanhada sala de um primo. – Qualquer hora fecho um bom negócio. Um Queiroz, de Póvoa, não se entrega fácil! Tentam manter as aparências. Difícil. O imenso apartamento os denuncia: infiltrações na sala e no quarto do casal, portas empenadas, ladrilhos soltos nos quatro banheiros, descarga que não funciona, goteiras... Cristina sente vergonha de sua nova vida. Recolhe-se. O marido ainda encontra alguns poucos amigos na mesa do uísque semanal. – Faço questão de pagar a próxima rodada. Fala bem alto para que todos o ouçam. – Era o dinheiro da feira – reclama a mulher. – Não podemos perder o humor e o status – responde Queiroz. – Inferno! Não quero ver mais ninguém – grita a pobre. É quando Cristina resolve comprar um cão. – Um cão de verdade. Um rotvailler preto. Em seguida, consegue dois pitbulls com um morador de Jacarepaguá, amigo do porteiro. – Umas gracinhas, dona Cris, acabaram de nascer, um mês de vida. Eles acostumam logo. A mãe morreu. Veneno... Maldade dos vizinhos. Era brava, ninguém chegava perto. O fila é o próximo. Enorme! Cristina, agora, pouco sai. – Os cães são a minha companhia, meus amigos fiéis – repete pelos cantos. Os amigos desapareceram pouco a pouco. Os parentes desistiram de vez. E não é para menos. – No último jantar, ano passado, ninguém comeu. Passamos o tempo todo em vigília, observando os quatro cães passeando pelas nossas pernas – quem me conta é o próprio tio de Paulo, outro Queiroz. Hoje, encontrei a irmã de Cris. Pedi notícias. – Enlouqueceu de vez. Apesar dos arranhões e mordidas ela parece feliz e está até aprendendo a linguagem dos cães. Late e uiva como ninguém – contou-me, num misto de pena e deboche.

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Tomei coragem. Amanhã vou visitar minha amiga Cristina. Afinal, o cão não é o melhor amigo do homem? Você me acompanha?

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INVASÃO NOTURNA Márcia Agrau A sala grande era bem iluminada. No meio de um tablado que se projetava quarenta centímetros sobre o solo, o pequeno homem de barbas compridas gesticulava nervoso. Vestia uma estranha casaca verde escura que parecia ser feita de veludo, sobre calças marrons acamurçadas, suspensórios idem e camisas de cetim roxo. Botas três quartos também marrons e um chapéu pontudo cintado com uma grande fivela à maneira das bruxas do mesmo material da casaca completavam o traje. Gesticulava falando alto, com uma voz forte que não se imaginaria que fosse dele. Expunha os problemas com muita lógica e a audiência não lhe tirava os olhos acompanhando suas palavras e movimentos respeitosamente. A barba negra azulada, os olhinhos escuros brilhantes faiscavam conforme aumentavam a sua indignação, a sua veemência e o volume de sua voz. A platéia era composta de centenas de pessoas como o orador. Homens e mulheres Os homens, vestidos como ele e as mulheres, pequeninas também, de vestidos compridos em tons escuros e brilhantes portando os mesmos estranhos chapéus sobre os cabelos longos. Tinham idades variadas mas todas de pequena estatura embora proporcionais. As cores que usavam em suas roupas eram brilhantes e pareciam vivas. Agora o homenzinho batia o pé no chão e insistia: – Não podemos permitir que continue assim! Nosso dever é tomar providências! Moramos todos no mesmo planeta e, se continuarmos deixando por conta deles, brevemente tudo, absolutamente tudo estará acabado! Eles se destruirão e, pior, nós também seremos exterminados. Primeiro eram as ações entre eles. Depois e concomitante contra toda a Terra! Sempre convivemos paralelamente mas agora os atos dos homens estão começando a interferir em nossas vidas! Na verdade, em nossa sobrevivência! Portanto, acho que o único modo de agir é este que estou propondo! Demorei noites e noites elaborando este plano e, de coração, sinto ter que interferir mas se não o fizermos agora, não haverá depois! A platéia aplaudiu fortemente e começaram a falar exaltados todos ao mesmo tempo mas ele fez um sinal e silenciaram. Continuou: – Começaremos por Paris. Cheguei à conclusão que é a cidade mais fácil de chegarmos pois é praticamente ôca em seu subsolo e como é uma capital relativamente pequena mas cujo comportamento dos residentes sempre teve muita ressonância no mundo, começaremos por Paris, na França! Novamente o homenzinho foi ovacionadísimo e, então, desenrolou um mapa que prendeu na parede ao fundo e, sacando de uma varinha , começou a explicar detalhadamente como tomariam a dita “cidade luz”.

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Quando terminou a entusiasmada e detalhada explanação, falou: – Por tudo o que foi dito e explicado, dada a urgência, proponho que executemos o plano nesta madrugada mesmo. Donde é preciso que os nossos que não estão presentes sejam avisados. Conto com vocês! É uma questão de vida ou morte! Assim, às três horas daquela madrugada, Paris adormecida não viu quando de dentro dos vasos sanitários emergiram pequenas pessoas de roupas estranhas, cenhos às vezes franzidos, às vezes olhares matreiros, mas atitudes determinadas, incólumes de qualquer resquício de sujeira e magicamente secos. Os vasos fechados eram abertos por dentro e depois de uma primeira olhada, de um primeiro perscrustrar em torno, rapidamente saltavam dele, em grupos, na quantidade que havia sido decidido. Nos locais aonde os vasos estavam sendo usados, esperavam o momento certo. Quando saíam iam à procura das pessoas do lugar. Se adormecidas, postavam-se ao lado delas e se transferiam para dentro das mesmas para usar seus corpos enquanto mantinham seus espíritos adormecidos. A dificuldade era com os insones mas eles sabiam esperar. De manhã, a cidade praticamente inteira acordou mudada. Eram todos gentis uns com os outros, muito menos apressados, muito mais alegres, vivendo com consciência ecológica , construindo convivência pacífica no cotidiano real quando influenciavam nos poucos que não haviam adormecido e construindo-a nos sonhos dos que estavam em seu poder. Outro grupo de elementais passou a agir em Nova York na madrugada seguinte e outro em Londres e assim por diante até ocuparem os corpos de quase todos os seres humanos do planeta. Enquanto os homens dormiam, suas consciências aprendiam em meio ao sono. Mas haviam deixado de viver suas vidas como antes e estavam perdendo tempo, a coisa que mais detestavam fazer. Os homenzinhos de chapéus compridos e suas mulheres, porém, não queriam perder suas vidas, coisa muito mais valiosa do que o tempo, e até obterem sucesso em sua missão, estavam ali para ficar. Sem guerras, sem poluição, na difícil tarefa de educar as mentes adormecidas – quem sabe – até quando?

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ARTIGOS

KIERKEGAARD DOS TRÓPICOS Sylvio Back Algo que pareceria impensável deixou soberbos rastros históricos e não só acabou acontecendo, como está registrado em dezenas de livros e anotações ainda por serem publicadas. Da gélida e sombria Copenhagen à friorenta e luminosa Curitiba (PR), Soren Kierkegaard (1813-1855), praticamente um século depois, teve seu tormentoso périplo existencial introjetado e reimaginado por um brasileiro nos anos 1950/1980, fato único na América Latina. Na hora em que se assinalam os 200 anos de nascimento (ocorrido dia 05 de maio último) do genial escritor, teólogo e filósofo dinamarquês, mote de importante seminário sobre sua vida e obra, recém concluído na Academia Brasileira de Letras (RJ), coordenado pelo poeta Marco Lucchesi, com brilhantes palestras dos acadêmicos Eduardo Portella e Sérgio Paulo Rouanet, e dos professores Emmanuel Carneiro Leão e Vamireh Chacon, o nome de Ernani Reichmann (19201984), hoje desconhecido, mas a propósito dessa “data redonda” vem a lume com sua multifacetada obra (quase cinquenta títulos), tanto de ensaios, memórias e diários, quanto ficcional. Obra pioneira Natural de Erechim (RS), escritor, filósofo, professor universitário e homem público no Paraná (secretário de Estado do governo Ney Braga (1961-1965), Reichmann é o primeiro biógrafo de Kierkegaard no Brasil e do continente americano, como também aquele que, de forma inédita e inaudita, arriscou-se a reviver seus “temor e tremor” debaixo da linha do Equador, inclusive, aprendendo a língua do mestre para lê-lo e reinterpretá-lo no original. Publicada em 1972 pela Edições Jr., de Curitiba, com sua alentada biografia (403 págs.) “Soren Kierkegaard” (cuja pronúncia castiça do nome Kierkegórd foi sublinhada pelo crítico e ensaísta, Eduardo Portella), Ernani Reichmann entrou para a história da cultura brasileira e mundial. Ainda que muitos kierkegaardianos, desde então, venham bebendo em seus textos e traduções, registra-se um triste hiato em reconhecer-lhe a estatura intelectual e o investimento sensorial nas volições, medos e sonhos de seu mestre. Mesmo que tanto criador como suas criaturas permaneçam na obscuridade e à luz somente para eméritos kierkegaardianos como o Álvaro Valls, um dos fundadores da Sociedade Kierkegaard do Brasil (que Reichmann alcunhava de “kiekegaardiano de escola”, já que ninguém experimentara como ele “transfigurar-se” na angústia de

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Kierkegaard); Jorge Miranda de Almeida, Márcio Gimenes de Paula, entre outros, são do crítico Alceu Amoroso Lima (1893-1983), então membro da Academia Brasileira de Letras, os primeiros escritos sobre Kierkegaard no Brasil. Seu livro “O existencialismo e outros mitos do nosso tempo” (1951), pelo que me lembro das conversas com Ernani Reichmann, havia um grande respeito pelo mestre católico, mas a diferença entre ambos devia-se a um agnosticismo militante do filósofo curitibano, fruto de seu, digamos, viés contestatória diante da vida em sociedade. “letras e/& artes” Amigo cotidiano de Ernani Reichmann naquelas quadras, à época, jornalista iniciante, almejando ser escritor e cineasta, tive a alegria e a recompensa poética de conviver com ele e seus estimulantes ensaios de fundo e forma kierkegaardianos, muitos deles publicados no suplemento literário “letras e/& artes”, dirigido por mim, e recém replicado em edição fac-similar coincidindo com os cinquenta anos de sua edição (2011). Os que o frequentavam, éramos todos jovens, belos e irreverentes. Irreverentes, sim, mas nem tanto, visto de hoje, há que reconhecer, uma rebeldia, digamos, às avessas, já que nos alinhávamos a Jean-Paul Sartre, neomilitante do comunismo, tentando conciliar o irreconciliável, liberdade e socialismo real. Coube a Ernani Reichmann, literalmente, nosso “professor” de Kierkegaard e existencialismo francês, também, apaixonado por Albert Camus (do qual, aliás, com sua morte em 1960, o suplemento publicou o discurso de posse ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1957), colocar-se como um pertinente contraponto à nossa heroica radicalidade, que não enxergava o pretume assassino à raiz de toda utopia. Eu, pessoalmente, era ainda o mais inconteste na defesa de Sartre, cujos romances me conflagraram durante anos (através deles, inclusive, aperfeiçoei meu francês...), pois, como filho de pai judeu húngaro, sua diatribe contra a criminosa invasão de Budapeste pelos soviéticos em 1956 me comoveu durante anos. Até quando Sartre, nos anos 1970, distribuindo jornais maoistas pelas ruas de Paris, foi pejorativamente alcunhado de cochon maoïste... Mesmo assim, com o tempo demolindo certezas pétreas, meu amor por este herdeiro ateu de Kierkegaard jamais arrefeceu! O Outro O poeta e crítico paranaense, Sérgio Rubens Sossélla (1942-2003), ele próprio um “reichmanniano” de carteirinha, como eu, mais pela amizade e respeito pela originalidade de Ernani Reichmann do que propriamente pelo alinhamento à sua ciclópica e perturbadora estante, escreve que o autor “... envolve o leitor na mesma sedução de buscar o Outro de si mesmo”. Era um autor, arremata Sossélla, lastreado em Fernando Pessoa, que não finge a si mesmo. Na verdade, bem no diapasão metafísico de Soeren Kierkegaard é quando Reichmann tenta “incorporar” feito médium, eu diria, material e espiritualmente, a

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Angst (angústia) do poeta nórdico, aliás, palavra de sentido multinacional, segundo Vamireh Chacon em sua palestra, pois tanto vale em alemão quanto na Dinamarca, Noruega e Holanda. O gesto lúdico e performático de Reichmann é uma façanha irrepetível, jamais empreendida por ninguém, nem antes nem depois! Lemos numa autoentrevista, Reichmann tinha consciência que seria reconhecido em algum futuro: “Minha experiência não poderá ser ignorada”. Sabia que o leitor do seu tempo não o lia, não tinha editor, não tinha livreiro, era um autor de seis mil páginas praticamente inédito. Quem sabe os kierkegaardianos brasileiros programem para em 2014 um revival editorial e biográfico de Reichmann na comemoração dos seus trinta anos de morte. Como homem cordial e conversador, alegre e femeeiro (a ver e haver com o clássico “Diário de um sedutor”, do seu mestre?), era também um renitente solitário. Com as mãos cruzadas atrás, paletó tipo jaquetão, e arqueado para frente, andava a passos curtos pelas ruas de Curitiba como um monge, o chapéu frouxo sobre a cabeça, remoendo um ralo bigode que fazia questão de cultivar aparado. kierkegaardianas O espectro da paixão de Reichmann pelo chamado “pai do existencialismo”, além do volume biográfico fundador, se espelha (não haverá termo melhor que “espelho” quando se trata de Kierkegaard!) por dezenas de cadernos, mas é nos três volumes de “Intermezzo Lírico-Filosófico”, anos 1960, que ele resume toda “kierkegaardiana” de sua lavra e fruto de seu mergulho no universo trágico do autor. Infelizmente, essa ciclópica estante de ensaios, memorialística e romances está fora de mercado, sendo apenas encontrável em sebos, físicos e virtuais, o que não deixa de ser, sim, um atestado de permanência, segundo o poeta, acadêmico e bibliófilo, Antonio Carlos Secchin e, de forma randômica, disponível em bibliotecas de universidades, especialmente, do sul do país. À época jornalista iniciante, almejando ser escritor e cineasta, e amigo cotidiano de Reichmann, tive a alegria e a recompensa poética de conviver com ele e seus estimulantes ensaios de fundo e forma kierkegaardianos, muitos deles publicados no suplemento literário “letras e/& artes”, dirigido por mim, e replicado em edição fac-similar coincidindo com os cinquenta anos de sua edição (2011). Estirpe moral Ernani Reichmann era da mesma estirpe moral de Kierkegaard, avesso ao “espírito de horda”, equidistante da igreja e da política (ainda que na juventude simpatizante da Ação Integralista Brasileira), e como ele, afeito a pseudônimos e codinomes, antes que aos heterônimos de Fernando Pessoa, como adverte o filósofo Sérgio Paulo Rouanet, para dizer-se múltiplo, controverso, certo “Outro” fake: um homem em permanente estado de graça & desgraça, até nas suas relações afetivas e amorosas, muitas delas marcantes que lhe matizam a própria escrita, toda ela de corte confessional e dialógica como se jamais fosse dada à leitura e à fruição de terceiros. Há quem diga que Ernani Reichmann é hoje um autor esquecido. Mas, como não lembrar do seu seminal livro, “O trágico em Octávio Faria”, de 1978, onde se

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detém na expiação da culpa de inspiração “kiergaardiana” em “A tragédia burguesa”? Ou, de “A poética de Carlos Nejar” (1973), coassinado pelo crítico paranaense, Temístocles Linhares (1905-1993), uma rigorosa exegese do fabro do poeta gaúcho, que ressume laivos da angústia do filósofo dinamarquês? Seria, então, como dizer que Kierkegaard o é também, quando é cada vez mais estudado e reverenciado na academia e fora dela, tal qual sua obra traduzida, lida e relida (como neste potente ciclo de conferências luminares da Academia Brasileira de Letras), sempre mais intensa e extensivamente. E mais, raro estudo sobre Kierkegaard no Brasil e na América Latina que não o cite e se derrame em loas pelo seu pioneirismo, ousadia e contundência literária e filosófica, materializada em dezenas de livros que vieram a lume por conta própria, ou pela editora da Universidade Federal do Paraná, onde dava aula de economia política no curso de Ciências Econômicas (e fui seu aluno...). Febre d’alma A própria Dinamarca ficou pasma ao se dar conta que nos longínquos trópicos alguém tentava reproduzir a nebulosa febre d’alma de Kierkegaard, a sua incontornável angústia do existir, o irredutível conflito entre ética e estética, ceticismo e fé, racionalidade e transcendência, o indivíduo e a impessoalidade do coletivo. Como numa gangorra, Reichmann também comprazia-se entre pessimismo e melancolia corrosivos, mas que acabaram por tornar longevos sua vida-e-obra, inesgotável manancial de atualizadas indagações. É, portanto, através da literatura e do comprometimento com a alta subjetividade de Kierkegaard, seu igual-desigual europeu ( “... ousar é perder o equilíbrio momentaneamente, não ousar é perder-se”), que o Brasil urge reverenciar o gaúcho-paranaense Ernani Reichmann, outorgando sobrevida ao seu engenho e à consciência mítica e crítica protagonizada por ele.

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EU NÃO EXISTO SEM VOCÊ (O primeiro centenário de Vinícius de Moraes) Fabio de Sousa Coutinho

Uma das grandes injustiças que se cometem contra Vinícius de Moraes, talvez a maior, é referir-se a ele como "poetinha". Por mais que se lhe pretenda atribuir conotação afetuosa, o tratamento fica muito aquém de refletir a dimensão intelectual, humana e cultural do formidável escritor carioca. Nascido na Rua Lopes Quintas nº 114 (casa já demolida), na então Freguesia da Gávea, em meio a forte temporal, na madrugada de 19 de outubro de 1913, Vinícius teve seus contatos iniciais com a poesia e com a música no seio da própria família. Seu pai, Clodoaldo, era poeta e sua mãe, Lydia, tocava piano, circunstâncias que encontraram, no primogênito dos Moraes, território fértil e inesgotável potencial. Aluno dos jesuítas, no Colégio Santo Inácio, Vinícius de Moraes ali desenvolveu sólida amizade com seus colegas Paulo e Haroldo Tapajós. Com eles, ainda de calças curtas, compôs suas primeiras canções ("Loura ou morena" e "Canção da noite"), executadas em festas e saraus familiares e de vizinhança. Em 1930, ingressou na célebre Faculdade de Direito da Rua do Catete, onde se associou ao CAJU, Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e Sociais, que reunia uma verdadeira plêiade de jovens futuros bacharéis, com destaque, além do próprio Vinícius, para San Tiago Dantas, Octávio de Faria, Thiers Martins Moreira e Plínio Doyle. Todos, sem exceção, viriam a ser, tempos depois, figuras de projeção nacional, nas respectivas esferas de atuação. Data do ano da formatura de Vinícius, 1933, a edição de seu primeiro livro de poesia, O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA. A ele sucederam o premiado FORMA E EXEGESE (1935) e ARIANA, A MULHER (1936), que também estampavam a influência do pensamento transcendental, místico e cristão na formação estética do poeta. Ao organizar sua ANTOLOGIA POÉTICA, em 1954, Vinícius de Moraes nela incluiu apenas um poema do seminal O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA, o belíssimo "A uma mulher": (...) Mas quando meus lábios tocaram teus lábios Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo E que era preciso fugir para não perder o único instante

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Em que foste realmente a ausência de sofrimento Em que realmente foste a serenidade."

É de 1943, quando Vinícius completou 30 anos de idade, o livro CINCO ELEGIAS, amplamente considerado uma das mais relevantes obras da moderna poesia brasileira. Nessa época, ingressou, por concurso, na carreira diplomática, passando a viver longos períodos no exterior, em missões permanentes (Los Angeles, Paris, Montevidéu). Em paralelo, intensificou a produção poética e tornou-se, sobretudo, um extraordinário letrista, compositor e autor teatral. Sua consagração nesse segmento das artes veio com a peça musical ORFEU DA CONCEIÇÃO, encenada em 1956, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, para uma atenta, entusiasmada e sempre crescente plateia. Com a implantação da ditadura militar que se seguiu ao golpe de Estado de 1º de abril de 1964, Vinícius de Moraes sofreu intensa perseguição política em sua repartição funcional, culminando com truculenta expulsão do serviço público, juntamente com outros colegas diplomatas, após a decretação do famigerado AI-5, de 13 de dezembro de 1968. Dedicou-se, a partir de então, em regime integral, à vida artística, criando algumas das mais lindas pérolas da música brasileira, a exemplo da que serve de título deste artigo. Teve vários parceiros de enorme peso, sendo o principal deles o genial Tom Jobim, autor de um depoimento sobre Vinícius que encerra síntese lapidar, datado de abril de 1959 e publicado na contracapa do disco POR TODA MINHA VIDA, de Lenita Bruno: "Vinícius de Moraes é um grande poeta. No entanto, isto não é condição para se fazer uma bela letra. Uma palavra, além do sentido verbal, tem uma sonoridade e um ritmo. Só um indivíduo como Vinícius, que conhece a música da palavra, que poderia ter sido um músico profissional, poderia ter feito as letras que fez. Vinícius é o poeta que sabe comungar com um crioulo de morro e bater um samba com a faca na garrafa. Educado em Oxford, diplomata em Paris, triste em Strasburgo, escrevendo "Pátria Minha" em Los Angeles, falando muitas línguas e sem deixar que se perceba isto, é sempre o homem que vê o lado humano das coisas. A versatilidade do meu amigo é espantosa: - tanto compõe um samba de morro ("Eu e o meu amor") como uma valsa romântica e sinfônica ("Eurídice") ou ainda uma "Serenata do Adeus"; tanto escreve um soneto ("de Fidelidade" ou "de Separação") como uma "História Passional, Hollywood, California" -; faz cinema, faz teatro e escreve crônicas deliciosas. Tem o sentimento nato da forma que transcende o que possa ser ou foi aprendido. Estas são umas poucas facetas do poliedro cujo número de faces tende para o infinito e que se chama Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes." Na passagem do primeiro centenário de seu luminoso nascimento, Vinícius de

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Moraes é sobejamente merecedor da admiração generalizada de seus patrícios e de milhões de estrangeiros, de múltiplas gerações. Sua obra se incorporou definitivamente à nossa fisionomia cultural. Vinícius não passará. Será, daqui a séculos, uma expressão do Brasil.

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JÓ Raquel Naveira Quando falamos sobre Jó, lembramos de frases como “a paciência de um Jó”, “pobre feito Jó”, “a perseverança de um Jó”. Jó é um personagem virtuoso e com um caráter bastante complexo. Satanás, o Adversário, recebeu poderes para arruinar Jó. Deus autorizou-o a afligir Jó com sofrimentos e calamidades para testá-lo em sua sinceridade e piedade. Provando sua retidão, Jó finalmente é recompensado com redobrada prosperidade. Com restauração de sua posição material e social. Ao logo de sua provação, Jó não rejeitou a Deus, ao contrário, agarrou-se a Ele com desespero, com intimidade renovada. A história de Jó mostra a insignificância do homem diante de Deus, a fugacidade e a ignorância da vida humana, o propósito disciplinador do infortúnio, o louvor a Deus, a felicidade do penitente. Como são fortes as palavras de Jó: “Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei para lá. O Senhor deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor.” Deus inverte constantemente as fortunas dos homens e a verdadeira sabedoria é muitas vezes inacessível. Jó, que por um momento desejou não ter nascido, que expressou seu desejo de morte com paixão descontrolada, tornou-se porta-voz dos desgraçados e miseráveis da terra. O escritor gaúcho, Carlos Nejar, radicado agora na sua “Casa do Vento”, na Urca, Rio, membro da Academia Brasileira de Letras escreveu um longo poema intitulado “O Derradeiro Jó”, um monólogo em que o poeta se põe na pele da personagem dizendo: “Sou Jó/o que não sabe,/o que não viu/o nome/e é ninguém.” Nejar lembra que, embora a mulher de Jó, em uma áspera e irônica discussão, tenha sugerido que ele amaldiçoasse a Deus e morresse de uma vez, Jó resistiu e não negou a seu Deus: “E se quiseram que negasse/ Deus, não/ O neguei./ Pois o consigo ter debaixo dos escombros/ dos cacos surdos/ que da pele caem.” O poeta continua seu canto doloroso, agônico, repetindo: “Sou Jó/ Eu, Jó/ Já sem amarras/ de algum possível vento”; “E eu, Jó,/ Sento-me à beira/ para colher prosódias e alfazemas”; “Eu, Jó, tiro o chapéu/ ao velho homem/ procurando a infância”. Lirismo puro, entre o sagrado e o profano. O poeta conclui: “Sou ninguém e Jó”. Nejar também refere-se aos amigos de Jó. Amigos acusadores, que zombaram dele, que o culparam, que alegaram que o seu sofrimento deveria ter sido resultados de algum pecado grave contra Deus e que Jó precisava arrepender-se de seus atos. Mas Jó tinha consciência de sua retidão e apanha os amigos de surpresa com uma rebelião apaixonada contra o julgamento de Deus: “Zombas tu que sabes/ quanto

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doem palavras”. Jó torna-se a personificação da dor: “A dor tem rosto de homem./ A dor é Jó”. Nascidos para a miséria, quando sofremos, somos Jó. Mas a dor não é maior que a esperança e que o sonho: “Jó, o que recebeu/ em dobro de bens e soldo. O que não/deixou que a dor/ fosse maior que o sonho,/Com a fé acima/das estrelas/e sobre o firmamento./ E cuja sorte/ mudada foi,/quando orava/por seu povo.” Também eu, num momento de dor extrema, escrevi este desabafo com a voz de um Jó:

Por que ele se tornou meu adversário, Meu inimigo íntimo, Ele, o mais belo dos arcanjos, O mais privilegiado de meus frutos, O mais chegado a meu seio? Por que discordou, Não seguiu o caminho indicado E inventou artes de guerra contra mim?

Foi fogo que caiu do céu E consumiu minhas ovelhas? Furacão do deserto Que arrastou minha casa? Nuvem, Eclipse, Redemoinho? Não vejo mais as estrelas da madrugada, Minha vida é um barco de junco No mar salgado.

Alimento-me de suspiros, Bebo a água de meus gemidos,

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Mostra-me, Senhor, em que falhei, Sou escravo exausto Suplicando por sombra.

Ele cravou setas de veneno em meu espírito, Dá-me paciência para suportar Tamanha agitação, Tamanha angústia: Ele se tornou meu adversário, Meu inimigo íntimo, Justo ele.

Quando nos resignamos e percebemos que somos poeira e cinza diante da grandeza cósmica, Deus pode sorrir e reverter a nossa sorte

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O PRINCÍPIO DA IGUALDADE E A NÃO DISCRIMINAÇÃO Ives Gandra

Desde os bancos acadêmicos luto pelo princípio da igualdade, que implica a eliminação de toda a espécie de discriminações, de ordem social, religiosa ou de qualquer outra natureza. O dia 13 de Maio deveria ser considerado o dia do princípio da igualdade, pois todos nós nascemos iguais, independentemente da etnia a que pertencemos. É o que se encontra consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo VII tem a seguinte dicção: “Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos tem direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação”. Essa norma veicula, nitidamente, princípio de direito natural, como acentuou René Cassin, um dos inspiradores do referido texto. Consagra, pois, princípio daqueles que não cabe ao Estado criar, mas apenas reconhecer. De rigor, há princípios que são inerentes ao ser humano. Não decorrem apenas de sua evolução históricoaxiológica, mas sim da própria natureza humana. E , por esta razão, não pode o Estado violá-los. À evidência, a “declaração universal dos direitos humanos” não instituiu nenhum direito. Apenas reconheceu todos aqueles que, há milênios, grandes filósofos e jurisconsultos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Ulpiano, Gaio) já perfilavam como sendo a essência do direito natural , e que os grandes pensadores consideravam a espinha dorsal de qualquer regime jurídico justo (“ut eleganter Celsus definit: just est ars boni et aequi”). Ora, na essência dos direitos fundamentais, está o direito à igualdade, que os fundadores da pátria americana afirmaram, em sua declaração de independência (“We hold these truth to be self evident that all men are created equal”), em 1776. Os franceses, fizeram o mesmo, no art. 1º de sua declaração de direitos do homem de 1789 (“Les hommes naissent et desseurent libres et egaux en droits”). No Brasil, a Constituição de 1824, no art. 179, inciso 19, aboliu qualquer forma de tratamento ou penas cruéis; a Constituição de 1891, no art. 72, § 2º, declarava que “todos são iguais perante a lei”; a de 1934, no artigo 113, inciso I, reproduziu idêntico princípio, o mesmo ocorrendo com os artigos 122, §1º, da Carta Magna de 1937, 141, da Lei Suprema de 1946, 150, § 1º, da Lei Maior de 1967 e 153, § 1º, da E.C. n. 1/1969. Por fim, a Constituição de 1988 , em diversos dispositivos , assegura a igualdade, lembrando que o art. 5º reproduz o princípio três vezes, ou seja, duas no “caput” e uma no inciso I, ambos assim redigidos: “Art. 5º Todos são iguais perante a

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lei,” sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; ” (grifos meus), assim como no inciso IV do artigo 3º: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: ...IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Como se percebe, o princípio de direito material é hoje reconhecido universalmente, sempre temperado pelo princípio da desigualdade entre os desiguais, para que se obtenha a verdadeira igualdade. Cálicles, no diálogo Górgias de Platão, não o reconhecia . Para ele, a lei, ao dar força ao mais fraco, contrariaria o direito natural pois o forte tinha direito a sua fortaleza e o fraco a sua fraqueza. Sócrates, entretanto, rebateu essa argumentação, no referido diálogo, dizendo que a lei, ao dar força ao mais fraco, fortalece-o perante o mais forte, sem enfraquecer o mais forte, suprimindo as desigualdades e gerando uma igualdade mais ampla. O certo é que o princípio, reconhecido universalmente em 1948, é inerente ao ser humano e está na própria essência da aventura do homem sobre a terra, não admitindo qualquer espécie de discriminação seja de que natureza for, em face de raça, sexo, religião, posição política ou outra forma de segregação.

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HOMENAGEM

À STELLA LEONARDOS Helena Ferreira Teresa Cristina (Meireles de Oliveira) e Sílvia (Jacintho) me incumbiram de falar de uma estrela. (Não, elas não perderam o senso! Talvez imaginassem, levando em conta uma coincidência etimológica, que eu poderia fazê-lo à moda de Olavo Bilac, com as devidas e modestas proporções... Mas claro que não. Sabem, como todo o mundo, que só Bilac tinha essa faculdade de conversar com estrelas e até ouvi-las, já que seu estelar soneto confere-lhe originalidade e primazia...) No entanto, é evidente que ambas se referiam a uma estrela especial, àquela de nome comprido, amiga de um mundão de gente, inclusive de nós aqui presentes. (Aliás − diga-se de passagem − que se trata de um astro de muitas rarezas, porquanto não é visto apenas em céu noturno. Tampouco precisa da ajuda de algum aparelho astronômico ou recurso sideral para fazer-se perceptível, ou melhor, visível a olho nu. E sequer exige horário específico para ser encontrado. Ora, mas se se parafraseasse o poeta, até que se poderia dizer: − “Amai para entendê-la!/ Pois só quem ama pode ter ouvido / Capaz de ouvir e entender Stella”. Por conseguinte, não sendo nenhuma adivinhação, o astro a que aludo leva o nome, nada científico, de Stella Leonardos da Silva Lima Cabassa. Eis uma estrela singular: não tem milhões de anos, pois nasceu em 1923, e completou 90 no passado primeiro dia de agosto. Essa estrela-d´alva, como costumo chamá-la, há muitas e muitas décadas vem iluminando o caminho de inúmeros poetas, romancistas, cronistas, ensaístas, teatrólogos e jornalistas iniciantes, ou não, nascidos em diferentes estados brasileiros. Quando a citei como astro de muitas rarezas foi porque ela também tem sabido brilhar em todos os gêneros literários e tornou-se um destaque especial desde a terceira geração do Modernismo brasileiro à qual pertence. Uma exceção na literatura

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do Brasil! Autora multiforme, paladina de um neotrovadorismo incomum e uma brasilidade nunca vista, sobretudo entre nossas poetas. Sua obra se apoia, digamos, em vários tripés: amor / paixão / liberdade; perfeccionismo / espontaneidade / lirismo; singeleza / originalidade / reverência às palavras do povo, ao folclore. A delicadeza, porém, se insere em todos eles. Escreve poesia − multiplicando-a igualmente em cancioneiros, romanceiros, rapsódias, memoriais etc. − romance, teatro, histórias infantis (em prosa e verso, teatralizadas ou não), além de ser emérita tradutora de espanhol, laureada pela tradução de O século das luzes (Prêmio Odorico Mendes, da Academia Brasileira de Letras, 1978), do cubano Alejo Carpentier, e de Três tristes tigres, do também cubano Guillermo Cabrera Infante (Prêmio Nacional de Tradução do Instituto Nacional do Livro, 1981) − assim como de francês, inglês, italiano, catalão e provençal. Vale a pena relembrar seu virtuosismo, como tradutora de catalão, exemplo, reproduzindo aqui este poema: “Gen m´en destrenh quan de me tan leu s´oblida » ... (Guilhen Ramon de Gironella)

O AMOROSO PAJEM

Gentil me atormenta que facilmente olvido meu príncipe.

Em vez de segui-lo no jogo das armas alguém me desarma − o olhar da princesa.

Gentil me atormento que facilmente olvido princípios.

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por


Em vez de servir a dama, na corte, eu faço-lhe a corte − será descortês?

Tormento gentil ser pajem de dama que só nos reclama e nunca diz sim.

Gentil me atormenta que facilmente se olvida de mim Stella licenciou-se em línguas neolatinas pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da ex-Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ampliou seu vasto currículo por meio dos cursos de extensão desses idiomas realizados na Universidade do México, Cidade do México. Manivelando a máquina do tempo, descobre-se que aos 17 anos, iniciou, com sucesso, os primeiros passos pela poesia ao publicar Passos de areia (1940). E, subsequentemente, foi esparramando versos, também com êxito, pelos livros E assim se formou a nossa raça (1941) e A grande visão (1942). Não se pode esquecer de que entre 1943 e 1945 participou de um grupo de teatro amador responsável pela representação de Guizos e clarins, Muiriquitã e Festa da Vitória, peças encenadas tanto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro quanto no de São Paulo-SP. Sua peça Palmares, de 1945, teve sua primeira encenação, no Rio de Janeiro, a cargo do Teatro Experimental do Negro. Depois, vieram os romances, em que o gênero épico aponta e se explicita: Quando os cafezais florescem (1948), Estátua de sal (1961). Stella Leonardos é decana do PEN Clube do Brasil; ex-presidente da Academia Carioca de Letras; sempre Secretária Geral da União Brasileira de Escritores; membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do Rio de Janeiro; da Sociedade Eça de Queiroz; do International Writers and Artists Association e do Bluffton College de Ohio (EUA); do Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica e de outras tantas entidades literárias.

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Publicou mais de 200 livros, a par de ser detentora de um sem-número de galardões, tais como: * Prêmio “Olavo Bilac”, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1957, com Poesia em 3 tempos; * Prêmio IV Centenário de Fundação da Cidade do Rio de Janeiro, com o Romanceiro Estácio de Sá; * Prêmio “Paula Brito” de Poesia, da Biblioteca Estadual do Rio de Janeiro, em 1960, com Rio Cancioneiro; * Prêmio “Júlia Lopes de Almeida”, em 1961, com Estátua de sal, outorgado pela Academia Brasileira de Letras; * Prêmio Nacional de Poesia “Casimiro de Abreu. Instituto Nacional do Mate/Porta de Livraria, em 1964, com Geolírica; * Prêmio “Fernando Chinaglia”, em 1970, concedido pela União Brasileira de Escritores/RJ, com Cantares na ante-manhã; * Prêmio “Nacional de Poesia”, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Guanabara, em 1974, com Suíte fantástica; * Prêmio Instituto Nacional do Livro, em 1974, com Amanhecência; * Prêmio Nacional de Poesia “Casimiro de Abreu”, em 1975, outorgado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro, com Romançário; * Prêmio “Luísa Cláudio de Souza”, concedido pelo PEN Clube do Brasil, em 1976, também com Romançário; * Prêmio do III Concurso Nacional de Poesia, da Secretaria de Educação e Cultura/Caixa Econômica de Goiás, em 1977, com Romanceiro do Alejadinho; * Prêmio da Fundação Educacional de Brasília e Prêmio “Monteiro Lobato”, da Academia Brasileira de Letras, com Macaquezas do Macaco Malaquias, em 1979; * Prêmio “João Ribeiro” (Filologia, Etnografia e Folclore), com De líricas românicas e outras líricas, em 1980; * Prêmio “Roquete Pinto” (Etnografia e Filologia de nossos índios), com Memorial de Rondon, em 1986; * Prêmio “João Dornas Filho”, da Academia Mineira de Letras, e Láurea Nacional de Literatura Abdala do Nascimento / Casa do Poeta, com Saga do Planalto; * Livro do Ano / Láurea “Benedito Rodrigues Nascimento, do Governo do Estado de Goiás, por Chão e vento; * Prêmio “Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, em 1986, com Romanceiro da Abolição;

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* Prêmio “Batista i Roca”, em 2001, concedido pelo Institut de Projecció Exterior de la Cultura Catalana, de Barcelona, Espanha; * Prêmio “Centenário de Henriqueta Lisboa”, em 2001, pela Academia Mineira de Letras, com Mítica; E muitos mais. Galardoada pela Prefeitura do antigo Distrito Federal, em razão do conjunto de peças infantis, tais como: O caso dos pirilampinhos, A flautinha de Uirá, O aguapezinho encantado, O guinholzinho de seu Titerote, Jambinho do contra, A coelhinha confeteira, O carneirinho de Belém e O consertador de brinquedos. Por esta última recebeu, também, a premiação de “Melhor Autor de Teatro Infantil”, do I Festival Infantil do Estado da Guanabara. Igualmente não lhe faltam medalhas e outras distinções, as quais, de modo resumido, enumero a seguir: * Medalha “Estácio de Sá”, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, 1962; * Medalha Castro Alves (Centenário da Morte do Poeta), 1971; * Medalha do Mérito Cultural (União Brasileira de Escritores/RJ), 1971; * Troféu do IV Congresso de Crítica Literária (Campina Grande-PB), 1977; * Medalha Timbira do Mérito Cultural (Comenda do Estado do Maranhão), 1977; * Medalha Sousândrade do Mérito Universitário (UFMA), 1980; * Troféu Augusto dos Anjos (Campina Grande-PB), 1984; * Medalha Santos Dumont (Grau Ouro), Estado de Minas Gerais, 1985; * Medalha Cultura E. D´Almeida Vítor para O Intelectual do Ano concedida pela Revista Brasília, 1985; * Grande Medalha da Inconfidência (Méritos Excepcionais), Comenda do Estado de Minas Gerais, 1986; * Troféu Jaburu, do Conselho Estadual de Cultura de Goiás; * Título de Cidadã Honorária de São Luís-MA; * Título de Cidadã Honorária de Alcântara-MA; *

Destaque Nacional de Literatura (Academia Feminina Mineira de Letras),

1991; * Mérito Cultural (Faculdades Reunidas Castelo Branco, Rio de Janeiro), 1992;

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* Medalha “Machado de Assis”, concedida pela União Brasileira de Escritores de Nova York; * Medalha de Mérito Cultural concedida pelo Consulado da Grécia do Rio de Janeiro. (Convém lembrar que ancestrais de Stella foram patriotas gregos que lutaram pela independência da Grécia); * Detentora do título « Mulher do Ano » pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil / Setor Literatura 2003; * Escritor e crítico literário francês Jean-Paul Mestas apresentou no senado francês o ensaio “Stella Leonardos, grande voix de la poésie brésilienne”, em 2005; * Medaille de Vermeil da Société d´Encouregment au Progrès (France) e Medalha de Ouro da Académie des Arts, Sciences et Lettres (France). Stella Leonardos recebeu trinta e oito prêmios nacionais de literatura, nove dos quais concedidos pela Academia Brasileira de Letras. Preferi deixar por último a evocação de alguns de seus tesouros de brasilidade, que é a garimpagem tanto poético-lírica quanto épico-dramática da história, das lendas, dos mitos, enfim, dos episódios relacionados com a vida de filhos ilustres de um certo multifacetado Brasil − os brasis, ou melhor, os outros brasões de Stella, os quais ela permite, com a simplicidade e a modéstia que estruturam sua irrepetível figura de artista e de ser humano, serem chamados apenas de Projeto Brasil, sem dúvida alguma, uma obra literária adimensional. Tal Projeto propicia ao leitor brasileiro um conhecimento acurado e, ao mesmo tempo, lúdico de seu país. Portanto, aleatoriamente, sem me importar com mapas nem minuciar a gigantesca geografia deste país, paro com Stella em São Luís do Maranhão [Cancioneiro de São Luís, 1981], para especular o “Boi em São Luís”: Se há muito boi no Brasil? E zubumba bonito no sertão. Mas bumba-meu-boi bonito É mesmo no Maranhão

Em seguida, corro para conhecer Pernambuco [Mural pernambucano, 1986]: Aqui me vês, Jaboatão. Teu nome plantado em mim, Ya-poatão de antigos índios.

E teu nome me acompanha, teu nome de seiva e rama,

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tronco reto, árvores dando bons mastros para embarcação.

Resolvo dar uma passada em Goiás [Feitio de Goiás, 1996] para ouvir o violeiro errante cantando um solau (expressão que define uma composição de gênero narrativo bem lamentosa e bastante lírica): − Eu cheguei na tua casa. Dia estava escurecendo. Apanhei a rosa branca Molhadinha de sereno.

Amanhã eu vou-me embora. Você fica suspirando. Eu quero que ninguém saiba Que eu ando te namorando.

− Já fui ouro, já fui prata, Já fui joia de teu dedo. Hoje sou tua caixinha De guardar todo segredo.

Ainda me detenho em Goiás, mais precisamente no Planalto, para recordar gente ilustre, como Bernardo Sayão e Juscelino Kubitschek, sobretudo este último, a partir de uma poça cristalina [Saga do Planalto, 2002]: Andante vai o menino, o menino Juscelino. De uma poça cristalina salta um peixe alegrovivo. Vivamente, presto canta:

“Como pode o peixe vivo

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viver fora d´água fria? Como pode o peixe vivo viver fora d´água fria?”

Pensa o menino e se encanta: − Este peixe é de magia? E o peixe, magocantante:

“Como poderei viver, Como poderei viver Sem a tua, sem a tua, Sem a tua companhia?”

Subitamente, ouço a batida forte e onomatopaica de tambores [Passeio no Tocantins, “Tambores do Tocantins”, 2008]:

Há que vir, que ver e ouvir.

Nas crianças, do Tocantins tom tocante e sintonia: − tom tom tom, tom tocantim. Tocantins: me ensina os tons!

Decido aprender um pouco de etimologia [Rapsódia sergipana, “Esse nome de Sergipe”, 1995]: Foi meu avô quem me disse − Esse nome de Sergipe vem de “rio de siri” E um grande mestre em tupi, traduzindo Aracaju

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diz que é “cajueiro de arara”.

Piso em território baiano e rememoro [Memorial da Casa da Torre, “In Memoriam”, 2010]:

No barro desses tijolos por mãos índias acalcado quanta voz índia não dorme?

Na Alvenaria da pedra por mãos afras carregada quanta voz negra não pesa?

Na torre desse Castelo por brancos rostos vigiada quanta saudade não se ergue?

Um rapsodo do Piauí conta-me uma triste história [Piauí rapsodo, “Das inseparáveis zabelês”, 1996] : Era uma índia bonita, filha do grande cacique dos índios amanajós.

O jovem índio Metara da tribo dos pimenteiras, amava-a mais do que a lua. E ela, a índia quem amava? Metara. Mais do que o sol.

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Ai a sina! Quis, soturna, que Mandahú, outro índio, também amasse a bonita jovem filha do cacique dos índios amanajós.

Enlouquecido de ciúme, seguido de alguns guerreiros, a fúria de Mandahú feriu Metara, traiçoeira.

Lutaram. De lado a lado rolou sangue pelo pó. Morreram todos: Metara, Mandahú, índia bonita, guerreiros de luta inglória.

Mas como há Deus grande e justo que lá do alto tudo vê. fez de Metara e da amada um par de amorosos pássaros meigo par de zabelês.

Volto ao Nordeste e aceito o que me apresenta o Memorial Nos tambores Guararapes, com sua “Oferenda”, 2002:

A vós, bravos, combatentes dos Guararapes renhidos. A Vós dos idos seiscentos. Vós das almadas vitórias

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latejando, semprevivas no coração da memória.

Em Estado de poesia (Prêmio Rio de Literatura, 1986 − Poesia), Stella Leonardos convida o leitor a caminhar com ela por seu Estado natal, que é o Rio de Janeiro, e pelos respectivos entornos que lhe são próximos ou distantes. In: Rio antigo. “Folião Pró-Memória”: Ri de um jeito de arlequim. Mas nos olhos é pierrô dos nostálgicos outonos poeirando o cabelo cinza:

− Ah os carnavais de outros tempos! Meu avô carnavalesco chegou a assistir entrudo, aquele combate bárbaro de baldes d´água e farinha. e aqueles limões de cheiro que atirados − plaf! − com gosto ensopavam de perfume incauto a torto e a direito. Se nem Dom Pedro I, que já era Imperador, ia escapando, imagine!

De repente, retorno ao Nordeste para ouvir de perto o Romance da Lua Cris, XI, s/d, lá da Paraíba: − De onde vens, poeta? − Das grades. − Que fizeste? − Um desagravo.

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Gritei contra ofensa grave: alguém que edita meus poemas, que vende à larga o que escrevo sem botar meu nome, ao menos, ou me dar alguma parte. Quando se vive em pobreza nunca se encontra advogado: não pude provar a fraude. E paguei com minhas penas o meu canto protestado.

− Pois não é o primeiro caso. Acredita, companheiro, ao cego também roubaram já que é cego duas vezes: confia em conversa fiada. Em seguida, dirijo-me mais para o Sul. Preciso ouvir Paraná e Minas Gerais porque Stella recorda a poeta Júlia Maria da Costa e o Aleijadinho que estão, respectivamente, em Curitiba memorada, 1996, e Romanceiro do Aleijadinho, 1984: “Júlia Maria da Costa, distinta poetisa, na de Paranaguá, que lhe honrou o nome dando-o a uma de suas ruas.” (Francisco Negrão)

PELA RUA DE JÚLIA

“Eu sou a flor que desmaia Ao sopro do vento sul! Preciso de lume ardente Que brilhe no céu azul.”

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Caminho de Curitiba, parado em Paranaguá, julgo ouvir a voz de Júlia suspirando inda por lá.

Ai essa prima distante que jamais conhecerei! Silhueta na ventana. Me acenando na distância. Dama de ares camafeu.

“Eu sou a flor que desmaia Ao sopro do vento sul! A tarde me traz saudades Nas ondas do mar azul.”

Caminho de Curitiba, no adeus a Paranaguá, vem comigo a voz de Júlia pulsante de Paraná.

PRECE DO ALEIJADINHO “(...) Como doente, sentiu na própria carne horripilância de uma deformação paulatina implacável e as dores da mutilação que o cepou aos poucos, chegando a arrancar-lhe os dedos da mão. ”(Benjamim de A.Carvalho

Com dor ou sem dor

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ficarei de pé. Mesmo que os joelhos dobrem. Mesmo perdendo os dedos.

Com dor ou sem dor usarei as mãos. Mesmo que as mãos se firam. Mesmo perdendo os dedos.

Com dor ou sem dor subirei de joelhos e mãos postas, meu Deus. Até meu próprio fim.

Mas dai-me vida com dor ou sem dor a fim de que eu termine minha obra. E ela fique de pé. E não falei de outros “talentos” de Stella: bondade, amizade, compaixão, enfim, humanidade, afora − mesmo sem ter quaisquer vínculos com o Vaticano − sua excepcional capacidade de “canonizar” amigos carentes e não carentes. E sempre movida por sentimentos nobres e traços de personalidade como os supracitados. A respeito da trajetória intelectual de Stella, todo o mundo sabe como foi traçada e palmilhada, razão por que trouxe parcos e repetitivos dados sobre nossa querida homenageada. Mais prudente seria convocar a ajuda dos poetas Giuseppe Ungaretti (18881970) e Mauro Mota (1911-1984) que, respectivamente, têm palavras definidoras para a tarefa da qual se incumbiu Stella Leonardos: “Poetar é converter a memória em sonhos e provar com alguma luz feliz a estrada do desconhecido” e “O difícil é escrever fácil”. Foi isso que esta nossa amiga fez e continua fazendo ao longo da vida. Portanto, feliz aniversário e o eterno parabéns meus e de todos que a conhecem e estimam.

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HOMENAGEM À MARITA VINELLI Cláudio Aguiar

Cerca de vinte entidades culturais e literárias do Rio de Janeiro, entre as quais se destacam o PEN Clube do Brasil, Academia Carioca de Letras, Academia Luso-Brasileira de Letras, União Brasileira de Escritores, Secção Rio de Janeiro e Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica, por seus rspectivos presidents, compareceram ao Auditório Pedro CAlmon, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 26 de abril, para homenagearem a poetisa Maria Vinelli, por ocasião da passage dos seus 90 anos de idade. Compareceram, ainda, várias personalidades das letras e da cultura para saudarem, mediante breves intervenções, a homenageada. A coordenação da mesa coube ao escritor Cláudio Aguiar, que, na condição de Presidente do PEN Clube do Brasil, ao abrir a reunião, proferiu as seguintes palavras: “Foi com enorme satisfação que recebi o convite de Maria Vinelli para

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coordenar esta mesa sobre a confraternização de seus 90 anos. Satisfação e sobretudo honra para mim, porque Marita é uma dessas pessoas talhadas para a convivência, para viver a alegria do encontro em torno da poesia e da cultura. A presença de tantos amigos de Marita, aqui, neste momento, é a prova cabal que melhor traduz essa forma de ser da homenageada, ou seja, uma pessoa dotada da capacidade de fazer amigos, de conservá-los e de mantê-los sob o sinete da lealdade, do carinho, da camaradagem e do companheirismo. Hoje, além de abraçarmos e felicitarmos Marita Vinelli por ocasião da passagem de suas nove décadas de frutífera vida, também vamos dizer o quanto a estimamos e desejamos que ela continue a trilhar o mesmo caminho percorrido até agora. Caminhada reveladora de uma poetisa amiga de seus amigos, possuída pelo afã de conviver sob o clima da sincera amizade provada ao longo de sua atuação. Seu constante e profícuo trabalho voluntário em favor de tantas associações literárias e culturais a que ela pertence, também deve ser considerado como um diferencial positivo no âmbito de suas atividades. Por isso, ouviremos, a seguir, pela voz de seus repsententantes, os testemunhos sobre essa forma de ser de Marita Vinelli. Atitude que reflete, antes de mais nada, aquele sentimento de pertença, que deveria pairar sobre o ânimo de toda pessoa filiada a uma academia ou associação de natureza literária ou cultural. Essas entidades, vale insistir, dependem desse tipo de consciência associativa, de respeito ao outro, de manifesto espírito de colaboração desinteressada, construtiva e moralmente dignificante. A vida e a trajetória literária e cultural de Marita Vinelli representam esse tipo exemplar de comportamento. Por falar em trajetória, creio ser chegado o momento de apresentar aqui um breve resumo de seu valioso currículo. Marita Vinelli é conferencista, biógrafa, oradora, poliglota, letrista, escritora e poetisa. Durante vários anos foi Diretora Cultura da Federação das Academias de Letras do Brasil e até 2012 Diretora Cultural da Academia Luso-Brasileira de Letras. Atualmente ocupa este cargo na Sociedade Eça de Queiroz. É membro titular da Academia Carioca de Letras, do PEN Clube do Brasil, da Academia Luso-Brasileira de Letras e de outras entidades culturais.

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Tem participado de congressos, antologias, revistas e jornais no Brasil e no Exterior. São muitas suas premiações, medalhas e diplomas, entre os quais destaco o Prêmio Medalha de Ouro em Poesia em concurso de âmbito nacional realizado em 1996. Em 2009 foi eleita uma das 10 mulheres mais importantes no Brasil na área da cultura pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil. Publicou as seguintes obras: Discursos de posse; Ensaio: Encontro marcado com Eça de Queiroz (ensaio); Livros de poesia: No vale verde do meu sonho; Vou cantar até morrer e Poemas azuis (no prelo). Vale ressaltar que Marita tem uma grande quantidade de textos inéditos de biografias, ensaios e poemas. Em breve nos brindará com uma ampla reunião em livros de seus poemas. Senhoras e senhores: Marita Vinelli cultiva uma poesia de lavra lírica. Ainda muito jovem, ao publicar o seu primeiro livro - No vale verde do meu sonho -, notou a crítica haver em sua poesia um sopro forte do eu lírico, no qual afloram os temas da vida, do amor, da desilusão, da saudade, da tristeza, do sonho e de outras verberações quiméricas. No entanto, neste mesmo livro de tom marcadamente lírico, aparece o poema “Cantos pátrios”, no qual Marita Vinelli deixa transbordar em seus versos um sentimento épico de profunda coerência. Nesse longo poema épico, Marita, em verdade, não apenas acena para um possível patriotismo exacerbado, mas, sobretudo, por causa da histórica participação do Brasil no conflito bélico da Segunda Guerra Mundial, canta o destemor dos chamados “pracinhas” brasileiros, simbolizado pela presença deles no teatro de Guerra, lembrando que são homens corajosos oriundos dos mais diferentes rincões do Brasil, autênticos caboclos, boiadeiros, indígenas, jangadeiros, camponeses etc. No Canto III, Marita afirma: “Nas álgidas planicies hibernais, D’Europa desgraçada e mal ferida, Lutando por humanos ideais Heróicos empenharam muitas vidas.”

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Na estreia de Marita Vinelli um dado importante merece registro: a surpreendente recepção da obra. Na grande imprensa brasileira, jornais e revistas como O Globo, A Notícia, A Noite, Ilustração Brasileira, Revista da Semana, Jornal do Brasil, Correio da Noite, Jornal do Commercio, entre outros, abriram espaço para a crítica de No vale verde do meu sonho. Além disso, os principais críticos literários da época manifestaram-se sobre a poesia de Marita Vinelli, a exemplo de Carlos Maul, João Luso, Dyla Josetti, Joaquim Thomaz, Aloysio de Castro, Levi Carneiro, Antonio Austreségilo, Castilhos Goicochea, Carlos da Silva Araújo, Meira Pena, João Antonio de Bianchi, Ministro Barros Barreto, Hélio Chaves, Aquino Furtado, Tancredo de Morais, Cláudio de Souza e outros. Por falar em Cláudio de Souza, Acadêmico que por duas vezes presidiu a Academia Brasileira de Letras e fundador do PEN Clube do Brasil, em 1936, gostaria de registrar um fato curioso: Cláudio de Souza foi um dos que leram e colocarem em destaque a poesia da jovem Marita Vinelli. Disse Cláudio de Souza: “Marita, […] deveria mandar-lhe flores e não palavras para esse branco noivado. Onde as encontraria, porém, com essa palpitação de alma que da terra dissimulada da vida ainda não recebeu os espinhos? Prefiro, pois, enviar-lhe apenas meus votos para que continue e obtenha novos louros. Não desanime se lhe apontarem imperfeições, pois entre o berço dos primeiros versos e a cátedra das preleções, que nunca são infalíveis, medeia um espaço imenso. A poesia nasce, quase sempre, da juventude, mas também quase sempre fenece antes de desabrochar plenamente, crestada pelas realidades agressisvas. Livre sua poesia dessas agressões cercando-a com suas lindas mãos, como uma chama delicada provinda de seu coração. Desejo que, fazendo-o, o vale verde de seu sonho se cubra de uma florada magnífica de semprevivas canções”. (Carta de 23/9/1948). Senhoras e senhores, Cláudio de Souza, como um homem sensível a todas manifestações literárias e artísiticas, não se limitou a mandar uma carta de louvor a Marita Vinelli. Imediatamente a admitiu como sócia do PEN Clube do Brasil, recebendo-a e saudando-a em memorável sessão do Centro brasileiro. Assim, creio que Marita Vinelli foi a mais nova associada a entrar no PEN Clube do Brasil e, por via de consequência, hoje, é a mais antiga associada, ou, noutras palavras, a ilustre Decana do corpo social desse Clube Literário.

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Por todos esses motivos de grande significação para a vida de Marita Vinelli, quero dizer que, se fosse possível resumir a emoção e a alegria deste momento de confraternização, caberia referir, como o faço agora, a imagem de um poeta que disse ser “a amizade o vinho da vida”. É exatamente por saber disso que Marita Vinelli cultuou e cultua a sadia convivência e, por causa disso, estamos aqui para abraçá-la e felicitá-la.”

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TEATRO

MONÓLOGO PARA UM ATOR (ou A DESCOBERTA DO OUTRO) Maria Helena Kühner “A Descoberta do Outro” nasceu de um fato real: foi escrito para o Ator Jorge Cherques, que, 15 dias após a morte de sua esposa, me comoveu ao pedir que escrevesse para ele um monólogo, pois, deprimido como estava, não conseguia trabalhar em grupo, ficar ouvindo conversas e brincadeiras dos outros, etc. Ficou feliz ao receber o que escrevi. Mas não chegou a encená-lo, como pretendia: morreu dois meses depois. E o monólogo viria a ser estreiado em Brasília, pelo ator Ivan Lima, a quem pedimos que, na abertura da peça e no programa, lhe fizesse uma homenagem, uma homenagem ao Ator. Porque é disso que o monólogo trata: do jogo do ator, sua luta, desde seu contato primeiro, ainda impressentido e exterior, com um personagem, observandolhe os gestos, o corpo, a voz, a maneira de falar, de se vestir (que tudo isso fala de alguém, de quem é esse alguém), deixando que ele se torne uma presença. A busca do ator, com seus vetores duplos: entrega/ distância, integração/ observação, viver/ analisar, experimentar/ refletir, elaborando, mergulhando fundo no personagem e

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voltando à tona, parando para rever o que a intuição o leva a apanhar em seu mergulho, e a razão a seguir lhe mostra em plena luz, para apreender sob outro ponto de vista. Desse jogo, revivido e repensado, a atitude que vai ser tomada em cena pelo Ator – atitude que faz rever/ repensar o próprio sentido do teatro, e, com ele, da vida. MONÓLOGO PARA UM ATOR O Ator entra, pára no meio da cena, percorre com o olhar a platéia, devagar, e inicia: Boa noite. Antes de mais nada, quero agradecer sua presença, hoje, aqui. (Pausa) Alguém poderá me dizer o que espera ver e ouvir? Por que escolheram estar aqui e não em outro lugar? Escolher, pra mim, sempre foi um problema. Sempre. Porque escolher, decidir, é também discriminar. Ficar com uma só quando o meu impulso sempre foi o de ficar com todas: ora uma me atrai, ora outra, cada qual por uma razão diferente. E ninguém entende porque me é tão difícil a escolha, e porque a exclusão, toda e qualquer exclusão, me é sempre dolorosa. A mesma coisa em todos os lugares: nas livrarias ou nas bibliotecas, cada livro escolhido traz com sua escolha a lembrança de todos os que ficam nas estantes, à espera de minha necessidade de conhecer todas as interrogações, todas as buscas, todas as respostas, de participar de todas as descobertas. Tão boa, a sensação da descoberta e do encontro, não acham? Então por que a vida assim, pingada em contagotas, uma a uma, se é tanta a nossa sede, a sede de mergulhar fundo, de mergulhar o rosto, o corpo todo, sentir a vida entrando por todos os poros? Acho que foi isso que me levou ao teatro: poder juntar palavra, gesto, ação,

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emoção, pensamento, e a situação em que tudo acontece, e a cena em que tudo isso é mostrado a alguém, e se cria com esse alguém outro jogo, olho no olho, troca que afaga e acende tudo que há de vivo em nosso interior. Há tanto em tudo! O ato de comer: uma coisa tão simples. Mas um ato que põe em giro toda a roda, que põe em movimento todo um processo misterioso e incessante... (para alguém em frente) Você já tentou sentir o que acontece quando você mastiga um... um pedaço de pão? Já se pôs, alguma vez, bem atento, a mastigar aquele pedaço de pão, triturando-o nos dentes, sentindo cada pedacinho se dissolver, tornado menor, cada vez menor, a língua trabalhando para arrancar seu sabor e colocar na esteira das sensações para levá-lo ao resto do organismo, e os dentes, engrenagem movida de outro ponto, descendo, subindo, cortando, e a língua, operária inquieta e ágil, selecionando, encaminhando, destruindo, lubrificando essa engrenagem com sua secreção, retirando o gosto, e empurrando o resto adiante... Sem saber que nesse gosto e nesse resto está a terra que nutriu uma semente, e o sol que amarelou o trigo, e a água de todas as nuvens feitas chuva sobre ele, e o sangue do lavrador colhendo dia a dia um pedaço de sua vida e se triturando, grão a grão, para alimento dos outros. O ato de comer, tão simples!, se torna surpreendente quando é assistido por todo o nosso ser. Num ato só, tantos, tanta coisa! Mas também tantas que aí não estão, criando faltas, e a vontade de algo mais. De mais. Mais! Vocês devem estar se perguntando: ... a que vem tudo isso? A maior parte de vocês talvez tenha vindo buscar apenas... um momento de diversão. E eu saio jogando em cima de vocês essas minhas reflexões... Ora, eu não sou filósofo nem nada. Onde quero chegar? É que, para mim, tudo começou também com uma escolha: a escolha do personagem de uma peça, a peça que vocês vieram ver. Como eu acabei de contar a

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vocês, escolher para mim é sempre difícil. Foi o que eu disse ao Diretor: eu sei que é preciso escolher. Mas, para mim, todas as personagens são importantes. Porque, para mim, não há personagens secundárias ou principais, entendem? Todas são importantes. O criado que entra com a bandeja de café: ele se mantém em silêncio, não diz nada. E é por isso que é importante: ninguém o vê porque ele não diz nada. Vocês nunca imaginaram que agonia deve dar a alguém sentir que está presente sem ser uma presença? Se o deixassem falar, como ele falaria! Falar o quê? Ora, falar. Simplesmente falar! Qualquer coisa. Dizer seu nome: as pessoas e as coisas só passam a existir quando recebem um nome... embora haja tanta coisa sem nome ou até indizível andando por dentro da gente. (Tom se quebra um pouco) ... há tanta coisa não-dita andando por dentro da gente... (Pausa. Refaz-se e projeta para fora novamente) Não vêem o que acontece com essas mestras do silêncio e da espera, as mulheres? Elas sabem. Elas sempre souberam. Taí, sabe que eu gostaria de fazer uma personagem feminina? Gostaria de ser Ariadne, a doadora, a que tira de si o próprio fio e o estende a Teseu para que mate o Minotauro devorador e encontre a saída do labirinto. Do labirinto em que estamos todos vivendo. (Outro tom) Do labirinto em que eu me hoje sinto. (Pausa. Para outro espectador) Por que esta surpresa cheia de malícia? O fato de me verem assim tão masculino, tão seguro de mim mesmo, parecendo tão autosuficiente, não impede que queira me completar de novo, dar voz a meu lado feminino, a meu outro polo, minha outra metade... (Tom se quebra novamente) Minha outra metade. Que me faz tanta falta. Mais, muito mais, do que eu consigo dizer. Queria ouvir de novo sua voz, a voz de minha nunca esquecida anima, de minha alma silenciosa, silenciada. Cansei de ter que exibir um masculino equilíbrio e controle, cansei de estar ao leme, olhos secos pelo vento e o sal, na inquietação de sondar horizontes, evitar escolhos, medir a

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profundidade das águas e o calado do barco. Queria mergulhar naquela água profunda, e dela, e com ela, ver e fazer ver o céu, o sol, as ondas, sentir o balanço do mar, a paisagem, a cor dos astros mais distantes, e trazer de novo as cores de seu arcoíris para a minha vida. Queria... (Detém-se súbito. Olha em torno. Tom muda) Estou vendo ironia em alguns olhos. A mesma ironia que vi no rosto do Diretor da peça quando tive com ele a discussão que me levou ao plano que vou por em prática hoje, aqui, agora. Ouvindo isso – plano, que plano?... - ele já deve estar ficando em pânico lá nos bastidores. Mas não vai conseguir me impedir, porque pensei em todos os detalhes. Ou, quem sabe, talvez ele fique curioso de saber que plano é esse... que loucura eu posso estar inventando... (Para dentro) Loucura...? Loucura por que, Sr. Diretor? Loucura é quando as coisas crescem e morrem dentro de alguém sem conseguirem ser expressas, sem chegar aos outros no gesto, na fala, nos atos, loucura é quando alguém fica fechado em si mesmo, sozinho e trancado com seus sonhos, suas esperanças, seus fantasmas... Seus fantasmas, sombras sem voz e sem fala... (Para alguém próximo) Você já reparou no olhar de um louco? No que há de tristeza, ansiedade e sofrimento no olhar de um louco? Ah, está achando que isso é elucubração? Está bem, está bem, vou parar, mas não é elucubração coisa nenhuma, o que há é que ninguém gosta de pensar nessas coisas. Mas, tá, vou parar, parei, pronto! Para o espetáculo de hoje foi o Diretor que escolheu meu personagem. A escolha, como imaginam, foi por idade, tipo físico e tal... O que, pra mim, já é uma bobagem: Goethe, aos 80 anos, tinha 20, e amava Ulrica como um adolescente ama pela primeira vez. Mas seja, idade, tipo físico, já que o tranquiliza achar que há nisso

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um critério de escolha. Escolhido o personagem, recomeçou minha agonia. A luta e o jogo do ator. Primeiro, algo ainda impressentido e exterior: o contato, apenas, com o personagem. Conversarmos sobre coisas triviais, observar-lhe os gestos, o corpo, a voz, a maneira de falar, de se vestir – que tudo isso fala de alguém, de quem é esse alguém... Deixar que ele se torne uma presença. É tão bom quando é um personagem que nos fala aos sentimentos e à mente! Vê-lo passear à nossa frente em nossas horas de sono e de sonho, presença tomando-se familiar, querida, necessária. Como quando um amor começa, impressentido, maré, rio na enchente inundando devagar as margens. A espera da chegada, a alegria ao anúncio de sua voz, de sua figura surgindo da sombra, nos despertando por inteiro, próximo e diferente, levando-nos a ver coisas que ainda não tínhamos visto. Que descobrir o mundo pelos olhos do outro é como olhar em um caleidoscópio, é ver, a cada movimento, novas imagens, um mundo também outro, diferente – embora os cristais e cores sejam os mesmos para todas as formas humanas. Mas um personagem também pode ser algo terrível, presença importuna e indesejada, luz aguda doendo nos olhos – como esse personagem que me foi dado. Minha antipatia por ele foi total, desde que comecei a vê-lo mais de perto. Criticá-lo, fazer uma atuação crítica? Nem pensar! Ele é o protagonista, o herói da história, e é assim que o Diretor quer apresentá-lo. Afinal, é um personagem tão querido para ele. Identificação? Talvez. Não podia negar que fosse inteligente. Mas, quanto mais o via e ouvia, mais ele me irritava. Possessivo, dominador, autoritário, narcisista, certo de que suas idéias representam o consenso universal. Irritava-me a maneira como ele tratava os outros, sua falta de afeto, seu desprezo pelas paixões e emoções, seu ar de superioridade... Será que ele pensava mesmo que era melhor que todos os que vieram antes, ou

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superior a todo mundo? Superior em quê?! Será que ele não entende que o uni-verso não é a versão única de todas as coisas, e que o que vocês, espectadores, buscam é a di-versão, a versão outra, não vista, e a ser aqui descoberta? Essa interrogação me faz retomar a busca. A busca... que, agora vejo, talvez fosse já o primeiro passo em direção ao meu plano. A busca que alicerça meu trabalho: um ângulo, uma pista, os traços mais evidentes, em cada relação, em cada situação, em cada diálogo, a cada novo encontro. O jogo da busca do ator, com seus vetores duplos: entrega/distância, integração/observação, viver/analisar, experimentar/ refletir, elaborando, mergulhando fundo no personagem e voltando à tona, parando para rever o que a intuição me leva a apanhar em meu mergulho, e o que a minha razão a seguir me exibe em plena luz, para apreender sob outro ponto de vista. Mas, no caso, minha busca e o plano que dela resultou vão dar um susto no Diretor, que recomendou: Esse personagem deve ter projeção, destaque e força na cena, pois, ele é o protótipo do homem bem sucedido na sociedade atual!”. Mas para mim, à medida que convivemos, comecei a vê-lo tal qual é, já tão diferente de como se apresenta: tudo nele é produção, aparência, simulacro, imagem visando a criar nos outros o efeito desejado. Desde o toque mais simples – o vestir-se pretensamente descuidado, pois fica bem parecer distante desta sociedade mergulhada no consumo". O discurso: tudo nele é só discurso, a palavra tornada instrumento, servindo apenas a essa produção de imagem, em uma habilidosa manipulação de razões e desrazões, de frases de efeito, de racionalizações – evidentemente quase sempre opostas a sua prática. Falando em igualdade e praticando a diferença. Usando as diferenças para estabelecer hierarquias, pretensas superioridades e inferioridades. Dizendo-se preocupado com a sociedade, o mundo, os princípios e valores éticos, mas na realidade unindo-se ou servindo apenas ao pequeno grupo que concentra em suas

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mãos o poder e o dinheiro. O dinheiro... A Bolsa de Valores é sua igreja, seu templo. Afinal, como ele diz (tom) “o dinheiro é o eixo mesmo da sociedade atual. E num mundo globalizado a Bolsa de Valores é uma forma de integração universal”. “Integração”?! Bah! “Integrar” é tornar inteiro, completo, e o que vemos é um mundo cada vez mais dividido e desigual! Mas, para ele, a economia é o objeto único de sua reza diária, reza na qual as palavras (tom) lucro, mercado, ordem, produtividade, controle, comércio, tecnologia, sublinhadas com números e estatísticas, alardeiam seguidamente um fantasioso “sucesso”. Um “sucesso” enfeitado ou mistificado com palavras esvaziadas, tornadas chavões já sem sentido (tom) – democracia, liberdade, modernidade, progresso, desenvolvimento, crescimento... Servindo a que? Servindo a quem? Sobretudo isso: servindo a quantos e a quem? Diante dessas perguntas incômodas... ele mente. Mente, ou cinicamente desmente o que ele mesmo antes afirmara. Ou omite informações que o denunciem. Mente, sabendo que mente. Mentira, hipocrisia, cinismo que nós todos já percebemos. E que só levam ao desencanto, à apatia, à indiferença, a não acreditar em mais nada. Meu espanto chegou ao auge quando ouvi o Diretor dizer: “Mesmo tendo para você aspectos criticáveis, ele acaba sempre se dando bem. Não se esqueça: ele é um vencedor no jogo do poder atual.” Mas, eu confesso que já estou sem paciência para esse tipo de gente. Cansado dessa atitude, tão atual, de tantos, de criar espelhos para a própria imagem, acabando por esquecer que ela é apenas um simulacro, imagem feita para os outros e passando a contemplá-la, embevecido, já sem noção de seu próprio tamanho e seu rosto real. Foi quando Dioniso, o deus dos mistérios e do teatro, começou a sussurrar ao meu ouvido: é isso que você quer? Apenas brincar, distrair, tornar naturais, ou banais,

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atitudes que você condena e gostaria de denunciar? Como brincar com isso, como rir e fazer rir de algo tão sério? Brincar, apenas, com algo que afeta a vida de todos nós? É isso o que você espera do teatro? É isso que você quer dizer? É isso que você quer fazer ver? Lembrei-me de quando fui Fausto. Fausto, um homem que também vendeu sua alma ao diabo para ter riqueza, saber e um poder total, absolutos. Mas que, levado por Mefistófeles a percorrer os reinos da Natureza e da História foi mudando sua visão, e aprofundando uma nova consciência. Você, sim, era um personagem autêntico, Fausto. O que eu ouvi de você, e disse a tantos, eu não mais esqueci. Você me fez ver que, à medida que o mundo cresceu, tornou-se também mais confuso. Que cada passo no caminho do conhecimento abriu um novo abismo, a abertura possível seguidamente adiada. Que o fausto que nos cerca – e lhe deu nome - o acúmulo de riquezas, de saber e de poder a nada nos levaram. E a grande represa que você viu construir e supôs que seria capaz de transformar as nações, hoje sabemos, era na realidade a sua – ou a nossa - própria sepultura. “Meu império é uma ilusão”, você disse. “Mas se as coisas estão assim, não ficarão assim por muito tempo, pois tudo está em movimento”. Tudo isso foi reforçando o meu plano, sedimentando minha decisão, me levando a buscar pôr em ação o que eu via. Que ser ator não é só desenhar, esculpir, dar corpo e vida a um ser humano, é colocá-lo em ação na cena do mundo. A cena do mundo... Mas que mundo temos hoje diante dos olhos? Diante de nós e em torno de nós, tudo está em movimento. Neste império em crise, a maioria dos bolsos está ficando vazia, o caos reina por todos os lados, a corrupção é geral. O ouro hoje é papel, sem a alquimia tão sonhada que lhe dava suas virtudes. Insegurança, Violência, Miséria, Ansiedade, Insolvência, Privação, esses sombrios vultos que tanto ameaçam,

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só não entram na mansão de um pequeno número de ricos. E o Desejo, nosso desejo mais fundo, onde está? Onde está nossa Paixão, nosso Sonho? Nossa sede de mais? Perderam-se nas trevas de nossa alma enlouquecida, na sombra que mascara nossa falta e impede a luz, a alegria, a união. A morte é um tigre que espreita no mato: estamos criando filhos para a morte. Porém, em torno de nós, o medo e a esperança ainda alternam suas falas. É com muita emoção, com muita raiva e impaciência, que vejo tudo isso. Mas também com muita ternura. Porque, apesar de tudo, eu creio. Eu creio na vida. Creio no ser humano, apesar de muitos seres que vejo. Creio que a morte não pode devorar o homem que sacudiu seu pó. Ela nada pode contra nossa eternidade, feita de Lua e do mistério portador de seu sopro de vida, feita do Sol que esse sopro ilumina e redime, feita do infinito em que Sol e Lua se prolongam e a invenção de horizontes abre um mar além da história, em que o ser humano, hoje atônito e perdido, poderá vir a encontrar novo pouso e morada, uma vida nova. Todo fim é fogo e cinza, e incandescência de uma nova aurora. Uma nova aurora: se começarmos de novo, do princípio. Retornando às nascentes da vida, à região “de onde ascende à superfície da Terra tudo que tem energia e vida.” A tudo que nos renova e nos faz mais inteiros. Por fim, um pequeno passo me levou da decisão à ação. Ontem à noite, no ensaio geral, eu fazia o papel do personagem escolhido pela Direção e apresentado tal como fora por ele orientado. Ao terminar o ensaio, alguém veio falar comigo. Eu me sentia cansado. Muito cansado. Em dado momento, não sei mais como nem porque, me vi dizendo aquilo que não sai de minha mente, aquilo que ora me ocupa por inteiro: Perdi minha mulher... Há 20 dias... 50 anos juntos... e perdi minha mulher... minha metade... minha anima....Durante o dia me atordoo com o movimento em torno. Mas

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as noites... as minhas noites são terríveis... Quando eu disse isso, a mulher que estava diante de mim emudeceu. Ela sentiu que nada havia a dizer. Que há dores que não cabem em palavras. Embora em palavras se tente dizer a vida e a morte. Mas ali, naquele momento, não era mais o ator que falava: era eu. Isso me fez pensar. E decidir fazer o que agora faço, ao falar com vocês, espectadores, como ora falo: hoje, aqui, agora, não quero ser personagem algum. Se teatro é lugar de ver, de deixar caírem máscaras ou aparências e fazer ver rostos humanos, é o meu rosto, o meu próprio rosto que vocês hoje estão vendo aqui, quem sabe pela primeira vez. Eu decidi trazer para vocês... eu mesmo, o que eu sou, o que eu penso, o que sinto. E também não é um personagem, sou eu que agora lhes pergunto: vocês já viram, de perto, um rosto humano? Já viram seu próprio rosto? E o rosto de quem vive a seu lado? Ou a vida humana já está tão banalizada, minimizada, tão sem valor, que precisamos resgatar a perdida memória do que seja um rosto humano? Alguém, até para desviar qualquer emoção, poderá me olhar e dizer: “Ah, ele é um ator, isso deve ser teatro, representação.” Engana-se. No ritual da missa católica há um momento em que o celebrante diz: “Tomai e comei, isto é meu corpo. Tomai e bebei, isto é meu sangue.” É o momento que precede a comunhão. Teatro é isso: teatro é comunhão, é corpo e sangue entregues, partilhados. É assim a comunhão teatral: olhos nos olhos, rosto diante de rostos, um ator na entrega de seu corpo e seu sangue, de seu ser inteiro, para fazer ver, por inteiro, sem máscaras ou disfarces, um outro ser humano. Um ser humano outro, semelhante e diferente. Tão semelhante e tão diferente neste mundo de hoje, globalizado, diversificado, plural. Se vocês hoje saírem daqui querendo ver, ver o rosto do outro com quem falam, ver quem está a sua

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frente, ver quem está a seu lado, ver, VER O OUTRO, o próximo e o distante, terei cumprido o que é meu papel primeiro e maior: fazer ver o ser humano. Para isso nasci, para isso vivi, para isso trabalhei minha vida inteira, para isso estou aqui, mais uma vez. E nossa comunhão teatral só é possível porque eu, ator, tal como vocês, sou apenas e simplesmente... um ser humano. Obrigado por sua atenção e resposta.

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COLABORADORES Cláudio Aguiar Francesca Cricelli Sebastiano Grasso Giuseppe Lupo Cyro de Mattos Marcia Agrau Tanussi Cardoso Tereza Cristina Meireles de Oliveira Francisco Caruso Jorge Sá Earp Clair de Mattos Laura Esteves Márcia Agrau Fabio de Sousa Coutinho Ives Gandra Helena Ferreira Maria Helena Kühner

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