Produção Cultural no Brasil volume 1

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Afonso Luz Fabio Maleronka Ferron José Luiz Herencia Rodrigo Savazoni Sergio Cohn Organização


Coordenação geral do projeto e entrevistas Fabio Maleronka Ferron | Beijo Técnico Coordenação editorial, entrevistas e edição final dos textos Sergio Cohn | Azougue Editorial Projeto gráfico e capa Carolina Noury | Azougue Editorial Preparação de texto Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto, Larissa Pinho Alves e Luana Maria | Azougue Editorial Revisão Eduardo Coelho, Evelyn Rocha, Letícia Féres e Victor Heringer Fotografias Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes | Garapa Multimídia Pesquisa Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy Participação especial em entrevistas Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P956 v.1 Produção cultural, volume 1 / - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. 5v. ISBN 978-85-7920-046-5 1. Cultura - Brasil. 2. Intelectuais - Brasil - Entrevistas. 3. Brasil - Política cultural. I. Cohn, Sergio. II. Maleronka, Fábio. 10-5887.

CDD: 306 CDU: 316.7

11.11.10 18.11.10

[ 2010 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/fax 55_21_2259-7712 www.azougue.com.br azougue

- mais que uma editora, um pacto com a cultura

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MINISTÉRIO DA CULTURA João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Ministro de Estado da Cultura Alfredo Manevy Secretário Executivo José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Afonso Luz Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais CINEMATECA Carlos Magalhães Diretor Executivo SAC | SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA Maria Dora Genis Mourão Presidente da Diretoria Executiva Leopold Nosek Vice-Presidente da Diretoria Executiva



Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovisuais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e tocantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira. Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fundamental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a complexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade. Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores terão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a força da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores, técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas. A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade intelectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI. Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissionais eventualmente ausentes desse recorte. Nossos aplausos para todos eles! José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Ministério da Cultura



Apresentação Afonso Luz 11

GEStores culturais Juca Ferreira Ministro da Cultura – 200817

Gilberto Gil Ministro da Cultura – 2003-2008 25

Francisco Weffort Ministro da Cultura – 1995-2002 33

Alfredo Manevy Secretário Executivo do Ministério da Cultura 45

José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura 57

Márcio Meirelles Secretário de Cultura do Governo da Bahia 67

Carlos Augusto Calil Secretário Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo 77


Daniel Zen Presidente da Fundação Elias Mansour e do Conselho Estadual de Cultura do Acre 85

Claudia Leitão Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará 97

Joãozinho Ribeiro Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão 107

INSTITUIÇÕEs culturais Heitor Martins Presidente da Fundação Bienal de São Paulo 119

Luiz Camillo Osório Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro 129

Fábio Coutinho Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo 141

Gérald Perret Presidente da Sociedade de Cultura Artística 149

Lárcio Benedetti Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim 159


José Martins Diretor do Instituto Gerdau 169

Maria Arlete Gonçalves Diretora de Cultura do Oi Futuro 177

Eduardo Saron Diretor superintendente do Itaú Cultural 185

Eliane Sarmento Costa Gerente de patrocínios da Petrobrás 193

Luciane Gorgulho Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES 203

Roberto Smith Presidente do Banco do Nordeste 211

Danilo Santos de Miranda Diretor do SESC de São Paulo 219

Décio Coutinho Gestor Cultural do Sebrae de Goiás 227

Ana Toni Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford 237


Gilberto Freyre Neto Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre 249

Carlos Dowling Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba 257

CRÉDITOS GERAIS 269

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APRESEN TAÇÃO Afonso Luz | Diretor de Estudos e Monitoramentos | Secretaria de Políticas Culturais

Produzir cultura significa muitas vezes criar condições para que ela exista e prospere, fazendo com que os profissionais ali envolvidos operem do plano mais elementar ao mais sofisticado dos níveis. Sendo que, muitas vezes, uma única pessoa precisa se desdobrar em inúmeras funções e até mesmo inventar, de maneira informal, seus postos de trabalho. Este parece ser um dos nossos maiores estigmas na sobrevivência através das adversidades marcadas no tempo eivado de crises e contratempos. Como diz um amigo, “no Brasil, não basta que sejamos artistas bons, precisamos ser um pouco empresários, financiadores, instituições e até críticos de nós mesmo, isso para que as coisas funcionem direito”. Por outro lado, esta situação poderia ser tomada por alguns analistas como algo positivo, uma vez que nossa baixa capacidade de estruturação e fixação de sistemas produtivos nos põe, ironicamente, à frente de muitos países no momento em que vivenciam forte crise. Nesta hipótese, nossa precariedade também pode significar uma “versatilidade benéfica” que acaba parecendo atual nesse mundo organizado em torno do trabalho altamente flexível. Aqui, como diz a expressão, somos “pau-pra-toda-obra”, desde sempre. Mas precisamos olhar para o futuro, porque nossos potenciais só frutificarão verdadeiramente se soubermos construir novos modelos levando em conta vantagens e desvantagens locais, ou melhor, se conseguirmos construir ambientes de empreendedorismo e trabalho adequados à economia da cultura em toda a nossa diversificada extensão brasileira, absorvendo diferenças territoriais, populacionais, simbólicas e históricas. 11


Creio que hoje vivenciemos um período de transição, a meu ver, mais adequado e que dignifica os profissionais da cultura, uma vez que vamos superando as primeiras modalidades épicas de instauração de um sistema cultural nos trópicos deveras regionalizado, quando não fechado em contextos absurdamente locais, com suas demais tragédias decorrentes. Estamos prestes a chegar a níveis básicos de formalização dos empreendimentos em termos modernos, com graus de formação e capacitação continuada. No último período tivemos significativas adoções de medidas como, por exemplo, o enquadramento tributário dos CNPJs no simples, o que dá novos recursos ao nosso universo produtivo. Esta constante evolução é algo necessário aos negócios no campo da economia da cultura, no sentido de criar perfis mais gabaritados para um novo agente capaz de dinamizar seu setor; familiarizado com seus meios globais e conhecedor do repertório estético do campo que se atualiza. Do mesmo modo, este agente precisa dominar as expectativas sociais de um público consumidor traduzidas em números e indicadores, assim como as leis e normativas que regem e regulam sua atividade, para não “comer bola” num complexo sistema de financiamentos e contratos. Hoje, o produtor cultural – desde a escola até o escritório de negócios – já vai dominando um jargão conceitual e uma habilidade técnica que supomos cada vez mais generalizadas, conhecendo melhor como funcionam seus meios congêneres, como atuam seus colegas nos sistemas e meios análogos ao seu em outros cantos do país e do mundo. Mas será que faremos mesmo bem esta passagem do artesanato produtivo semiarcaico para as indústrias criativas contemporâneas? Conseguiremos nos transformar sem perder alguns dos diferenciais que nos animaram simbolicamente a inventar soluções econômicas fantásticas, a exemplo das aparelhagens do tecnobrega paraense ou dos bailes funk carioca? Como podemos nos profissionalizar e misturar desabusadamente modelos produtivos ocidentais em benefício do atendimento às realidades de consumo heterogêneas que caracterizam nosso mercado interno? Eis uma série de questões que parecem ser flagradas neste conjunto inusitado de entrevistas, dentre tantas outras que nos dão o que pensar, e muito! Este foi o propósito maior deste projeto; além de estudar economicamente o campo e suas cadeias de agregação de valor com pesquisadores e economistas, pensamos que seria necessário ouvir expoentes significativos das diversas gerações que aqui atuam, numa espécie de amostragem qualificada do todo que é 12


bem mais amplo do que o recorte de nomes que elegemos aqui, mas que nos dá grandes exemplos do que acontece. Este é um desafio inerente a uma gestão governamental que tem na democratização e no diálogo um dos seus esteios mais estruturantes, e que pensa a política cultural de forma participativa sem desprezar as diferenças de acúmulos e as hierarquias de valores que existem historicamente nos campos artísticos e nos segmentos culturais, buscando sempre acolher diversificadamente os graus de contribuição que cada agente pode dar. Esta ação – que esperamos ver continuada nos próximos anos – deve gerar também um documento de grande importância para a história futura e a memória presente de nossos meios. Estamos aqui afirmando o propósito que, desde o início da gestão de Gilberto Gil sob o governo Lula, alimentou a equipe do MinC: desenvolver a economia da cultura como agenda estratégica para o país que queremos amanhã. Estamos aqui falando de um vetor decisivo na estabilização sustentável de nosso grau de crescimento e internacionalização: o fator humano da criatividade. É ele que vai facultar uma crescente evolução de nossos produtos e serviços, assim como da incorporação de trabalho e tecnologias frente ao mercado global, gerando assim a tão desejada inovação que nos fará mais competitivos e mais ricos socialmente, como já nos apontava o Ministro Celso Furtado. Neste ano de 2010 a Secretaria de Políticas Culturais abriu agendas estratégicas com os setores de moda, design, arquitetura, artesanato e cultura digital. Já podemos ver aqui depoimentos de algumas das figuras pioneiras que nos ajudaram a compreender a importância destes novos segmentos, uma vez que sua atuação no horizonte cultural se intensifica cada vez mais. Mas creio que ainda precisamos avançar mais e mais, e seria talvez um apontamento para uma futura extensão do projeto na captação de novos materiais e depoimentos, já que aqui ainda é escasso no reconhecimento da importância de nos voltarmos também para estas áreas. Hoje temos um programa junto ao Fundo Nacional de Cultura que ganhou o nome Culturas Urbanas e Cidades Criativas para abrigar a agenda destes cinco setores; eles serão atores vitais ao projeto das doze capitais das cinco regiões brasileiras tornarem-se espaços internacionais e metrópoles contemporâneas no calendário que envolve Copa do Mundo e Olimpíadas no Brasil. Creio que os produtores culturais de todos os setores consolidados e reconhecidos há décadas como arte e cultura, como a música, o cinema, o teatro, a dança, as 13


artes visuais, a literatura e mesmo as culturas tradicionais e as cosmologias étnicas, podem se beneficiar enormemente com a incorporação da moda e do design tanto quanto do artesanato e da cultura digital, como dinâmicas transversais e complementares a eles, sem falar na arquitetura. Gostaria de agradecer a equipe empenhada neste empreendimento da maior importância e deixar que cada um de vocês parta para a deliciosa leitura dos personagens que fizeram, fazem e farão a história da produção cultural no país. Os que sentirem, ao final, a falta de alguns importantes nomes, não deixem de nos apontar. Descrever um fenômeno vivo como este requer a visada e a audição de todos; sem dúvida seu depoimento será compilado quando uma nova fase do projeto vier a público.

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Juca Ferreira Gilberto Gil Francisco Weffort Alfredo Manevy José Luiz Herencia

GESTORES CULTURAIS Márcio Meirelles Carlos Augusto Calil Daniel Zen Claudia Leitão Joãozinho Ribeiro

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Juca Ferreira Ministro da Cultura 2008- .

Qual o diagnóstico do Ministério da Cultura quando você entrou? A primeira coisa que percebemos quando chegamos ao Ministério da Cultura foi a fragilidade do estado brasileiro. É uma casquinha de ovo. O Estado brasileiro foi muito fragilizado nos anos nos quais a ideia de que o estado tinha que ser o menor possível, sem grande importância na sociedade. Essa foi a grande contribuição do neoliberalismo: o enfraquecimento do Estado. O Ministério não tinha relação com nada relevante no mundo da cultura, nem sob o ponto de vista da economia, nem de inclusão das pessoas de acesso à cultura, nem de desenvolvimento dos processos mais fundamentais. Pelo contrário, 80% do dinheiro do Ministério ia para a renúncia fiscal, e quem decidia como usar o dinheiro eram os departamentos de marketing das empresas privadas. Então, o Ministério era um quase nada, o menor orçamento da área pública, 0,2%, e não se tinha nem noção de política pública. O Estado não se sentia responsável de cumprir certas funções. Então, primeiro tivemos a consciência de que nós tínhamos que ser arautos de um novo período, fundantes de um novo processo. Isso era muito difícil. O Gilberto Gil, com toda a sinceridade, numa das primeiras reuniões com todos do Ministério, diz: “Eu não sei o que é política pública. Vocês vão ter que me dizer. Eu sinto que o Estado tem que definir sua ação, mas eu ouço falar muito em política 17


pública, é um termo que está na moda, mas não sei o que é”. E nos obrigou a aprofundar o conceito: como é que define ação do Estado, ações, programas, políticas e qual é o papel do estado. Até onde o estado deve ir, onde não deve ir. Isso foi muito amadurecido. Tanto é que por mais que os que são contra as reformas, os que se beneficiam da situação anterior, de dinheiro sendo disponibilizado sem critério, vêm para cima da gente falando em dirigismo e tal, não convence. O projeto não é dirigista, nem é do Estado sufocando a iniciativa privada ou a iniciativa da sociedade. O projeto é o contrário, é o empoderamento da sociedade, desenvolvimento de um acesso pleno à cultura, de uma economia cultural importante e criação de uma infraestrutura e uma regulação para que a cultura se desenvolva plenamente. Qual foi a influência da Convenção da Diversidade Cultural nesse processo? Essa foi uma grande contribuição do Ministério da Cultura. Muitos tinham uma ideia de que o que é relevante na cultura brasileira está no Rio de Janeiro e em São Paulo e não conseguiam compreender a complexidade do Brasil e a necessidade de se relacionar com nossa diversidade cultural. O Brasil tem matrizes nas culturas dos povos indígenas, nas culturas dos povos africanos que vieram como escravos, dos portugueses e de uma gama muito maior de migrantes que vieram formar a sociedade brasileira desde o final do século XIX e hoje são componentes importantes do Brasil. São 30 milhões de descendentes de italianos. Há mais libaneses no Brasil do que no Líbano. Somos a maior colônia japonesa no exterior e temos 500 mil eslavos, ucranianos e poloneses. Isso é parte do Brasil hoje. O Brasil se tornou muito complexo e, ao mesmo tempo, tem uma singularidade, uma identidade, uma personalidade muito fincada. Não tem uma música que traduza o Brasil inteiro, apesar de você poder até mentir que o samba é o que mais galvaniza a experiência brasileira na área musical. O samba é enriquecido com toda essa complexidade que envolve todas essas culturas, essas matrizes, essas experiências regionais, locais. Isso em todas áreas, estou dando a música como exemplo. Então, nós começamos a insistir nisso. Quando chegamos ao Ministério da Cultura, havia uma série de privilégios constituídos. Por exemplo, 80% do dinheiro do Ministério era destinado para o Rio de Janeiro e São Paulo. Desses 80%, 60% ia para as capitais desses estados. E dentro dessas cidades, 3% dos proponentes ficavam com mais da metade do dinheiro que saía do 18


Ministério da Cultura. Isso é um escândalo. É um estrangulamento, é matar no nascedouro as possibilidades culturais. E é claro que as mudanças nesse panorama que propusemos não acontecem sem resistências. Quando nós quisemos revitalizar o cinema brasileiro, houve uma luta para que o dinheiro só ficasse no Rio e São Paulo, e nós tivemos que lutar por essa abertura. Teve um dia muito bonito, no Teatro Leblon, primeiros meses de Governo Lula. O teatro estava cheio, dava para pedir autógrafo para mais da metade do público. Era todo mundo gente fina, todos artistas consagrados, conhecidos, muitos populares através das novelas. E Gil disse: “Olha, vocês terão que acostumar com a ideia que eu vou distribuir esse dinheiro para o Brasil inteiro. Não se justifica que 80% do dinheiro fique em apenas dois estados. E aí um rapaz levantou o dedo lá e disse: “Ministro!”, aí Gil passou a palavra para ele que disse: “Olha, não diga mais que 80% do dinheiro fica no Rio e São Paulo, porque eu dirijo o maior complexo cultural da Baixada Fluminense e a gente nunca viu um tostão do Ministério da Cultura. Dentro daqui, o processo de concentração é tão grande que reproduz o mesmo processo de concentração em relação a esses dois estados.” Então entedemos que isso era fundamental. Temos que, primeiro, nos relacionar com todas as formas de cultura, todas elas vale a pena. Temos que nos relacionar com todas as manifestações, matrizes, singularidades, linguagens. O corpo simbólico brasileiro é muito mais amplo até do que só arte. É preciso considerar tudo: moda, design, manifestações tradicionais, valores, tradições cromáticas. A leitura que o povo da Bahia faz das cores é completamente diferente, porque tem uma influência nitidamente africana. Tudo isso é parte da nossa riqueza e pode ser potencializado se for assumido sem discriminação, sem preconceito. Essa lucidez inicial de alargar o conceito de cultura, de assumir a diversidade cultural brasileira, foi o que possibilitou toda generosidade posterior. Porque, quando a gente foi pensar construção de política pública, já estava meio consolidado, dentro do Ministério e para fora, na nossa relação com o mundo cultural e com a sociedade, que nós trataríamos com a mesma relevância as manifestações culturais de todo território nacional. Hoje, eu vejo publicidade falando dessa diversidade cultural. Isso tornou-se visível no Brasil. Já é um motivo de orgulho. Essa é uma pequena contribuição que nós demos. Não é que nós tenhamos sido os primeiros, mas nós escancaramos. Nós viemos aqui para escancarar, abrir todas as portas e permitir que isso acontecesse permanente.

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O Plano Nacional de Cultura é uma forma de institucionalizar esse processo. Não só o Plano Nacional de Cultura. Tudo que a gente tem feito. Os nossos editais têm disponibilizado dinheiro para todo mundo. Quando nós começamos a abrir a política de cinema, foi uma chiadeira enorme. Tentaram inventar uma teoria econômica de que o cinema precisa de uma infraestrutura. Claro, precisa de uma infraestrutura. Mas cada vez menos, diga-se de passagem, porque o cinema brasileiro nunca será baseado em grandes estúdios, como é o cinema americano. Mas mesmo considerando essa necessidade, que é real, de concentração tecnológica, a criatividade tem que ser nacional. A cinematografia brasileira tem que refletir Pernambuco, tem que captar Rio Grande do Sul, a Bahia, Amazonas. Então, essas ideias tiveram resistências, algumas bastante violentas. E Gil foi de uma grandeza enorme. Foi um acerto do Presidente Lula ter trazido o Gilberto Gil para o Ministério. Ele é um grande artista popular, um artista reconhecido e querido pela população brasileira, um dos mais populares. E usou todo o seu capital simbólico para apoiar essas mudanças. No início, era um momento de inflexão mesmo, um momento de botar todas as fichas nessa mudança de conceito. Nós saímos de uma situação a qual o Estado não tinha nenhuma responsabilidade, para ser um desbravador, ser quem tem aberto, nesses anos, as portas para que a cultura brasileira seja generosa com todos. Quais os dias mais difíceis desse processo no Ministério? Nesses oito anos? O início é muito difícil, primeiro porque o Estado é muito frágil, as possibilidades de gerir dinheiro público são muito grandes. Dinheiro sendo usado sem critério é porta aberta para malandragem. A cultura política é muito complicada. Mas nós somos republicanos, temos tratado a questão pública com uma responsabilidade muito grande. Os erros advêm da tentativa de acertar. São muitos os erros. No processo você vai errando, mas vai incorporando o aprendizado na tentativa de acerto. O que fizemos aqui não foi para fortalecer partido político. Pelo contrário, tivemos uma batalha enorme para mostrar que a coisa mais avançada é o partido servir ao interesse público e não o inverso. Isso é uma mudança de paradigma político que muitas vezes dá um trabalho enorme. Tivemos que separar o joio do trigo. Não há possibilidade de misturar grandeza com miudeza. Ou seja, quem quer pegar dinheiro público para se beneficiar não pode fazer parte dessa experiência. Isso também foi 20


duro. Toda denúncia contra o Ministério nós passamos imediatamente para a Polícia Federal, que procederam em todas as investigações, independente de quem estava sendo acusado. Isso não significava uma adesão à acusação, mas uma possibilidade de investigação, de, inclusive, liberar a pessoa que estava sendo acusada para que não ficasse uma suspeição sem consequência, um enfraquecimento da pessoa. E isso tem servido como um paradigma. Nós construímos uma coesão do Ministério em cima de um programa político, mas em cima também de uma postura diante da coisa pública. Nós fomos muito além da média nesse grau de compromisso republicano com a coisa pública. Isso foi fundamental para o acerto do Ministério. Se o Brasil continuar sustentando esse ritmo de crescimento econômico, provavelmente nós vamos conviver com questões de outros países. Como por exemplo, a presença de imigrantes no Brasil novamente. Como você vê isso? Olha, a mudança de tamanho do Brasil, da grandeza do Brasil no mundo, terá várias consequências e é preciso ter uma visão estratégica no tratamento disso. Primeiro, esse crescimento para ser sustentável, a longo prazo, tem que garantir uma educação de qualidade para todos. Temos que resolver esse problema. Junto com isso, o acesso pleno à cultura para possibilitar que a sociedade, de fato, tenha condições de viver os desafios do século XXI, tanto no manejo de tecnologia quanto de compreensão do mundo. É preciso ter maturidade. A gente tem que fortalecer a coesão social. No Brasil, as desigualdades precisam ter uma resolução definitiva. A gente tem que estimular cada vez mais o diálogo intercultural e o fortalecimento desses vínculos; nós temos essa possibilidade. O Brasil é um país que não vive uma democracia racial, nem cultural, mas pode vir a produzir plenamente o primeiro grande exemplo prático dessa convivência. É preciso atentar a isso, porque lá adiante, pode ser que a gente precise de uma coesão muito mais sólida do que a que temos hoje. Outra coisa, não há possibilidade de garantir um Brasil grande e bem sucedido na base de uma economia de commodities. Isso tem data de validade. O Brasil precisa migrar para uma economia de valor agregado. E não será baseado na indústria tradicional, nem no serviço tradicional. Toda economia criativa, economia cultural, tem que ganhar uma importância no Brasil que possibilite que a gente se consolide de fato como uma grande nação do 21


século XXI. E o mundo está demandando isso. A curiosidade em relação à cultura brasileira, o que pensamos, os nossos valores, é enorme. Nós temos uma imagem muito boa no mundo. As pesquisas indicam que é um dos países que tem a melhor imagem no mundo, por nossa cultura e singularidade. Nós demonstramos, na formação do Brasil, uma capacidade de superar certos limites que o ocidente tem, por exemplo, em relação ao corpo. Aqui o corpo existe, tem inteligência, tem exuberância. E é preciso sistematizar isso como parte da nossa identidade, diferentemente de países cheio de taras repressivas, onde uma criança de nove anos encosta num outro na fila e pode ser processado por assédio sexual, pelo temor que eles têm de liberar essa energia vital, tão importante, que é a energia sexual. Então, o Brasil tem conquistas, tem riquezas acumuladas e precisa ter orgulho disso. E tem que produzir culturalmente. É importante montar uma indústria cultural sólida no Brasil, que tenha, em termos econômicos, a mesma importância que tem os commodities, que tem a indústria tradicional e os serviços tradicionais. Como você vê a virada do Brasil pro Pacífico, inclusive com obras de infraestrutura, BRICS, Mercosul cultural? Tem uma discussão que está implantada nesse momento: até que ponto o Governo Lula é continuidade do governo anterior, ou até que ponto ele contribuiu. Foi uma lucidez, uma grandeza ter incorporado o que havia de positivo na experiência anterior, que é basicamente a administração da moeda, combate à inflação, a estabilidade para que o Brasil possa de fato pensar um projeto de médio e longo prazo. Foi importante o Presidente Lula ter compreendido isso. Agora, o Presidente Lula agregou uma série de elementos ao projeto de desenvolvimento do país. E eu diria que esses elementos se tornaram irreversíveis. Primeiro, a inclusão de milhões de brasileiros. Não é só por bondade, por espírito social igualitário do socialismo, que se deve agregar as pessoas. É também porque precisamos de consumidores. Pensando no sentido mais restrito, menos grandioso da questão humana, o Brasil não pode ter um mercado do tamanho do mercado da Inglaterra, que é uma ilhazinha pequena, perdida ali, no Mar do Norte. O mercado brasileiro precisa ter o tamanho da nação brasileira. Até sob esse ponto de vista menor, o que o Presidente Lula fez foi incorporar uma população do tamanho da Espanha na economia. Isso é estratégico para o Brasil. Foi essa população quem segurou o Brasil na hora que a crise econômica internacional bateu 22


nas nossas portas. Essa inclusão ainda é precária, é preciso consolidar de fato, abrir a economia, abrir a educação pra que todos tenham acesso, possibilitar que a economia supere as amarras atuais. Uma delas é essa tradição de se basear apenas no agronegócio. E nem a indústria automobilística. É preciso diversificar, é preciso compreender, ter um pensamento estratégico. E a economia cultural, a economia criativa como um todo, é importante. É a segunda economia norte-americana desde o meado do século passado. É a terceira na Inglaterra. Ou seja, nós não estamos inventando nada, apenas temos que entrar em uma escala de um tipo de economia de valor agregado, que até hoje é secundarizado porque não nasce de geração espontânea. Nos Estados Unidos, foi fruto de uma ação pactuada entre o estado, os empresários e os criadores, no sentido de desenvolver a economia do cinema e a economia da música. E a gente precisa entrar nessa também. Então, os que ficam defendendo seus “privilegiozinhos” não resistirão ao impulso do capital internacional, que está batendo nas portas brasileiras. O capital internacional já percebeu que o mercado brasileiro é significativo e que a economia brasileira tende a viver um processo de crescimento por pelo menos duas décadas. Então, é preciso que os agentes econômicos nacionais, os agentes políticos, as elites brasileiras, percebam que é preciso pensar o Brasil com grandeza e não apenas como escravo do passado. É preciso que a economia da cultura se torne uma economia pujante no Brasil, não só no mercado interno brasileiro, mas no mercado internacional.

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Gilberto Gil Ministro da Cultura – 2003-2008.

Por que você optou, num primeiro momento, pela Administração? Não tenho muita clareza quanto às razões objetivas. Não sabia muito bem o que era um administrador, tampouco conhecia o universo onde ele propriamente operava. Em pequeno, quis ser médico como meu pai. Fui desistindo ao longo da vida, e acabei me fixando em Engenharia no ginásio. Naquele período, nós escolhíamos basicamente as carreiras que eram ofertadas: advogado, médico, engenheiro. Gostava um pouco de desenhar e resolvi que queria ser engenheiro. Prestei o primeiro vestibular de Engenharia em Salvador e não passei. Quando estava me preparando para fazer o segundo vestibular, vi um anúncio da Escola de Administração de Empresas que havia sido instalada na Universidade da Bahia. Imaginei que era algo novo, engraçado, estranho, e acabei me decidindo por aquilo no fim das contas. Era mais fácil, também; as exigências com relação à Química, Física e Matemática não eram tão grandes; em verdade, nem figuravam no vestibular de Administração de Empresas. Qual foi seu primeiro contato com a produção cultural? Você começou produzindo seus próprios shows? Não, não comecei produzindo meus próprios shows. Meu primeiro encontro com a produção artística, com essa interface teatro/música, deu-se 25


através do pessoal do Teatro dos Novos, em Salvador. Nesse primeiro grupo – que contava com Caetano, Bethânia, Gal, Tom Zé – atuei não só como músico e compositor, mas também ajudava a conceituar as apresentações, e me inteirava da questão cênica também, que envolvia todo um mundo até então desconhecido: iluminação, cenário, cenografia, figurino. Os primeiros contatos com essas várias dimensões e aspectos da produção artística deram-se ali em Salvador, a partir da formação desse grupo. Quando da inauguração do Teatro dos Novos, o diretor da Companhia Teatro dos Novos pediu que nós fizéssemos um show para a ocasião, e foi aí que surgiram esses primeiros contatos: a escolha dos temas, do repertório, a composição de canções. Roberto Santana, que era ligado a teatro, veio fazer a direção. Caetano também já era ligado ao teatro naquela época – inclusive, já tinha desenvolvido um trabalho de música para teatro com Álvaro Guimarães – e tinha muito mais gosto por aquilo tudo do que eu. Havia João Augusto, Roberto Santana, Caetano. Bethânia também já era muito interessada por toda essa dimensão da dramaturgia na música. Esses ingredientes todos estavam presentes naquela primeira produção, que foi o Nós, por exemplo, em Salvador. Em seguida, vieram outros shows individuais de cada um, que nos colocavam novas questões cenográficas, musicais, práticas etc. Foi como um treinamento. Durante aquele período – 1964 a 1965, mais ou menos – travei esse primeiro contato com o universo da produção musical. Era um processo coletivo, todo mundo palpitava, segundo suas afinidades. Eu, por exemplo, me restringia mais às questões propriamente musicais, mas não deixava de me impactar por todas aquelas outras dimensões da feitura de um show. Você, que acompanha a produção cultural no Brasil desde os anos 1960, como analisa as mudanças que vêm ocorrendo desde então? Quando falamos em termos de mudança, a primeira coisa que me vem à cabeça é a televisão. A televisão imprimiu um modo muito específico de consumir cultura. Ela foi exigindo um enquadramento à sua própria tela, à telinha. A televisão também teve um papel importantíssimo por juntar diversos coletivos – músicos, orquestras, cenógrafos, figurinistas, maquiadores – num mesmo contexto. De meados dos anos 1960 até o final dos anos 1970, a televisão se consolida de maneira muito forte. Ela absorveu todos esses universos (teatro, cinema, música), mas isto não foi uma via de mão única. Por seu turno, a televisão exerceu enorme influência sobre esses 26


universos. Por exemplo, muito do teatro que se fez no Brasil durante esse período – e depois – fortaleceu-se de artistas que haviam cumprido seus estágios na televisão, de tal modo que a relação televisão/teatro acabou se caracterizando por uma profunda interdependência. Quanto à música, houve o caso dos festivais, que revelaram novos cantores, compositores e acabaram fornecendo uma base para todo o esparramamento posterior que a música teve para outros territórios. Evidentemente, há também uma série de manifestações que, por várias razões, passaram ao largo da televisão, oferecendo uma alternativa ao mainstream. Também isso vai se fortalecendo. O registro de fenômenos como o Dzi Croquettes, ou até mesmo os Doces Bárbaros, ficou a cargo do cinema e do disco. Há centenas de exemplos dessa cultura à margem, que não vinha da televisão nem do show business mais arrumado. Por que você se candidatou a vereador em Salvador? A candidatura foi um desdobramento natural de uma série de outros momentos de abordagem da vida política. No primeiro momento, fui para a Fundação Gregório de Matos, que era o equivalente à Secretaria Municipal de Cultura de Salvador, na gestão do então prefeito Mário Kertész. Era o momento seguinte à perestroika e à glasnost, dois braços de uma importante revisão da questão soviética, a influência do comunismo real sobre o resto do mundo. Gorbachev fora o agente daquele desmonte, que me pareceu muito interessante e significativo. Se por um lado havia toda uma crítica das esquerdas às formas perversas de gestão capitalista da sociedade, por outro, faltava um pouco de autocrítica às esquerdas. Aquele desmonte foi uma comprovação de que essa autocrítica era possível, o que servia de alerta para o mundo todo. Então, foram os vários significados daquele momento que me levaram a pensar que havia, de fato, lugar para novas formas de política, mais criativas, mais artísticas. A política pôde reclamar sua dimensão artística mais ampla, porque política é arte. Naquele momento, havia na prefeitura de Mário Kertész um grupo composto por João Santana, Roberto Pinho, Antonio Risério, entre outros, que já apontava para uma interface entre pessoas criativas e o poder, a gestão, a administração municipal. Então fui para a Fundação Gregório de Matos como presidente, pois foi a única maneira encontrada pelo grupo de me levar para lá. Eu não era propriamente um técnico de alguma área específica. Eu tinha minha passagem pela administração, era artista, e 27


agora me envolvia numa gestão municipal, sob a égide de um prefeito, um homem político. Presidi a Fundação por um ano. Ser vereador desdobrou-se disso tudo, como disse. O grupo achava que poderíamos postular uma candidatura a prefeito, mas acabou não dando certo. Naquela época, eu tinha a opção de voltar diretamente a meu trabalho artístico ou continuar servindo ao projeto de alguma maneira, tentando desenvolver um pouco mais seu lado político. Como poderia fazê-lo, naquele momento? A serviço da Câmara de Vereadores, onde fiquei por quatro anos. Como foi esse primeiro embate do artista com a gestão pública? As características artísticas desse grupo que mencionei davam à gestão um tom de nítida aproximação com o campo de criatividade artística. Houve uma releitura das formas de fazer projeto. As escolhas dos investimentos técnicos passaram por uma reavaliação, além do pessoal. Uma série de projetos foi surgindo, como o apoio aos grupos afro, a construção da sede do Olodum. Criamos os terreiros de candomblé, tentamos intensificar as relações Bahia/ África, para potencializar o legado africano ali e dar visibilidade a seus vários produtos. Pensamos também a questão dos poetas de rua, os poetas da praça, o teatro ambulante. Era mesmo a criatividade a serviço da gestão, e a gestão criativa a serviço do poder. Ali, foi gestado o tipo de relação que eu acredito. Não é à toa que, quando fui para o ministério, levei boa parte dessa turma. Como você vê o desmonte da cultura durante o período Collor? Há aquela lenda de que esse desmonte deu-se por vingança, já que a candidatura de Collor não contou com o apoio da classe artística. Isso pode ter pesado um pouco, mas creio que tenha a mais a ver com sua visão de gestão, de estado, de política pública. Ele seguia o catecismo neoliberal, e queria entregar a gestão das coisas públicas ao mundo privado. Ele tinha uma crença muito forte na autogestão, na autorregulação por parte da sociedade civil, com apoio direto do mundo corporativo. Por isso acabaram com o ministério, a Embrafilme, o Conselho Nacional de Direitos Autorais, bem como uma série de organizações Como surgiu o convite para ser Ministro da Cultura? Falei sobre a Fundação Gregório de Matos, e minha relação com a prefeitura de Salvador. Creio que tudo isso tenha servido como base para a manuten28


ção de um querer, uma vontade. Mas eu não estava mais pensando em nada disso quando recebi o convite. Não tinha mais vontade de trabalhar a gestão criativa em política. O presidente Lula que foi eleito e me chamou. Do nada, da cabeça dele. O PT fez uma pressão danada, mas Lula acabou ganhando a queda de braço. Você era amigo do Fernando Henrique, participou de seu governo... Mas apoiei Lula. E mais, quando fui lhe apresentar meu apoio, um ano e meio antes da eleição de 2002, fui como PV. Fomos eu, Juca Ferreira e Alfredo Sirkis levar, em nome de boa parte do Partido Verde, nosso apoio ao Presidente Lula. Mas eu falei que esse apoio que estava trazendo não anulava o apoio que eu continuava a dar ao Governo Fernando Henrique Cardoso, até seu final. Durante a campanha de Lula, enquanto o PT falava da herança maldita, eu falava da bendita herança de Fernando Henrique. Muito embora tivesse prosseguido o receituário neoliberal em certos aspectos, foi um governo que teve significados importantes. Essa importância se comprovou depois, afinal, a gestão de Lula se beneficiou muitíssimo de ações iniciadas no governo FHC. Enfim, minha vinda para o Ministério foi algo que partiu de Lula pessoalmente, por respeito, admiração pessoal por minha trajetória como artista e atenção a meus experimentos políticos na Bahia. Isso, junto a uma dimensão do Partido Verde, que era importante. Mas o partido não assume você como PV no governo, depois. É uma questão difícil. Naquela época, há oito anos, o PV era um partido ainda muito pequeno. Ele cresceu muito desde então, mas à época tinha poucos parlamentares, poucos representantes. E já era bastante dividido: tinha um PV de São Paulo, tinha um PV do Rio de Janeiro, tinha um PV da Bahia, tinha um PV do Paraná. Eram grupos mais ou menos autônomos. Mas a parte que apoiou o presidente, a parte que ele queria reconhecer, era a parte que estava a meu lado. Na verdade, Lula não dá o ministério ao PV. Ele me aborda diretamente. Que Ministério da Cultura você encontra? Era um Ministério desarrumado, no sentido das atribuições das áreas de gestão. Muita confusão entre secretarias e as coligadas, IPHAN, Funarte etc. Havia muitas sobreposições de tarefas e coisas desse tipo, o que pedia 29


uma reorganização. Fizemos um novo organograma logo após a criação das secretarias e a separação de algumas dessas coligadas. Era um Ministério desarrumado e destituído de uma visão clara da nova complexificação da questão cultural no Brasil. Afinal, novas tecnologias geram novos problemas. Essas tecnologias – nominalmente digitais – já eram exaustivamente utilizadas pela produção cultural, e o Ministério ainda não olhava propriamente para o impacto disso na questão autoral. Era um ministério diferente do que eu imaginava que devesse ser, e diferente daquilo que esperava o presidente Lula. Lula propôs alguma coisa? Não. Ele disse: “Vá para o Ministério como se fosse seu palco, e faça o que achar melhor.” Quantos anos você ficou? Foram cinco anos e meio, quase seis. Durante esse período, qual foi o momento mais árduo? Foi difícil aprender a ler o ministério, o que ele era, o que ele deveria ser, o que deveria deixar de ser. Ler o ministério ideal, o novo ministério, e o que deveríamos absorver do velho ministério. Desenhar novos programas, novos projetos, novos meios de realização desses programas e projetos. Igualmente difícil foi lidar com tanta gente. Naquela época, eram 2.500 pessoas trabalhando em conjunto com o ministério, contando com as coligações, as secretarias, as interfaces com governos estaduais, municipais etc. Outra dificuldade foi integrar um governo permanentemente em questão, que chegava com mil interrogações, apesar da simpatia. Das suas realizações como ministro, quais você destacaria? Várias coisas, especialmente no que tange a questão do patrimônio imaterial. O fortalecimento das políticas de museu no Brasil, a idealização de novos museus que vinham atender demandas novas e mais específicas: o Museu do Pantanal, o Museu da Língua Portuguesa, o Museu do Futebol. Uma reavaliação do trabalho do IPHAN. Um apoio decidido ao conceito diversidade cultural, inclusive objetivamente no trabalho junto a Unesco e a um grande número de países. Naquele momento, o Brasil realizou um trabalho importantíssimo junto à Espanha, ao Canadá, a vários países africanos e a 30


sul-americanos. Foi um trabalho forte para que a convenção da diversidade cultural fosse aprovada. Depois, o Ministério continuou a lutar para que os países a reconhecessem. No desdobramento desse ativismo internacional, promoveu-se todo um conjunto de atividades de intensificação cultural com a ONU, a Unesco, organismos sul-americanos e pan-americanos. Esse trabalho de identificação de um protagonismo popular cultural até então encoberto, não propriamente visível, que precisava vir à tona. O programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, bem como todas as suas variantes, começaram a dar conta desse mundo submergido, que é a produção cultural popular. Além disse, houve também o trabalho na área do cinema, com o fortalecimento da Ancine. Conseguimos retirá-la do âmbito do Comércio e da Indústria e trazê-la para o Ministério da Cultura, o que proporcionou – com a criação da Secretaria do Audiovisual – a promoção de uma interação, de uma parceria importante entre a Secretaria e a Agência, no sentido de dar ao cinema um panorama novo, uma porta de reentrada no Ministério e no Governo, com o fortalecimento das políticas de financiamento. As políticas de distribuição foram mais discutidas, assim como a questão dos déficits de sala de cinema no país. Uma coisa importante foi o desenvolvimento da área de política digital. O Ministério da Cultura começou a se preocupar com as novas tecnologias da comunicação, das telecomunicações, as novidades nesse campo e todas as questões relativas a ele. A criação de uma diretoria de cultura digital no Ministério foi muito importante, inclusive do ponto de vista regulatório. E houve também movimentos pontuais: criar o Sistema Nacional de Cultura. Criar junto com o Congresso Nacional um plano nacional de cultura. Rever a lei do Direito Autoral. Assumir a necessidade de fortalecimento da televisão pública no Brasil. Assumir as responsabilidades do governo com relação à TV digital, e tantas outras. Qual o futuro do Gil político? Não tenho a menor ideia, tampouco tenho vontade nesse momento. Acho difíceis as relações do mundo político hoje com o resto. Não consigo antever uma possível contribuição verdadeiramente interessante, que eu pudesse dar nesse campo. Mas não dou certeza. Minha vida é uma permanente interrogação.

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Francisco Weffort Ministro da Cultura – 1995-2002.

O senhor participou de um importante grupo de intelectuais que estudou O capital, de Karl Marx, na Universidade de São Paulo. Conte um pouco essa história. Eu sou um professor, me formei na Universidade de São Paulo, em sociologia política. O meu interesse maior sempre foi estudar a história da política brasileira, o populismo, o sindicalismo. Fiz toda a minha carreira junto à Universidade de São Paulo. Quer dizer, alguma coisa eu fiz na Inglaterra, também houve um periodo no Chile, mas basicamente a minha vinculação universitária é na Universidade de São Paulo. Alguns de nós chegamos a uma opção política, evidentemente, através de estudos e de leituras. Quando se diz a Universidade de São Paulo, se fala de um complexo muito maior do que aquele do qual nós fazíamos parte, que era uma faculdade relativamente pequena na época, na rua Maria Antônia, em São Paulo, onde havia um grupo ligado à história, ciências humanas e filosofia. Florestan Fernandes e Antonio Candido eram lideranças importantes na época, e o Fernando Henrique Cardoso e o Arthur Giannotti eram ainda jovens professores. Em meados dos anos 1950, ainda no período Juscelino Kubitschek, esses jovens professores criam um grupo de estudos marxistas. O conhecimento de marxismo no Brasil é relativamente recente, e, no caso 33


de São Paulo, mais recente do que em outros estados, ou pelo menos mais recente do que no estado do Rio de Janeiro. O grande teórico marxista que nós tínhamos em São Paulo era o Caio Prado Júnior, que era vivo, um historiador importante, mas que não era membro da universidade. Então, dentro da universidade mesmo, o marxismo passa a ser adotado, como matéria de reflexão, com esse grupo de estudo. Era um grupo pequeno, formado por José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Paulo Singer e alguns poucos alunos, entre os quais Roberto Schwarz, Michel Löwy, eu e Fernando Novaes. Pegamos O capital, que são três volumes importantíssimos, complexos, e passamos praticamente três anos lendo o texto. Não tinha nada o que fazer, quer dizer, era uma gente jovem, o Brasil era um país mais calmo, mais pacífico, ninguém estava fazendo política, então de 15 em 15 dias as pessoas se reuniam. Um lia um capítulo, o outro comentava, e passávamos duas ou três horas trabalhando aqueles textos. Basicamente, a formação intelectual de várias dessas pessoas vem desse grupo, embora nem todos tenham virado marxistas. Isso deu um caminho para a política, mas essas pessoas, na verdade, não faziam política, porque as alternativas políticas que existiam na época eram aquelas que o quadro brasileiro apresentava, que não interessavam àqueles intelectuais que tinham uma visão mais crítica. Eu entendo que a participação política dessas pessoas não se deu como turma, mas individualmente. O Fernando Henrique sempre foi um fulano que participava de atividades políticas e administrativas da universidade. Ele era representante dos auxiliares de ensino, do conselho universitário. Hoje isso é rotineiro, mas na época tinha muita importância, até porque não havia essa tradição de jovens universitários assumindo essa responsabilidade. Ele era um cara importante, do ponto de vista político, por causa disso. Era um homem de esquerda, sempre foi. Ou seja, o caminho para a política foi individual e ocorreu, na verdade, em fins dos anos 1970 e início dos anos 1980. Então não havia um posicionamento político comum? No início, todo mundo era do MDB, do Movimento Democrático Brasileiro. Eram pessoas das mais diferentes opções, opiniões e que queriam o restabelecimento da democracia no Brasil. Em 1974, quando o MDB surpreendentemente elege senadores na maioria dos estados, as pessoas começam a acreditar que é possível restabelecer a democracia. Nessa mesma época, ocorrem o restabelecimento do sindicalismo e a greve do ABC, um aconteci34


mento notável. Provavelmente, o primeiro grande movimento dirigido pelo Lula, que já vinha participando com outros sindicalistas de uma renovação sindical no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Então são várias coisas que vão ocorrendo na sociedade e que levam a uma discussão sobre que tipo de partido se criaria quando se restabelecesse a democracia. Havia diversas propostas, o Partido Socialista, uma reforma do MDB, e também um Partido dos Trabalhadores. O senhor foi um dos fundadores do PT? Essa era uma época, os anos 1970 e 1980, em que o Brasil vivia uma ditadura militar. A fundação do PT é um dos movimentos que ocorrem nessa época, em busca de um restabelecimento da democracia no país. Ocorreu uma série de movimentos democráticos nesse momento, o restabelecimento do sindicalismo, que tinha parado em 1964 e seria retomado dez anos depois, o movimento por eleições diretas, o restabelecimento de estado de direito. No caso específico do PT, o partido surgiu de uma consciência que havia no meio sindical e no meio intelectual sobre a necessidade do reconhecimento democrático nas reivindicações dos trabalhadores na sociedade brasileira. A grande tradição brasileira nesse assunto é que a questão social é questão de polícia, ou então que a questão social estava submetida à presidência da República, ao populismo do Getúlio Vargas. Depois de muitos anos de ditadura militar, o PT surgiu como um dos vários movimentos democráticos. O que foi a eleição de 1989? A eleição de 1989 foi realmente a primeira eleição direta, veio imediatamente depois da campanha das Diretas Já. Foi uma grande surpresa, porque todo debate político estava concentrado no confronto entre opiniões pró-democracia, que vinham do MDB, e opiniões pró algum tipo de sucessão ligada ao regime, que vinham do Arena, posteriormente chamado de PDS. Nesse quadro, os dois nomes que poderiam significar mudança, antes das eleições, eram Aureliano Chaves e Ulisses Guimarães, duas lideranças políticas altamente expressivas. Além deles, tinha o Lula, que não tinha um centésimo da significação política que tem hoje e que era candidato pelo PT, o Fernando Collor, que criou um partido para se candidatar, e o Leonel Brizola, que era um nome conhecido da política brasileira. Só que todos eram nomes menores em face aos dois primeiros, mas deu-se uma virada no humor da opinião pública, na atmosfera pública, 35


de tal forma, que houve uma polarização totalmente inesperada no segundo turno, entre Lula e Fernando Collor. É preciso lembrar que, na passagem do primeiro para o segundo, a diferença entre a votação do Lula e a do Brizola foi de menos de 1%. Então, no segundo turno, Lula concentra a atenção de todos que estavam daquele lado. Foi uma grande surpresa. O processo eleitoral como um todo foi uma surpresa, e a eleição do Collor foi, ainda, menos surpreendente do que o Lula ter ido para o segundo turno. As pessoas que têm a imagem do Lula como “Lulinha paz e amor” deveriam se lembrar do que foi o Lula em 1982 e 1989, porque ele aparecia como uma figura muito mais ríspida, radical. O Collor também tinha a sua maneira de ser radical, porque ele falava contra os marajás. Foi nessa atmosfera radical que se deu a eleição de 1989. Por que o Collor desmontou a estrutura cultural do Brasil? Esse é um dos itens realmente difíceis de entender. Uma hipótese é a de que o Collor teve que construir uma imagem anti-Sarney para fazer a campanha eleitoral. O Sarney tinha feito uma lei de incentivo cultural. Quer dizer, quem fez a lei foi o Celso Furtado, mas, de qualquer maneira, a lei foi chamada de Lei Sarney. O Collor, que era o Ferrabrás do moralismo, atacou a Lei Sarney com tudo que pode. Ele aproveitou a onda de supostas fraudes em torno da lei e acabou com ela. Reformou o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a FUNARTE (Fundação Nacional de Artes), várias instituições culturais, mas, que eu saiba, não beneficiou nenhuma. O que o período Collor deixou de benéfico, e que eu não sei se é da influência direta do presidente ou de algum dos seus ministros, foi a Lei Rouanet, que foi criada para enterrar a Lei Sarney. A Lei Rouanet é uma espécie de Lei Sarney reformada, como, aliás, não dá muito para fazer diferente. É preciso inventar leis mais ou menos dentro da nossa tradição cultural. Eu acho que no caso do Collor havia um profundo ressentimento com a área cultural em geral. No fundo é isso, a área cultural não o reconhecia, ele não era visto como uma figura importante. E, embora a área cultural não tenha muitos votos, ela tem prestígio e, naturalmente, carimbou o Collor de muitas maneiras. Acho que na verdade foi uma pequena vingança, não fez bem nenhum. Professor, quando o senhor foi chamado para ser ministro, o que encontrou quando chegou ao Ministério? 36


Quando eu cheguei ao Ministério, encontrei a Lei Rouanet e a Lei do Cinema, que eu acho que são leis importantes, com todos os defeitos que possam ter. Encontrei algumas experiências deixadas pelas administrações anteriores. Por exemplo, programa de bandas de música, uma proposta de recuperação da documentação histórica brasileira na Europa, do período dos descobrimentos até a independência – uma proposta extremamente interessante, que nós implementamos. Encontrei frangalhos nas instituições do Ministério da Cultura, especialmente a FUNARTE, que é uma grande instituição, e um clima na área da cultura de muita desesperança. Exatamente o que o período Collor deixou de mais forte, à parte a Lei Rouanet, foi um clima de depressão. As pessoas que já acreditavam pouco passaram a acreditar menos ainda, então foi preciso recuperar isso. O período da minha administração foi de um grande esforço em recuperar a possibilidade de um Ministério da Cultura, porque desde sua fundação até a minha chegada nove ministros tinham passado por lá, em um período de oito anos. Tinha ministro que ficava seis meses, outro que ficava três meses, era uma coisa muito fragmentada, muito parcelada, muito sem rumo. Nós fomos capazes de acreditar e de fazer com que acreditassem que era preciso ter um Ministério da Cultura. Quais foram as políticas em que vocês pensaram? Qual era o projeto político do ministério frente a essa situação? Na área da cultura, eu sempre acreditei e continuo acreditando que, nas condições do Brasil, o Estado tem o dever da cultura, tanto quanto o dever da educação. Isso não significa que deva haver um dirigismo de Estado para a cultura, como também não deve haver para a educação. A sociedade, a começar pela família, tem um dever fundamental com a educação, assim como tem, por parte das famílias, das instituições culturais e das empresas, o dever também com a cultura. Portanto, a política da cultura tem que ser trabalhada com duas mãos. Ela tem que ter, como aliás tinha, em escala bem pequena, e hoje maior, fundos públicos, que deveriam ser aplicados a fundo perdido, e a possibilidade de captar recursos nas empresas com dedução fiscal. Há um pedacinho do Estado que atua na cultura, e há um pedaço das leis que possibilita a captação de recursos no mercado, mas o que se capta é muito pouco, tanto no Estado quanto no mercado. Tudo que nós concebemos como política de cultura é coisa dos anos 1920, dos anos 1930, que foi melhorando. Os anos 1920 e os anos 1930 são os do modernismo no Brasil, que abriu a cabe37


ça brasileira, conservadoríssima e tradicionalíssima, para as coisas modernas que viessem. Então, até hoje, nós temos uma visão de política cultural que é muito inspirada naquela época. Quer dizer, patrimônio histórico, defesa da tradição cultural, defesa da memória histórica nacional, e este projeto, que depois nós realizamos, de recuperação de toda a documentação histórica brasileira. Então, seria sempre um esforço de garantir a tradição, recuperar a memória, afirmar a identidade e abrir-se para as inovações que possam surgir. Outro ponto que deveria ser acrescentado à presença do Estado, e à presença do mercado através dos incentivos, seria o desenvolvimento de uma política de Estado na área da cultura, visando o mercado como mercado, porque há um mercado de cultura no Brasil que não é bem avaliado. Tem que ter um olho para o crescimento do mercado da cultura, para que o Estado tenha responsabilidades tanto com a proteção que tem que dar às tradições da cultura brasileira, quanto em colaborar com a empresa privada nos projetos e estimular o desenvolvimento. A cultura enquanto mercado é uma indústria. Nós temos que ter uma política industrial voltada para a cultura, para o livro, para a codificação das obras de arte. Voltando à origem da sua gestão: como foi sua saída do PT e a entrada no governo do Fernando Henrique Cardoso, do PSDB? Eu estive no PT durante alguns anos, depois saí do partido e entrei no governo Fernando Henrique. Na minha avaliação, o PT mudou muito do começo até agora. É óbvio, todo mundo vê. O PT dos primeiros anos tinha uma utopia extremamente generosa, que eu acho que se mantém na cabeça de muitos petistas. O PT foi criado em 1980, nove anos antes da queda do muro de Berlim, e grande número dos petistas acreditava verdadeiramente no socialismo. O choque que todo mundo levou com a queda do muro de Berlim não foi brincadeira, mas havia um senso de companheirismo que participava de uma tradição socialista, que queria ser crítica do stalinismo, do getulismo, do imposto sindical, do estatismo. Quer dizer, o PT nas origens estava no limite de um partido de socialismo libertário. Ocorre que nós temos eleições no país, e a campanha eleitoral é a competitividade individual levada ao extremo. Na campanha eleitoral, pelo menos nos quadros das leis brasileiras, o que importa é a figura do candidato; o partido aparece se for conveniente. Se não for, nem aparece. O candidato, sobretudo, está disputando votos com o 38


companheiro dele de partido mais próximo em ideias, porque, por exemplo, se eu sou professor, vou buscar votos nas pessoas que foram meus alunos, do mesmo modo o meu colega do partido que tem ideias semelhantes. Foi isso o que aconteceu na eleição em que o senhor se candidatou ao mesmo tempo que o Florestan Fernandes? Essa eleição é bem um exemplo disso que eu estou dizendo. O professorado de São Paulo não aguentava ter dois ou três candidatos, só podia ter um! Agora, quem vai, vai, e quem não vai? Isso não é apenas em relação ao PT, é em relação a qualquer partido. No Brasil, a competitividade individual é tremenda, não há companheirismo que aguente. O que estou querendo sugerir é que o clima do PT foi mudando de um clima de movimento de resistência democrática para um clima cada vez mais próximo, em certos momentos, que eram sobretudo os momentos eleitorais, daquele “cada um por si e Deus por todos’’. Então chega um certo momento em que você vai perdendo a energia, a não ser que você seja um político casca-grossa, firme, ou tenha uma vontade política muito mais consistente: vai e toca de qualquer jeito, tenta superar as dificuldades e mudar a situação. Se você não está a fim de tudo isso, chega um momento em que você pensa: “O que eu vim fazer aqui?” A motivação para que você participe de um partido tipo o Socialista é que você tenha a ilusão ou a utopia de que algo se está fazendo pela coletividade. Aí você chega nesse momento... A imagem não fica, não junta uma coisa com a outra, fica inconsistente. Eu, pessoalmente, tinha uma ligação muito pessoal com o Lula e uma ligação pessoal muito mais antiga com o Fernando Henrique. Eu fui aluno do Fernando Henrique, trabalhei com ele no Chile durante muito tempo. Para mim, são dois tipos inteligentíssimos, os dois! Duas figuras notáveis da história brasileira, ponto. Isso para mim é o que importa. Quanto ao mais, eu gosto deles. Bom, a coisa é a seguinte: provavelmente vale a pena lutar para se manter num partido para quem quer. Eu não queria tanto. Como o senhor vê os três instrumentos da Lei Rouanet: a renúncia fiscal, o Ficart e o Fundo Nacional de Cultura? O Ficart eu nunca vi aplicado, mas, em todo caso, é uma abertura para parcerias com empresas privadas, possibilidade de uma entrada no mercado da cultura. Eu acho que sem fundo de cultura e sem o incentivo fiscal não existe 39


política de cultura. Tem que ter os dois. Se só tiver a dedução fiscal, vai ter muito mais política de cultura para o eixo Rio–São Paulo do que para o resto do Brasil, porque 80% dos benefícios fiscais ficam na região que tem maior mercado. Se só tiver o fundo de cultura, se criará um pequeno gueto e, no correr do tempo, haverá uma triste distribuição de minguados recursos para os amigos de chope. Não é sério. A melhor coisa a fazer é tentar aprimorar os mecanismos de um lado e de outro, democratizar, abrir mais e, sobretudo, conseguir mais recursos. Muito dessa polêmica entre dedução fiscal de um lado e fundo de cultura do outro vem da discussão da margem, da marginália do orçamento, do pessoal que ficou com zero vírgula zero não sei quanto do orçamento. Tem que haver uma significação financeira maior, para que essa discussão seja mais produtiva, criar políticas para realmente fazer com que o Estado tenha capacidade de estimular o mercado. A música popular brasileira, por exemplo, é reconhecida no mundo todo, mas isso não tem relação com a nossa significação em termos de mercado. Precisamos ter uma política que jogue isso para o mundo. Os norte-americanos fazem isso, por que nós não podemos fazer? A Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual são mais voltadas para a produção do que para a distribuição do produto cultural. Como vocês pensaram isso? Esse é um problema sobretudo para a área do audiovisual. É um tremendo problema, que está sendo tratado mais pela Agência Nacional do Cinema, a Ancine. Do jeito que a lei está definida, o filme se paga na produção e, sendo assim, o estímulo do produtor para jogar o filme ao mercado é menor. Ele praticamente não tem risco, mas nunca deixará de ser um produtor medíocre. Se o Brasil quer ter uma indústria de cinema, e pelo jeito parece querer, porque já tem cem anos que insiste, nós precisamos nos comprometer com o mercado. Isso não significa tirar o Estado, porque quando as pessoas falam em mercado, pensam logo em anti-Estado. Acho que precisamos de uma política de Estado que permita uma audácia de mercado real. Houve uma acomodação na área da produção cinematográfica, não no campo artístico, mas do ponto de vista econômico. O produtor faz o filme, que tem uma circulação medíocre, e o Estado está com a consciência tranquila, porque financiou a produção. Mas houve um grande foco no cinema durante a sua gestão no Ministério da Cultura, com a Lei do Audiovisual se fortalecendo, com grande parte do incentivo fiscal indo para essa área. 40


O cinema sempre foi uma preocupação da política de cultura do Brasil, desde o período do Juscelino. O período militar teve um cinema expressivo para as condições brasileiras. Depois ele cai e começa e ser recuperado no governo Itamar. Na minha opinião, há um problema de falta de política de mercado. Na Argentina, por exemplo, o público de cinema é maior que no Brasil. Não é porque eles são mais ricos, pelo contrário: para a miséria dos argentinos, hoje eles são mais pobres. Então eu acho que precisamos discutir essas políticas com clareza, com franqueza. Como o senhor avalia a sua gestão no ministério, nos oito anos? Tendo em conta as circunstâncias da política de cultura na época em que nós chegamos ao governo, nós fizemos muito, porque o Collor deixou a terra arrasada. Essa que é a verdade. As heranças positivas eram a Lei Rouanet, do Collor, e a Lei do Cinema, do Itamar. Era isso que nós tínhamos. Muito do que foi feito de lá para cá fomos nós que começamos. Algumas coisas vinham de antes, por exemplo, o projeto de banda de música. Não sei se alguém dá atenção, se alguém acha que isso é importante, eu acho importantíssimo. Esse projeto começou na Funarte, em 1974, e é um kit de banda de música que o poder público distribui nas cidades do interior. Isso é importantíssimo, porque é uma maneira pela qual a garotada aprende música, aprende a ler partitura, e é uma coisa fantástica você ver uma banda de música, especialmente nas cidades de interior. O projeto Monumenta também foi uma negociação da minha gestão no Ministério da Cultura, de recuperação do patrimônio histórico. Logo no início da gestão, nós entramos com muita força no patrimônio. Realizamos um bocado de coisa, ainda assim há muito o que fazer. A crítica mais fácil no Brasil é dizer que o sujeito não fez tudo o que devia ter feito. Bem, geralmente ele não faz nem tudo que queria. E isso não é só na cultura: é na economia, na presidência da República. O Brasil é enorme e tem necessidades seculares. A minha sensação é de ter conseguido superar o patamar inicial de onde começamos, que era um buraco deixado pelo Collor, e ter consolidado um ponto de partida significativo para outras gestões. Como você tem visto a reforma da Lei Rouanet? Eu acho que tem que reformar, mas é preciso ir devagar. Vamos assumir claramente que vamos fazer duas reforminhas nos pontos tal e tal, não vir com essa zoeira toda, que só serve para inibir os já inibidos empresários brasileiros 41


de participar da cultura. Quando eu vejo alguém com autoridade na área do Ministério da Cultura fazendo críticas à Lei Rouanet, eu imagino quanto dinheiro está deixando de entrar de empresas que poderiam participar da atividade cultural e ficam inibidas. Deixa eu dizer o seguinte: empresa não participa de atividade cultural; quem participa é um cidadão que está dentro dela, porque a empresa que produz pneu de automóvel não está preocupada com cultura. O objetivo dela é produzir pneu, mas tem um fulano lá dentro que é, por uma razão qualquer, fanático por cultura. Apesar de ser diretor comercial, quer ajudar, e tem a possibilidade de ajudar. Ele é um numa diretoria de 12, vamos dizer. Então é preciso criar um clima na área do Ministério da Cultura para que essas pessoas sejam recebidas adequadamente, porque, por exemplo, se você ganha um prêmio de cultura de alguma empresa e não sai divulgando que ganhou o prêmio dela, a empresa para de dar o prêmio nos anos seguintes. Mas cabe ao diretor de marketing julgar o mérito dos projetos? Não, não cabe julgar mérito nenhum. O diretor de marketing não julga o mérito de um grande maestro, de uma grande orquestra sinfônica. Não tem diretor de marketing no mundo capaz disso. Se eu sou produtor cultural e programo a orquestra sinfônica com o maestro tal, que é um grande maestro, eu apresento o projeto a um diretor de marketing; se ele quiser, tudo bem, se não, eu vou procurar outro. Quer dizer, não é o diretor de marketing que julga. Nós temos que avaliar a capacidade que têm os produtores culturais de formular projetos que tenham uma tal significação em si, que os marqueteiros vão brigar entre eles para pegar o projeto. No seu entendimento, a renúncia fiscal é ou não é dinheiro público? É dinheiro público, óbvio que é. É dinheiro público que o Estado permite, na lei atual, que numa parcela, num percentual, seja utilizado para determinada finalidade, mas é dinheiro público, claro que é! É uma renúncia fiscal do Estado. Ele renuncia captar aquele dinheiro se a empresa for utilizá-lo para determinada finalidade que o Estado considera pública. O Estado tem um critério de interesse público para realizar a renúncia, ele define o motivo que o leva a renunciar aquela parcela, que, aliás, é 4% do imposto a pagar da empresa. Considere o pacote todo do Brasil, o dinheiro que entra na Receita, que não é pequeno, o renunciável é até 4%. Se vocês se dedicarem a verificar o número de empresas que poderia participar desses 4%, são milhares. 42


Agora verifique as que efetivamente participam. O problema das políticas de cultura no Brasil é conquistar empresas para participar do processo cultural brasileiro por meio da renúncia fiscal, aumentando, portanto, os recursos que podem ser utilizados para o desenvolvimento cultural. Nós batalhamos para conseguir o dinheiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento para a recuperação do patrimônio cultural brasileiro. Um dinheirão, para as condições brasileiras. Eu estava contente porque achava que nós íamos aumentar o orçamento, mas não: na cabeça da equipe econômica, o dinheiro que entrava de empréstimo ano a ano não aumentava o meu teto. Ele entrava suprindo uma entrada que o tesouro deixava de fazer, ou seja, mesmo dentro do Estado existe uma ótica segundo a qual a cultura é secundária. Mesmo que a cultura consiga dinheiro para aumentar o seu próprio orçamento, chega um momento em que o sujeito acha que tem coisas mais importantes para fazer. Sobre a relação entre cultura e tecnologia, qual a reflexão que o senhor faz? Eu entendo que por mais que a atividade cultural tenha sido descuidada pelo Estado, e creio que vá continuar sendo por muito tempo, o Brasil nunca deixará de dar atenção à política cultural. Ela envolve uma série de atividades que desde a independência do Brasil, desde o Império, o Estado considera importantes. Nós vamos continuar fazendo. E eu acho que um dos principais aceleradores disso vai ser esse desenvolvimento tecnológico, pelo seu lado democrático. Logo teremos bibliotecas virtuais se espalhando pelo país todo, até porque interessa à indústria vender aparelho de computação. Isso é uma coisa que, por um lado, tem consequências positivas, porque nós vamos abrir possibilidades de informação cultural para milhões e milhões de pessoas. Por outro lado, a revolução tecnológica é um fenômeno universal, que vai se dando em todo o mundo, que ameaça realmente o significado da cultura no mundo, o desenvolvimento de tudo que você possa imaginar como atividade cultural no mundo. Eu não sei o que vem por aí. Eu acho que isso tudo significa uma revalorização da cultura. Vou mais longe: uma revalorização da tradição, porque as pessoas se assustam. As pessoas precisam ter um pé no chão, precisam ter um senso de identidade, não precisa ser identidade nacional, precisa ser um senso de identidade cultural de algum tipo. As pessoas não são átomos soltos no espaço. Essa grande revolução tecnológica, pelo bem e pelo mal, vai acabar resultando em mais desenvolvimento cultural. 43


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Alfredo Manevy Secretário Executivo do Ministério da Cultura.

O que é diversidade cultural? Diversidade cultural é um espaço de convivência da diferença, das alternativas, das diversas formas culturais que fazem o Brasil. É um conceito que a ONU (Organização das Nações Unidas) e a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) vêm trabalhando no plano internacional. A teoria da cultura usa muito essa expressão, mas, no caso do Brasil, ela tem uma conotação política muito forte e muito poderosa, que é o reconhecimento de que a nossa diversidade, que as diversas expressões artísticas, culturais, das diversas regiões do país são uma força e não uma fraqueza. Parece pouco dizer isso, mas eu acho que é muito significativo lembrar que, há trinta anos, os governos militares viam a diversidade cultural como uma ameaça, como um perigo de dispersão territorial. Havia a preocupação que essa diversidade causasse a dispersão de uma visão de Brasil, de uma identidade que queria se criar de cima para baixo. E isso correspondia a conceitos e valores não só de quem estava no poder, mas de uma parcela grande da sociedade brasileira, que tinha vergonha da sua herança indígena e africana. Um complexo colonial que sufocava – e sufoca, podemos dizer ainda –, em certos setores da sociedade, a percepção de que essa diversidade é uma grande força, uma grande riqueza e um grande potencial do Brasil. 45


Não há um continente no mundo que não tenha deixado uma marca muito forte de aporte linguístico, cultural, simbólico, na formação da sociedade brasileira. E todo esse amálgama e essa constituição são diversidade cultural. Do ponto de vista de política pública, o conceito de diversidade cultural é um ponto de partida muito importante. Com ele, o Estado brasileiro deixa de ser o vilão da história, aquele que atrapalhava, que vinha atrás perseguir, e passa a ser proativo, reconhecedor e apoiador dessa força. O que foi a Convenção da Diversidade Cultural? A Convenção da Diversidade Cultural, promovida por diversos países que compõem a UNESCO, do sistema ONU, está para a cultura assim como o Protocolo de Kyoto está para o meio ambiente. Na globalização e na liberalização econômica, que está num estágio muito avançado no mundo, a tendência é a produção de uma homogeneidade de valores e de cultura pela circulação de mercadoria. Quem tem mais força econômica, tem mais poder de impor sua própria cultura para o consumo de outros países. Então, a tendência é ter-se poucos países produtores e muitos países consumidores de bens culturais. Só que bem cultural não pode ser tratado como sapato, como geladeira, como automóvel, como uma outra mercadoria que participa dessa globalização econômica. Um bem cultural diz respeito aos valores, às identidades, às tradições, aos pensamentos das sociedades. Essa convenção da UNESCO busca justamente resguardar o direito de cada país utilizar mecanismos de regulação econômica e jurídica para garantir o desenvolvimento dos seus mercados culturais e o acesso à cultura. E vai além, porque essa convenção não é só nacionalista. Há nela a preocupação de mostrar que é uma obrigação dos Estados, em relação a toda humanidade, preservar essa diversidade cultural, que eles têm direitos e deveres. E o Brasil teve um papel muito importante nesse processo. Gilberto Gil, o ex-ministro da Cultura, por ser um grande nome da cultura brasileira e mundial, usou muito da sua força simbólica para botar o Brasil, na reta final, como um dos países líderes dessa negociação. O Brasil e o Canadá tiveram um papel moderador, político, essencial nessa arena internacional. Houve um momento em que alguns países, como os Estados Unidos e Israel, não queriam assinar a convenção, e outros países, como a França, estavam preocupados em trabalhar a exceção cultural, utilizar a convenção para fortalecer uma política protecionista. O Brasil teve um papel muito importante na efetivação da Convenção da Diversidade Cultural. 46


Você considera o resultado final satisfatório? É só um primeiro passo, porque a Convenção da Diversidade Cultural é um documento político. É um acordo muito importante, mas precisa de ser implementado e assegurado. É preocupante que, em função da alternância natural de poder, muitos países que apoiaram essa convenção passaram, depois que trocaram de governo, a não ver com bons olhos esses tratados assinados e mudaram as suas políticas, reorientaram suas posições. Hoje os países do hemisfério norte estão se unindo para propor a ideia de que o mais importante dessa convenção é o fundo de apoio à diversidade cultural. Isso se tornaria uma espécie de FMI (Fundo Monetário Internacional) da cultura, algo que eu não vejo com bons olhos. A grande força dessa convenção é o poder regulatório, de colocar regras e estimular os estados-nação, os governos, a exercer políticas culturais. Esta é a força da Convenção da Diversidade Cultural: transformá-la num pequeno fundo para distribuir remessas de recurso para projetos de países pobres. É um modelo que volta ao passado. É uma tentativa de esvaziar essa convenção. Estamos vigilantes, muitos países têm observatórios da convenção, mas não podemos esperar a catástrofe que aconteceu com o meio ambiente para que a sociedade ganhe lucidez. Espero que, na cultura, a gente consiga se antecipar ao momento de catástrofe, que seria a perda de mais línguas indígenas, num ritmo mais acelerado do que o que temos visto no século passado, o fim de industriais culturais em países emergentes, de cinematografias, como o fim da Cinecittá, na Itália, por exemplo. A Itália não tem um cinema tão pungente quanto o dos anos 1960, e isso se deve à falta de políticas, de estratégias de Estado em mercado e de diversidade cultural, para criar espaços culturais autônomos, independentes. O que é o Plano Nacional de Cultura? A política pública de cultura no Brasil nunca foi pensada como uma política estratégica de Estado. Em alguns períodos do Brasil, no século XX, o Estado tinha uma relação com a cultura, mas o objetivo era criar totens de identidade, se associar, capitalizar uma relação com certos artistas, fomentar alguns, excluir outros, e censurar, cooptar uma relação. Claro que eu não posso deixar de reconhecer que, por exemplo, no Estado do Getúlio Vargas, quando Mário de Andrade trabalhou com o ministro Gustavo Capanema, foi criado o IPHAN, o primeiro serviço de patrimônio histórico do país. Mas isso foi num momento de exceção. Com a redemocratização do país, saímos do 47


binômio de um Estado presente, mas autoritário, para um Estado democrático, porém ausente. Na Nova República, o Estado se democratiza, mas as principais instituições culturais, como a Embrafilme e a Funarte, são eliminadas do arcabouço institucional. O próprio Ministério da Cultura é criado, depois desaparece, e volta a ser criado. Não há, de fato, uma percepção no Estado moderno brasileiro de que a cultura é um direito e uma necessidade básica da população. Ela é vista quase como uma esmola, que tem que ser dada para os artistas e produtores, que vão lá pressionar, que causam um incômodo. Política cultural no Brasil, até pouco tempo atrás, era somente uma reação à pressão de certos setores mais organizados da cultura, que conseguem se organizar, pressionar o Estado e retirar algum dividendo. As leis de incentivo refletem muito essa visão, a de um Estado que não quer se responsabilizar e formular políticas. Então, ele passa dinheiro da forma menos compromissada que existe, que é o incentivo fiscal: o dinheiro não passa pelo Estado, é retirado antes de entrar, via arrecadação de imposto. O Plano Nacional de Cultura é a expressão de um terceiro momento, de um Estado democrático, porém republicano, que se relaciona e que tem um papel na cultura. O Plano Nacional de Cultura visa estabelecer indicadores e fixar metas de dez anos, para que a política cultural possa pactuar bases comuns que transcendam oscilações políticas, mudanças de presidente e ministros da Cultura. A educação já tem o Plano Nacional de Educação. Um plano é muito importante, é um indicador de Estado, permite que a sociedade se organize para cobrar as políticas públicas. Eu defendo que o plano de cultura tenha metas para o Estado e metas para o mercado também, porque o mercado tem que ter indicadores de investimento e de participação nesse processo. Como pensar uma política que junte as urgências da área cultural, para, como você disse, evitar as catástrofes, com estratégias de longo prazo? O Brasil careceu e carece ainda de pensamento estratégico. Como sociedade, ainda estamos nos organizando para constituir estratégias consistentes de afirmação de aspectos potenciais da nação e da sociedade. O que a China está fazendo com animação, por exemplo, mostra o que é ter uma estratégia. Em dez anos, a China quer ser o terceiro maior produtor de animação do mundo. Eles fizeram uma análise e perceberam que são frágeis em software e profissionais na área, mas possuem uma tradição cultural forte, além de excelência em escolas de belas artes. Então, eles desenharam um diagnóstico do que 48


eles tinham, do que eles não tinham, e começaram a promover migração de cérebros dos Estados Unidos, de talentos da Índia, onde o software é ênfase, e já estão começando a produzir. O Brasil tem uma animação de primeiríssima qualidade. Há grandes talentos, que até pouco tempo atrás se expressavam só pelo curta-metragem. Agora, grandes nomes da animação brasileira estão indo para Hollywood. Então, tem que ter estratégia para manter os talentos no Brasil, e fazer da força da cultura brasileira, que é reconhecida no mundo inteiro, uma estratégia de constituição de um campo. O que o Ministério da Cultura vem defendendo é isso, que é preciso trabalhar no longo prazo, é preciso que o Estado tenha um papel fundamental nessa constituição desse campo. O Estado não substitui a sociedade; quem faz cultura é a sociedade, não é o Estado, mas ele cria as bases para a sociedade poder deslanchar e potencializar tudo que está aí presente. As livrarias, as videolocadoras, por exemplo, não são apenas espaços comerciais, mas também aparelhos culturais que estão enfrentando grande dificuldade de sobrevivência. Como evitar que fechem ou estimular a abertura de outros espaços? Com políticas públicas. É preciso ter políticas públicas em consórcio com o mercado. Agora, o mercado cultural tem que amadurecer no Brasil. Há uma desconfiança do Estado, há um imediatismo. Eu acredito muito em estratégia, mas o mercado cultural brasileiro é feito para poucos. É tudo para as parcelas A e B da população. O mercado não tem políticas promocionais para as classes C, D e E, salvo honrosas exceções. A TV a cabo ocupa uma faixa banal do mercado: não passa de dez milhões de brasileiros. Na Argentina, um país vizinho, a TV a cabo atinge metade da população. O mercado brasileiro é tímido, é tacanho, é para poucos, e são raros os setores que topam pensar estrategicamente, fazer propostas, se abrir para um debate maduro de construção de parceria Estado-mercado. Em outras áreas da economia brasileira se vê essa parceria, como siderurgia e agronegócio, mas a economia da cultura é tímida, não consegue se estruturar numa estratégia, tem muitos monopólios, cartéis, e quem é independente, pequenas e médias empresas, tem dificuldade de se estruturar. O que o atual Ministério da Cultura vem fazendo é reconhecer a economia da cultura como uma economia de estratégia. O Estado tem que se aliar a esse potencial da economia da cultura, e não olhar com desconfiança. Existe uma parcela da esquerda que olha para a 49


economia da cultura como um vilão da história, o que é um erro que vem de lá detrás. É preciso amadurecer. A esquerda moderna tem que olhar para a economia da cultura como um traço emancipatório e qualificador desse mercado, não como um inimigo. Não dá para criar uma sociedade alternativa para os artistas e para os produtores viverem separados da economia real. É preciso criar, na verdade, um deslocamento para novos modelos de negócios, uma economia descentralizada, pequenas e microempresas que possam se desenvolver criando uma economia, desonerando essa cadeia. Se o país mantiver esse nível de crescimento econômico, provavelmente, em décadas, nós teremos outras questões culturais, como novas imigrações e a integração com o oceano Pacífico. Como você vê isso? Você tocou em pontos que são decisivos. Esta é uma demanda do mundo hoje, em relação ao Brasil: que ele ocupe um papel de destaque internacional. Há um vazio de lideranças no mundo hoje, com o fim da Guerra Fria e a perda de credibilidade das lideranças que ainda são hegemônicas economicamente, mas não conseguem constituir discurso político. A grande contribuição que Lula deu, do ponto de vista dessa geopolítica internacional, foi ter percebido isso e colocado o país num patamar que se ajusta à demanda internacional. É uma questão de não se acanhar, abandonar aquele complexo colonial, complexo de vira-lata. O momento geopolítico internacional favorece reposicionamentos. Então o país não pode ficar olhando para dentro, para o próprio umbigo, sem se relacionar com os vizinhos. Investir nessa direção tem sido importante, é preciso criar redes, é preciso criar um mercado comum cultural na América Latina. É a cultura e a política que podem ser o diferencial da liderança brasileira. O fato do Brasil ser a grande democracia do BRIC, uma democracia vibrante, com uma forte diversidade cultural interna, diferencia o país da China, por exemplo. O Brasil tem uma mensagem a dar, uma contribuição a dar no plano cultural, que tem que ser pensada de maneira estratégica, não pode ser imperialista, no sentido de impor a cultura brasileira. O Brasil tem que entender seu papel novo no mundo e atuar com uma responsabilidade de ser parceiro, trabalhar com solidariedade, e não reproduzir modelos hegemônicos do passado. Fazendo um balanço, e pensando no futuro, o que é a mudança da Lei Rouanet, e o que ainda precisa mudar no financiamento cultural brasileiro? 50


A Lei Rouanet completa agora vinte anos e está em processo de mudança. No momento em que foi criada, a vida cultural brasileira tinha duas opções: ou a Lei Rouanet ou nada. A Lei Rouanet foi o que se ofereceu para a vida cultural do país. Uma instituição entrar em crise é normal. Só que na hora em que se entra em crise, o que você tem que fazer é modernizá-la, não suprimi-la, porque aquela necessidade, para a qual aquela instituição foi criada, continua existindo e vai se transformando. A posição política daquele momento, quando as ideias neoliberais eram muito fortes, no Brasil, na América Latina e no mundo de modo geral, era a de que o Estado não tinha papel na cultura, não cabia ter orçamentos públicos para a cultura. Pensava-se que cultura não é parte das tarefas essenciais do Estado brasileiro. Vinte anos depois, nós fizemos um diagnóstico, e os números falam melhor por si do que qualquer outro comentário mais ideológico ou político que possa ser feito. Três por cento dos proponentes captaram mais da metade de todo dinheiro. É uma concentração acintosa. Dos dez mil projetos/ano que são apresentados ao ministério, só 20% conseguem um patrocinador. O que eu mais vejo, quando circulo pelo Brasil, são bons projetos debaixo do braço do artista e do produtor. É o amadorismo, a informalidade, a dependência. A Lei Rouanet prometia uma relação madura com o setor privado, mas essa relação não se deu. O que existe hoje, no Brasil, é um modelo excêntrico. Nós não criamos uma economia da cultura, nem o chamado capitalismo cultural, que, em tese, a Lei Rouanet prometia. A Lei Rouanet aumentou a dependência do Estado, travestida de promoção privada. As marcas das empresas que usaram a Rouanet hoje desfrutam de uma imagem, na sociedade brasileira, que eu diria muito positiva. E eu não tenho dúvida que a Lei Rouanet fez isso. O problema é que as pessoas não sabem que esse dinheiro é público, que não há dinheiro dessas empresas na cultura. E é aí que a Lei Rouanet fracassou. Ela é 95% de dinheiro público e só 5% de dinheiro dessas marcas privadas. E se é o contribuinte quem está bancando, o dinheiro não pode ser distribuído dessa maneira, com essa concentração tão absurda. Isso significa então, no plano da análise, que, de todos os modelos de privatização, a renúncia fiscal foi a mais radical. Sem dúvida. Dentro de todos os modelos de privatização, ou de eliminação, supressão institucional do Estado brasileiro, a cultura foi submetida a um teste de laboratório. E isso trouxe consequências que desorganizaram o campo cul51


tural brasileiro de maneira profunda. Quando eu digo desorganizaram, é que o empresário cultural que existia nos anos 1970, criativo, que assumia o risco e construía processos culturais, deixou de existir e foi substituído pela figura do captador, que é uma nova forma edulcorada de chamar o dependente do Estado brasileiro. Eliminamos a figura do empresário, eliminamos a figura do risco. O risco é um conceito tão importante para o empreendimento quanto para a arte. Então, por consequência, também eliminamos o risco no campo simbólico, porque eliminamos a relação com o público, que é uma relação tensa e saudável. A Lei Rouanet absolve a arte da relação com o seu público e elimina a circulação social. Ela realmente diminuiu a esfera pública na qual a arte circula, é pensada e é interpretada. Ela engana, ao colocar marca privada com dinheiro público; ela concentra, na medida em que é muito difícil de captar; e ela constrange, na medida em que artistas precisam adequar seus trabalhos aos interesses do marketing das empresas. A arte não pode ser higienizada. O que mudou então? O Procultura, que é o nome do projeto de reforma da Lei Rouanet que o Ministério do Governo Lula mandou para o Congresso, depois de uma consulta pública, diversifica os mecanismos de apoio ao artista. O projeto entra no Ministério da Cultura, recebe um parecer técnico e, sendo aprovado, recebe o dinheiro. É simplesmente isso que muda. Uma questão central é a necessidade de desburocratização da arte. Quais são os instrumentos possíveis para manter um controle da responsabilidade com o recurso público, mas permitir que ela, inclusive, corra os seus riscos e reinvente os seus processos? Como não engessar o processo de criação? O Estado tem que saber diferenciar o papel da subvenção pública nesse processo. Existem projetos que têm que ter empréstimo, financiamento ou coprodução. A coprodução permite participar da receita de um projeto e retroalimentar um fundo público que estaria por trás desses apoios diretos aos artistas. É preciso reinventar a figura do empreendedor cultural no Brasil. Ao olhar para a história do tropicalismo e do Cinema Novo, percebe-se que tinha empreendedores inventivos por trás. O produtor é uma figura decisiva nesse processo, ele percebe o talento e é capaz de gerar o processo cultural. 52


Então, o Estado tem que entender que o seu papel é criar as condições para que esse produtor possa trabalhar de forma inventiva. E, para desburocratizar, acho que é preciso aumentar o mercado cultural brasileiro. Nesse sentido, o ministério defende, em primeira instância, o acesso à cultura como uma política de cidadania, de qualificação da cidadania. No Brasil, os números são muito ruins. Em torno de 90% da população, segundo o IBGE, não acessam cinema, teatro, livro, livraria etc. Então, um projeto como o Vale-Cultura visa incorporar em torno de 14 milhões de pessoas na economia da cultura no país. É a primeira política cultural que tira o seu foco da subvenção ao artista, para ampliar plateias e criar uma economia. No momento atual, se você quiser entrar no mercado e trabalhar para os 8% da população que consomem cultura, vai ter que bater na porta do Estado em algum momento, porque não terá como se bancar. O espaço é muito restrito. Então, é decisivo quando o Ministério da Cultura chama para si a responsabilidade de universalizar o acesso, em projetos concretos como o Vale-Cultura. E também desburocratizar os processos. Na reforma da Lei Rouanet, uma das metas é modernizar a gestão pública, justamente para esvaziar a figura dos intermediários. Para isso, propomos transparência, acesso e um processo mais dinâmico. Como o ministério está trabalhando a relação da cultura com a educação? O Ministério da Educação criou um catálogo de cursos do ensino técnico, superior e mestrado profissionalizantes. Esse documento é uma base importante de informações para descobrirmos os gargalos e trabalharmos para induzir as instituições de ensino a sanar esses espaços. Se precisamos, em cinco anos, ter cenografistas, técnicos de som, produtores culturais, gestores públicos, especialistas em linguagem crítica, todos os elos têm que ser contemplados. Isso é uma política para capacitação cultural. E o Ministério da Educação tem clareza que ele precisa fazer esse trabalho em parceria com o Ministério da Cultura, porque tem certas expertises importantes de serem contempladas. Como estimular a reflexão crítica sobre a produção cultural? A crítica cultural tem um papel decisivo na cadeia criativa da cultura. Tem um papel de qualificar os processos, de gerar espaços de reflexão e o amadurecimento estético dos processos culturais. Minha relação com a política pública se deve ao fato de que eu comecei a trabalhar com cinema no final 53


dos anos 1990, que era um momento muito difícil para o cinema brasileiro. Era difícil pensar em fazer cinema sem esbarrar em questões estruturais muito profundas do campo. Isso me atraiu muito para a política pública, porque eu vi que daquele jeito a gente ia ficar muito isolado num gueto de produção. Isolado da sociedade e da reflexão também. E, naquele momento, também percebi que a reflexão cultural tem um papel muito importante para evitar o corporativismo, que é um mal da forma política como a cultura brasileira se organiza para demandar, seja diante do Estado ou diante da sociedade. O costume é passar a mão na cabeça em nome da afirmação. É claro que eu entendo que, depois de um vazio que foi o período do Fernando Collor de Mello, o período do Fernando Henrique Cardoso, o setor tenha cerrado fileiras para defender a necessidade da cultura brasileira, mas não houve uma visão estratégica de incorporar uma visão independente do que estava sendo feito. O Brasil tem que desenvolver instituições independentes que consigam produzir a esfera pública, porque é ela que qualifica o artista nesse processo de debate. Todos os grandes momentos da arte brasileira estavam misturados a um processo de debates de ideias e de arejamento extraordinário. O papel do Estado nesse processo, e a gente defende isso no Ministério da Cultura, é fomentar essa crítica, criar espaços de autonomia desse pensamento crítico, com encontros, com periódicos, com publicações. Agora, no novo Fundo Nacional de Cultura, que é parte do Procultura, existirá um mecanismo de apoio para a crítica. A cultura e a arte brasileira são de imensa qualidade. A gente não pode arriscar perder força e dinamismo por um espírito de protecionismo, que não combina com a inovação. Quais são as prioridades para a política cultural na próxima década? Muita coisa. A língua portuguesa, por exemplo, é estratégica. A língua portuguesa é o terreno no qual a gente vai navegar, é preciso zelar por isso. A França tem política para o francês, a Espanha tem uma política para o espanhol. Muito agressiva, aliás. O Brasil tem que ter uma política para a língua portuguesa, feita em conjunto com os países da África, feita com Portugal, e feita com muita clareza de propósitos, para se fortalecer. Perceber que a música, a televisão e a literatura são grandes difusores da língua portuguesa no mundo inteiro. O Brasil tem que propor isso, e tem que ser algo feito pela cultura, pela educação e pelo Itamaraty, juntos. Isso é um tema que eu acho decisivo para esse processo. 54


Na área de internet, da banda larga, a gente precisa ter uma política para os conteúdos digitais, no sentido de criar polos de inovação, polos criativos de uploads de conteúdos culturais, para enriquecer a rede e ser o contrapeso da universalização da banda larga. Porque não adianta universalizar o serviço de conexão se a sociedade não está com todas as condições de trabalho, de ferramentas, de debate e de fluxos culturais para fazer o uso pleno dessas novas ferramentas. E tem a economia da cultura também. O Ministério da Cultura, nesses últimos oito anos, afirmou essa agenda no Brasil. O ministério abriu uma relação inovadora com o BNDES, que criou um departamento para a economia da cultura com a PECS, fez os estudos com o IBGE, ensaiou movimentos com a moda, com os jogos eletrônicos. Tudo isso é positivo. Agora, está na hora de ter uma política para a economia da cultura, percebendo que a universalização do acesso, combinada com uma política para pequenas e médias empresas culturais, contribuirá com um sistema de inovação, onde cultura, ciência e tecnologia estarão juntos. Essa é a grande tarefa, é uma onda que o Brasil não pode perder, porque a gente tem um grande potencial. Para o Brasil não ser somente um país agroexportador daqui a 50 anos, e depender desse modelo de economia, temos que pegar carona nesse momento, ter lucidez de afirmar esse terreno da economia da cultura como algo estratégico. É preciso, para isso, enfrentar alguns donos de terrenos, donos da bola, que tem aí na cultura brasileira e que não querem se modernizar. É um debate tem que ser feito. Tem que abrir essas caixas pretas e ter um arejamento, o Estado precisa ter políticas de capacitação, formação, apoio a esses núcleos, potencializar essa economia da cultura, assim como os americanos fizeram no início do século XX, quando o Estado entrou e criou Hollywood, botou bases para que aquelas nascentes companhias pudessem se desenvolver. Aquilo foi o modelo americano, eu acho que o modelo brasileiro não vai ser esse, de um cartel de empresas dominando o mercado. Pelo menos, não é isso que a gente quer. Acredito numa economia descentralizada, horizontal, valorizando os artistas e produtores, o direito autoral, o direito de acesso à cultura, e tudo isso bem harmonizado. Não precisamos imitar nenhum outro modelo.

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José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.

Na perspectiva desse segundo mandato do governo Lula, como se dá a estruturação das políticas culturais? A estruturação se dá, em primeiro lugar, através da criação de um campo de atuação política, com consequências dentro do universo das artes e da cultura. O ministério que foi encontrado pelos meus colegas, que começaram a trabalhar quando o presidente Lula assumiu, era um Ministério da Cultura à míngua, que praticamente não existia. Então, quem quisesse achar o Ministério da Cultura até 2003 não encontrava nada, a não ser um balcão clientelista que dava acesso a alguns poucos artistas, apesar de muito conhecidos, e com trabalhos muitas vezes fabulosos. Alguns desses artistas, inclusive, tinham sala dentro do próprio ministério. Essa é uma informação de bastidores, que é muito grave, mas também muito reveladora no nosso entendimento. Hoje, o ministério é uma coisa totalmente diversa. É uma instituição que desenvolveu instrumentos essenciais de planejamento e que, por isso, conseguiu ter, em 2010, um orçamento que garante que tudo que foi formulado ao longo desses anos possa ser traduzido em ações concretas para os artistas e produtores culturais, sob forma de investimentos no desenvolvimento cultural do país. E não como gastos clientelistas, ou que não se traduziriam em ações com sequência e consequência para esse desenvolvimento. Então, o que a gente 57


entende por política cultural, na verdade, é um conjunto de políticas, de programas e de ações, que tem sequência e consequência na vida do país. A visibilidade que o Ministério da Cultura tem hoje é, na verdade, um sintoma de uma recomposição, de uma reconfiguração de todo o campo das artes, da cultura e da relação do Estado com a sociedade. Não é mais uma relação de sociedade contra Estado, num velho mote do nosso querido Pierre Clastres. Não é nem Estado mínimo, característico dos anos 90, nem o Estado máximo, que interferia no conteúdo das políticas culturais, característico do período militar. É um estado democrático, consciente das suas responsabilidades, e disposto a construir ações, programas e políticas para todos os setores, da moda ao design, da poesia à arquitetura, em parceria, em colaboração com os artistas e com os produtores culturais. Qual é a concepção de cultura desse ministério? Em primeiro lugar, se o ministério e o setor cultural conseguiram avançar ao longo desses anos, foi numa ampliação, num aprofundamento do que se entende por cultura. A partir de 2003, se passou a adotar como conceito de cultura o que normalmente a gente classifica como conceito antropológico. Cultura é tudo aquilo que tenha digital humano, em qualquer atividade. E, nesse sentido, a moda, apesar de ser uma indústria, constituída como tal, e até muito recentemente, do ponto de vista das políticas públicas, restrita ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, passou a ser entendida como um território de atuação humana muito marcante. E, portanto, com consequências muito claras para a vida cultural do país. A gastronomia, a arquitetura e o design, que também sempre orbitaram em torno da questão industrial, da reprodutibilidade técnica de obras, e que tinha muito conceito e muita cultura por detrás, foram se aproximando, o ministério foi trazendo essas áreas para o seu campo gravitacional. Atraiu também as chamadas culturas populares, que é um conceito em debate, algo que a gente agora está precisando aprofundar cada vez mais. Isso sem esquecer o atendimento daquelas categorias mais tradicionais, ou que se relacionavam de forma mais tradicional com o governo, que são as chamadas belas artes: música, artes cênicas, literatura, artes visuais, áudiovisual. Esse é o território tradicional de atuação do Ministério da Cultura. O Ministério, do ponto de vista da organização do seu pensamento, da organização do seu discurso, fala muito das três dimensões: a dimensão simbólica, a da cultura como cidadania e a da cultura como economia. 58


Agora, no meu ponto de vista – e aqui eu vou radicalizar um pouco alguns fundamentos do nosso próprio discurso, porque eu acho que a gente está num momento de debater as nossas próprias premissas –, é preciso entender que cultura não é necessariamente algo bom. Eu acho que todos lembram de uma frase do Stockhausen, quando os companheiros de Bin Laden invadiram as torres gêmeas, e ele disse que a aquela era talvez a maior obra de arte da história. Radicalizando o entendimento antropológico da cultura, é preciso pensar que isso tudo faz parte da cultura, todas as belezas e todas as tragédias da experiência, da saga humana sobre o mundo, da digital humana sobre o mundo. Então, o que me preocupa, quando a gente acentua, talvez de forma um pouco irrefletida, a importância e a abrangência do conceito de cultura, é que a gente comece adotar uma ideia de cultura como o reino das belas positividades. É preciso pensar e incorporar outras questões, como, por exemplo, a violência, a própria saúde, ou outros âmbitos de preocupação, para dentro do horizonte do pensamento cultural. Nós viemos de um ciclo de afirmação da cultura como algo maior do que uma relação estreita entre classe política e artistas de territórios muito específicos, mas é preciso também ampliar esse debate, e começar a trazer questões mais complexas e mais duras, que as pessoas têm muito pudor de debater. A cultura não é apenas o território das positividades. É também o lugar onde se dão debates muito difíceis, e onde existe violência simbólica. Isso é importante. Uma questão bastante discutida é a da burocratização da cultura por meio dos processos de produção que estão sendo criados, e que vem muito de uma política de desconfiança, de ter que mostrar o que se produziu, e como se produziu. Como lidar com isso? O Estado brasileiro é burocrático, e não é de uma burocracia weberiana, vamos dizer assim. É um Estado em que a construção de processos intermediários de apresentação e justificação do que precisa ser feito se prestam muito para o pensamento conservador. Não é preciso ter lido Sérgio Buarque de Holanda ou Raymundo Faoro para perceber que o Estado brasileiro se constitui como uma dificuldade para o desenvolvimento do país, e dificuldade nesse sentido. Debate-se muito a chamada Lei 8.666, e talvez seja o caso de discutir isso aqui também. Ao longo dos anos 90, se permitiu supostamente para o território do mercado, ou da iniciativa privada, das empresas, e dos artistas, todas as facilidades no uso do dinheiro público, e o Estado, ao se desrresponsabilizar de 59


qualquer competência em relação à cultura, ficou com todas as dificuldades. Então, hoje, quando se fala em Lei Rouanet, é preciso pensar que todo custo econômico da operação de incentivo fiscal fica por conta do Estado, mas quando ele mesmo precisa investir e fazer o dinheiro público chegar a um grupo cultural, não encontra nenhuma das facilidades. Quando eu debato com produtores culturais, eles falam que a lei de incentivo fiscal é extremamente burocrática, que é muito difícil usar a Lei Rouanet. É triste dizer isso, mas é muito mais fácil para o produtor cultural do que para o próprio Estado. Se quisermos apoiar um grupo de cultura, como um teatro de rua ou uma ópera, dentro de uma política de apoio e estímulo à produção cultural no país, temos que exigir que esse grupo tenha a capacidade de se estruturar como uma grande empreiteira, e isso é brutal. Essa é, na verdade, a melhor forma da gente não conseguir fazer nada. Ou seja, nós estamos hoje tocando na ferida da lei de incentivo, do sistema federal de financiamento à cultura, mas é preciso perceber que existem questões que vão muito além de uma lei específica e que precisam ser discutidas e modificadas. O Estado brasileiro precisa ser reformado, essa é a questão. Se o Brasil quiser, de fato, se reposicionar numa configuração geopolítica mundial, como um player, e não como um display numa suposta sociedade de conhecimento, é preciso que o Estado brasileiro deixe de ser o impeditivo do desenvolvimento do país. E deixar de ser um entrave não significa não ter responsabilidade. Pelo contrário, ele precisa assumir a responsabilidade que tem sobre vários campos, como a cultura, a saúde, o meio ambiente, a educação. Precisa assumir a regulação e a indução das políticas nesses campos. E precisa também ter condições de financiar, atuar, fazer o recurso chegar e conseguir acompanhar a execução daqueles projetos. Hoje, na Secretaria de Fomento do Ministério de Cultura, tem milhares de projetos cuja prestação de contas ainda está pendente. Alguns projetos de dois, três anos atrás. O volume é muito grande. Em 1992, quando a Lei Rouanet foi criada, foram aprovados 10 projetos. Em 2009, foram aprovados 12 mil projetos, e o ministério não cresceu 1.200 vezes. Eu olho aquela sala gigantesca, cheia de projetos e processos acumulados, e me pergunto qual é a importância fiscal daqueles documentos. Em algum momento o Estado percebeu, ou está percebendo, que é isso que precisa mudar. A preocupação sobre o acompanhamento desses projetos não deveria estar na prestação de contas fiscal, porque isso, na verdade, não revela nada, ou revela muito pouco. É claro que precisa ter uma segurança fiscal, de que aquele investimento foi feito, mas num grau muito diferenciado do que existe hoje. 60


Quando tivemos uma política cultural confundida, praticamente, com a renúncia fiscal, nós tivemos o modelo mais radical de privatização de todo o processo de privatização? A renúncia fiscal se travestiu de política cultural durante esses 18 anos, isso é algo que precisa ser enxergado com total clareza. Não existia, até recentemente, uma política cultural contemporânea no país, existia um mecanismo de lei de incentivo, que brincou, se fantasiou, de política cultural. O Estado brasileiro, na sua configuração neoliberal, ao contrário do que ele preconizava, gerou mais dependência do que qualquer coisa. O risco, que é tão importante para o negócio quanto para a criação, saiu da atividade artística. A lei de incentivo não estimula as duas pontas do sistema cultural, que são, por um lado, o risco, a inovação, e, por outro, as instituições. Elas também vivem à míngua, e hoje disputam com o produtor cultural um recurso que é escasso no país inteiro. Hoje, a Pinacoteca do estado de São Paulo disputa um recurso, dentro da lei de incentivo, com qualquer produtor cultural do país. Não só a Pinacoteca, mas as nossas principais instituições. Essas instituições, para existirem, custam muito caro, porque precisam ter um planejamento e uma perspectiva de longo prazo, que é outra coisa que a lei de incentivo atual não patrocina sobre nenhuma hipótese. O horizonte da lei de incentivo é sempre um horizonte humano. O projeto hoje é algo que tem data de fabricação e prazo validade. Não pode durar mais do que aquilo. Se durar mais, o cara tem problema de prestação de contas, e a relação com o patrocinador azeda, porque o patrocinador tem que perceber e aferir as suas conquistas, do ponto de vista de mídia espontânea, de uma comunicação de marca mais imediata. Então, é um sistema que é medíocre nesse sentido. Só estimula o médio. No limite, quando o Estado brasileiro aponta a necessidade de se tratar com clareza esse problema, o que ele está fazendo é um deslocamento de dinheiro, por um lado, e um deslocamento de poder político, por outro. Theodor Adorno dizia não acreditar na sociedade em que as oportunidades não pudessem ser desperdiçadas. Como lidar com o risco, o erro, o fracasso? É difícil falar. A gente fica criando categorias discursivas que, às vezes, não correspondem, não são espelhos da vida, de como as coisas acontecem. Mas o campo cultural vive hoje numa zona de conforto. Tem um companheiro 61


nosso de debate, por exemplo, que fala que o teatro brasileiro nunca vai dar dinheiro, que é necessariamente deficitário, e que ninguém vive de bilheteria. Essa é talvez a frase mais desoladora de se ouvir. O teatro, o cinema, e muitos outros campos artísticos do Brasil, não conseguiram se definir entre arte e entretenimento. Portanto não conseguem se definir entre risco, inovação, e negócio. Não percebem que essas são moedas cambiantes, que é possível gerar negócio gerando inovação. E que é possível gerar risco onde, normalmente, só se enxerga a preservação de uma zona de conforto. E esse é, também, o papel do produtor cultural. Uma coisa que precisa ser debatida é o que aconteceu com o produtor cultural brasileiro, que sempre foi um instrumento, ou um elemento, de indução do risco. E que fazia, muitas vezes, com que os artistas embarcassem no risco e produzissem resultados fantásticos para o cinema, para a música, para as artes cênicas. Hoje, o produtor funciona quase como um controle, como um tribunal de contas permanente na cabeça do artista, sempre zelando para que ele tome muito cuidado, não exagere. O motivo disso é que eles têm, por detrás deles, um sistema legal de avaliação de projetos que só aceita a parte fiscal. Não existe comprometimento da produção cultural com algo diferente da logística do projeto e da prestação de contas. Isso precisa mudar. É preciso recuperar esse produtor criativo? Não sei se é possível recuperar, gostaria que fosse. Acredito que, quando o Aloysio de Oliveira criava um elenco, ou quando o Hermínio Bello de Carvalho inventava um programa para a TVE, eles mesmos arcavam com as consequências felizes ou infelizes, com os resultados. Não estavam ali dependendo de uma estrutura de preservação e, portando, de conservação. E isso se traduzia em avanços mais claros para a arte brasileira. Hoje, eu não sinto isso. Vejo o artista como uma espécie de Verônica vendendo sua cara nas revistas, e o produtor como uma espécie de superego do artista, repressor, controlador. O território hoje é de preservação, de conservação da zona de conforto, de impossibilidade total de risco. E as leis de incentivo financiam tudo, menos o ócio, a loucura, o delírio, que é fundamental para qualquer sistema. Imagina o Roberto Piva tendo que prestar contas do Paranoia? Mas com toda a mudança de paradigma tecnológico, com os processos colaborativos aparecendo novamente, isso não vai despertar? 62


Eu estou aqui hoje fazendo um pouco o papel de crítico de nós mesmos. Parece que no Brasil, subjacente à formação cultural, existe uma disposição para formas associativas. Vejo isso muito claramente hoje. Isso está tomando conta, em alguma medida, da produção cultural. Mas é preciso tomar muito cuidado com isso também. E esse é um debate que a gente deveria fazer, por exemplo, em relação aos Pontos de Cultura, que são uma grande rede de iniciativas da comunidade. Sem querer fazer o exercício de cânone, é preciso tomar cuidado em relação ao grau de apuro, ou de intensidade de voltagem estética, do que é produzido nesse universo. E eu sinto certa despreocupação com o acabamento, com a arte-finalização dos projetos culturais que são desenvolvidos nessas relações de rede. Como se a rede fosse, por si só, um produto estético. E a gente sabe que não é. O Gil fala em uma música do disco Banda Larga Cordel que é preciso tomar muito cuidado, porque você pode fazer seu samba, mas tem sempre o samba bom e o samba ruim. Isso é uma coisa que deve estar no foco de atenção de todos nós. Como fomentar a crítica da produção cultural? Quem são esses agentes da crítica, e quais são esses espaços? É um espaço difícil. A internet, talvez, tenha um papel importante nessa medida. Mesmo porque a gente assiste a uma derrocada supostamente heroica da crítica nos grandes jornais brasileiros. A crítica se ajustou às normas que o sistema de financiamento à cultura criaram, virou uma crítica de evento, de circunstâncias. Uma espécie de grande coluna social, ou de grande radiografia de aplicação de recursos. Com algumas boas exceções, claro. A própria reforma editorial que o Estadão fez recentemente é um sinal disso. Ele criou cadernos de música, de literatura, que não têm exatamente espaço para a crítica. O sistema de financiamento que não incentiva a inovação, e que não incentiva as instituições que, de alguma forma, são padrões de referência, inclusive para o estabelecimento de paradigmas, de parâmetros para o pensamento crítico, não vai estimular a crítica. Imagina chegar numa empresa pedindo apoio para editar uma publicação de crítica literária. Você não vai conseguir, ou vai conseguir de forma totalmente descontinuada. Agora, por exemplo, está sendo lançado o Fundo Nacional de Cultura, e é preciso debater em que medida ele deve atender à chamada demanda reprimida do incentivo fiscal. Aquelas áreas que o incentivo fiscal tradicionalmente não atinge, porque não se interessa, não faz sentido atingir. E a crítica cultural 63


aparece num desses horizontes. Isso cria até uma situação engraçada, que é ter o Estado estimulando a crítica. Depois de oito anos de governo, quais são os próximos passos? O que precisa ser feito? A questão é anterior, é pensar o que é reversível e o que é irreversível, independentemente da configuração política que vai ser resultado do processo eleitoral. Existem algumas coisas que podem ser alteradas, mas tem muitas coisas irreversíveis. É preciso prestar atenção, porque podem ser tristemente reversíveis. Irreversível, em primeiro lugar, é a ampliação do entendimento do campo de atuação do Ministério da Cultura. Não estou falando isso só por uma questão política, ou político-institucional, é porque isso reflete a importância que a cultura tem neste momento, em que o grande debate se dá sobre o desenvolvimento. É interessante pensar que uma boa parte da inteligência brasileira se afirmou pela crítica do conceito de desenvolvimento, ou pela reiteração de determinados conceitos de desenvolvimento. E, hoje, esse debate está aqui de volta: planejamento, desenvolvimento. Existe uma falsa polarização entre desenvolvimento e meio ambiente, e a cultura tem uma contribuição decisiva para dar nesse aspecto. Até porque a própria capacidade de perceber o meio ambiente é um fator de natureza cultural. O grande debate tem que se dar em relação ao desenvolvimento com cultura. E com cultura significa com meio ambiente, com algo que vá além do imediatamente tangível, do conceito tradicional de infraestrutura, do que se entende habitualmente por desenvolvimento econômico. O reposicionamento do Brasil no mundo depende da afirmação de um modelo de desenvolvimento que seja novo e não seja retórico. Depende da percepção de que o desenvolvimento não se dá apenas pelo Pré-Sal, pela ampliação dos portos, dos aeroportos. Mas que tudo isso, na verdade, são condições para que a experiência humana de uma sociedade possa se estabelecer num novo patamar, que pode ser exemplar, no melhor dos sentidos, no mais livre dos sentidos, para a humanidade. A política internacional brasileira, de certa forma, encarna essa preocupação. Mas não acho que isso se reflete dentro do país. Se a política interna brasileira se aproximasse mais dessa perspectiva, daríamos um passo muito largo. Digo, sem medo de errar, que o que trouxe a Copa do Mundo e as Olimpíadas para o Brasil foi a diversidade cultural brasileira. E diversidade cultural não é uma coleção de borboletas. 64


Não é dizer que aqui tem índios, negros, ciganos. É muito mais sofisticado do que isso. Tem relação com a predisposição fundamental da sociedade brasileira em se realizar através de formas associativas, ou em rede. O Brasil pode ser um elo muito importante numa grande rede de re-humanização, ou de humanização da política, que passa pela qualificação de modelos de desenvolvimento, geração de riqueza sob um novo patamar, muito diferente do que ainda se dá no debate político interno. As conquistas que o Ministério da Cultura e o Ministério do Meio Ambiente, por exemplo, realizaram ao longo desses anos, não são conquistas apenas desses órgãos. São sintomas, reflexos, de um conjunto muito amplo de conquistas da sociedade brasileira, que está tendo coragem de debater. Tudo está sendo debatido no país. Muitos têm medo e manifestam esse medo. O que é uma coisa assustadora no nosso campo: os artistas se tornaram conservadores. Eles, que sempre estiveram à frente de grandes processos de mudança de ordem comportamental, cultural, hoje, muitas vezes, são conservadores. Mas, de qualquer forma, estamos num momento em que tudo está sendo debatido. Existe um apagamento ou uma diminuição de fronteiras entre as áreas,as governanças, os ministérios? Existe um exercício de refazer encontros? É um exercício de desfazer divórcios históricos. Alguns colegas meus dizem que é preciso criar um Ministério da Arte e acabar com o Ministério da Cultura. Eu digo que é preciso criar o Ministério da Cultura da Fazenda, o Ministério da Cultura do Planejamento, o Ministério da Cultura do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Vivemos um momento de desfazer algumas fronteiras históricas, que foram artificialmente construídas por necessidades institucionais, políticas, de afirmação de diversos campos, mas que não são mais sustentáveis. Não geraram muitas consequências boas. Geraram, por exemplo, uma educação totalmente desaculturada, uma cultura desvinculada de processos educacionais, uma tecnologia que não pensa em conteúdo, uma organização do setor econômico que não pensa no desenvolvimento social. Geraram segregações de toda natureza. Acredito que os grandes governantes serão aqueles com capacidade de síntese, e não aqueles que reiteram o discurso da especialização.

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Márcio Meirelles Secretário de Cultura do Governo da Bahia.

Como você vê a cultura baiana? A Bahia é rica em invenções. O trio elétrico talvez seja o primeiro software livre. Todo mundo replica, usa, e não tem direito autoral. A invenção não foi registrada, não tem patente. Na verdade, o carnaval é uma grande invenção que vai se renovando ano a ano. A história do carnaval é uma história de invenções, de gestão, de indústria cultural, de como é essa negociação entre a produção artística, a invenção, a transgressão e a utilização das invenções para um fim comercial. A grande indústria cultural da Bahia é o carnaval: ele movimenta, em Salvador, R$ 500 milhões por ano, e somente 10% disso são do estado ou da prefeitura. O resto é investimento privado. E são números que a gente não sabe muito bem, pois é claro que os grandes blocos, trios e camarotes não abrem a questão de patrocínio, por exemplo. A Bahia, na sua história recente, viu uma relação muito próxima da cultura com a política. Conte um pouco sobre isso. A Bahia, de 1945 a 1964, viveu um período incrível de desenvolvimento econômico, cultural e intelectual. A descoberta do petróleo foi acompanhada por um grande desenvolvimento cultural. Aquela época foi a última vez em que se pensou, de fato, a cidade de Salvador, que se fez um plano diretor. A 67


Lina Bo Bardi foi para lá, o Edgard Santos criou as escolas de arte e o Seminário de Música, o Martim Gonçalves criou a escola de teatro. Foi um momento de referência para o Brasil e o mundo, que possibilitou depois o surgimento do Cinema Novo e da tropicália. Tudo isso vem desse caldo de pensamento que estava ali borbulhando. Em 1964, houve o golpe, e esse cenário foi, de certa forma, desarrumado. A ditadura começou a tomar para si o mérito do desenvolvimento, mas o que houve, na verdade, foi uma interrupção. E essa política, esse grupo político e econômico que foi se consolidando a partir de 1964, continuou no poder até há pouco tempo. Houve alguns momentos de oxigenação, como o governo do Roberto Santos, que, apesar de ser um governador colocado pela ditadura, tinha outro pensamento. Ele era filho de Edgard Santos, então trazia todo um pensamento cultural. E também o governo do Waldir Pires, que infelizmente foi um caos, uma loucura, porque ele estava cercado por todos os lados. Não era possível um governo de esquerda naquele momento e naquele lugar. Foi uma votação expressiva, uma vitória incrível, mas depois Waldir Pires não conseguiu governar. E ele se cercou de bons nomes, que traziam uma proposta interessante para a cultura. Isso só mudou com a entrada do Jacques Wagner no governo? Sim, porque é um governo de esquerda aliado com o governo federal. E aí se fez possível essa transição, essa mudança na cultura. Então, a cultura forjada e manipulada pela ditadura continuou até 2007. Foram 43 anos de um mesmo sistema, um mesmo pensamento, um mesmo direcionamento político. O que houve foi a eleição de alguns ícones, alguns nomes, alguns gêneros, um recorte na vasta cultura baiana, e esse recorte foi incentivado e divulgado à exaustão. A indústria do axé, por exemplo, se beneficiou muito com isso e virou quase uma monocultura. Não houve o fomento à diversidade, o fortalecimento da produção independente, da sociedade civil, das organizações. Então, você tem uma produção cultural completamente frágil, quase infantil na forma informal de tratar com gestão, com produção, com o mercado. A Bahia é um dos estados que passa por uma junção entre uma arte de vanguarda e a questão da arte popular. Como criar uma política que permita que essas duas áreas se desenvolvam? O Estado tem que lidar com a cultura de duas formas. De um lado é pensar a cultura como direito básico, como serviço. Disponibilizar o acesso 68


à cultura de uma maneira geral. Por outro lado tem que fomentar essa produção. Evidentemente que cada setor merece um olhar especial e tem que ter ferramentas especiais. Se você faz um edital, é possível que o produtor cultural que faz, por exemplo, o Terno de Reis, no interior da Bahia, tenha dificuldade em concorrer e em dialogar com o Estado. Então, é preciso pensar programas como o Agricultura Familiar, por exemplo, para pegar toda essa produção cultural popular. É muito complexo lidar com os mestres populares, é preciso tratar esse tema de maneira muito delicada. É preciso ser muito delicada a intervenção do Estado nesse tipo de produção. A produção cultural da Bahia, hoje, é muito conduzida pelo turismo, porque durante os 12 últimos anos, antes de 2007, tivemos uma secretaria única para a Cultura e o Turismo. Essas lógicas estavam muito próximas, muito uma a serviço da outra, o que é muito complicado. Você declarou o seguinte:“Minha tese era a de que os ritos de candomblé eram como óperas:tinham música, dança, narrativas de sagas de heróis. Se tanto as tragédias gregas quanto o teatro nô japonês têm origem nesses mitos heroicos, por que os rituais afro-brasileiros ainda não tinham se tornado teatro?” Fale um pouco sobre isso e também sobre o que é o Bando de Teatro Olodum. Essa tese foi comprovada ou afirmada em 2003, quando um Ogan, que era um Ogan da música, trabalhou com a gente em uma peça que eu dirigi no Rio de Janeiro, chamada Candaces. Ele disse que, quando o Orixá é incorporado pelo filho de santo e aparece na festa pública, ele tem diferentes características. Não existe um único Xangô. Existem várias faces, vários momentos desse herói. E, quando ele chega, começa-se a contar a história daquele herói. Isso é cantado por um coro, por uma orquestra, e dançado por outras pessoas. Então, se a gente transfere isso, esquece o sagrado e passa para a dramaturgia, temos a mesma estrutura de uma ópera oriental. Do teatro Nô, enfim. Eu pensava muito por que motivo isso nunca virou teatro, e comecei a entrar em crise com a dramaturgia ocidental. Apesar de meu grupo de teatro sempre ter conquistado público, eu sentia que havia uma distância entre o palco e a vida real. Via que tinha muito negro, mas os negros não estavam no palco. Não tinha atores suficientes para a quantidade de negros que tem na Bahia. Então resolvi fazer um projeto de teatro para a prefeitura e acabei me aproximando de grupos como o Ilê Aiê e o Olodum. Quando acabou o projeto-teatro, eu e João 69


Jorge conversamos. Ele queria trabalhar com outras linguagens no Olodum e eu queria me associar a alguma instituição ou a alguma casa de candomblé, ou de afoxé. Enfim, alguma instituição com matriz nessa cultura afro-brasileira. Comecei a trabalhar com eles, e criamos o Bando de Teatro do Olodum. E qual foi o método de trabalho? Começamos, a partir de oficinas, a chamar atores, que na verdade não precisavam ser negros – na época, agora precisam –, mas precisavam ter um compromisso com essas questões, com essa cultura. Não precisava nem ser ator, nem ter currículo. E vieram vários atores de uma rede de teatro periférica, subterrânea, incrível, de teatro amador, de teatro de bairro, do movimento negro, de teatro de igreja. Eu comecei a ver esse universo inteiro, que é normalmente invisível, que é o universo do teatro da periferia. Eles traziam uma forma de representar o mundo muito interessante. Então eu preferi abrir mão do que eu sabia e do que fazia e começar a construir uma metodologia com eles, a partir do que eles traziam. Aí foi um processo de troca muito grande. No princípio, as pessoas estranhavam aquele jeito de interpretar e começaram a achar que eles eram os personagens. A imprensa, por muito tempo, tratou o Bando como um projeto social, mas nunca foi um projeto social, sempre foi um projeto estético, artístico e político. E cada vez mais a gente foi entendendo que fazer teatro é isso, é uma assembleia política, um debate político o tempo inteiro. Eu venho disso, comecei a fazer teatro na universidade, em 1972, durante a ditadura, e fazia teatro como uma arma de luta. A gente foi insistindo, insistindo, insistindo, até que Caetano Veloso reconheceu o Bando e aí a imprensa mudou de opinião. Fale um pouco das peças e das pessoas. A gente começou a fazer a oficina de teatro e a construir um método, que partia da célula do teatro, que é como construir o personagem. A gente ia para a rua observar as pessoas para fazer o personagem. Conversávamos com elas para pegar o jeito de falar, de se mover. Não era uma pesquisa acadêmica, era mais um corpo a corpo, um imitar, e de repente esses personagens ganhavam um caráter coletivo. Eles não eram personagens psicológicos, não tinham dramas pessoais, eram dramas e tragédias de uma comunidade inteira. A partir disso, construímos nossa primeira peça, que foi Essa é a nossa praia. Os personagens tinham essa característica de máscara social, e a tradição 70


do teatro popular nos ensinava isso: esses arlequins, esses joãos-grilos, são personagens que aparecem em várias histórias e têm uma função. No teatro popular, o personagem tem aquela função, mas aparece em várias situações diferentes e reage de formas diferentes. Ele representa a classe operária, a elite, o intelectual ou seja lá o que for, mas ele se move de forma diferente dependendo da situação e tem uma linha de conduta que é reconhecida pela audiência. Essa é a nossa praia era para ser uma peça de final de oficina, mas foi um sucesso. Ficamos quatro anos em cartaz e a partir dela fizemos mais duas peças com esses mesmos personagens, Ó Paí Ó e Bye, Bye Pelô. Assim se formou a Trilogia do Pelô. Quando fizemos a primeira peça, a reforma no Pelourinho ainda não tinha começado; na segunda, ela já estava em andamento, e as pessoas já estavam sendo botadas para fora. A terceira peça já é sobre a reforma, sobre as pessoas que saíram, as que ficaram, sobre como a cultura se transformou e como as relações se transformaram a partir da interferência da reforma naquele espaço urbano. Ao mesmo tempo, a gente ia pesquisando essas questões de candomblé no novo mundo, trabalhando também com dramaturgia clássica, e aí, finalmente, fizemos A Medeia Material, que foi o primeiro grande salto do grupo. Trabalhamos com Vera Holtz, Guilherme Leme e o Heiner Goebbels, em uma peça de Heiner Müller. O Heiner Goebbels era um músico que trabalhava muito com Heiner Müller, e juntamos ele com o Neguinho do Samba. Ele compunha a trilha de Jazão, que era o colonizador. O Neguinho do Samba era o ritmo do povo. Essa peça mudou a visão do público sobre o Bando? Sim. Finalmente se reconheceu que o Bando era um grupo de teatro. Foi a inauguração do teatro Castro Alves, era uma grande ópera, com um orçamento de grande produção para a época. A gente viajou, ficamos um mês em São Paulo, houve muito debate sobre a peça. Em 1997, teve uma outra virada do grupo, que foi O Cabaré da Raça, que está em cartaz até hoje. Tinha saído a revista Raça, que mostrou que temos uma classe média negra consumidora forte, e a gente começou a trabalhar sobre isso, sobre o negro como consumidor e como objeto de consumo. E foi um salto, porque na época a gente tinha tido a notícia que somente 1% da plateia de teatro na Bahia era de negros. Isso é uma aberração em uma cidade onde 80% da população é negra. A gente sabia, através da revista Raça, que não era por falta de recursos: tem 71


uma classe média consumidora, então por que que essa classe média não vai ao teatro? Fizemos, num golpe de marketing, uma política afirmativa. Quando se estava começando a discutir sistema de cotas, anunciamos que íamos cobrar meia-entrada para negros, e isso foi um escândalo nacional. O Boris Casoy disse que era uma vergonha, que era racismo ao contrário e por aí vai. O Ministério Público pressionou a gente a mudar de ideia, porque o promotor não queria que o primeiro processo contra racismo fosse contra nós. A gente fez um grande debate sobre essa questão das cotas, de política afirmativa, e todos na Bahia assumiram que eram negros, então todos podiam pagar meia-entrada. Aí foi bom, porque foi um grande debate, e percebemos que a plateia negra não era toda de amigos, convidados, parentes, pessoal da comunidade. A partir de Cabaret da Raça, 60% da plateia do Bando, pelo menos, eram negros e pagantes. E isso para a gente é um grande mérito. Além do Bando, outros grupos de Salvador se abriram para a temática do negro no Brasil? Percebemos o ar do tempo e saímos junto. Já havia um movimento grande de orgulho negro, do movimento negro, desde os anos 1960, que vem com o Ilê, com o Olodum, com a música, principalmente com o carnaval na Bahia se afirmando com uma nova estética. O Bando Teatro Olodum vem junto com isso, ele não seria possível se toda essa luta do negro não estivesse em marcha. E o Bando se tornou uma referência para os jovens negros da periferia, para os jovens negros do centro. Então, agora você tem vários grupos de atores negros, tem um núcleo de atores negros dentro da universidade. Passando para o seu trabalho como gestor cultural, como manter esse acervo vivo, em eterna mutação, da arte popular,tradicional, sem engessar o processo desse trabalho? Isso também é um desafio. No carnaval, a gente tem um programa chamado Ouro Negro, porque um setor enorme do carnaval é de matriz africana, são os blocos afros, afoxés, de percussão, com uma herança africana forte. Eles são a base do carnaval, são a matéria-prima do carnaval industrial, mas não recebem royalties dos ritmos. Não existe a legislação dos direitos autorais comunitários, que permitiriam isso. Então fomos apoiar o segmento de matriz africana e paralelamente ao apoio financeiro começamos a trabalhar a qualificação de gestão, a fazer oficinas de média e de longa duração, e agora eles 72


já estão criando uma espécie de associação. O carnaval ficou fortalecido, vivo e vibrante, e a gestão se reflete também no desfile. Agora queremos trabalhar a questão estética também, porque foi se misturando e se perdendo. É um processo que você não tem como controlar, e nem deve ser controlado, mas a gente precisa dizer aos afoxés que eles têm história, que eles podem fazer o que quiserem, mas podem se retroalimentar. Essa hibridização pode ser por motivos econômicos, ou os afoxés mudam, se adequam, ou não sobrevivem? Como libertar a pessoa dessa dependência de mudança? Eles precisam ter uma certa independência do Estado, não podem existir somente porque o Estado dá a manutenção. O trabalho todo é neste sentido: que existam outras fontes de financiamento, de recurso. O Terno de Reis é outra tradição complexa. É uma tradição familiar, de grupo, que está sendo esmagada nas cidades grandes e nas cidades pequenas, que vai se deteriorando por outros motivos, por uma questão cultural mesmo, dos jovens que não se interessam mais por aquilo. A melhor forma de lidar com isso é chamar todas essas pessoas, ouvir as suas necessidades e então criar um programa para atendê-las. Então a sua gestão cultural é ouvir? Primeiro, ouvir, e depois falar, formular o discurso a partir da escuta. O problema do Brasil é este: temos poucos dados sobre a cultura. Não só dados econômicos, mas dados numéricos mesmo. Não sabemos quantos Ternos de Reis tem na Bahia, quantos teatros tem na Bahia. Quer dizer, agora sabemos. Não sabíamos quanto o carnaval da Bahia consumia ou quanto circulava pelo carnaval da Bahia. Fizemos a primeira pesquisa em 2007 e agora sabemos que só 16% da população de Salvador brincam o carnaval. Tem muita coisa por se fazer, mas a primeira delas talvez seja essa questão do entendimento da cultura, do que é a cultura e qual é a diferença entre cultura, arte, produto cultural, indústria cultural. Entender como é que se dá o serviço, como é que o Estado trabalha a cultura como um serviço. E como fomentar a cultura, como injetar e fazer o mercado apoiar a raiz, regar a raiz, não só consumir, mas como fazer esse diálogo entre mercado e tradição. Este é o papel do Estado, fazer essa articulação e manter o equilíbrio entre indústria cultural e produção de cultura. Pensar a cultura como uma produtora de identidade, como fator de 73


identidade, de inclusão. E, para isso, temos muito a fazer. Partimos de um orçamento que ficava 90% na capital e na região metropolitana. Temos 417 municípios, uma área de 570 km². A Bahia é muito grande, maior que a França. A pergunta era como chegar até lá. A partir daí, começamos a trabalhar com um sistema. O governo da Bahia assumiu como divisão de unidade de planejamento os territórios de identidade definidos pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário. Isso, para a gente, foi genial, porque é uma estrutura entre o município e o estado, que são os territórios de identidade, que têm tudo a ver com cultura. Criamos um fórum de dirigentes municipais, que tem um representante de cada um dos 26 territórios. Temos representantes da Secretaria de Cultura em cada território. Então começamos a trabalhar em sistemas e em redes. Demos visibilidade para essas redes e trabalhamos a questão de cadastramento, e isso vai gerando um entendimento do fomento e da economia, do que se gera, do que se produz dentro da economia, e como isso é importante como identidade e como fator de inclusão. Por exemplo, no caso dos blocos afro, eles sabem da importância que têm para a comunidade, mas percebem agora a questão econômica ligada a isso, como eles geram a economia e como precisam discutir e estar inseridos nisso. Então há um amadurecimento, mas também é muito complicado criar ferramentas para tudo isso. Temos o fundo de cultura, que é basicamente o orçamento para o fomento, para a produção da sociedade. E isso é muito pouco, porque são R$ 20 milhões ou R$ 25 milhões por ano, que a gente divide em editais. Criamos esse programa das instituições e achamos que é preciso transmigrar, parar de apoiar a produção direta e passar a apoiar as entidades, as estruturas. Sejam elas os grupos de teatro, as atividades de matriz africana, as bandas de música, sejam os teatros, os museus, bibliotecas. E então, através delas, se construir políticas de produção, circulação. Pensando na área de cultura, o que é o baiano? São muitos baianos. Não tem um baiano, não tem o baiano. A Bahia é muito grande. Nós temos, pelo menos, três ecossistemas bem claros. O baiano às vezes é muito mineiro, ou pernambucano, goiano, matogrossense. E aí sobra o baiano litorâneo, onde sempre foi fixada a imagem do baiano do recôncavo. Aparentemente, o baiano é aquele cara do recôncavo, com as características do recôncavo, mas não é verdade. Temos muitas identidades na Bahia, muitas histórias e muitas culturas. Quando damos visibilidade a tudo isso, é que 74


temos uma imagem do que é a Bahia. Durante muito tempo, o baiano ficou sendo esse personagem de Jorge Amado, Dorival Caymmi, Pierre Verger e Carybé, que são os quatro cavalheiros que construíram a identidade da Bahia. Ela é reconhecida por essas quatro obras. Isso, como tudo na vida, tem um lado bom e um lado ruim. O lado bom é que isso é internacional, a Bahia é referência, é desejável, todo mundo quer conhecer. É uma imagem “super” positiva que foi construída, mas, por outro lado, é também uma coisa atávica, porque é uma identidade antiga. É uma identidade que admite o coronel, que admite o racismo, a discriminação, a desigualdade social. É difícil lidar com isso. A literatura baiana, sob a sombra de Jorge Amado, é complicada. É preciso, então, gerar produtos culturais em vários territórios diferentes, exatamente para a gente ter uma visão mais plural da Bahia. Esse é o grande desafio, irrigar a cultura, a produção cultural da Bahia inteira.

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Carlos Augusto Calil Secretário Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo.

Qual a importância do cinema brasileiro para a formação do Brasil? Olha, já foi muito mais importante do que hoje, infelizmente é preciso reconhecer. O Paulo Emílio Salles Gomes tem uma visão muito interessante do que o cinema pode representar, e ele teve uma importância muito grande para nós, porque a tendência dos intelectuais era separar o que de melhor o Brasil tinha produzido e centrar fogo nisso. Mas a precariedade do cinema brasileiro tinha que ser analisada de perto. E o Paulo Emílio foi estudar o melhor e o pior, o que não era bem visto. Ele se debruçou sobre Humberto Mauro, mas para nos dizer que a precariedade do cinema, e da vida, de Humberto Mauro, era quase que modelar. E que era uma situação da qual nós não iríamos nos afastar tanto. Fale um pouco do Humberto Mauro. Humberto Mauro é muito interessante, sobretudo pela frustração da carreira dele. Ele é um pouco a encarnação da nossa sina, que é a inviabilidade. A coisa mais chocante no cinema brasileiro é que todos, invariavelmente, os bem sucedidos e os mau sucedidos, envelhecem e morrem ressentidos. Isso é horrível. Eu não conheço nenhum cineasta brasileiro feliz, de bem com a sua carreira, com a sua vida. Todos têm projetos frustrados, todos foram sacane77


ados por alguém, pelo governo, pelo público que frustrou. Tem essa vitimização que é terrível. Tanto que o Lima Barreto e o Anselmo Duarte morreram amargurados. Glauber Rocha morreu frustrado, e o Humberto, certamente, morreu frustrado também. Isso provocou um choque, na ocasião, e ele passou a advogar e a nos exigir que fôssemos ver os filmes da pornochanchada. A gente torcia o nariz, porque era de mau gosto, mas ele mostrava que aquele mau gosto tinha muito a ver com o nosso mau gosto brasileiro, com a precariedade da nação, da cultura brasileira. Então, naquele momento, a gente percebeu o contraste entre o que a geração do Cinema Novo desenhou para o Brasil, que é um país em que o cinema faria a diferença política, e, digamos, o enfrentamento com a mediocridade, com a precariedade, a que o Paulo Emílio, disciplinarmente, nos obrigava. O que sobrou hoje, curiosamente, é essa ideia do Cinema Novo, de contribuir para o avanço político do país. Mas isso levou também a uma crise, porque o cinema é apenas o cinema, não é a política. Esse projeto do Cinema Novo, de repensar o Brasil a partir de matrizes populares, de uma certa ambição de fazer política através da arte, se transformou hoje numa caricatura terrível. Isso é diferente nas outras áreas da cultura ou é uma crise de expressão geral? Outras áreas, como as artes plásticas, por exemplo, estão botando em xeque a cultura brasileira, a inserção brasileira no mundo, a nossa capacidade de improvisar e de criar a partir do quase nada. O cinema brasileiro é que ficou acadêmico. O cinema brasileiro de hoje é bem feito, mas eu não posso dizer que ele é bom. E a perspectiva de transformar o país ficou completamente distante. Ficou, inclusive, fora de quadro. Um filme como Cidade de Deus, por exemplo, transforma muito mais o país pelo efeito que a linguagem tem do que pelo projeto político dele. Esse filme virou cult. Se você fala de Cidade de Deus nos Estados Unidos, os jovens sabem, eles falam diálogos de cor. Na Tailândia, Filipinas, as pessoas conhecem, e imitam. Enquanto aqui, nossos críticos ficam esnobando. Fale um pouco sobre a crise na Embrafilme e o que deu origem a ela. A crise da Embrafilme teve diversas origens, uma delas de nível político. Ela era uma empresa que incomodava muita gente, o que era suficiente para se tornar inviável. Primeiro, o governo olhava com muita desconfiança, porque, apesar de ser uma empresa estatal, ela era, no fundo, gerida pelos cineastas. 78


Depois, os próprios cineastas ficavam muito incomodados de receber dinheiro de um órgão da ditadura, então acontecia uma coisa esquizofrênica, eles recebiam dinheiro e falavam mal da Embrafilme. O Glauber Rocha foi o único que teve a coragem de dizer que ela era muito importante para os cineastas, porque ele tinha esse desassombro, assumia as contradições, enquanto todos os outros desprezavam e não compreendiam que o papel da Embrafilme era crucial naquele momento. Ela era ponta de lança e, de fato, obrigou o cinema americano a recuar, ocupando 35% do mercado. No entanto, o fato de não agradar nenhum dos dois lados, somado à crise financeira dos anos 80, fez com que o órgão se tornasse frágil. Os custos de produção subiram, mas a renda diminuiu, e isso levou a Embrafilme a uma crise de produção. Ela fazia 18 longas-metragens por ano e distribuía 22, incluindo alguns filmes que não eram feitos por ela. Além de fazer muita coisa de curta metragem, de preservação de filmes. Mas essa fragilidade era muito impressionante, e ela acabou fechando, foi liquidada pelos cineastas. O Collor só assinou o atestado de óbito, porque ela já não tinha mais nenhuma capacidade de manter-se. As pessoas podem achar que eu sou um saudosista da Embrafilme, mas eu não sou. Ela foi um fenômeno histórico, era uma contradição da ditadura militar. Montar a Embrafilme hoje seria sem sentido, porque ela era, na verdade, uma distribuidora exclusiva de filmes brasileiros, e essa situação não é mais possível. O cinema brasileiro já disputa mercado com os filmes norte-americanos, o que era impensável na época, com os territórios muito bem definidos. É uma pena que a Embrafilme não tenha sido compreendida nas suas contradições, na época, e que tenha sido objeto de disputa política entre os cineastas. Uma disputa feroz, uma bobajada entre cultura e mercado. Porque havia os pró-mercado e os pró-cultura, como se a cultura tivesse que rejeitar o mercado, e o mercado tivesse que ser anticultural. Era um território muito de disputa política. Claro que essa disputa significava dinheiro, porque era dinheiro que, no fundo, saía da Embrafilme. E se saía para um, deixava de sair para outro. A principal fragilidade da Embrafilme era que ela era um guichê único, e, portanto, muito visada. Você foi o diretor da Embrafilme por bastante tempo. Conte experiências que você viveu lá. Ah, tem muitos momentos de felicidade. Um, por exemplo, foi ter produzido o Cabra marcado pra morrer. Ninguém sabe que fomos nós, mas o 79


Coutinho confirma. Na época já havia um controle muito próximo do SNI, e, portanto, nós não pudemos assumir. Compramos os direitos não comerciais da obra do Vladimir Carvalho e, com isso, demos um dinheiro a ele, que repassava para a produção do Cabra Marcado pra Morrer. Então, indiretamente, financiamos o filme até a sua realização em 16 mm. Depois eles conseguiram o dinheiro necessário para ampliar para 35 mm. Poder fazer isso foi uma enorme satisfação. Teve ainda muitos outros momentos interessantes, mas era uma tensão permanente, um tiroteio permanente, e uma batalha pelo dinheiro que às vezes era suja, feia, e que não é nem bom lembrar. Um tempo depois do fim da Embrafilme, chegou a Lei do Audiovisual. Fale um pouco desse período da criação. É um desastre! O que se esperava depois da Embrafilme era que a produção de filmes fosse menos dependente do governo, e que, portanto, o cinema brasileiro tivesse mais sustentabilidade. Mas aconteceu o contrário. Na época da Embrafilme, a dependência era de 70%, e era preciso trazer 30% do orçamento de fora, não importava como. Hoje, tem-se 100% subsidiado. É um absurdo. Não há em nenhum lugar do mundo uma política tão equivocada. Outro problema é que a Lei do Audiovisual só investe em filme, não investe em produtora, em distribuidora. Isso não faz sentido na nossa atividade, que é de acumulação de expertise. É preciso investir no produtor, na produtora, na distribuidora, e não num filme isolado. Quando se investe num filme isoladamente, arrisca-se tudo, e se der certo, quem ganha é o cineasta; se der errado, quem perde é o governo. Aquela experiência não serve para nada, se fecha em si. Quando se trabalha com carteira de produção, ou carteira de distribuição, está se trabalhando com conjuntos, com médias, com estratégias de mercado. Além de tudo isso, quando se tem uma situação de 100% de dependência do governo, mesmo que o dinheiro venha através de uma pessoa jurídica, privada ou pública, o que se tem, na verdade, é uma situação muito confortável, sem risco nenhum. A consequência é que o nosso cinema é domesticado, não é um cinema de ruptura. Porque é preciso ter risco artístico e econômico, senão, não se rompe nada. O cinema brasileiro, hoje, não é bom nem artisticamente nem comercialmente. Se ele estivesse ganhando todos os festivais Sundance, mas não estivesse entrando no cinema, teria lá o seu mérito. Mas não está ganhando o Sundance, também não está ganhando Cannes, e o público fica esperando que os filmes falem com 80


eles. O ano de 2003, para mim, é paradigmático, porque o público do cinema brasileiro se multiplicou muito, e atingiu 22% do mercado. Isso quer dizer que existe público, mas que é preciso apresentar produções que lhe sejam interessantes e cativantes. O que fez a diferença em 2003 foi a carteira de filmes exibidos. Hoje, não é mais preciso tirar o sujeito da sala de filme estrangeiro, nós podemos apresentar ao público filmes brasileiros assistíveis, e isso não impede que certas experiências radicais, extraordinárias, como Jogo de cena, sejam feitas. Até porque são muito baratas. Mas não podemos ficar fazendo filme para cineclube, ou para os parentes dos cineastas, e excluir o público dessa equação. As pessoas dizem que o público é burro, que só gosta de vulgaridade, mas seja como for, é melhor negociar com eles do que ignorar. O cinema brasileiro é completamente desfocado da realidade. O grosso da produção brasileira é completamente equivocada, não tem destinatário. Nem o comercial é comercial, nem o cultural é cultural. Conte um pouco da sua gestão como Secretário de Cultura da cidade de São Paulo. Eu encontrei uma situação muito complicada quando cheguei, porque todos os equipamentos estavam caindo aos pedaços, do Teatro Municipal à Biblioteca Mário de Andrade. Então, a primeira preocupação foi devolver ao contribuinte equipamentos públicos em melhores condições e um serviço público de melhor qualidade. Isso foi muito difícil porque, se a Biblioteca Mário de Andrade estava esperando para ser reformada desde 1956, pode-se imaginar o acúmulo de problemas que tinha. Então, começamos pelas reformas complicadíssimas, com patrimônio histórico, e passamos para a valorização dos equipamentos culturais. A criação do Centro Cultural da Juventude, por exemplo, foi muito importante, porque está numa área de fronteira, e oferece uma formação diferenciada, sem querer se transformar numa escola. Na verdade, o Centro Cultural é o contrário da escola, que é o lugar da norma, da obrigação, do bom comportamento. Na cultura, o mau comportamento costuma ser melhor premiado. Os bons artistas costumam ser pouco adequados, pouco convenientes, porque ser desabusado, arriscar, ser contestador faz parte da boa arte. Então, existe esse trabalho de reforma e valorização. E outro ponto que pode melhorar muito é a programação cultural dentro da cidade. A Virada Cultural nos ensinou uma coisa fantástica: que existe uma demanda da população por ocupar o espaço público na cidade de São Paulo. No Recife não é a mesma coisa, ou 81


em Olinda, ou mesmo na Bahia, porque nesses lugares, e talvez no nordeste, o espaço público sempre tenha sido do público, da população. Em São Paulo não. Então, a Virada Cultural, que era apenas um festival de 24 horas, hoje é um festival de 24 horas que reocupa um território estratégico da cidade, que é o centro. Foi por isso que deu certo. A graça da Virada é encontrar as pessoas mais disparatadas, em termos de classe social, de idade, de gosto, num território definido, que é o território simbólico da cidade de São Paulo. Vou tentar fazer esse tipo de política agora com artes plásticas. Nós acabamos de lançar um edital para que os artistas proponham a ocupação dos espaços públicos com obras de arte. Se der certo, eu pretendo ampliar o projeto, para que a cidade seja, enfim, embelezada, ou problematizada, pela arte contemporânea. Quer dizer, o espaço público pode ser reocupado pela população com estímulo do poder público. A Virada não tem patrocinador, ela não tem mediador, e nunca terá. É a prefeitura devolvendo o imposto recolhido à população para que ela participe da festa da cidade. Outra coisa que falta, e que eu acho que não vou conseguir fazer, é uma ação mais presente na periferia. Eu consigo fazer algumas coisas na periferia, mas ela é imensa. Talvez eu consiga, até o final da gestão, iluminar pontos na periferia que são irradiadores da boa cultura e da boa disciplina artística, que possam, enfim, sinalizar. A periferia de São Paulo é completamente desprovida de equipamento urbano, de espaço público. Fale um pouco dos desafios da produção da Virada. Como é produzir um evento desse tamanho? A Virada é uma trabalheira, mas que dá um prazer enorme. A equipe que concebe tem, no máximo, meia dúzia de pessoas, e a equipe que realiza tem, no máximo, 40 pessoas. E é um evento que tem um público de milhões de pessoas. É uma coisa inédita na cidade de São Paulo, essa quantidade de gente nunca saiu à rua para celebrar a cidade. Portanto, eu acho que a Virada virou uma conquista da população da cidade de São Paulo, e não vai acabar. Quando houve a eleição para prefeito, eu fiquei muito atento às propostas dos candidatos, temia que dissessem que o evento era de um partido. Mas o evento pertence à população de São Paulo. Como você vê o digital chegando ao cinema? Barateou, facilitou? Não facilitou na medida que as pessoas imaginavam, porque elas esqueceram que a inteligência do cinema continua tão complexa quanto antes, e 82


inteligência significa dramaturgia, ator, diálogo, roteiro. Mas alterou e simplificou a realização de tal maneira que, quando eu penso como eu filmava e montava, a impressão que tenho é que era uma coisa pré-histórica. A gente pegava a película com a mão, cortava com uma guilhotina, colava com durex. Hoje não se tem mais contato com a película, a imagem está na sua frente, o montador está operando nela, mas sem nenhum contato físico. Mas isso não significa que os cineastas farão filmes melhores agora. Os roteiristas continuam tão valorizados quanto antes, e uma boa história, um bom diálogo, bons atores, são coisas que têm valor em qualquer época. Agora, a ideia de produzir para qualquer plataforma é genial. A imagem não fica prisioneira de um suporte, restrita ao vídeo, ou ao cinema. Percorre todas as plataformas e suportes, sem fronteiras. E, entre as consequências negativas, está o fato das pessoas filmarem muito hoje, e na hora da montagem dá um grande nó, um grande problema. A filmagem tem que ser feita com clareza, sabendo quais os objetivos. Filmar demais não necessariamente ajudará o projeto ou melhorará o produto. Isso é ilusório. Qual caminho poderia seguir um jovem que está começando a fazer cinema hoje? Tem que aprender técnica, que é o que pode fazer diferença. O talento acaba aparecendo em algum momento, se for o caso. O pessoal do Cinema Novo, por exemplo, negou a técnica, eles não sabiam decupar. Por isso a câmera na mão, do Glauber Rocha: porque ele não decupava. Ele inventou uma maneira de filmar para ele, para geração dele, mas negou a técnica. Hoje é impossível negar a técnica. Impossível e inútil. Então, a primeira coisa é aprender os instrumentos, e em seguida treinar a sua dicção E esse jovem que estuda técnica, como ele pode viabilizar a produção dele? O que ele deve procurar? Quem tem força, e quem tem talento, viabiliza-se. Pode não se viabilizar no nível que se deseja, pode até ter algum nível de frustração, mas acaba fazendo. Existe demanda por projetos bons, existe dinheiro oferecido a projetos bons, a questão é que nem sempre temos projetos bons, projetos maduros. E, sobretudo, é preciso inverter um pouco, pensar no público. Nós estamos muito viciados na coisa romântica de querer fazer o seu longa-metragem. Mas para quem é o seu longa, além de para você mesmo? 83


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Daniel Zen Presidente da Fundação Elias Mansour e do Conselho Estadual de Cultura do Acre.

O que é a cultura no Acre hoje? O norte do Brasil é uma região ainda não descoberta do ponto de vista da produção cultural, do que é que se faz lá. Ainda existe uma visão um tanto quanto bucólica, ou pitoresca, da população amazônica em geral. O senso comum que povoa a cabeça das pessoas está muito ligado às manifestações que se diziam folclóricas, manifestações de cunho mais tradicional da cultura popular. Essa região tem tudo isso, mas tem muito mais. O Acre está vivenciando agora um momento de efervescência e ebulição cultural muito interessante. O estado passou por um período semelhante na década de 1970, e início dos anos 80, nos resquícios dos últimos anos da ditadura militar, em virtude de uma mobilização e de uma militância cultural muito forte, por parte de pessoas que, inclusive, ocupam cargos estratégicos hoje, no poder executivo, legislativo. Essas pessoas se afastaram um pouco da militância cultural e artística e ingressaram na militância política mesmo. Aquele contexto era o de articulação e mobilização em torno da construção de políticas públicas de cultura. Inclusive, o órgão gestor da cultura no Acre, a Fundação Cultural, tem mais de 30 anos. Se pensarmos que, na maioria dos outros estados, a área de cultura ainda está ligada às secretarias de educação, ou a órgãos que agregam cultura, turismo, esporte e lazer, isso é interessante. Então, se hoje vivemos 85


um momento interessante cultural, isso se deve em muito à militância das décadas anteriores, que batalhou pela consolidação de políticas públicas, de investimento em formação cultural, nas diversas formas de produção, de circulação, e que surtiram respostas a longuíssimo prazo. Como é a relação com a cultura indígena? O Acre tem hoje 14 etnias indígenas, de praticamente todos os troncos, que trazem consigo, depois de um período de aculturação, um processo de revitalização e resgate dos seus elementos tradicionais. Os cânticos tradicionais, as celebrações, as danças, as práticas ancestrais têm também revelado elementos culturais e artísticos muito peculiares, que cada vez mais dialogam com a produção contemporânea. Essa fusão do tradicional, do secular, com o moderno, com o contemporâneo, vem se fazendo de forma bastante lenta e, às vezes, até imperceptível. Uma coisa interessante, nesse processo de revitalização e resgate da cultura indígena, foi a promoção de encontros, festivais de culturas indígenas envolvendo todas as etnias. Isso fez com que as etnias se motivassem a buscar com os velhos das aldeias os elementos da língua, que já vinham se perdendo. Quer dizer, algumas tradições, e algumas práticas e rituais que estavam ficando esquecidas, mas que ainda estavam guardadas na memória dos velhos sábios, vêm sendo revitalizadas, resgatadas e praticadas pelos jovens, a ponto de hoje, praticamente, todas as etnias, nas diferentes terras indígenas – e são mais de 35 terras indígenas demarcadas no estado do Acre – promoverem seus próprios festivais, seus encontros. Até pela internet, chamando, convidando e promovendo um intercâmbio entre as etnias, a despeito mesmo de um envolvimento oficial do estado. As seis edições dos encontros de cultura indígena foram promovidas pelo estado, como forma de propiciar uma alternativa de resgate e de articulação dessas tradições. Mas hoje em dia, eles promovem sem necessariamente ter um aporte governamental. Existe uma articulação pela busca das suas próprias fontes de recurso, e fazem isso de uma maneira muito espontânea. E nos convidam, como representantes do estado, a participar e a interagir com eles. Começa a ter uma quebra de alguns paradigmas, de alguns preconceitos. O fato de na Amazônia, e em especial, no estado do Acre, ainda ter um contingente de população indígena muito significativo não quer dizer que não haja os mesmos preconceitos, entre as pessoas que habitam os núcleos urbanos dos municípios, mesmo os menores municípios, com essas populações. Em 86


algum dos municípios, como por exemplo o do Jordão, que é um dos menores municípios acreanos, e em que a maioria absoluta da população é de índios, existe praticamente um apartheid entre os índios e os não índios, entre aqueles que habitam um quase minúsculo núcleo urbano do município do Jordão e a maioria avassaladora de índios, que estão espalhados nas diferentes terras indígenas, nas dezenas de aldeias de cada uma dessas terras indígenas. Quem não é do norte, e não conhece a realidade dos estados da Amazônia de uma forma mais próxima, não tem a ideia da dimensão desse apartheid cultural ainda existente. Você falou que a cultura brasileira pouco olhou a cultura indígena, e alguns dos exemplos foram próximos à Semana de Arte Moderna, seja do lado nacionalista, com o grupo Anta, seja do lado mais cosmopolita, com a antropofagia. A cultura brasileira nunca conseguiu olhar com constância a cultura indígena, sempre foram exceções no processo. O que começa a acontecer agora é a cultura indígena se mostrar sem intermediários, sem passar pela absorção da cultura oficial. Fale um pouco sobre isso. Esse é o caminho. É o diferencial deste momento, em que você percebe uma aproximação, ainda que incipiente, ou embrionária, entre elementos de cultura indígena, ancestral, tradicional, e elementos da cultura contemporânea mundial. Eles estão tomando as rédeas dos seus próprios destinos, resgatando os seus processos sociopolíticos, tendo a cultura como um catalisador, como um vetor. Esse processo se inicia com a luta pela demarcação das terras indígenas, inserido naquele contexto da expansão das fronteiras agropecuárias no norte e noroeste do Brasil. No Acre houve o fenômeno do êxodo florestal, a expansão das fazendas para pasto, para criação de gado, e a expulsão de um contingente absurdo de pessoas que as habitavam. Falo em povos da floresta porque são literalmente povos da floresta, não só índios, mas seringueiros, ribeirinhos, caboclos, coletores de castanha. No auge dos dois ciclos da borracha – o primeiro, de 1870 em diante, e o segundo, no período da II Guerra Mundial –, chegou-se a ter contingentes migratórios de mais de 200 mil pessoas, num período curtíssimo de tempo. Essas pessoas habitavam as matas e as florestas, nas suas colocações, nos seus seringais, e construíram ali um marco civilizatório diferenciado do que se vinha construindo no Brasil, em termos de fluxos migratórios. No 87


Brasil tínhamos fluxos de japoneses, italianos, alemães, para trabalhar na lavoura do café, em outras atividades agrícolas e em atividades de cunho econômico e industrial. Na Amazônia, houve um tipo de migração interna, regional, muito propiciada, também, pela seca do nordeste, em que as pessoas não foram trabalhar com atividades convencionais, mas com algo que se descobria como uma grande alternativa para a indústria em geral, que era a borracha, as aplicações da goma elástica vulcanizada. E ali elas estabeleceram realmente um tipo de colonização diferenciada, sui generis. Há esse choque de civilizações entre o migrante nordestino famélico, saindo do sertão, fugindo de uma situação de seca, e o índio, o nativo. Depois, na década de 1970, com o desenvolvimento dos seringais de cultivo na Malásia, esse sistema de coleta extrativista do látex para produção de borracha entra em colapso, e o governo militar implementa políticas para a expansão dessa fronteira agrícola. Quando os estímulos federais e oficiais para desenvolver outro tipo de atividade, que se julgava mais pertinente naquele período, chegam ao Acre, encontram uma resistência que não se encontrou em outros lugares, como, por exemplo, em Rondônia e no Mato Grosso, onde houve uma expansão quase que completa e a consolidação do modelo das monoculturas, do plantio da soja, ou da criação de pastagem. No Acre se deu a aliança dos povos da floresta, uma junção dos esforços de seringueiros, índios, ribeirinhos, extrativistas, no sentido de preservar seu modo de vida, seu status de habitante da floresta, tirando dali seu sustento, seu modo de ser e de viver. Essa é uma característica cultural fundamental, que norteia os rumos da produção cultural do Acre e da Amazônia em geral. Como esse contexto todo tem se manifestado nas produções artísticas? O movimento de resistência contra essa expansão agropecuária já esteve mais presente na produção artística em si, com peças teatrais, festivais e músicas que giravam em torno dessa temática. A produção cultural como um elemento da resistência e como parte desse processo mais amplo. Isso eu acredito que ainda acontece com os povos indígenas, há o resgate da produção cultural, dos elementos hereditários, mas como parte de um contexto maior, de um processo de reafirmação do ser indígena. Hoje acredito que a cultura em geral vive outro contexto, a produção não está necessariamente vinculada a uma realidade opressora.

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Fale um pouco sobre a cena do rock no Acre, que é fortíssima, e também sobre como a produção acreana dialoga e se comunica com o resto do Brasil e do mundo. Nos anos 70 e 80, a produção musical acreana vivenciava, com algum delay, o contexto daqueles grandes festivais de música. Havia uma estética fortemente vinculada à MPB, que misturava isso com a temática bucólicoflorestal. Num determinado período, na produção de alguns artistas de música autoral acreana, houve uma temática florestal muito consistente, como em Keilah Diniz, Damião Hamilton, Heloy de Castro, Felipe Jardim, Pia Vila e uma série de artistas que, naquele contexto, produziam para um público acreano. Eram artistas muito presentes nos festivais acreanos de música popular, os conhecidos FAMPs, que eram uma espécie de versão acreana dos grandes festivais das televisões, com alguns anos de diferença. Passado esse período de efervescência, houve um lapso, com o processo de assunção de algumas dessas figuras a outros postos, inclusive a cargos políticos, o que deixou a produção cultural um pouco órfã. Tem muita gente que produzia, que era músico, artista plástico, e que foi ser funcionário público, ou empreendedor da iniciativa privada, em outras áreas que não as culturais. A realidade do cotidiano engoliu boa parte das pessoas que militavam nesse movimento, e aí você tem um período, na música, em específico, de uma desarticulação, uma desmobilização, inclusive com a extinção do Festival Acreano de Música Popular. No final da década de 1990 e início dos anos 2000, uma nova geração de músicos surge, tentando fazer a ligação com aqueles músicos antigos, que tinham uma certa produção e até uma discografia posta, e se desvencilhar do contexto que viviam, que era de uma grande quantidade de bandas cover de rock and roll, passando pelo último suspiro do movimento do Rock Brasil. A tentativa era de encontrar um caminho de resgate da música autoral, da autoralidade acreana, e aí começam a aparecer novos compositores e músicos. Algumas iniciativas foram fundamentais para esse tipo de articulação. Na ausência do Festival Acreano de Música Popular, surgiu, em 1999, o Festival Universitário da Canção, na Universidade Federal do Acre, que teve três ou quatro edições. Outro projeto importante foi o Projeto Fábrica, que nada mais era do que um ajuntamento de bandas. Eles faziam eventos em quadras de escolas, de colégios secundaristas, e reuniam as bandas de garagem que estavam na obscuridade. Eu não posso nem dizer bandas de garagem, num tema mais acreano seriam bandas de quintal. Então as bandas dos quintais acreanos, de 89


Rio Branco, da capital, tinham nesse Projeto Fábrica uma alternativa para se encontrar e tocar. E, entre essas bandas, as que tinham uma preocupação com autoralidade acabaram, através desses projetos, se encontrando e tentando articular algo mais sistêmico, mais consistente. Disso nasce uma iniciativa interessante, que foi o selo Catraia Records, da qual eu participei também. Era uma tentativa de fundar um selo fonográfico voltado para a música autoral. Você tem uma banda também. Tenho. Tive várias bandas, na verdade. O meu apelido, Daniel Zen, vem de uma banda de cover que a gente tinha na época da faculdade, que se chamava Estação Zen. Tocávamos covers dos sucessos do rock dos anos 80, e éramos residentes de um pub que foi bem frequentado no finalzinho dos anos 90. Meu envolvimento como músico começou com essa banda, ainda na faculdade. Depois, fui ajudar as bandas dos amigos na produção, nos bastidores, e aí teve a fundação do Catraia Records, na tentativa de estabelecer uma empresa que fosse uma produtora de cultura, que almejava ser um selo fonográfico, mas que, na verdade, o que menos fez foi lançar disco mesmo. Então, a gente articulava festas, sempre com esse viés da autoralidade, para que as pessoas prestigiassem a música autoral. Nessa época tínhamos já meia dúzia de bandas autorais interessantes, e esse movimento foi ganhando força a partir da qualidade dessa produção autoral. O que propiciou essa integração da movimentação acreana com um movimento maior, de cunho nacional, foi justamente esse contexto da internet. A gente já conhecia iniciativas de festivais e de outras coisas relacionadas à música autoral pós-década de 80, como o Abril Pro Rock, o Bananada. Mas para a gente era uma realidade distante, nós não nos víamos como atores daquele processo. A gente estava ainda se conhecendo e se entendendo como músicos autorais de um circuito maior, que não era só acreano, nortista. E as tentativas, a partir dessa ebulição, desse apanhado, dessa meia dúzia de bandas autorais, no primeiro momento, eram de intercambiar com o estado vizinho, Rondônia, que tinha uma tradição de intercâmbio com músicos já bastante antiga, mas que também estava arrefecida naquele período. Daí nasceu um festival chamado Guerrilha Rock Festival, com esse intuito de intercambiar de forma mais consistente com as bandas autorais de Rondônia, que estavam passando por um processo muito semelhante ao nosso. E, a partir da retomada desse intercâmbio entre Acre e Rondônia, começamos a nos entender como sujeitos de um processo de 90


integração maior, que era essa interação com outros estados também considerados periféricos do ponto de vista da produção cultural e que viviam a mesma situação, como Mato Grosso, Goiás. Foi a internet que propiciou isso? Sim. Aquilo que a gente já conhecia de ler em revistas e jornais começou a se intensificar através de contatos de e-mails e tentativas espontâneas de relação. E aí, a partir do contato com Rondônia, começaram a surgir outros contatos bilaterais. A gente conheceu uma turma de Cuiabá, que produzia o Festival Kalango, e aí foi um liga para cá, liga para lá, manda um e-mail, fala com fulano, chama uma banda para tocar no festival. Depois dos primeiros dois, três contatos, a coisa foi se integrando. A turma de Cuiabá tinha uma ideia muito forte já, e que vinha sendo gestada há algum tempo, de construção de uma grande rede de articulação nacional. O Circuito Fora do Eixo ainda era uma ideia embrionária, mas que foi se consolidando de forma muito veloz, justamente pelas possibilidades que as ferramentas da internet possibilitam. Então, hoje são mais de 50 coletivos de músicos, de produtores culturais, jornalistas, enfim, ativistas da cultura, trabalhando com um modelo de produção que tenta incorporar alguns preceitos de economia solidária e de autogestão. Há uma tentativa de estabelecimento de um mercado médio, de um circuito que permita a circulação constante, cotidiana, que articule diferentes elos da cadeia produtiva da música. Vamos falar sobre seu salto para gestor cultural. Qual foi a vontade e quais foram os desafios desse salto? Foi algo natural também. Eu nunca pensei, projetei ou sonhei ser Secretário de Cultura do Estado. No caso, diretor presidente da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour, que é a autarquia responsável pela gestão da política cultural do estado. A minha formação é em Direito, pela Universidade Federal do Acre. Depois, ingressei no mestrado de Relações Internacionais, na Universidade Federal de Santa Catarina, mas através de um programa da CAPS, que se chama Mestrados Interinstitucionais, pude cursar sem ter que sair do Acre. Depois, prestei concurso para o estado, na carreira de Gestor de políticas públicas, que é uma carreira recente, inspirada no cargo de Especialista em políticas públicas e gestão governamental, do Ministério do Planejamento do governo federal, que por sua vez é um cargo inspirado numa carreira do 91


estado francês. E que é aquele perfil do profissional generalista, de várias áreas, que atua de forma sistêmica em diferentes campos da gestão pública. Então, acho que começou ali o distanciamento daquilo que era a minha área de formação mesmo. E, em paralelo a tudo isso, eu participava desse processo da música autoral. Participei da organização do Guerrilha Festival, que, depois da sua primeira edição, passou a se chamar Varadouro. A intenção era render uma justa homenagem a outras iniciativas anteriores, como a do Jornal Varadouro, que foi um dos principais jornais de resistência do norte, no período da ditadura, e que pós-ditadura também era o veículo de denúncia dos acontecimentos, dos grandes conflitos agrários no Acre. E também porque varadouro é o nome dos caminhos que se trilham na floresta, que ligam seringais e colocações, é a estrada, é o highway florestal, o caminho pelo qual você escoa a produção, porque no varadouro as tropas de burro carregam a produção de um seringal ao outro, do centro do seringal para a margem do rio. E foram esses festivais que abriram o horizonte para um contexto mais nacional, de integração, e possibilitaram dialogar de forma mais próxima com os representantes do poder público. Eu já era recém-concursado, e isso despertou uma certa atenção do vice-governador e secretário de Educação da época, e também do presidente da Fundação Cultural, com quem a gente mantinha esse diálogo para estabelecimento de parcerias, através do fomento, do financiamento, dos projetos de lei de incentivo. Então, a partir disso, fui chamado para assumir a presidência da Fundação Cultural. Qual é a missão e os desafios da Secretaria de Cultura? E que projetos você pensou em levar para a Secretaria? Olha, na verdade, quando fui convidado, fiquei bastante assustado. Como falei, não passava pela minha cabeça. E, apesar do envolvimento com a área de música, não era tanto a minha praia, eu não tinha um estudo mais profundo, ou um conhecimento mais sistemático sobre políticas públicas de cultura. E eu acabei me aprofundando e me interessando muito pela área de planejamento e gestão de políticas públicas de cultura. Procurei devorar tudo que aparecia pela frente, da literatura produzida sobre o assunto, tentando mesclar a gestão pública com a minha outra paixão, que era a produção cultural. A dificuldade, no primeiro momento, era de projetar o que viriam a ser depois os programas, os projetos, as ações concretas. Mas isso também é algo que não se faz sozinho, e ali eu pude trabalhar com uma série de pessoas, de 92


profissionais, que já atuavam em diferentes linguagens artísticas culturais, e pessoas também que eram da área de gestão. Qual é o orçamento de cultura do Acre? Rio Branco, a capital do Acre, tem uma população de aproximadamente 350 mil habitantes, e o estado do Acre tem uma população em torno de 700 mil habitantes. Então, é um estado, populacionalmente falando, pequeno. E tem um orçamento na área de cultura que transita entre os R$ 20 milhões e R$ 22 milhões por ano, contando tanto os recursos de investimentos, quanto os recursos de despesas com custeio nos gastos corporativos, da máquina pública. Então, é, a meu ver, um orçamento considerável, considerando o contingente populacional. Mas precisa melhorar, e é algo que vem melhorando ano após ano, justamente pelo nosso esforço em intensificar os investimentos, com o objetivo realmente de democratizar o acesso aos bens e serviços culturais. Acho que são três dos grandes objetivos a perseguir, na área de cultura. O primeiro é fazer com que a cultura seja entendida como políticas que devem ser universais, assim como a saúde, como a educação, como a segurança. Hoje, o debate na educação é diferenciado, não se debate mais tanto o acesso de crianças e jovens à matrícula, à rede pública, porque estamos quase conseguindo chegar à universalização do acesso ao ensino. A discussão hoje é a respeito da qualidade e das condições de oferta, que tipo de ensino as crianças estão acessando através das redes pública e privada de ensino. Na cultura ainda se discute as políticas de universalização. Ou seja, como as pessoas terão acesso a museus, bibliotecas, ao cinema. De uns tempos para cá, o foco sai do produtor e vai para o fruidor, o consumidor, o público, através de mecanismos diversos. Se você tem um foco no acesso, em realmente permitir, através de programas e projetos diversos, que a população tenha acesso à produção cultural, necessariamente você demanda um estímulo a essa produção. Quando se investe ou tem o foco exclusivamente na produção, não se está necessariamente preocupado com a circulação dessa produção, e, consequentemente, com a fruição dela. Outro ponto é a democratização do acesso, o estímulo às cadeias produtivas da economia da cultura. Ou seja, consolidar uma economia cultural forte, ter um trabalho também focado no mercado. Não qualquer mercado, não um megamercado, mas um mercado fundado nos preceitos da economia solidária, inclusivo, sustentável, que possa estimular o consumo de massas, 93


que dialoga com um outro grande objetivo, que é o estimular as cadeias produtivas da economia da cultura, para realmente permitir a democratização e a universalização do acesso aos bens e serviços culturais. E o terceiro objetivo é a gestão das políticas culturais de forma compartilhada com a sociedade. Ou seja, pautar realmente a gestão pública de cultura com os preceitos da cidadania, da democracia participativa. Não só a participação social por meio dos canais institucionais, nos conselhos, nos fóruns, nas conferências, mas também de forma mais horizontal. Fazer com que realmente esses espaços públicos de debate, de discussão, deliberação, existam numa quantidade cada vez maior, se multipliquem, e se consolidem. Quer dizer, permitam realmente, através da cultura, que você tenha uma radicalização dos processos democráticos no nosso país, que ainda tem uma resistência muito grande a esse tipo de debate, a esse tipo de diálogo. O que é que diferencia o desafio de um produtor cultural do Acre do de um que está em São Paulo? Olha, em princípio as distâncias geográficas de outros centros. Agora, isso também é muito relativo, porque o Acre começa a se situar na geopolítica nacional e da América Latina sob uma outra perspectiva, que é a integração com o Pacífico, através da abertura da Rodovia Transoceânica, que está pronta até a fronteira com o Peru. E o Estado peruano também já está prestes a concluir sua pavimentação integral, que chega até os portos do Pacífico. Mas, tendo como lógica geopolítica o centro do Brasil no sudeste, no centro-oeste e no sul, o que dificulta essa inserção da produção cultural, não só do ponto de vista do artista, mas do produtor também, é justamente essa distância, o que a gente chama de custo amazônico. O custo amazônico, que foi muito debatido na Conferência Nacional de Cultura, é o custo real que onera produções na Amazônia. Circular com um espetáculo teatral, com uma turnê de shows, ou com uma caravana de exposições de artes visuais pela Amazônia é infinitas vezes mais caro do que fazer a mesma coisa no sudeste, onde você tem uma ligação rodoviária e uma densidade populacional maiores, e onde você pode, numa semana, circular por uma quantidade alta de municípios de carro, um a cada dia, ou até mais de um por dia. É diferente você fazer isso num estado como o Amazonas, ou num estado como o Acre, em que boa parte dos municípios só tem ligação por avião, ou uma ligação fluvial. Então, imagina o custo de, por exemplo, levar de barco toda uma comitiva, uma turnê, com equipamentos, 94


com pessoas, cenários, quadros, filmes, equipamentos de projeção, para um município isolado. Agora, quando você parte para olhar sob esse outro prisma, ou seja, do Acre numa situação geopolítica privilegiada em relação aos demais países da América Latina, em especial Peru e Bolívia, e os países que fazem fronteira com o território acreano, a coisa muda de figura. Mas é algo que ainda está em processo de construção. A abertura da rodovia em si não resolve a questão, até porque é uma questão histórica de séculos. O Brasil, talvez por ser o único país da América do Sul que fala a língua portuguesa, está virado de costas para os seus vizinhos. Esforços como o Mercosul, ou como o Merconorte, que é uma discussão muito presente no Acre, e outros esforços integracionistas, passarão também pela necessidade de quebra dessa resistência cultural, linguística e de costumes, e isso é algo que vai demandar bastante tempo. Então, outras relações comerciais, de fluxos migratórios, que serão permitidos, e que já estão sendo permitidos pela integração da estrada, não vão transformar o cenário num prazo muito curto. Mas vão lançar outra perspectiva de circulação de produção, de relações até de mercado, e talvez de costumes, de hábitos, de identidade cultural. E do ponto de vista da inserção comercial e da produção, acho que novos horizontes vão se abrir para o Acre, e para a produção cultural do norte.

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Claudia Leitão Ex-Secretária de Cultura do Governo do Ceará.

Cláudia, como começa sua relação com a cultura? Eu fiz duas graduações bem díspares: música e direito. Nunca imaginei que, um dia, essas duas formações sofreriam uma espécie de síntese hegeliana. Da infância à adolescência, tive uma educação bastante erudita. Participei de um grupo de música medieval, fiz conservatório, estudei contraponto, harmonia. Frequentava os festivais de música de Campos do Jordão com nosso grande maestro cearense Eleazar de Carvalho. Depois fiz mestrado na USP em Sociologia do Direito e doutorado na Sorbonne de Sociologia Pura. Fui derivando para o mundo acadêmico, mas sempre mantendo uma relação muito estreita com as artes, tanto por influência familiar quanto por gosto próprio. Antes de ser secretária de Cultura, tive uma experiência interessante dirigindo o Senac no Ceará, onde iniciei um trabalho voltado a algumas profissões artísticas – as chamadas indústrias criativas, como a gastronomia e o design – já entendendo a cultura por uma perspectiva mais antropológica. Também sou professora na Universidade Estadual do Ceará, e a questão da gestão sempre me interessou. Venho das Ciências Sociais Básicas, mas acabei nas Aplicadas. Então, minha relação com a cultura advém mesmo da minha própria trajetória profissional-acadêmica.

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Como foi o convite para se tornar secretária de Cultura do Ceará? Foi um choque! Quando o governador Lúcio Alcântara me fez o convite, eu estava no Senac, montando vários projetos apaixonantes voltados à educação profissional e tecnológica. Aceitei o posto, mesmo não sendo filiada a nenhum partido político. Na verdade, não tenho apetência nem competência para política partidária; sou professora. Mas, como ia dizendo, foi um choque. Quando da solenidade em que os antigos secretários passariam seus cargos para os novos, meu colega que havia deixado o mandato não compareceu! Foi quando percebi o quão especial era a área da cultura. É muito mais difícil e específica do que as outras: poucos recursos e muita vitrine. Quando as pessoas citam determinadas secretarias, geralmente fazem menção ao tempo do mandato – já no caso da cultura, cita-se o nome. É um trabalho muito personalista. A pasta da Cultura é muito representativa da formação da sociedade brasileira: personalismo, voluntarismo. No princípio, tive alguma dificuldade com isso. Mesmo assim, resolvi propor ao governador a realização de um seminário chamado “Cultura XXI”, onde se tentaria fazer um diagnóstico da situação da cultura. Eu era tão ingênua, tão neófita, que chamei o então ministro Gilberto Gil. E ele compareceu. Chamei o Brasil inteiro. E o Brasil compareceu. Eu não estava preparada para tanto. O ministro disse que esse foi o primeiro convite que havia recebido desde assumir o cargo. Ele também estava chegando a Brasília, e recebeu um ofício meu que dizia: “Ministro, estou organizando um seminário, no longo do qual pretendo discutir cinco pilares que me parecem importantes para podermos começar um trabalho de gestão cultural e formulação de política pública”. Quais eram os cinco pilares? Políticas e gestão; leis de incentivo e legislação em geral; patrimônio; municipalização; economia. Eram esses os cinco pilares, um para cada dia do seminário. O governador me disse: “Mas é muito tempo! Tem conversa para todos esses dias?”. Respondi que sim. Convidei o ministro para vir no dia em que se discutiu cultura de município. Tenho a impressão de que o discurso que fez na ocasião foi seu primeiro no governo Lula. Era uma quinta-feira, março de 2003, o teatro do Centro Cultural Dragão do Mar lotado. No longo do pronunciamento, o ministro colocou, de certa maneira, a plataforma do que seria o governo Lula em termos de cultura. Havia muitas afinidades entre nossas maneiras de pensar. Como ele, eu também via a cultura por três vieses 98


muito distintos. Primeiro, a necessidade de ampliar o conceito de cultura, de modo que abarcasse não só as linguagens ditas artísticas. A vida inteira ouvi que o povo do Ceará não tinha cultura, o que é um absurdo, já que o nordeste é uma espécie de epicentro da cultura latino-americana, tão importante quanto o Vale Inca do Peru. Poucos dão acordo do potencial cultural dessa região magnífica, porque o próprio termo cultura é geralmente associado, tanto no discurso do senso comum quanto no da elite, ao academicismo, à erudição. O segundo viés era a inclusão, a questão da cidadania cultural, um dos primeiros pontos que discuti com minha equipe quando cheguei à Secretaria. O terceiro era a profissionalização, a necessidade de dotar os profissionais do campo da cultura e torná-los menos amadores, porque cultura também é emprego e renda. Quando percebi que esses pontos também eram prioritários para o ministro, entendi que a Secretaria de Estado do Ceará não teria dificuldades de trabalhar com o governo federal, muito embora eu representasse um partido de oposição. Mas essa oposição, felizmente, nunca se colocou. Inclusive, quando o governador deu as boas-vindas ao ministro, falou uma frase muito simpática: “Ministro, seja bem-vindo ao Ceará, aqui somos todos do partido das culturas”. Daí a cumplicidade e amizade que vieram a caracterizar nossas relações dali em diante. Cláudia, lemos uma entrevista sua na qual você afirmava que “não existe gestor cultural triste”. Você ainda acha isso? Sim, acho. Há tanta criatividade na gestão cultural que não posso deixar de pensar que temos algo a ensinar a todos os outros ramos de gestão pública do país. Evidentemente, essa gestão enfrenta diversos impeditivos, porque a cultura é um produto inteiramente diferente dos demais produtos. Quando pegamos, por exemplo, uma Lei 8666 para trabalhar uma licitação, começamos a perceber que nossa área é muito difícil. Outro dia eu estava discutindo com uma aluna a respeito do papel desempenhado pelas OSCIP e OS nessa questão. Há quem diga que as OSCIP e as OS não são constitucionais e vão acabar. Não acredito nisso. Creio que são instrumentos interessantes, merecedores de uma análise menos partidária. OSCIP ou OS, independentemente do partido a que se associam, são formatos válidos de gestão não estatal, porque nosso direito administrativo tem tudo para entristecer o gestor. Um dos entraves à gestão pública no Brasil hoje em dia é esse direito que encara o gestor com extrema desconfiança. O que significa ser gestor hoje no Brasil? Um gestor que inova, 99


um gestor que não se deixa desencorajar pela burocracia dos processos, vai ter de pagar por suas obsessões depois. Penso que, no caso do Ceará, nós inovamos. Inovamos no sentido da gestão, criamos um plano estadual de cultura. Queríamos fazer um trabalho de interiorização, formular políticas de cultura capazes de dar voz e vez às diversas regiões do estado. Criamos o programa Valorização das Culturas Regionais, carro-chefe da nossa gestão. Mas como alcançar um município como Salitre, por exemplo, que tem o menor IDH do estado? O Ceará é muito pobre. A questão que se apresentava era: como sair da capital? O direito administrativo, o direito constitucional brasileiros não nos permitem chegar lá na ponta! Ou seja, as formas que encontramos de chegar lá foram jurisprudências. Não são legais. Por mais que minha gestão tenha sido honesta, tenho mais de 20 processos contra minha pessoa! Em nome da alegria e da criatividade do gestor brasileiro, é preciso transformar o aparato jurídico onde ele trabalha. Trabalhar com cultura não é como licitar carteira escolar, leito de hospital ou vacina. Quanto às OSCIP e OS: por que a necessidade de realizar a gestão privada de cultura a partir de Fundações Não Lucrativas? Bom, eu chamo de não estatal, não chamo de privada. É um pouco diferente. Quanto às organizações, penso que sua importância reside justamente no quanto podem ser úteis às estruturas governamentais. Por sua própria natureza, essas estruturas não podem nada. Temos pouquíssimas secretarias de cultura no país, e suas possibilidades de realização prática são muito pequenas. Elas basicamente se limitam à elaboração de programas. Nossa secretaria era voltada para o regional, mas realizar algo nesse sentido através da secretaria era praticamente impossível. No meu caso, o Dragão do Mar – primeira OS de cultura do Brasil – foi fundamental para minha gestão, porque a flexibilizou. Eu repassava recursos para lá, e o Dragão contratava. Em suma, as OSCIP, as OS, as entidades de amigos, são muito importantes para que as secretarias realizem ações efetivas. Você poderia nos dar uma narrativa desses lugares afastados do centro que sua gestão alcançou? Pouca gente sabe disso, mas a Secretaria de Cultura do Ceará é a mais antiga do Brasil. Foi criada em 1968, é mais antiga que a de São Paulo. Muito embora tenha toda essa tradição, ela sempre se limitou a uma ação de capital, como, 100


aliás, todas as secretarias de cultura. Em alguma medida, nosso (no dizer de Sergio Miceli) “clientelismo” sempre fez refém todas as políticas culturais – você só consegue servir aos artistas de plantão, aqueles que estão mais próximos das secretarias. É quase inimaginável uma política pública que sirva a toda a população e não exclusivamente ao artista. É preciso trabalhar contra essa lógica canhestra de que uma Secretaria de Cultura só existe em função de um grupo de 10 cineastas, 20 artistas plásticos, 50 literários, todos com acesso à mídia, aos jornais. É uma situação dramática. Os gestores de cultura pública vivem acossados por esses lobbies poderosos que dominam as leis de incentivo. São eles que têm os contatos e chantageiam os departamentos de marketing dos bancos. Sei o preço que paguei por elaborar uma política que leva em consideração 8 milhões de cearenses. Ao final desse seminário que realizamos em março de 2003, fizemos um planejamento estratégico e saímos com um plano de cultura, que logo depois foi publicado em livro e distribuído pelo Brasil todo. Mandei o livro para o ministério, dizendo que precisava criar um chão institucional para dizer aonde estávamos indo – e estávamos indo para o interior do Ceará, doesse a quem doesse. Por uma questão estratégica, resolvemos nos aproximar do turismo. O prefeito não vai entender que cultura pode ser um instrumento econômico até que se fale em turismo cultural. Só então a cultura começa a assumir, para ele, um vulto que ultrapassa as festas de padroeiro, de município ou as datas patrióticas. Nesse painel, a cultura serve ou à educação, ou à assistência social, que é o mais perigoso dos problemas da cultura. Quando a cultura vai para as mãos dos secretários de ação social, é quando vemos o produto de pior qualidade – é o coral desafinado, a peça de teatro que não presta, é a cultura feita de forma “filantrópica”. Mas, como ia dizendo, caminhamos para essa parceria com o turismo. O secretário raramente participava das ações, mas cedia sua equipe. Foi essa junção de pessoal que viabilizou a criação dos fóruns regionais que implementamos em todas as regiões do estado. Isso foi uma grande mudança. Como os fóruns eram itinerantes e serviam a todos os municípios de sua região, isso dava oportunidades de diálogo que não existiam antes. Por exemplo, era um momento em que os administradores do hotel-resort de Camocim podiam conversar com a Associação de Jangadeiros. No geral, promovemos interlocuções muito interessantes. O encontro de Cearás totalmente diferentes que conviviam numa mesma região. Para tanto, contamos com a presença do SEBRAE, do SESC, do SENAC, do Banco do Nordeste, das associações, dos artistas. Quando os fóruns começaram a, por assim 101


dizer, “pegar no embalo”, começamos a levantar as vocações culturais de cada região. Dentro do Programa de Valorização de Culturas Regionais, um de nossos maiores projetos era a criação de uma Secretaria Itinerante. Passamos dois anos elaborando as condições logísticas para tal e mantendo diálogos estreitos com o interior do estado. Essa iniciativa era tão inusitada que, quando eu chegava aos municípios, as pessoas me perguntavam se eu era Secretária da Agricultura. E eu brincava, citando a Marilena Chauí em seu Cultura e Democracia, dizendo que cultura vem de “cultivo”. Então realmente são coisas parecidas. Durante esses dois anos iniciais, fizemos um mapeamento territorial minucioso. Entendi o que era o maciço de Baturité, a serra da Ibiapaba, o Sertão Central, os Inhamuns, o Cariri, o vale do Acaraú, o vale do Jaguaribe. A partir daí, já com uma noção bem mais ampla do que nos aguardava fora de Fortaleza, fizemos um projeto chamado “Cultura em Movimento – SECULT Itinerante”. Durante esse período, contei muito com a ajuda do governador quanto à captação. Você acha que o gestor público pode captar? Creio que sim. O ministro Gilberto Gil captou, o ministro Juca Ferreira captou. Não dá para abrir mão disso. Como disse, não temos recursos próprios, na verdade. Não somos capazes de mover satisfatoriamente uma máquina pública. Então, eu fazia bons projetos e ia para as antessalas de marketing das empresas. Em um ano, tripliquei o que o Ceará captava. Até da Avon conseguimos apoio. Em Brasília, conseguimos parcerias importantes com o Bradesco, a Eletrobras, a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica. Com a Lei Rouanet, consegui captar recursos para projetos estruturantes no interior do Ceará. E é papel do Estado produzir eventos? Se não há produção de eventos no local, então é papel do Estado. Estamos falando de regiões que nunca tiveram acesso a coisa nenhuma. Como esperar que elas façam seus próprios projetos? Não, era preciso ir até elas e, uma vez lá, ensinar o processo a quem estivesse interessado. No fundo, tenho para mim que a gestão cultural é uma ação absolutamente pedagógica, de caráter civilizatório. Criamos o Festival de Música da Ibiapaba, o Festival de Trovadores e Repentistas do Sertão Central, a Mostra Cariri das Artes, o Festival de Música de Câmara do Centro-Sul, o Festival de Circo de Bonecos dos Inhamuns, o Festival dos Mestres do Mundo do Vale do Jaguaribe, o Festival de Dança do Litoral Leste, a Festa do Livro e da Leitura do Litoral Oeste. Ou seja, em dois 102


anos, conseguimos ter ações estruturantes em todas as regiões, em função de suas vocações culturais. Por detrás de todos esses festivais, havia uma lógica de financiamento tripartida. Um terço do dinheiro vinha do Fundo Estadual de Cultura, outro terço vinha do dinheiro que eu captava nas estatais brasileiras, e o outro terço era escambo. Eu chamava os prefeitos e dizia, em linhas gerais: “O senhor sozinho não pode nada, mas regionalmente podemos muito. Não quero seu dinheiro, mas quero parceria. Preciso de hospedagem, transporte, restaurante”. Com esse escambo, fechávamos o orçamento. O Ceará, portanto, começou a ter uma agenda cultural em todas as regiões. Uma vez isso tudo montado, saímos de Fortaleza. Como foi essa saída? Muito bacana. Era uma comitiva grande, como a Expedição das Borboletas do Dom Pedro II. Fiquei praticamente um ano e oito meses sem voltar para casa. Já tínhamos um primeiro diagnóstico da situação do estado por conta dos dois anos anteriores. Então criamos todos os subsistemas de cultura: o sistema estadual de teatros, de museus, de ciências culturais, de bibliotecas, de bandas de música. Além disso, oferecemos uma “cesta básica” de cursos, a maioria elaborada a partir da vocação específica de cada região. Por exemplo, no centro do Ceará há uma região de pedra semipreciosa, então oferecemos um curso de Design de Joias, para atender à vocação joalheira do local. Criamos cursos-padrão também, comuns a todas as regiões. Entre eles, havia o de Educação Patrimonial, onde tentamos ensinar o significado de patrimônio imaterial e material, além de medidas de proteção. Havia também o curso de Gestão e Produção Cultural, que tratava da elaboração e da redação de projetos. Além desse braço de formação, nosso programa também tinha um braço de difusão, para formação de público. Levamos isso a efeito montando lonas de circo em cada lugar que visitamos. Chegávamos como uma espécie de Caravana Rolidei, do filme Bye Bye Brasil. Uma vez montado o circo, cuja programação era toda voltada à descoberta de novos talentos da região, empreendíamos um censo artístico do local. Esse censo levantou 40 mil artistas no estado inteiro. Outro braço do programa era o de institucionalização, o que me fazia visitar as câmaras de vereadores para explicar-lhes o que era uma Secretaria de Cultura, o que era o Sistema Nacional de Cultura, o que eram as Fundações. Isso era feito com aulas-espetáculo, apresentações de PowerPoint, exibição de filmes. Ainda nesse âmbito, distribuímos cartilhas 103


sobre Federalismo Cultural e Investimos Culturais, mostrando o caminho para prefeitos, vereadores e as populações como um todo. Minha meta nas câmaras era construir secretarias. Quando assumi o cargo, havia algo entre 20 e 25 secretarias no estado. Quando saí, havia 100. O que mais nos chama a atenção no que diz respeito à sua gestão é essa iniciativa de criar a produção para depois geri-la. Isso dá uma eventidade ao gestor que o gabinete não daria, não é? Praticamente não estive no gabinete. O ministro Gilberto Gil esteve muito aqui durante os primeiros anos de gestão, e nunca encontrei com ele numa situação de ar-condicionado. Era sempre no chão do sertão, andando. Ainda acho a itinerância o melhor formato. Não fosse por isso, não teria conseguido alcançar os municípios que alcancei com minha equipe. Mas, na minha opinião, a coisa mais importante que ficou da gestão foi o livro bem extenso de leis que publicamos. Afinal, os programas se acabam, as políticas são sempre muito vulneráveis, mas as leis ficam. Segundo o sistema jurídico brasileiro, lei é melhor que programa. Torne-se a política lei, e ela sobreviverá. Você pode falar um pouco mais sobre essas leis? Foram muitas! Nós criamos um Sistema Estadual de Cultura que estabelece uma política afirmativa que nenhum outro estado brasileiro tem. Temos o FEC (Fundo Estadual de Cultura), que estabelece que pelo menos 50% de seus recursos precisam ir para o interior do estado. A mim me parece apenas justo, em se tratando de uma política pública de Estado, mas foi um escândalo. De todo modo, a lei continua em vigor. É uma coisa muito estranha: somos o país do patrimônio imaterial, nossa maior riqueza cultural são nossas festas, saberes e fazeres tradicionais, mas quando fui procurar uma legislação estadual ou municipal que apoiasse essa expressão cultural, não havia nenhuma! Nenhuma! A primeira lei dos Mestres da Cultura do Brasil é nossa, do Ceará (havia uma de Pernambuco que não havia sido regulamentada). Depois que nossa lei foi criada, houve uma avalanche de leis similares. Hoje existem várias leis municipais e estaduais protegendo esse patrimônio imaterial. Como proteger os Mestres da Cultura? Começamos por uma questão de emergência. Estou falando de pessoas com em média 80 anos de idade e que estavam morrendo de fome. Conse104


guimos garantir-lhes uma sobrevivência financeira e assegurar uma primeira ação de transmissão. É apenas lógico. Se o mestre tem condições, ele vai trabalhar no processo de transmissão com o Estado. De resto, não ignoramos o fato de que eles já eram mestres em suas próprias vizinhanças, apenas criamos situações específicas de encontro, como o Festival Mestres do Mundo, para o qual trouxemos mestres do Japão, da Índia, do México, e juntamos com os mestres do Cariri, de Minas Gerais e do resto do Brasil. Como transformar essas iniciativas em políticas de Estado? A única forma de se fazer isso é fortalecer a sociedade. Falo de uma sociedade fortalecida pelo Sistema Nacional, por Conselhos Municipais. O que nós construímos durante minha gestão foi em parceria com as populações, e essas parcerias são frágeis. Ou seja, como o novo secretário – o novo governo – não continuou esse trabalho, ele se desconstruiu num minuto. Em 2007, uma pesquisa do IBGE apontou que o Ceará tinha os melhores números do Brasil inteiro. Era o estado com o maior número de Secretarias, Conselhos, Leis Municipais. Em apenas dois anos, 2/3 do que conseguimos fazer já se perdeu. É lógico que alguma coisa fica, mas em termos gerais, é um trabalho sisífico. A gestão cultural no Brasil ainda está nessa fase proto-histórica, ainda não encontrou um terreno sólido onde possa se firmar. Sou otimista, não creio que todo nosso trabalho tenha sido em vão. No entanto, comparado com o que já foi, esse 1/3 que ficou é muito pouco. Acabei de saber, por exemplo, que Juazeiro do Norte extinguiu sua Secretaria de Cultura, fruto de um trabalho importantíssimo. Imagine, a terra de Padre Cícero sem uma Secretaria de Cultura? Mas o prefeito decidiu. Os vereadores não podem fazer muito, são muito frágeis politicamente. Tentei conduzir um trabalho de autoestima junto aos vereadores, tentando fazer com que entendessem que o Brasil só é democrático porque conta com eles. Mas... não é assim que as coisas se dão, na verdade. Toda nossa estrutura republicana, para o sertão do Brasil, é apenas uma estrutura formal. Quando se vai ao interior, de vez em quando, os prefeitos moram em outros estados! As câmaras de vereadores quase nunca abrem. Precisamos reavivar essa estrutura republicana e, para tanto, precisamos de uma sociedade minimamente instituída. O problema é que a tradição brasileira é de um Estado que antecede a sociedade. Pudera, chegou de caravela!

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Joãozinho Ribeiro Ex-Secretário de Estado da Cultura do Maranhão.

Fale um pouco das inúmeras manifestações culturais no Maranhão. O Maranhão se transformou num diálogo generoso de várias matrizes culturais. Durante o período colonial, os portugueses custaram muito a se integrar dessa imensa costa brasileira. Uma pesquisa coloca que os franceses já estariam, de certa forma, viajando e tendo contato com as populações indígenas na costa do Maranhão. Tanto isso é verdade que a capital foi ocupada por franceses e posteriormente foi chamada de São Luís. Depois vieram os holandeses. Só então os portugueses fincaram, de uma forma mais sistemática, as suas bandeiras no Maranhão e organizaram administrativamente essa capitania. Com isso, deu-se a migração do litoral para o sertão e o fluxo de escravos da África para as lavouras. Essa ocupação depois seria reforçada pelo ciclo do gado e os vários ciclos de migração que tivemos no país. Então, a construção da matriz cultural do Maranhão vem de toda essa conjugação de povos que habitaram a região e que foram construindo coletivamente essa herança cultural, esse legado. O tambor de crioula, que é uma das manifestações mais fortes do Maranhão e existe em praticamente todo o estado, tem uma matriz africana muito forte nos rituais religiosos. O bumba-meu-boi aparece inicialmente nas fazendas, principalmente nas fazendas que foram abandonadas pelos senhores de escravos, e, em cada região, tem uma característica 107


diferente, um sotaque. Essa manifestação foi incluindo outros elementos, como os instrumentos que eram utilizados de maneira bem rústica. Os sotaques variados acabam tendo influências também das populações indígenas, da população africana e até da população europeia, quando alguns grupos começam a utilizar instrumentos de sopro. Várias outras manifestações, que derivam dessa matriz, hoje compõem o imenso mosaico que é a cultura maranhense. Isso tem influência nas danças, nas músicas e nas várias manifestações artísticas que hoje são objeto de pesquisa e de trabalho artístico em todo o mundo. Essa herança cultural tem uma matriz bastante singular em relação às outras regiões do país. E a cena contemporânea do Maranhão, como se encontra? O Maranhão é um estado que, segundo dizem, está todo o tempo com o dedo no gatilho. Antigamente, o dedo no gatilho era mais visto como a questão da ocupação dos espaços, principalmente do sertão e dos conflitos agrários. Mas esse dedo no gatilho da produção cultural eu diria que ainda encontra alguns gargalos, que precisam ser extirpados para que ela possa ser desenvolvida. Em alguns momentos, nós tivemos uma pujança muito forte, que colocou o Maranhão na cena do mundo, como é o caso de um período muito fértil na literatura. São Luís foi chamada pela elite de a Atenas brasileira, que é um culto a um momento que tem no poeta Gonçalves Dias a personalidade mais emblemática. Essa veia literária do Maranhão é conhecida no mundo inteiro, com, inclusive, escritores contemporâneos como Mauro Machado e Ferreira Gullar. Outras manifestações artísticas também tiveram períodos de bastante reconhecimento mundial, como o próprio teatro maranhense, que teve uma cena importante. O Maranhão já foi o terceiro polo industrial do país, a Atenas brasileira, já ganhou vários prêmios na área do teatro, tem um grande festival de cinema chamado Guarnicê, mas há um sentimento de que essa efervescência pertence ao passado, o que não é positivo. Na verdade, toda essa herança cultural resiste ao tempo, e a cultura emergente vai absorvendo, deglutindo essa matriz riquíssima e diversa, se apropriando de maneira a dar novo formato, novas linguagens. O movimento hip-hop é um exemplo disso: é um dos maiores do Brasil. O pessoal do hip-hop do Maranhão fez uma grande ponte com a Europa, com São Paulo, e hoje é um movimento bastante respeitado. Evoca o sincretismo religioso, consegue dialogar com elementos das culturas de 108


matrizes africanas tradicionais, como o bumba-boi de zabumba, o tambor de crioula, a dança do lelê. Esse é um fenômeno novo, que talvez ainda não esteja nessa cena oficial, traduzida para outras plagas, mas é um aspecto que deve ser considerado atualmente, quando a gente fala numa cena maranhense de cultura. E o reggae? O reggae começou na zona do baixo meretrício, do lado da ilha de São Luís. Como aconteceu em quase todo o país, depois do grande boom do comércio, no final de todo esse apogeu, a área portuária ficou degradada, se transformou no que a gente chamava de ZBM, zona do baixo meretrício. Eu nasci e me criei no centro histórico de São Luís. Quando eu era garoto, me deparei com várias paisagens assim, um território povoado por levas e levas de marinheiros, que vinham de muitos mares navegados, de muitas noites, e ansiavam por terra e por mulheres. Eles traziam muitos souvenirs de outros países. A primeira vez que eu ouvi a palavra “reggae”, e esse ritmo, foi lá. Os discos provavelmente eram trazidos das Guianas Francesa e Holandesa, que, em geral, era a procedência desses navios. E o reggae se espalhou como um fenômeno pelos bairros de periferia de São Luís, a princípio, e teve um diálogo muito fecundo com essas populações. Naquele tempo, o Caribe já tinha uma influência muito grande em São Luís, pelas músicas que eram tocadas lá, o merengue, a salsa, o calipso. Então o reggae foi se espraiando. No primeiro momento, criou um fenômeno chamado radiola de reggae, que são imensas caixas de som, operadas por DJs. Caiu na graça do povo e virou grandes bailes populares. Hoje o reggae já é um fenômeno concentrador de renda, se transformou em um tipo de exploração, o que a gente chama de um novo tipo de escravidão oficializado. A maioria dos negros, que incorporaram, dançam e praticam o reggae, sustenta um grupo de, no máximo, dez empresários, que são donos das radiolas e que entraram também no mundo político. Vários deles são deputados, têm mandato. Essa população toda que chega a pagar às vezes até R$ 50,00 por show é quem sustenta toda essa indústria, que é apropriada por um grupo bem pequeno de pessoas. Então, essa ideia que passa para fora, de que São Luís é a Jamaica brasileira, e que o reggae é a grande manifestação, é preciso ser vista com bastante cautela. O Maranhão possui diversas manifestações culturais, e não é positivo que esteja apenas associado a um estereótipo do reggae. 109


Há semelhanças entre as radiolas do reggae e as aparelhagens do tecnobrega do Pará? Eu estive recentemente em Belém e estava conversando sobre isso com os gestores de cultura de lá. Esse fenômeno do tecnobrega, que mereceu um estudo da Fundação Getúlio Vargas, é um tipo de economia de cultura que fugiu aos padrões de modelos de negócios que se conhece. No Pará, a coisa é bastante democratizada. Percebo que é um fenômeno apropriado de uma forma mais descentralizada e que até agora é alvo de estudo. Já no Maranhão, para vocês terem uma ideia, os parlamentares que são empresários do reggae buscam eleger vereadores em cada cidade para defender, em cada câmara, o Dia do Reggae. Querem que no calendário de cada município exista o Dia do Reggae. Por trás disso está uma grande rede de apropriação também de recursos públicos, para que os 217 municípios maranhenses tenham, de uma forma mecânica, de uma forma de cima para baixo, criado um circuito de radiolas contratadas. É uma estratégia bastante definida e bem planejada. Existem outros problemas, inclusive no diálogo das radiolas com as festas tradicionais. Estive há algum tempo na Festa do Divino, em Alcântara, e lá o pessoal só podia fazer os ritos e as missas depois que a radiola parasse de tocar na praça, num som bem alto, quebrando toda uma tradição secular, sem conseguir construir um diálogo. Isso é perigoso. Segundo a Marilena Chauí, que estudou esse fenômeno de culturas diferentes, quando elas se colocam face a face, se não se consegue construir um diálogo generoso, fazer o que a gente chama de interculturalidade, há o perigo imanente de uma querer absorver a outra, ou destruir. Tiradentes, em Minas Gerais, proibiu o axé no carnaval para manter as tradições das folias de reis. Esse é um caminho possível? Se a gente conseguir construir um diálogo entre as duas manifestações, sem xenofobismo, sem bairrismo, acho que isso se dá até de maneira natural. No Maranhão, os bois têm um costume de fazer ensaios, que eles chamam ensaios redondos, nas suas próprias comunidades. Eles têm todo um rito. Enquanto não acaba o ensaio, a radiola de reggae não pode tocar. Depois que termina o ensaio, o reggae fica tocando até de manhã. Então, o pessoal consegue dançar o boi e depois dançar ao som da radiola do reggae até o amanhecer. Isso é um tipo de relacionamento cultural, de diálogo construído, sem interferência de autoridade, sem nada. A própria comunidade 110


absorveu e conseguiu colocar em prática, mas na maioria dos lugares isso não acontece. Há algum tempo eu estive em alguns povoados remanescentes de quilombos e fiquei preocupado com o fenômeno das radiolas, que não respeitam os ritos e nem as manifestações de matrizes africanas. Um fenômeno também complicado é que as novas gerações que vão se achegando à cena cultural ficam a mercê de um fenômeno que traz consigo uma carga de extermínio dessas raízes. Essa nova geração, encantada pelo fenômeno do reggae, fica um pouco envergonhada das suas raízes. É preocupante porque, sem esse rito de passagem, sem essa ponte entre as duas manifestações, prevalece aquela que está mais ligada à indústria cultural. Além da questão do Dia do Reggae em todo município, há também uma compra de programas em tudo quanto é rádio, seja comunitária, seja oficial, para tocar reggae durante uma grande parte do dia. Então, há um modelo de negócio bastante agressivo em torno da indústria do reggae. Talvez um dos temas mais difíceis seja a preservação desses rituais de uma forma verticalizada, quer dizer, de uma política cultural, porque eles são dinâmicos, não são rituais fechados. A melhor forma de preservação é por meio do diálogo, da interculturalidade. Às vezes, por intermédio desse processo, surgem até culturas emergentes, que vão dando vida e dinamicidade. Por exemplo, da junção do reggae, ou mesmo em alguns momentos do hip-hop, com o sotaque de zabumba do boi, que tem uma característica bem marcante, têm surgido várias manifestações na dança. Isso é interessante, porque foi algo que surgiu da construção desse diálogo. E se existe no Maranhão, deve existir também em outros estados. Fale um pouco da produção cultural no sul do Maranhão. O sul do Maranhão talvez seja um exemplo cruel de negação de raízes culturais, principalmente pelo fenômeno da terra. No Brasil inteiro, guardadas as devidas proporções, a terra sempre foi o fator de grandes transformações, para o mal e para o bem. No Maranhão, o processo do latifúndio foi muito duro e teve toda uma consequência da desagregação cultural, da desagregação econômica, da desagregação das matrizes produtivas. O agronegócio, como forma de desenvolvimento econômico, que pautou aquela região, teve como consequência a extirpação de várias culturas locais. Quando ele se instala 111


como um modelo de desenvolvimento, traz consigo também a possibilidade daquele espaço cultural ser preenchido por fenômenos que eu chamaria da cultura do espetáculo. Aí começam os grandes shows de sertanejos, de sambanejo, das micaretas. É um fenômeno que, do ponto de vista da economia da cultura, tem causado um processo de evasão de renda cruel em todas aquelas regiões do sul do Maranhão. Quando eu era secretário de Cultura, os prefeitos sempre nos procuravam para apoiar projetos desse tipo. Um deles até me disse que, se não fizesse essas grandes festas, não se elegia na próxima eleição. Uma vez eu perguntei para eles como ficava a economia dos municípios depois desses eventos de grande porte. Eles disseram que passam três ou quatro meses com quase toda atividade de serviços e comércio bem em baixa. Esse modelo de negócio, que vem das micaretas e esses outros tipos de produção cultural, tem esta particularidade: os direitos autorais, desde do artista que está no palco, além dos equipamentos, dos royalties e das licenças, são pagos pela compra de abadás e pelo município e são recolhidos em escritórios de outros estados. Isso causa uma evasão imensa de recursos em municípios pobres. E também, na maioria desses municípios, principalmente os de características rurais, a renda é das pessoas mais velhas, que vem das aposentadorias rurais, do INSS, e agora dos programas sociais do governo, Bolsa Família. Os avós ou os pais, movidos pelos desejos dos netos e filhos, ficam com prestações a pagar dos abadás e dos outros produtos gerados por essas micaretas. Isso causa uma queda em todo o comércio da cidade. Quais são os caminhos para lidar com os direitos autorais sob a perspectiva das culturas tradicionais, em que a autoria é coletiva? Talvez quem nos dê a melhor lição sobre essa questão sejam as populações indígenas. Nós temos aqui, no Brasil, a questão do direito autoral de domínio público, que é uma faca de dois gumes. Ele coloca a possibilidade de democratizar a informação, a cultura, mas, por outro lado, também coloca o fenômeno da invisibilidade cultural, que talvez seja a forma mais cruel de exclusão, do ponto de vista humano. Então, a gente tem que ter um equilíbrio entre esse processo da criação e a apropriação dos seus resultados. Vou pegar uma manifestação tradicional do Maranhão para caracterizar essa questão do direito autoral coletivo. As comunidades que já têm mais de cem anos, onde o bumba-meu-boi é tido como a maior manifestação, com as toadas e 112


as canções que vêm dele, quem tentava se apropriar dessas toadas e colocar como suas era expurgado da comunidade à base da paulada de matraca, que é um instrumento de percussão feito de madeira. Essa era uma forma que eles tinham de dizer para o mundo que aquela criação era coletiva. E isso valeu até pouco tempo atrás. Se alguém perguntasse de quem eram as toadas, as mais antigas, as pessoas respondiam que eram do boi, não identificavam os autores, mas, depois, com a comercialização da produção musical, e com o bumba-meu-boi vendendo cerca de 15 mil CDs na época da festa de São João, no Maranhão, os autores passaram a querer ser identificados. Então essas comunidades passaram por esse fenômeno e individualizam a autoria, mas vários grupos indígenas, para proteger a sua produção e a autoria, construíram associações e defendem que esse reconhecimento da autoria seja dado a essa associação, do ponto de vista econômico e do ponto de vista simbólico. É a maneira que eles encontraram para tentar proteger suas criações. Por incrível que pareça, o direito brasileiro ainda não abriga isso. É uma questão que, de fato, já acontece, mas o direito brasileiro identifica o autor somente por pessoa física. Quando a Lei 9.610 foi aprovada, em 1998, ela resolvia um conflito que existia anteriormente, das pessoas jurídicas, esse fenômeno abstrato, sem alma, incorpóreo, que o direito ocidental abrigou, e hoje se expandiu pelo mundo inteiro. Antes, a pessoa jurídica poderia ser considerada criadora de uma obra intelectual. Então, o direito brasileiro, a partir de 1998, consagrou que o autor só pode ser pessoa física. Esse direito moral só pode ser atribuído à pessoa física. Isso resolveu um conflito entre autores e essas grandes corporações, mas, por outro lado, não teve um olhar para o Brasil inteiro. Resolveu apenas o conflito individual. Lembro do Gilberto Gil, numa briga terrível com a Warner em torno dos seus direitos autorais. Hoje é a sua produtora, a GG, que a sua mulher dirige, quem negocia caso a caso cada produção, cada autorização de exploração da sua obra musical. A legislação autoral brasileira tem de ser revista o mais urgente possível, porque ela não comporta casos como esse que nós estamos discutindo, da criação coletiva, e muitas populações ainda trabalham assim, não só as populações indígenas, mas populações ribeirinhas, populações tradicionais, remanescentes de quilombolas. Isso faz parte da nossa realidade, desses “brasis”, que nós temos. Costumo brincar, mas falando sério também, que o Brasil, embora não seja um verbo, não pode ser conjugado no singular: ele 113


tem que ser conjugado sempre no plural. Porque nós temos vários “brasis” dentro desta nação continental. As culturas tradicionais são dinâmicas e absorvem o que está lá fora. Elas também têm o direito de absorver o que está lá fora, não pode haver restrições para isso. Então quais as mudanças de direitos autorais necessárias para preservar as singularidades e ao mesmo tempo manter o dinamismo cultural, a possibilidade de diálogo e de transformação? Eu sou um defensor contundente da abertura no campo da cultura. De as culturas se abrirem umas para as outras, abraçarem, conviverem. Eu defendo de uma forma bastante profunda essa possibilidade. Os empecilhos ou as dificuldades que tem nesse campo se dão mais do ponto de vista da desconstrução de um modelo de negócio que as grandes corporações da indústria cultural criaram. Hoje esse modelo de negócio está bastante abalado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Eu diria que é um cadáver insepulto essa forma de tentar fazer uma “proteção” de alguns fenômenos culturais. Os próprios criadores e produtores, desde que você crie espaço e consiga fazer com que convivam de uma forma mais saudável, não advogam tanto essa proteção. A professora Alessandra Tridente escreveu um livro muito interessante sobre direito autoral chamado Direito autoral – paradoxos e contribuições para a revisão da tecnologia jurídica no século XXI, e ela ataca ou critica três aspectos que fundamentam o arcabouço jurídico que o direito autoral tem hoje, não só o do Brasil, mas quase o do mundo inteiro. Talvez o principal desses aspectos seja a questão do prazo para uma obra cair em domínio público, para ela ser compartilhada. Esses setenta anos constituídos hoje são uma coisa horrível, não só do ponto de vista de impedir a livre circulação da produção cultural, como para a criação de novas produções. Cada obra intelectual colocada no mundo é insumo para outra criação, ou seja, nada surge do zero, do nada. Qual é a melhor citronela para os maribondos de fogo que atacam a cultura maranhense? Não há como mudar a política cultural de uma cidade, de um país, sem mudar a cultura política. O Maranhão é um estado oligárquico, de origens latifundiárias, um estado coronelista. Os políticos que seguem essa prática possuem o monopólio dos meios de comunicação, que estão ligados a prati114


camente duas famílias, a do senador José Sarney e a do ministro Edison Lobão. Isso faz com que tenhamos como resultado uma prática perversa, que inibe o acionamento daquele gatilho, de que eu falei no início aqui da entrevista. O gatilho que não pode disparar um tiro mortal, mas pode disparar uma abertura para essa produção cultural tão grande que o Maranhão tem. Eu tenho a convicção, desde os meus tempos de fórum intermunicipal de cultura, que não há como se construir uma política pública de cultura no Brasil, desde os rincões mais recônditos até as zonas urbanas mais aquinhoadas, se o tripé cultura, comunicação e educação não estiver bastante azeitado. Se você não tiver na base da produção educacional uma valorização da cultura local, você já perdeu 90% de possibilidade de desenvolvimento dessa matriz. E mesmo se você conseguir essa formação na educação e, posteriormente, não conseguir a difusão da produção cultural local, essa possibilidade é também perdida. Por último, se mesmo tendo esses meios, você não conseguir democratizar e descentralizar essa diversidade, essa formação e essa difusão, não se completa. Hoje, esses maribondos de fogo queimam toda essa possibilidade que o Maranhão tem, porque os próprios artistas e produtores maranhenses precisam pedir licença ao coronelato para que a sua produção possa vingar como uma planta, como algo da natureza. Esse é um fenômeno que conseguiu atravessar os séculos e, em pleno século XXI, ainda é uma realidade.

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Heitor Martins Luiz Camillo Osório Fábio Coutinho Gérald Perret Lárcio Benedetti José Martins Maria Arlete Gonçalves Eduardo Saron

INSTITUIÇÕES CULTURAIS Eliane Sarmento Costa Luciane Gorgulho Roberto Smith Danilo Santos de Miranda Décio Coutinho Ana Toni Gilberto Freyre Neto Carlos Dowling

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Heitor Martins Presidente da Fundação Bienal de São Paulo.

O que motivou a escolha do tema Arte e Política para a Bienal de São Paulo de 2010? É impossível dissociar arte da política. As duas estão intimamente ligadas, desde o Egito antigo. Na verdade, é uma escolha dos curadores, não é minha, mas eu acho o tema muito pertinente. As bienais não ocorrem dentro de um vazio. Existe uma sequência de discussões em que vão se construindo umas sobre as outras. Se você pensa na trajetória dos últimos anos, tivemos duas bienais muito plásticas, com o Alfons Hug. Isso leva a uma certa reflexão para a bienal seguinte, da Lisette Lagnado, sobre qual é o papel da bienal e sobre a adequação desse formato. Depois essa discussão se acentua na bienal do Ivo Mesquita, com toda a questão do vazio, se a sociedade quer ou não um evento como esse. Então, de uma certa forma, a nossa bienal, a 29ª, está fechando esse ciclo de debate, na medida em que a sociedade reafirmou o seu desejo de ter uma bienal forte, representativa, que se alinhe com Kassel e com Veneza como uma das grandes mostras de arte contemporânea no mundo. E ao afirmar isso, está se reafirmando também essa conexão entre arte e política. Porque a bienal se propõe a tirar um retrato da produção contemporânea mundial, ainda que vista por parte do Brasil, e esse retrato é, por definição, um binômio arte e política. 119


O que é a Fundação Bienal e como que ela surgiu? Ela começou em 1950, com o projeto de Ciccillo Matarazzo. Acredito que a base desse projeto é justamente o que a gente está reafirmando agora, que é o desejo de conexão do Brasil com o resto do mundo no plano das artes plásticas, mas também num plano político. Tem um interesse de afirmação nacional, de inserção do Brasil dentro de um contexto de produção cultural global, de fazer com que o Brasil seja, de fato, um expoente dentro desse processo. A bienal cumpriu esse papel. O Brasil saía de um período de pós-guerra, de um período de afluência, como é o período de hoje, de desenvolvimento, e se projetava internacionalmente em várias dimensões. A bienal era uma forma de projeção da nossa cultura e de inserção do Brasil no debate cultural, no debate plástico. Outro tema importante sobre isso é a construção do prédio da bienal. Como ela ocorreu? Isso escapa um pouco do meu conhecimento da bienal, mas o que sei é que ela começou dentro do MAM, no tempo em que o prédio era relativamente acanhado para as necessidades dela. Em paralelo aos eventos da comemoração do aniversário de São Paulo, estava sendo construído o parque do Ibirapuera, e estava previsto um pavilhão que, originalmente, não era para ser da bienal. Era para as indústrias ou algo assim. Ao longo daquele processo, ele acabou sendo desviado e passou a acomodar a fundação. O pavilhão é muito simbólico. Se você vai a Kassel, vai a Veneza, vai às outras mostras, você vê que nenhuma tem um pavilhão com essas características, o que torna a nossa bienal bastante única. Em Veneza, a arquitetura influencia muito na mostra; tem uma coluna de pavilhões pequenos, e a mostra fica muito fragmentada. O fato de nós termos um pavilhão único, com pisos bastante amplos e um pé-direito bastante avantajado, dá muita flexibilidade ao desenho da mostra. Você consegue criar mostras que são muito diferentes umas das outras, porque você tem muita liberdade arquitetônica para dar suporte. Se a gente conseguisse refrigerar o espaço, poderíamos fazer uma coisa incrível, que é ter um espaço amplo, onde você pudesse mesclar arte moderna e contemporânea. Isso seria uma coisa única no mundo. Você teria uma condição de fazer mostras de uma riqueza incrível, mas não é possível hoje, porque você não consegue mais trazer arte moderna para dentro do pavilhão, por questões de conservação. 120


A Fundação Bienal fará sessenta anos. Isso traz tradições, que podem fortalecer, mas também dificultar o processo de criação. Como você vê isso? Claramente fortalece. Porque a tradição lhe traz uma reputação, um prestígio e uma capacidade de alavancar recursos e mobilização. Não existe outra instituição no Brasil que tenha essa condição. Temos uma lista de 150 artistas, e nenhum deles recusou o convite. Você consegue ligar para qualquer artista, em qualquer lugar do mundo, e convidar para participar da nossa bienal, e muitos deles, além de aceitar participar, se dispõem a produzir trabalhos novos. Se você não tivesse essa tradição, esse olhar, não conseguiria fazer isso, haja vista as dificuldades que outras bienais têm de mobilização. Esse é um enorme patrimônio brasileiro. Países como a Espanha, a França adorariam ter uma bienal como a nossa, mas não têm. O Brasil se lançou definitivamente como um país forte nas artes visuais na última década. Isso influencia a bienal? Sem dúvida. As duas coisas estão intimamente ligadas. A própria produção artística brasileira, até o surgimento da bienal, não ocorria pari passu com o que estava acontecendo ao redor do mundo. A bienal tem um impacto enorme no desenvolvimento da nossa produção artística. Você não consegue pensar num movimento concreto ou neoconcreto no Brasil sem pensar no papel das bienais. E todos os artistas que secedem aos movimentos concreto e neoconcreto bebem da fonte da bienal, passam por ela, usam a bienal como uma plataforma de projeção, como um laboratório de intercâmbio. Então, é impossível a gente dissociar a força que a arte brasileira tem, nos últimos dez anos, com o sucesso que a bienal teve nos anos 1990. E há o retorno desse impacto das artes visuais brasileiras também para a bienal, que se fortalece internacionalmente. Algumas pessoas questionam a periodicidade de dois em dois anos do evento... Dois anos é muito e é pouco ao mesmo tempo. O calendário é anual, então coisas que ocorrem num ano e não ocorrem no ano seguinte têm dificuldade de criar um ritmo. Isso dificulta o diálogo com patrocinadores e com o governo, e também fazer um programa educativo permanente. Você tem um esforço de mobilização enorme para fazer o evento nos anos pares e, nos anos ímpares, 121


fica um vale. Cria-se uma estrutura e essa estrutura fica completamente sem utilização por todo um ano ou é desmontada. Sob o ponto de vista de produção, seria muito melhor você ter eventos anuais. Você teria um ritmo de relação mais constante com a sociedade. Mas, sob o ponto de vista das artes, há artistas e críticos que acham que um ciclo mais longo, como o de Kassel, é mais apropriado. É uma questão que precisa ser tratada, há limitações e forças dentro dessa estrutura. Como lidar com arte e educação, fazer essa ponte, e ter uma continuidade, não ser um projeto intermitente? Nós delimitamos que uma das grandes vocações da bienal é a educação, no seu sentido mais amplo. Nosso país é bastante carente. Menos de 10% da população foi alguma vez na sua vida a um museu. Quando se faz uma mostra de trinta mil metros quadrados, é uma oportunidade única de aproximar a população das artes. E para fazer isso com a arte contemporânea é muito importante que essa aproximação seja mediada, porque a produção contemporânea é muito hermética. Então, para fazer com que essa experiência seja enriquecedora, é importante ter um programa educativo que facilite esse diálogo entre o espectador, que está indo a uma mostra pela primeira vez, e a obra. Daí toda uma ênfase no programa educativo, o que no Brasil é realmente pioneiro, porque não existe em nenhum outro lugar do mundo um programa educativo com esse alcance, com essa complexidade. A fundação realizou convênios com a Secretaria de Educação de São Paulo, do estado, do município, das cidades ao redor; com um grupo de mais de 25 Ongs e instituições privadas, e desenvolveu um projeto que trabalha a bienal a partir do educador. O processo começa bem antes da bienal, trazendo os professores para um treinamento, um laboratório de dois dias sobre arte contemporânea, onde eles têm um contato com a bienal, com a programação, com a proposta da curadoria. Eles recebem um material didático e recebem uma formação de como trabalhar esses temas na sala de aula. A partir daí, eles voltam para as escolas, ou no caso das Ongs, para as comunidades de base, e trabalham o tema da bienal em sala de aula com os alunos. Isso deve ocorrer ao longo de todo o semestre, com um material didático superinteressante, lúdico. Em setembro, haverá uma pré-abertura antes da bienal, e, durante os dois primeiros dias, a mostra estará aberta só para os professores que participaram desse processo, de modo que eles possam vir tendo já participado do programa 122


de formação e tendo trabalhado o tema em sala de aula. Nossa meta é trazer algo como quatrocentos mil estudantes ou participantes do programa para a mostra, em visitas guiadas. É um programa absolutamente único, seja pela extensão e magnitude, seja pela complexidade. Para se ter uma ideia, a bienal de Veneza inteira recebe trezentos mil visitantes. Como se deu a escolha dos curadores para a bienal de 2010? Nós fizemos um processo de seleção. Levantamos uma longa lista de nomes possíveis e fomos analisando vários deles, segundo critérios temáticos e curriculares. Colocamos algumas diretrizes sobre o perfil curatorial e a capacidade de trabalho em equipe. O projeto visava não ter um curador único, mas uma equipe curatorial jovem, com pessoas que não tivessem liderado ainda uma bienal, para trazer uma certa renovação dentro do processo. E nós formamos a lista, olhando quem está trabalhando no campo das artes aqui no Brasil e quem é que está nessa interface entre arte brasileira e arte internacional. O processo de avaliação trouxe o Moacir dos Anjos e o Agnaldo Farias como líderes dessa equipe curatorial. A inserção do Brasil na agenda internacional das artes visuais e o fluxo cada vez maior de pessoas que vêm para cá para ver nossa produção durante o ano todo são importantes para a bienal? São muito importantes. Você não pode pensar a bienal em detrimento das outras instituições, mas como uma soma e até parceria. Inhotim é muito importante para a bienal, assim como a bienal é muito importante para o Inhotim. E o mesmo ocorre com as outras instituições, com os museus, com os institutos. Quanto mais atividade cultural ocorrer, melhor. Há uma preocupação em pensar agendas comuns? Há uma preocupação grande nesse sentido, tanto que nós estamos tentando articular o que chamamos de São Paulo Polo de Arte, com o propósito de começar uma ação coordenada de todas as instituições paulistas ligadas às artes plásticas, para potencializar os programas educativos, ampliar o acesso ao público e criar de fato, ou consolidar, essa posição de São Paulo como centro de produção e divulgação de arte. Como funciona o Programa Brasil Arte Contemporânea? 123


O Programa Brasil Arte Contemporânea é um projeto de apoio à divulgação da arte brasileira no exterior. Na Inglaterra, por exemplo, existe o British Council. Então, quando um artista britânico é convidado para vir participar da nossa bienal, o British Council apoia e provê recursos, criando instrumentos para que artistas britânicos possam viajar e trabalhar no exterior, divulgando a sua produção. Eles apoiam centenas de artistas todos os anos, para fazer os mais diversos tipos de mostra ao redor do mundo. É um instrumento de divulgação da cultura britânica e da arte britânica. A França, a Espanha e os Estados Unidos têm a mesma coisa. E o Brasil não. Cada vez que um artista nosso é convidado para participar de algum evento fora do Brasil, tem uma dificuldade tremenda na busca de recursos. Mesmo em mostras importantes, como as de Kassel ou de Veneza, os artistas têm muita dificuldade de se organizar e de conseguir recursos, conseguir apoio para poder participar. O Programa Brasil Arte Contemporânea visa justamente suprir essa carência, apoiando viagens, publicações, textos técnicos, residências. É um programa central. Se queremos desenvolver a nossa arte e projetar a arte brasileira no exterior, é muito importante ter esse tipo de apoio de base. E a questão contrária, da residência de artistas internacionais, do Brasil como um polo criativo, tem se fortalecido? O Brasil tem se fortalecido. Inclusive, começa a aparecer um fator interessante, que são as nossas galerias de arte começando a trabalhar com muitos artistas da América do Sul. Isso é um sintoma de que o Brasil está se consolidando como um polo regional de produção de arte. A maioria dos artistas hoje, na Argentina, Peru, Colômbia, quer ter uma galeria no Brasil que represente o seu trabalho. E muitas vezes a galeria brasileira é a principal galeria desses artistas. Nós temos programa de residências, temos artistas que estão aqui trabalhando nesse contexto, mas esse não é o objeto do Programa Brasil Arte Contemporânea, não é a nossa prioridade. Nós, como instituição, já fazemos um grande evento com artistas internacionais, que é a própria bienal. Então, com o Programa Brasil Arte Contemporânea, pensamos num projeto que fosse do Brasil para fora. Até pra contrabalançar um pouco esse peso. Nesse processo, como é a relação com o Itamaraty, com consulados e embaixadas? 124


A nossa relação principal é com o Ministério da Cultura. Ele é o nosso interlocutor, o nosso grande parceiro. Nosso contato com o Itamaraty é muito mais limitado, até porque o Itamaraty atua muito mais fora do Brasil do que dentro. Temos uma certa cooperação com mostras oficiais, em Veneza, e com algumas outras bienais ou eventos que demandem uma representação nacional. Existem gargalos na legislação que atrapalham a feitura da bienal? A aquisição de obras estrangeiras por institituições brasileiras é um ponto estratégico? É importante separar o que é bienal do que é o Brasil. Sob o ponto de vista regulatório, não existe nada que especificamente seja um empecilho para a bienal. A bienal funciona, ela não tem nenhuma trava específica. A gente convive é com as amarras gerais que existem dentro do Brasil. O processo alfandegário é complexo, mas ele é complexo para a arte, para o produto têxtil, para tudo. É a natureza da nossa burocracia. Temos que conviver com um conjunto de regras de gestão de recursos, de convênios, que são pesadas, antigas, e fazem com que a gestão financeira de tudo isso se torne muito complexa, muito cheia de nuances. Isso dificulta bastante. Como se pensa a formação de novos artistas na próxima bienal? Essa não é uma missão primária nossa. O nosso papel é trazer esse retrato da arte mundial para dentro do Brasil e ajudar a disseminá-la aqui. E agora estamos tentando adicionar essa nova missão, que é ajudar a levar a produção brasileira para fora do país, através do Programa Brasil Arte Contemporânea. Mas a formação básica de artista, esse é um trabalho das escolas, das galerias, de instituições que são especializadas nisso. Sem dúvida que o papel da nossa bienal na formação do artista é muito grande, na medida em que cria acesso. Existem workshops em que os artistas podem participar e debater, interagir com outros artistas. É um processo enriquecedor, mas nós não somos uma escola de formação de artistas. A crítica das artes plásticas no Brasil, ao contrário de outras áreas culturais, tem se renovado e se fortalecido. Existem nomes novos de primeiro time e uma interlocução muito consistente. A bienal tem uma preocupação também em lidar com essa crítica, em criar um debate crítico em torno dela? 125


Claro. Tanto que existem programas de seminário muito significativos. E isso não é uma característica dessa bienal apenas, vem marcando as bienais ao longo do tempo. Inclusive a última bienal, a do Ivo Mesquita, se dava muito mais nesse plano acadêmico, intelectual, do que no plano plástico. Qual a sua opinião sobre a Bienal do Vazio? A Bienal do Vazio tem que ser vista dentro daquele contexto de sequência de bienais, e cumpriu um papel muito importante dentro desse processo. Existia um debate dentro da sociedade, de uma forma geral, sobre a bienal ser um formato obsoleto, se ela devia existir, se ela deveria ser diferente, o que deveria acontecer com ela. Era um debate que acontecia no nível intelectual e no nível plástico também, porque a bienal estava sendo minguada de recursos. Então a Bienal do Vazio desempenha um papel importante, na medida em que traz e escancara essa discussão com o público. Quando se pega um pavilhão que está disponível para fazer um evento que existe há mais de anos e se deixa ele vazio, consequentemente se cria uma contradição no olhar do público e provoca uma reação. O público poderia ter ido lá e falado que era isso mesmo, que a bienal não interessa e que o espaço deveria continuar vazio, mas ele se indignou. E isso é uma afirmação de que a sociedade não quer uma bienal vazia, que aquilo é algo que interessa a ela. Se há sucesso em reconstruir a bienal, em trazer recursos e poder fazer uma bienal com um alcance grande, é, em grande parte, uma consequência, uma reação à situação criada pela Bienal do Vazio. E sobre o caso da pichação na bienal? Eu acho que isso é mais uma forma de reação ao vazio. À medida que você deixa um andar vazio, deixa um prédio vazio, as pessoas podem querer encher aquilo com alguma coisa, porque o que era para estar cheio estava vazio. Como fazer para que o fomento da cultura deixe de ser uma questão do governo e passe a ser uma questão de Estado? O que fazer para que os recursos públicos para a cultura não sofram tanto com a inconstância? Tem que ser um passo depois do outro. Na medida em que se tenham projetos mais claros, mais consistentes, vão-se criando mecanismos de apoio que também sejam mais consistentes e mais estáveis. Não dá para culpar o governo por essa inconstância, pelo menos ao que se refere à bienal. Nossa 126


instituição também precisaria ser mais estável, esse processo de trocar tudo a cada dois anos, mudar o presidente, a filosofia, a abordagem, também não é muito saudável. Agora, dito isso, seria interessante ter mecanismos de cooperação que pudessem ser de mais longo prazo, ter endowments, convênios e programas de patrocínio plurianuais. Esse processo é muito transacional hoje. Cada mostra, cada ação tem que ser estruturada por si mesma. Você disse em uma entrevista que 70% dos recursos da bienal vêm de patrocínio, e a maioria deles com renúncia fiscal. Como é essa dependência da renúncia fiscal para criar um evento? É preciso desmistificar um pouco a questão da renúncia fiscal. No mundo inteiro, essa atividade de fundo da cultura se dá com recurso público. Na Europa, através de recursos diretos, e, nos Estados Unidos, através de recursos de incentivo fiscal, por exemplo. Os Estados Unidos têm incentivos enormes, há doação de obras de artes, doação de bens, e há criação de endowments, que são baseados nos incentivos fiscais. Então, ter dinheiro privado sendo canalizado por esse tipo de atividade de fundos é uma coisa que não acontece em lugar nenhum, porque esse tipo de atividade é de interesse da sociedade como um todo, não é uma atividade de interesse de A ou B. É típica de programa de Estado, de programa de governo e de recursos públicos. O que falta aqui, no Brasil, são mecanismos que permitam que esses recursos fluam de uma maneira mais estável, mais constante e mais bem planejada. O nosso sistema é um pouco amarrado. Como o mundo vê o Brasil? O Brasil é visto hoje como uma potência emergente, um país que está se afirmando dentro de um cenário internacional, o que, por conseguinte, gera um interesse enorme no país. Nós vivemos um momento muito bom, não só no campo das artes, mas na economia como um todo.

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Luiz Camillo Osório Curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Como foi o processo de recuperação do MAM do Rio de Janeiro depois do incêndio que destruiu parte do acervo, em 1978? Foi um processo duro, difícil. Em 1978, eu tinha 15 anos, portanto não acompanhei aquilo como alguém já envolvido nesse meio. Só depois eu passei a me envolver mais com esse universo da arte. O MAM foi um lugar que eu frequentei em minhas pesquisas, no centro de documentação, então eu fui aos poucos tomando carinho por aquele lugar e aprendendo um pouco da história dele. E o incêndio é uma parte traumática dessa história. Demorou praticamente cinco anos para o MAM ser reaberto, o que só foi acontecer no governo Brizola, em 1983. Esse período todo foi muito difícil no sentido de retomar o espaço, ver o que podia ser salvo, o que tinha sofrido perda total. Houve muita solidariedade por parte de museus, do corpo diplomático internacional. Depois, quando o Paulo Herkenhoff assumiu a direção, houve um trabalho de resgate da coleção, da documentação, da biblioteca. Isso foi muito importante nessa primeira etapa. Outro momento importante para o museu foi em 1993, quando foi feito o comodato com Gilberto Chateaubriand, juntando o acervo que ainda restava do museu com o acervo dele. Isso foi fundamental para o museu contar a história moderna e contemporânea brasileira. Hoje os dois juntos dão mais ou menos umas dez mil, quase 11 mil peças. 129


Foram anos difíceis desde o incêndio, até porque é um museu privado. É uma situação muito particular no cenário brasileiro: os seus dois palcos da arte moderna são museus privados, que quando foram criados tiveram como modelo o Museu de Arte de Nova York, que também é um museu privado. Foi feito no pós-guerra, a partir da política de boa vizinhança do governo americano e brasileiro. A relação MOMA-MAM, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, é direta. Rockefeller fez uma primeira doação, em 1946, de dez obras, divididas entre os dois museus. Todo o modelo, toda a logística, a direção, foi dada pelo MOMA. Então, reerguer e manter um museu privado, dada as dificuldades de uma presença ativa e efetiva da iniciativa privada na sociedade, foi muito difícil. Principalmente no Rio, que é mais complicado do que São Paulo, não só pela diferença de vigor econômico entre as duas cidades, mas também pela relação entre a sociedade civil e os equipamentos culturais. Mas mesmo antes do incêndio o MAM já tinha perdido muito em relação aos anos 1960, que foi o seu auge como formador de público, formador de uma cultura. Já tinha perdido o impacto que tinha na cidade, não é? Isso é uma questão. Os anos 1960 são, de fato, um momento simbólico. Esse período do Frederico Morais, do Apocalipopótese, dos Domingos da Criação, foi muito importante. Eu até diria que vai de 1965 até 1972, até a Ex-posição que o Carlos Vergara faz. É um recorte desse momento histórico e simbólico do MAM. Mas os anos 1970 têm a presença do teatro e da dança no MAM, que é pouco discutida. A sala Corpo e Som, que durou seis anos, até o incêndio, foi um laboratório para a dança e o teatro. De certa maneira, o Amir Haddad começa o Tá na rua lá no MAM. Os anos 1970 foram difíceis. Muita gente exilada, uma ditadura bastante pesada, então era um espaço de resistência grande, com esse perfil mais performático. E a sala Corpo e Som representa justamente essas dificuldades institucionais, transformou-se em um palco muito relevante para aquilo que podia acontecer de uma forma mais dinâmica, que era o teatro, a música, a dança. É claro que diminuiu um pouco a efervescência da discussão, até por conta da permanência da ditadura, mas a importância do MAM continua nesses projetos. Os primeiros eventos de poesia marginal, as primeiras Artimanhas da Nuvem Cigana aconteceram também no MAM, em 1975, 1976. Realmente, o MAM abraçava outras artes naquele período. 130


Pelo que pude acompanhar, na sua gestão há uma tentativa de fixar novamente o MAM como um espaço de referência para o debate cultural do Rio de Janeiro. Uma tentativa de reativar o MAM como espaço de reflexão, de troca, de cursos. Como está se desenvolvendo essa gestão? Na primeira edição da SPArte, uma feira de arte de São Paulo, pediram-me para fazer uma entrevista com o Gilberto Chateaubriand. Na época, eu não tinha nada a ver com o MAM, estou lá há seis meses. Então eu fiz a entrevista com o Gilberto e, evidentemente, o assunto MAM apareceu. Eu perguntei sobre a história do MAM, o passado do MAM e essa nostalgia em relação ao que teria sido e como recuperar essa mística dos anos 1960. E ele me deu uma resposta que eu achei muito boa. Ele falou: “Olha, tem uma coisa meio sebastianista em relação ao MAM. Não vai voltar. Não adianta. Vamos pensar numa reinvenção, numa outra coisa, num outro momento da história, da cultura, da política brasileira e das artes brasileiras. Tem que criar um outro modelo.” E essa imagem do Gilberto vem quebrar um pouco com essa mística do que foi, do que teria sido, do como recuperar o passado. Essa coisa sebastianista é uma imagem forte para a cultura luso-brasileira. Quando eu assumi o MAM, tomei isso meio como uma bandeira. Quando chamei o Frederico Coelho para ser meu assistente, a ideia era realmente trabalhar com uma pessoa que tem uma convivência tangencial com as artes plásticas. Porque ele fez uma tese de literatura sobre o Hélio Oiticica, fez uma dissertação de mestrado sobre música brasileira e trabalha com esse universo da cultura brasileira. Eu queria justamente apostar no MAM como um espaço para pensar cultura de uma maneira horizontal, no sentido de abraçar a discussão cultural fora do nicho “artes plásticas”. E evidentemente é um museu de arte, tem um acervo a ser cuidado, a ser tratado, a ser exposto. A pesquisa sobre arte brasileira é da maior importância para qualificar o museu, mas a discussão que essa pesquisa, que essas exposições travam têm de abrir para um outro universo, que beira a discussão específica das artes plásticas mas que vê a partir de um outro lugar, de uma outra perspectiva, e que tem pontos em comum. Então, essa é a discussão. E o Rio tem um pouco essa coisa de ser um espaço que foi muito permeável a essas hibridações, a essas trocas. O museu tem de ser um lugar de troca. O Rio sempre foi um lugar que teve um ponto de encontro. O MAM nos anos 1960, o parque Lage nos anos 1970, o Circo Voador nos anos 1980. Ele 131


está carente disso neste momento, não é? Como você vê a cultura em volta do MAM neste momento? Eu acho que é uma tarefa difícil. A cidade do Rio de Janeiro se deslocou daquele eixo em torno do MAM, do Centro da cidade, para a zona Sul. Isto é uma coisa que eu insisto em relação ao incêndio: não foi só ele que trouxe uma certa crise para o museu. Existe um processo, já vem de algum tempo, de esvaziamento político e econômico do Rio de Janeiro. Não só pela saída da capital, mas pela cidade ter sido sempre um foco opositor e de resistência à ditadura. A ditadura foi muito impiedosa com o Rio. Então houve um esvaziamento político e econômico e, ao mesmo tempo, a cidade mudou o eixo cultural, que saiu do Centro da cidade e foi para a zona Sul. As pessoas que iam para o MAM para se encontrar no final da tarde, tomar uma cerveja e conversar, ver uma exposição, uma performance, um filme, discutir, passaram a fazer isso em outros lugares. No parque Lage, no Baixo Leblon, no Baixo Gávea. Hoje, de um modo geral, as pessoas acham que o MAM fica longe. Mas não é longe. E é um lugar magnífico, de frente para a baía de Guanabara, com o parque do Burle Marx ali ao lado, o prédio do Afonso Eduardo Reidy, que é um marco da arquitetura. Venta, é menos quente. É muito mais agradável do ponto de vista do horizonte, melhor do que ficar enfurnado em um bar. Ali você pode ficar em um bar e ter uma relação muito mais agradável com o entorno. Mas as pessoas têm dificuldade, acham perigoso atravessar ali da Cinelândia para o museu, cruzar aquela passagem. E de fato o aterro do Flamengo também está muito abandonado e precisa de um investimento da prefeitura para qualificar aquela área. Então é muito difícil pensar aquele lugar como sendo outra vez atrativo para as pessoas irem e ficarem, se sentirem ambientadas. Esse é um trabalho que tem de ser feito com muito vagar, criando atrativos. E eu acho que, para criar atrativos, você tem de ter um conjunto de atividades, como tem o CCBB, que é ali perto e consegue isso, até porque atrai outros públicos, da zona Norte ou de Niterói, que chega de barca. É gratis, tem ar-condicionado, tem um conjunto de atividades interessante de teatro, biblioteca, cinema, exposições, o bar. Isso é o que eu acho que precisa ser feito, ter tudo isso, ter conexão sem fio de internet. As pessoas irem, ficarem, namorarem e verem as exposições. O MAM é uma gestão privada com conselho e presidente eleito. Como funciona a instituição? 132


É uma sociedade civil sem fins lucrativos e que tem um conselho. Esse conselho elege o presidente. Tem alguns mantenedores, a Petrobras, a Light, e alguns parceiros. Estamos empenhados em aumentar o número de mantenedores, o que é fundamental, e de parceiros também. Como pensar essa vida social em volta do MAM? Como viabilizar? Existe uma resistência a isso ou a instituição está aberta? Está absolutamente aberta em relação a isso. Os últimos cinco anos foram muito importantes na tentativa de resgatar este ambiente. Eu digo isso porque, nestes últimos anos, foi construído o teatro, o que é importante. Se hoje você entrar em um táxi e pedir “Por favor, me leva ao MAM”, eu acho que um em cada vinte não conhece. E boa parte dos 19 conhece porque tem o teatro ali agora. Música é o que de fato atravessa e dissemina. Então tem o teatro, um bom restaurante, sofisticado, que é importante para executivos que ainda frequentam o Centro, o aeroporto, a loja de design. São ambientes que foram criados nestes últimos anos e que têm, como objetivo, essa qualificação do espaço. E eu acho que agora é levar isso mais adiante. Explorar mais o bar, fazer atividades para o público mais jovem, mais diversificado, tentar mobilizar. O Brasil está vivendo não só na produção, mas na crítica, uma grande vitalidade em relação às artes plásticas. Ao mesmo tempo, a arte contemporânea brasileira tem sido atacada na grande mídia por grandes nomes, como Ferreira Gullar, Luciano Trigo, Affonso Romano Sant’Anna. Então, como formar o leitor, o público jovem, como conseguir difundir a força das artes plásticas contemporâneas nesse diálogo entre uma crítica excelente, muito sofisticada, e uma divulgação extremamente contrária na grande mídia? Eu não generalizaria a crítica da produção contemporânea e sua penetração na mídia como o único canal que leva as artes plásticas ao público mais amplo. Eu acho que falta um canal de circulação mais direto, de sair um pouco da discussão, do gueto, do nicho universitário especializado, para uma discussão mais franca, direta, por mais difícil que isso seja. Eu fiz crítica de arte durante oito anos no jornal e sei o quão difícil é dar a esse espaço reverberação, mantendo uma serenidade reflexiva, sem querer ficar fazendo pirotecnia com polêmicas mais vazias do ponto de vista reflexivo. Eu acho que o esforço é de tentar retomar minimamente o espaço mais opinativo 133


do jornal e das novas mídias eletrônicas e tentar fazer a partir daí um outro canal, um outro processo de avaliação reflexiva. Eu acho que a gente está passando por um momento muito interessante de redefinição do próprio papel do jornal impresso, e eu tendo a achar que o futuro do jornal impresso é quase que algo perto de revistas mais analíticas de situação e de conjuntura do que de informação e serviço. Eu acho que a informação e o serviço vão ser totalmente mobilizados pelas novas tecnologias, que são muito mais ágeis e abrangentes, e vai caber ao jornal uma análise mais reflexiva. A Cinemateca do MAM tem mais de trinta mil rolos de filme. Como funciona isso? Como está esse acervo? A cinemateca tem um outro curador, que é o Gilberto Santeiro. Ela funciona de quinta até domingo, tem cursos e discussões em torno do cinema. É também uma batalha difícil hoje manter uma cinemateca, seja pela quantidade de cinemas no shopping, seja pela dificuldade de se deslocar até lá, os DVDs... É uma coisa mais complicada. Mas as escolas de cinema no Rio, por exemplo, usam muito a cinemateca. Tanto a UFF quanto a PUC têm uma relação estreita com a Cinemateca do MAM; utilizam-na para cursos, audições, pequenos grupos de filme, e também para o acervo de filme produzidos internamente nas escolas de cinema. Então esse é um pouco o papel dela. Como fazer para inserir a arte contemporânea na educação? Nós sabemos que não houve uma renovação desses currículos. Quais políticas culturais podem ajudar esse processo? Eu acho que essa é uma questão crucial para o museu. Crucial do ponto de vista da formação de público, da responsabilidade pedagógica e social do museu. É preciso ter um trabalho educativo bem feito. Desde que eu entrei no MAM, há seis meses, chamei o Guilherme Vergara para pensar isso, e criamos, junto com a coordenadoria, o Núcleo Experimental de Educação e Arte. A ideia é, justamente, ir constituindo políticas de acolhimento das escolas, das organizações não governamentais, dos polos culturais nas comunidades do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, ir criando vínculo com essas escolas de modo a fazer um trabalho educativo, com o professor, nas comunidades, com as atividades culturais que acontecem lá – que já são inúmeras e muito interessantes. Na exposição da Sophie Calle, por exemplo, trabalhamos com as comunidades, e teve uma atividade com a Casa de Arte da Mangueira que foi muito 134


interessante. São atividades lúdicas que complementam o trabalho educativo e, principalmente, aquecem o museu. O trabalho educativo tem o papel de aquecer o espaço. A atividade, a discussão, acontecendo no museu faz com que ele se torne mais acolhedor, dinâmico e está, evidentemente, construindo o público. E se for um trabalho legal, se a criança for cativada, sem ser uma sedução demagógica, se ela percebe que aquele espaço pode abrir uma perspectiva diferente e ao mesmo tempo ser um espaço divertido, lúdico, então ela pode voltar com a família e começar a frequentar realmente esse espaço. É possível o trabalho não só de levar os alunos para o museu, mas de o museu funcionar como um fomentador de conteúdos que possam ser levados para a sala de aulal? Não só é um trabalho possível, fundamental, como é um diferencial dos museus em relação aos centros culturais. Uma coisa que eu tenho insistido nas reuniões que tive nestes seis meses, tanto com o Ministério da Cultura, como também no Instituto Brasileiro de Museus, é de prestar atenção nas necessidades dos museus, na preservação de acervos, na constituição de acervos e no quanto o acervo é um diferencial do museu para a discussão nos projetos educativos. É pelo acervo e não pelas exposições temporárias que o trabalho educativo pode ganhar solidez, porque pode atrair professores de história, de ciências sociais do ensino médio, sociologia, filosofia, de língua portuguesa, de literatura. O acervo pode ser um diferencial porque é um instrumento que pode ser usado na educação. Pode ser usado para mobilizar as escolas a pensarem em conjunto. Por exemplo, é possível levar ao museu, a uma exposição do acervo que conta a história da arte dos anos 1920 aos anos 1960, o professor de história, o professor de arte, de geografia, de sociologia, e criar um conjunto de atividades que podem ser feitas, atividades interligadas. Isso só é possível através de um acervo permanente, que vai estar lá, e a que os alunos e professores podem voltar daqui a um ano, que as obras vão continuar lá. Eles poderão retrabalhar esse acervo. Sem contar que a produção contemporânea toda já dialoga com novas mídias, e é importante para o garoto que vai lá perceber relações criativas no uso das novas mídias. É preciso prestar atenção no acervo do ponto de vista das políticas culturais. As obras são coisas difíceis de manter, de guardar, de conservar. Tem que 135


existir uma reserva técnica, climatizada, com técnicos especializados. É um conjunto de problemas muito difícil. Os museus que têm acervos importantes precisam ter uma linha verde para aprovação de Lei Rouanet. Esses museus não podem entrar no mesmo processo de um produtor cultural que está fazendo uma exposição de dois meses de duração. É preciso pensar justamente nessa complexidade, no volume de verba necessária para manter o acervo e no potencial educativo deste acervo. São poucos os museus que podem contar a história da arte moderna e contemporânea a partir do seu acervo. Esse é um diferencial a ser estimulado. E a aquisição? Como fomentar a atualização do acervo? Essa é uma discussão importante, perceber as potencialidades de cada museu e como fortalecer essas potencialidades a partir dos níveis de aquisição. No MAM, a política de aquisição está muito focada em comodato. Então não é do museu, é da coleção Gilberto Chateaubriand. Felizmente, o Gilberto tem um olho excepcional. Fazer uma exposição das novas aquisições de Gilberto Chateaubriand é sempre bom e mobiliza até o imaginário carioca. O ideal é que seja possível o museu ter uma dotação para fazer uma política de aquisição, uma política curatorial com autonomia propositiva. As leis no Brasil são bastante complicadas em termos de exportação e importação de obras de arte. O que você acha que devia ser mudado? Eu acho que há detalhes jurídicos aí em que cabem uma análise mais criteriosa. Eu tenho certeza de que simplificar a legislação é fundamental. A simplificação seria um passo determinante para a cultura como um todo. Simplificação, desburocratização, regulação e diretrizes. Traçar algumas diretrizes, um plano com um conjunto de objetivos, e viabilizar um caminho mais simplificado possível, como uma regulação para evitar distorções com constantes reavaliações, é fundamental. A gente fica sempre criando legislações a partir de problemas circunstanciais. Por exemplo, a venda da coleção do Adolfo Leirner foi uma pena, do ponto de vista de que deveria estar em um museu brasileiro. E ele tentou bastante vender para um museu brasileiro. Eu não vejo grande problema em obras brasileiras serem compradas por museus lá fora; isso é ótimo para a arte nacional. O que eu acho uma pena é que os museus brasileiros não possam comprar também. Então vendem a coleção e, a partir disso, mudam a legislação para dificultar a saída de obras brasileiras anteriores 136


aos anos 1970. Aí você faz uma curadoria de uma exposição de arte concreta ou neoconcreta fora do Brasil e a dificuldade para exportação temporária é um problema, atrapalha muito. Essa legislação não adianta mais, a coleção já foi vendida. Ao invés de criar uma legislação que dificulte a saída, é preciso criar uma que facilite a compra dessas obras aqui. É um pensamento errado, de bloquear, e não de alimentar o fluxo e fortalecer um mercado interno para que ele se torne competitivo. O mercado de arte é um mercado globalizado, e quão melhor representada a arte brasileira estiver lá fora, melhor. Como o Brasil poderia se utilizar dessa valorização da arte brasileira para, por exemplo, promover o turismo cultural? Para virar uma referência? Você considera isso um caminho interessante? Considero. Tivemos duas situações interessantes recentemente. Primeiro, a Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, e depois o Instituto Inhotim. Do ponto de vista do turismo cultural, são dois projetos muito significativos. Isso tem de ser melhor explorado. O Rio tem que aproveitar esse momento de Copa do Mundo, de Olimpíadas, e fortalecer as suas instituições. Mas o que acontece é sempre uma necessidade de criar uma coisa nova, criar um outro museu, um outro marco referencial, para fazer uma nova inauguração. Eles esquecem a manutenção, o trabalho de sustentabilidade de determinados equipamentos e instituições que tem de acontecer. Acho importante as obras-acontecimento, o que cria uma outra perspectiva, irradia e fortalece a cultura de um modo geral, mas não pode ser uma prática de estar sempre pensando numa outra coisa, num outro museu, num outro equipamento e esquecendo a sustentação dos que já existem, dos que têm uma importância histórica e que ficam sempre à mercê de um fato novo para se reerguerem. Como é o projeto Anexo? O projeto Anexo é uma longa batalha que o museu vem enfrentando para aumentar sua reserva técnica, para criar um espaço de exposições contemporâneas, uma outra cafeteria, um outro auditório. Aqueles terrenos em torno do Museu são complicados; não se sabe se pertencem ou não ao MAM. Agora conseguimos a obtenção de um terreno importante, entre o MAM e o aeroporto, atrás do teatro. Conseguimos que o IPHAN liberasse a construção, o que era uma outra batalha: discutiam se aquilo era para ser construído, se estava no plano original ou se não estava. Mas conseguimos um projeto que 137


respeita a arquitetura, o paisagismo do Glauco Campello e que revitaliza aquele espaço em volta. Que era o que eu estava falando antes, aquele espaço estava muito degradado. Ter um anexo será importante para qualificar aquela área também, para criar um fato novo naquele espaço que ajude a circulação de pessoas, que qualifique o equipamento. O Anexo vai ser importante também para abrigar a coleção Marcantônio Vilaça, uma importante coleção contemporânea, brasileira e internacional. Isso abre a possibilidade de outras coleções irem também para lá. Haverá um estacionamento no subsolo. Sendo do lado do aeroporto, isso é fonte de arrecadação para o museu e viabiliza a construção. Há um conjunto de fatores que se potencializam e que tendem a dar uma outra envergadura para esse complexo humano. Tem o bloco-escola, que vai ser reformado agora, toda a parte de documentação, biblioteca, a cinemateca, o bloco de exposição, o teatro. E vai ter esse anexo. Haverá um empenho grande. Vamos aumentar a reserva técnica do museu porque, enfim, a coleção cresce. É um dado extremamente positivo e eu estou muito otimista com esse Anexo. E sobre essa relação com o espaço em volta, do MAM com a cidade, com a prefeitura? Seria interessante criar uma rede de instituições culturais que pudessem ser interligadas de alguma forma, por condução? Esse tipo de pensamento poderia ser um caminho para a cidade reabsorver seus aparelhos culturais? Sem dúvida. Isso poderia acontecer do ponto de vista da conexão dos equipamentos culturais, e para potencializar o trabalho educativo no museu. Porque um dos problemas do trabalho educativo é o transporte da escola para o museu, então se você cria três ou quatro pontos, já facilita. Eu estava no avião com o Márcio Doctors, da fundação Eva Klabin, que tem uma coleção clássica, e estava pensando na possibilidade de articular o MAM, a Eva Klabin, o Museu do Pontal e o Museu de Belas Artes. Você teria a arte popular, o século XIX, o começo do século XX, a arte moderna e contemporânea e a arte clássica interligados, e poderia fazer um trabalho educativo combinado entre essas quatro instituições. Criar um transporte para circular desde Vargem Grande até o centro da cidade seria uma possibilidade muito interessante, fortalecida por aquela orla belíssima. Além de ser uma coisa para as escolas, poderia ser um circuito de ônibus conectando estes quatro pontos: Lagoa Rodrigo de Freitas, Vargem Grande, o aterro do Flamengo e a Cinelândia. 138


Como você vê a questão da profissionalização e qualificação dos gestores culturais no Brasil? A gente tem percebido, com o próprio fortalecimento da cena artísticocultural brasileira, uma profissionalização e um esforço de institucionalização. O resultado disso será a criação de gestores com uma formação especializada. Esse é o caminho, não tem outro. Não tem como pensar um equipamento cultural e a complexidade que é a administração disso sem uma preparação focada. Isso é crucial. Eu sou curador do MAM e sou professor da PUC. A possibilidade de criar convênios entre museu e universidade é interessante até para pensar gestão. Pensar junto com o departamento de artes e arquitetura, a museografia, a montagem de exposição, a iluminação, a curadoria. Enfim, pensar o museu nas suas várias entradas e facetas. Então, tem que haver uma profissionalização e uma preparação mais focada. Não tem outra alternativa.

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Fábio Coutinho Superintendente cultural da Fundação Iberê Camargo.

Fábio, o que é a Fundação Iberê Camargo? A Fundação Iberê Camargo é uma instituição dedicada, quase que exclusivamente, à preservação, divulgação e conservação da obra de Iberê Camargo, um importante pintor, desenhista e gravurista brasileiro. Ele nasceu no Rio Grande do Sul, em Restinga Seca. A Fundação começa nos anos 90, próximo ao final da vida do Iberê, quando ele demonstrou a vontade de dar continuidade à sua obra preservando-a. A obra de Iberê é um trabalho muito importante, que abrange todo o público, artistas, colecionadores, galeristas, imprensa, museus, instituições diversas. E através de um grupo de empresários, no Rio Grande do Sul, capitaneados pelo Dr. Jorge Gerdau Johannpeter, e pela viúva do Iberê, a Maria Coussirat Camargo, surge, então, a ideia de criação da Fundação Iberê Camargo. Como surgiu a ideia da sede? Depois da criação da Fundação, pensamos em ter uma sede. Pensamos em como seria essa sede, qual dimensão ela teria, não só dimensão física, mas do alcance que a obra do Iberê atingiria. Então, de novo, sempre com muita consulta, com muita pesquisa e sempre trabalhando em grupo – uma das características da Fundação é o trabalho em equipe – partimos para 141


definir como seria essa sede. Aí entra o governo do estado do Rio Grande do Sul, entra a prefeitura de Porto Alegre, que cedeu o espaço. A Fundação não tinha espaço físico. Havia, sim, a casa do Iberê e o ateliê. O Iberê tinha dois ateliês em Porto Alegre: o primeiro, que ficava na zona central da cidade; e o segundo ateliê, que ele abre quando volta do Rio de Janeiro – onde ele também tinha um ateliê. Esse ateliê ainda existe – ele construiu uma grande área, residência e ateliê, e a Fundação iniciou lá. Era muito grande, mas muito pequeno para tudo que se desejava para a Fundação Iberê Camargo. Então, o governo do estado cedeu um terreno em frente ao lago Guaíba, um local muito privilegiado geograficamente, com uma vista muito bonita, em uma antiga saibreira, na encosta de um morro. E depois foi definido quem iria projetar a Fundação Iberê Camargo. Como foi a decisão de que arquiteto escolher? Fizemos novamente um colegiado, e o nome do Álvaro Siza despontou. O Álvaro Siza já vinha de experiências como o Museu de Serralves, na cidade do Porto, em Portugal, e também o museu Centro Galego de Arte Contemporânea, em Santiago de Compostela. E foi assim que chegamos a ele. O projeto foi lançado em 2000, em Porto Alegre, e a escolha foi extremamente feliz, em todos os aspectos. O projeto da Fundação Iberê Camargo recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Era o único prédio da América Latina com esse prêmio, o que por si só já é muito importante. Conte um pouco da sua história, como você começou a trabalhar com artes plásticas? Eu fazia arquitetura, e tinha dois caminhos a seguir: o paisagismo, ou alguma coisa ligada à museografia ou cenografia. Ao longo do curso, fui convidado para trabalhar no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, para fazer um estágio. O Museu de Arte do Rio Grande do Sul, na época – era 1977 – funcionava numa sede de um antigo clube, em Porto Alegre, e estava de mudança para o prédio da antiga Receita Federal do Rio Grande do Sul. Um belíssimo prédio do início do século passado, imponente, bem no centro da cidade. Tínhamos que trabalhar na concepção dessa mudança. E eu fui então para lá, mas não só como estagiário. Eu era também, na época, professor de história da arte. E aí uma coisa se uniu à outra. E, claro, quando eu cheguei ao Museu, eu senti que aquilo era tudo que eu gostaria de fazer: trabalhar com artes visuais. 142


Conte um pouco dos projetos da Fundação Iberê. O centro do projeto é a preservação e a divulgação da obra do Iberê Camargo. Nós temos, dentro da Fundação, inúmeros projetos. A base de tudo é o acervo. A Maria Camargo doou, para a Fundação, todas as as obras que ela possuía. São mais de duas mil obras. Depois houve uma aquisição também das obras da filha do Iberê, a senhora Gerci. Compramos o acervo dela. A Fundação tem hoje mais de quatro mil obras, entre gravuras, desenhos, aquarelas e pinturas. Então, o núcleo central de tudo isso é o acervo. Nós temos também outro setor muito importante, que é a catalogação. Estamos em processo da catalogação da obra do Iberê. Já catalogamos todas as gravuras e agora estamos trabalhando com as peças únicas: pintura, desenho, guache, aquarela etc. Temos uma exposição permanente do Iberê Camargo, que ocupa um dos três andares da Fundação. Nós fazemos duas exposições por ano da obra do Iberê. Temos um projeto pedagógico, que é um desdobramento do projeto do acervo. Esse projeto é desenvolvido para atender um grande número de escolas, de alunos de todos os níveis educacionais, mas não só estudantes, outros grupos também: os turistas, a terceira idade, pessoas da comunidade. O objetivo é que a ida ao museu não aconteça de forma tradicional, como na maioria dos museus em que a visita se encerra ali. Além do projeto pedagógico, para ver a obra do Iberê, nós temos meia dúzia de visitas diferenciadas, inclusive, com tempos diferenciados, e que podem resultar em oficinas práticas. Saímos da visita teórica e entramos na parte prática da visita no nosso ateliê educativo. Temos, ainda, ligado a Iberê Camargo, o projeto Artista Convidado. Convidamos, mensalmente, um artista plástico, gravurista ou não, para realizar gravuras no nosso ateliê, na mesma prensa que foi do Iberê. Esse ateliê está montado hoje na sede da Fundação. O artista faz uma tiragem de gravuras. Já estamos com 70 artistas e aproximadamente 200 gravuras diferentes. Esse projeto resultou numa exposição belíssima, que foi feita no ano passado,e que se chamou Dentro do Traço, Mesmo. Também temos um projeto para bolsistas. Todo ano, a Fundação Iberê contempla dois artistas brasileiros, em uma temporada de aperfeiçoamento em um centro internacional. Estamos na 10ª edição do projeto, e já enviamos artistas para diversos países, sempre em projetos de residência, específicos para as artes visuais. Temos projetos de exposições permanentes, de exposições temporárias, sempre relacionados à arte moderna e contemporânea. 143


Pela localização geográfica, como que é a relação com o Mercosul Cultural? Em 2009 foi realizada a 7ª edição da Bienal do Mercosul. A nossa bienal acontece nos anos ímpares. A relação com a Bienal do Mercosul sempre foi muito próxima. Mesmo antes de a Fundação Iberê Camargo ter esta nova sede, ou melhor, esta sede pronta, sempre houve integração de atividades pedagógicas, culturais, congressos, seminários, junto com a Fundação Bienal. Mas a Fundação Iberê Camargo não participa da Bienal do Mercosul como um espaço expositivo. A Bienal do Mercosul acontece na área central de Porto Alegre. Normalmente, utilizamos prédios históricos, museus do centro da cidade, e, principalmente, o Cais do Porto, os armazéns do Cais do Porto. Como é a relação com os patrocinadores? Usamos todos os mecanismos possíveis que temos para captar recursos para Fundação Iberê Camargo. Para a manutenção anual da Fundação, nós usamos a Lei Rouanet e também a Lei de Incentivo à Cultura do Estado Rio Grande do Sul, que é feita através da renúncia fiscal, via ICMS. Mas também temos alguns patrocinadores, especialmente, o Grupo Gerdau, que é um patrocinador direto, sem uso de incentivo. Isso também ocorreu na construção da sede da Fundação Iberê Camargo: o Grupo Gerdau doou uma quantia altíssima para a efetivação da sede. Como é a relação com a educação, como vocês formam os monitores e os arte-educadores? Nós temos um curador pedagógico, Luis Camnitzer, um grande artista plástico e curador, professor da Universidade de Nova York. Ele desenvolveu o nosso projeto educativo. É um projeto com vários recortes, uma grande teia que abrange toda a obra do Iberê Camargo. Temos projetos específicos e material educativo para todas as exposições temporárias da Fundação. O nosso material educativo é voltado para a escola, para o professor e para o aluno. Nós temos formação permanente de professores, especialmente para a obra de Iberê Camargo, mas também para as exposições temporárias. Há uma formação especifica de professores para cada mostra, sempre com a presença do curador ou do artista, quando o artista ainda é vivo. A partir daí, o professor está credenciado a levar os alunos à Fundação para conhecer as exposições que estão sendo apresentadas. Agora, não quer dizer que aquele 144


professor que não fez formação não possa levar alunos. Claro que pode, e é sempre bem-vindo à Fundação. Naturalmente que aquele professor que teve uma formação especifica chega com seus alunos com um grau maior de intimidade e de conhecimento do que vai ser mostrado a eles. Até porque ele recebeu o material sobre a exposição antes. Então, quando os alunos chegam à Fundação, já vêm com informações a respeito dela. Nos últimos anos, houve uma extrema valorização das obras de arte brasileiras, no mercado internacional. Como isso influi na Fundação Iberê Camargo? Eu não tenho mais participação em mercado. Embora eu já tenha tido uma galeria de artes, afastei-me completamente do sistema de artes no mercado e não olho para uma obra pensando o quanto ela custa, quanto ela custou ou quanto ela poderá custar. Essa análise não faz parte do meu cotidiano. Mas a arte brasileira, realmente, está tendo uma valorização muito grande. Isso a gente percebe já há algum tempo, desde que começamos a entrar em um sistema internacional de leilões, de galerias e de feiras. Estamos em um momento muito especial. É obvio que o mercado também é muito importante para que as instituições tenham um trabalho de divulgação e de afirmação desses nomes. E isso acontece com o Iberê, naturalmente. Iberê é um artista que tem uma excelente valorização no mercado de arte brasileiro e no internacional. Conte um pouco sobre a relação com os galeristas – no caso da obra do Iberê, com galeristas – e com curadores. É uma relação muito tranquila, porque são dois caminhos importantes que vão na mesma direção: a valorização da obra. Um cuida da área cultural, e o outro, do mercado. A nossa relação com os curadores é a melhor possível. Nós já tivemos grandes curadores e ainda teremos grandes curadores trabalhando a obra do Iberê. Nós temos um curador pedagógico e também um conselho de curadores. O conselho de curadores da Fundação Iberê Camargo é composto hoje pelo Gabriel Pérez-Barreiro, que é diretor da Coleção Cisneros, essa importante coleção de arte que tem sede hoje em Nova York (não está mais em Caracas), o Moacir dos Anjos, atual curador da Bienal de São Paulo, e Maria Helena Bernardes, que é professora e curadora também em Porto Alegre. A partir das nossas reuniões de conselho curatorial – eu também faço 145


parte desse conselho – é que se desenvolve toda a programação da Fundação Iberê Camargo. Esse colegiado é que decide. Como pensar o ensino de arte nas escolas? O ensino de arte na escola já existiu, mas sofreu mudanças, saiu um pouco do caminho. E hoje ele volta com muita força, e assim como as instituições, as fundações e os museus dão ênfase à área educativa, as escolas também estão tendo seus projetos culturais em parceria com essas instituições. Essa parceria é muito importante. As escolas aprenderam a usar as instituições muito bem. Não precisa ter um museu dentro da escola, ela tem vários museus e várias exposições no seu entorno. Essa simbiose resulta num projeto muito importante. A escolha do modelo institucional para a Fundação Iberê Camargo tem a ver com a influência do Grupo Gerdau, de poder fazer investimentos diretos na instituição? Não, penso que não. Engraçado, porque não somos um museu, somos uma fundação. Dentro da fundação, temos uma área, um departamento museológico, que preserva, divulga, conserva e expõe. Temos tudo que um museu tem, mas nós não somos um museu. A Fundação pode abranger algo maior que um museu que é dedicado a um único artista, como é o nosso caso. O nosso acervo é composto exclusivamente de obras de Iberê Camargo. Então, eu acho que a fundação vem nesse sentido, de não nos fixarmos museologicamente na obra do Iberê Camargo. A cidade de Porto Alegre, pela própria sequência de fóruns sociais mundiais, e de eventos de visibilidade mundial, passou por uma grande mudança. Como você vê isso? Bem, o Fórum Social Mundial trouxe, inegavelmente, uma visibilidade internacional enorme para Porto Alegre. Percebemos isso através de coisas muito simples. Há 15, 20 anos, se você viajava para o exterior e falava em Brasil, naturalmente, só se conhecia o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador. Hoje, todo mundo conhece Porto Alegre e, imediatamente, liga ao Fórum Social Mundial. O Fórum foi, indubitavelmente, o maior divulgador de Porto Alegre em todo o mundo. Eu lembro dos primeiros fóruns. Era uma coisa impressionante. A multidão, a diversidade de pessoas de todos os tipos, raças, cores, origens, 146


classes sociais, culturais, financeiras, todas em Porto Alegre. Um dos Fóruns – acho que o segundo – foi próximo das eleições na França, no ano seguinte, e nada mais, nada menos do que seis ou sete candidatos à presidência da França passaram por Porto Alegre. Naquele fórum tinha ministros e chefes de estado do mundo todo. Foi uma coisa gigantesca. E quais são os próximos passos e planos da Fundação Iberê? Continuamos com a nossa agenda de exposição. Estamos com a programação pronta para 2011 e 2012, e estamos já fechando a de 2013, sempre nesses mesmos rumos. O projeto vai ganhando abrangência com o tempo. Estamos já iniciando parcerias com universidades do Rio Grande do Sul, com os cursos de museologia. Estamos tratando de curso de formação de jovens curadores, curso de longa duração para formação de mediadores, e assim por diante. Estamos sempre atuando junto às escolas e as universidades, para entrarmos cada vez mais nessa área teórica, crítica, e prática das artes visuais. Para fechar. O que faz um gestor cultural na área de artes plásticas? Tudo, desde a simples montagem de uma exposição, passando pela concepção, até a contratação. O gestor cultural precisa ter a visão de tudo: da linha editorial, dos pensamentos, seminários, tem que ver o que está acontecendo no cenário contemporâneo, que lacunas ainda existem na história da arte nessa área. Temos que saber o que é que ainda é muito importante para Porto Alegre e que ainda não chegou lá. Estamos sempre tratando de preencher essas lacunas, e ver o que pode ser feito, pensando muito à frente. Nós temos um projeto, na Fundação Iberê Camargo, para daqui a 20 anos. Sabemos perfeitamente onde estamos, e como vamos chegar, e onde queremos estar daqui a 20 anos. A visão de um gestor cultural não é só se mover, trabalhar no dia a dia, mas tem que saber tudo, para poder pensar 20 anos à frente.

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Gérald Perret Presidente da Sociedade de Cultura Artística.

Como surgiu a Sociedade de Cultura Artística? A Cultura Artística foi fundada em março de 1912, por um grupo de intelectuais que se reunia sistematicamente na redação do jornal Estado de São Paulo. Havia uma demanda por acontecimentos culturais – o Teatro Municipal fora inaugurado em 1911 –, donde a iniciativa de formar uma associação que incentivasse manifestações desse tipo. O primeiro encontro, chamado de Sarau Lítero-Musical, deu-se em setembro. Houve declamação de poesia, e algumas moças da boa sociedade tocaram algumas peças. Vê-se pelos programas que, no princípio, a coisa era bastante improvisada e amadora. Eram saraus de duas, três horas, com dois intervalos. Como, naquela época, havia convergência entre elite cultural e elite econômica, participaram muitos membros de famílias abastadas e quatrocentões. Mário de Andrade, por exemplo, participou em adolescente ainda, com 18 anos de idade. A Sociedade foi crescendo de maneira bastante rápida. Dentre os intelectuais importantes, estava lá Afonso Arinos, que deu conferências. Em 1917, eles apresentam o Les Ballet Russes, que era de Diaghilev, Nijinsky e companhia. No fim da década de 1920, eles já se preocupam muito em construir uma casa para apresentar o que eles faziam e compram terrenos no velódromo. Depois vendem, para construir o teatro, mas não conseguem de primeira. O teatro 149


só vai ser construído no fim da década de 1940 e inaugurado em 1950, com Villa-Lobos e Guarnieri. Quem faz parte da Cultura Artística? Está aberto a todo mundo, é absolutamente democrático. Paga-se uma anuidade de R$ 250,00 para tornar-se membro. Hoje em dia, são pouquíssimos. Um membro pode votar nas assembleias gerais, para eventualmente eleger alguém ou ser eleito. E, no caso dos membros assinantes – categoria que existe desde a fundação –, pode-se assistir às apresentações que a Cultura Artística realiza em São Paulo. Os membros assinantes têm alguma parte na curadoria? Não. Quando comecei a trabalhar com a Sociedade – há 30 anos – havia uma comissão de cinco membros responsáveis pela curadoria. Todos morreram. Eu, que era o mais jovem, acabei assumindo esse papel sozinho. Não é tão bom quanto parece, porque implica numa responsabilidade muito grande. É preciso muito equilíbrio para não se deixar levar pelos próprios gostos, ter critérios mais abrangentes. Fazer um pouco de música contemporânea, de música barroca etc. Esse rejuvenescimento de repertório é um pré-requisito para o trabalho. Eu fui o único, em São Paulo, que tentou mostrar o que estava sendo feito na Europa, por isso que eu fiz muita música barroca, e fui muito criticado. Estou tentando refazer essa comissão. A morte do nosso presidente, o Dr. Ming, há dois meses, acabou ocasionando uma série de mudanças centradas no rejuvenescimento da governança. Introdução de mais elementos femininos, também. Tentamos olhar para frente. São quase 100 anos de Cultura Artística, há sempre o peso inerente a uma velha instituição. Mas não nos pensamos dessa maneira, portanto, olhamos sempre para frente, atentos ao que está acontecendo, pensando nos próximos 100 anos. Qual é o papel de uma instituição como a Sociedade de Cultura Artística para a cultura brasileira? Creio que é um papel fundamental. De forma geral, o setor privado é sempre muito mais competente que o setor público, no qual se gasta muito mais para fazer bem menos. Uma instituição sem fins lucrativos é o melhor modelo para produzir cultura. Tem-se uma isenção, um corpo de voluntários 150


dedicados. Além disso, trabalha-se um pouco com o ego de pessoas influentes, cujos serviços prestados a nós abrem uma série de portas. Como o senhor analisa essas mudanças na produção cultural brasileira ao longo da história? Quando comecei, buscávamos patrocinadores de forma bem pouco profissional. No fundo, creio que isso não tenha mudado tanto assim. A questão da captação segue mais ou menos a mesma. Com a Lei Sarney era um pouco fácil demais. Mas não acho que tenha sido ruim. Usamos, e funcionava. Depois entrou a Lei Rouanet, que também funcionava muito bem no início, a meu ver. Como todo mundo, tenho muitos problemas com o Ministério da Cultura, dada a obrigatoriedade de trabalhar com incentivos fiscais, apesar dos patrocinadores. Porém, criou-se esse hábito para o patrocinador de descontar do imposto de renda. Agora será muito difícil voltar atrás. De uns anos para cá, no entanto, a máquina ficou extremamente pesada. Desconfia-se muito da seriedade do proponente, e o processo vai se estrangulando. Põe-se sempre mais uma lei, mais uma dificuldade, mais uma complicação. Mas o que não funciona, na realidade, é o setor público. Hoje em dia, um departamento que trate disso exclusivamente tornou-se necessário para as fundações, porque a burocracia ficou infernal. Qual é o orçamento anual da Sociedade? É caro. Tínhamos um teatro, que era uma fonte de receita. Todo o aparato do dia a dia era sustentado pelo teatro. Nosso orçamento, então, andava pelos 15 milhões. Hoje em dia, evidentemente, não é mais assim. Não temos mais essa renda. Conseguimos uma outra salinha, o Espaço Promon (antiga Sala São Luiz), o que foi muito bom. Lutei muito por espaço e visibilidade, para que pudéssemos prosseguir com nossas atividades teatrais. Sempre trabalhamos com artes cênicas e, em nosso estatuto, o critério prioritário sempre foi a qualidade. Para se fazer cultura hoje no país é necessário circular pelos meios certos para conseguir financiamento? Há muitos agentes culturais diferentes, e cada um tem seu approach. O SESC, por exemplo, é uma instituição fantástica que não tem essa preocupação, pois obtém recursos por meios diversos. Não posso dizer que é o modelo, 151


mas, no caso de uma instituição – não temos subsídio nenhum, nunca recebemos um centavo sequer do poder público –, creio que uma mescla seja o mais aconselhável. À medida que a empresa vai se “profissionalizando”, passa a entender os editais. Mas, quando se analisa mais de perto, vê-se que essas grandes empresas que fazem os editais destinam um percentual bem pequeno aos mesmos. A grande parte do dinheiro disponível para fazer cultura, ou para descontar do imposto de renda, não vai pelo caminho do edital. Então, creio que o relacionamento pessoal seja muito importante. Como você tem analisado a proposta da reforma da Lei Rouanet? Não gosto. Trata-se de um modelo para estatizar cada vez mais a cultura. É aí que reside o grande erro, a meu ver. Os agentes culturais são muito mais competentes do que uma decisão de Brasília. Fala-se muito da queda do 100%. Sempre fui contra o 100%, creio que uma empresa precisa desembolsar alguma coisa pela divulgação e a série de vantagens que recebe. A divulgação de uma empresa não deve ser feita a partir de um imposto pago pelo contribuinte. O retorno deveria ser mais gradativo, para não assustar. Passar, imediatamente, de 100% a 40%, ou 60%, levará provavelmente a uma queda de empenho desse dinheiro. Mas, por exemplo, na reconstrução do teatro Cultura Artística, depois do incêndio que ele sofreu, não conseguimos o artigo 18, que dá total isenção do incentivo, já que pela lei a princípio não se aplica. Depois, descobri que tem teatro que consegue. Ou seja, os critérios nunca são observados à risca. Temos que fazer um teatro moderno. Já que aconteceu a desgraça, vamos refazê-lo com todos os equipamentos que um teatro merece hoje em dia. Mas muitas empresas alegam só trabalhar com o 18. Para esses, precisamos enfatizar a questão da cidadania. Eles têm que desembolsar alguma coisa, não apenas descontar do imposto. A Sociedade de Cultura Artística,apesar de ser uma instituição privada, não busca lucros. Como o senhor vê a situação da Sociedade a partir disso? Quando falamos em estatização, vê-se quem está dirigindo a cultura. Geralmente, os gestores culturais não são pessoas ligadas à cultura, são políticos. Cultura é sempre um prêmio de consolação para algum partido de aliança, o que é um grande problema. Por isso, concentra-se o dinheiro em mãos que nunca mexeram com a cultura. E a cultura vira uma banca de negócios, 152


que apoia projetos que não são tão interessantes, nem necessários, mas que interessam por alguma outra razão. Como trazer orquestras de excelência e garantir um lugar nesse circuito mundial de primeiríssima qualidade? O processo se inicia com anos de antecedência. No momento, estou fazendo a temporada de 2012, e começando 2013, porque são atrações muito importantes e mundialmente requisitadas. Levei muito tempo para conseguir o Yo-Yo Ma, que vem tocar este final de semana. Da primeira vez que consegui articular sua vinda, ele adorou – mas levou 12 anos para voltar. É preciso conhecer um bocado, viajar bastante, assistir ao que se passa e informar-se o tempo inteiro. É importante manter-se a par do que a imprensa especializada está discutindo, ter amigos que acompanham o cenário de perto e podem dar dicas de novos talentos que estão surgindo. Havia um caráter de constante improvisação e amadorismo na América Latina, que só agora começa a mudar. Muitos, no entanto, ainda acham que estão vindo para a selva. Porém, no longo dos últimos anos, conseguimos mudar a visão de vários artistas. Hoje em dia, vários deles comentam que é o continente onde melhor se trabalha. Isso se dá justamente porque estamos preparados para qualquer eventualidade. Prevemos tudo e já delineamos uma solução antes do problema se apresentar. Além do mais, nosso país é maravilhoso. Há solidariedade e calor humano, ainda se pode contar com os outros. Foi algo que senti quando ocorreu o incêndio, por exemplo. Por intermédio de amigos, consegui salvar o concerto que haveria no teatro aquela noite e realocar a orquestra belga convidada. Por esse tipo de expediente é que passamos uma imagem de extrema competência hoje em dia, o que reforça nossa credibilidade lá fora. Os músicos brasileiros estão excursionando hoje em dia? Estamos exportando música de concerto? Sim, claro. Há grandes talentos aqui, como em qualquer lugar no mundo. Nelson Freire, Meneses, Jean-Louis, Feghalli. Todos eles têm uma carreira internacional. Depois de um início difícil, a OSESP conseguiu, a duras penas, atingir o nível de excelência que tem hoje. Conquistaram o respeito do público e da crítica lá fora. Não temos o manancial de talento que a Alemanha, com sua tradição de séculos, tem. Mas surgem talentos novos toda hora.

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Como a Cultura Artística seleciona as pessoas com quem trabalha? Confesso que sou um pouco centralizador. Aprendi que os erros dos outros são muito mais difíceis de corrigir que os nossos. Então, faço tudo. Tanto que, na minha idade, ainda vou ao aeroporto buscar os artistas. Mas é um prazer, e minha equipe funciona muito bem. Não tem escola, aprenderam fazendo. Tampouco eu tenho formação de produtor. No interior de São Paulo, tenho uma parceria com a Regina Vieira, da RVA Cultural. Conseguimos administrar perfeitamente esses concertos, que são numerosos. Já para os eventos internacionais, os prazos são de outra natureza, como disse. Precisamos começar o processo com dois ou três anos de antecedência. Existem gargalos, afinal, a burocracia é muito grande neste país. É o único país do mundo que pede nome de pai e mãe de cada artista. Eles não estão habituados a isso e estranham um pouco. Como é sua equipe? Não tenho muita gente. São três moças encarregadas de público, vendas etc. A assessoria de imprensa é terceirizada. O mesmo se aplica a toda essa parte que trata de vistos, em Brasília. Por fim, quando os artistas vêm, contrato alguém que domine outras línguas. Pelo menos inglês e francês. O teatro tem estes dois marcos temporais: a reforma da década de 1960 e a de agora. Gostaria que você nos relatasse o que aconteceu naquele período, e o que vai mudar agora. Conheci a todos os envolvidos na reforma pós-Excelsior, muito embora não estivesse trabalhando com a Sociedade na época, e eles contam que a ideia inicial era terminar com a Cultura Artística e vender o imóvel. Por que isso não aconteceu? Por iniciativa das pessoas que o haviam herdado, e não falo no sentido tradicional do termo “herdar”. Na época, Mesquita era o presidente, e ele não era muito interessado em cultura, a princípio. Foi no longo de sua administração que o interesse foi crescendo. Ele era sobrinho de Esther Mesquita, a mulher que construiu o teatro e dirigiu-o durante 30 anos. Quando ela faleceu, Mesquita prometeu que cuidaria da Cultura Artística. Mas quando viu o “abacaxi”, mudou de ideia e quis acabar com aquilo tudo. Felizmente, repensou também essa decisão junto a sua equipe, e o consenso foi de que tinham uma dívida perante a cidade e o estado de São Paulo. Era preciso tentar levar aquilo adiante, de alguma forma. Conseguiram um pouco 154


de dinheiro do que sobrou da Excelsior, fizeram alguns acordos. A Secretaria de Estado pagou um aluguel adiantado, para que o teatro pudesse se reerguer. Quanto ao incêndio, creio que nada acontece à toa. Sou uma pessoa muito positiva. Aprendi com Ming a sorrir e olhar para frente. Em algum sentido, a tragédia foi até salutar. Pelo menos, obrigou-nos a repensar uma série de coisas. Bem ou mal, o teatro configurava uma garantia de receita. Através dos espetáculos, conseguíamos cobrir o aluguel da sala. Subitamente, isso desapareceu. Isso nos levou, evidentemente, a uma redução das estruturas. Além do mais, havia nossa responsabilidade para com as pessoas que trabalhavam no teatro, lanterninhas, faxineiras e outros. Mantivemos o seguro-saúde desses funcionários por muito tempo, até todos estarem recolocados. Eram quantos funcionários? Na época, 50. Hoje são 22. Mas com a reforma iniciada em março deste ano (2010) o teatro deve dobrar de tamanho, não é? Sim, mas por outro lado, teremos só uma sala ao invés de duas. Dobra não em termos de capacidade da sala, mas em termos de volume. Havia uma série de defeitos no teatro. O palco era muito difícil de trabalhar, não havia espaço suficiente para os artistas. Para o público, então, era muito desconfortável. A capacidade da sala não era a mesma dos saguões, e não havia como aumentar. Até fizemos um projeto de um prédio ao lado, mas mesmo assim era insuficiente. Quando chegou o momento da reconstrução, decidimos levar em consideração todas essas insuficiências anteriores. Então, o teatro crescerá muito em termos de espaço para o público. Os camarins também vão melhorar muito. Por acaso, a prefeitura tinha um projeto no início dos anos 1990, chamado Operação Interligada, em que se podia comprar o direito de construir mais do que a função da sua lei de zoneamento. Esse investimento de então foi providencial, porque nos permite crescer três vezes em termos de volume agora. Isso tudo será muito positivo para nossos funcionários e para a instituição em si. Haverá alterações na programação? Prevemos um reposicionamento da Sociedade, mas no sentido geográfico. Como pegamos a Sala São Luiz, queremos estar igualmente abertos para 155


outros espaços que possam surgir. Já nos ofereceram muitos. A cidade está cheia de teatros fechados. O fato de a Sociedade Cultura Artística estar localizada no Centro, que virou um polo de teatro alternativo, estimulou alguma conversa com relação à revitalização? Não. Desde o incêndio os laços se estreitaram muito, porque a questão de nossa permanência naquele local se apresentou internamente. Devíamos ficar ou ir para outro espaço? Todas as pessoas interessadas em participar financeiramente na reconstrução do teatro forçavam nossa ida para outro lugar. Para a maioria, o Centro é um espaço velho, abandonado, triste. Acho exatamente o contrário. Há sempre um momento na história de uma grande cidade em que o centro se deteriora. O Marré, em Paris, costumava ser um pardieiro horroroso, e hoje é o que há de mais chique na cidade. Então, é só dar tempo ao tempo, e contar com a vontade política daqueles que realmente querem revitalizar aquele espaço. Acho interessante, o trabalho que está em andamento lá. Sempre deixei muito claro que queria ficar lá. Mas tive que convencer os outros. Hoje em dia, creio que seja opinião unânime. Como você vê o processo do Cine Belas Artes, que está quase fechando as portas porque perdeu o patrocínio do HSBC? É bem Brasil isso. E muito São Paulo. Acho essa falta de apreço pela memória muito triste. Adoro aquele cinema. Há tantos lugares em São Paulo que mereciam ser preservados. O prédio onde ficava o Teatro Brasileiro de Comédia, por exemplo, devia ser um marco cultural de São Paulo. O que aconteceu lá dentro foi uma verdadeira revolução na vida teatral da cidade. Mas, felizmente, outras coisas surgem para equilibrar. A Sala São Paulo, por exemplo, não era nada. De repente, transformou-se num polo fundamental da cidade. Mas acho que esforços poderiam ser feitos no sentir de manter aquilo que já existe. No nosso caso, tentamos comprar a Boate Kilt, na praça Roosevelt, porque foi desapropriada e será demolida em breve. O governo também comprou um prédio na praça. Você se refere à Escola de Teatro? Isso. Exatamente. Nossa ideia é fazer uma espécie de complexo.

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Investir em formação? Educação não é bem nosso papel, e sim facilitar o acesso. Sinto que o público quer saber mais, não quer ser apenas passivo. Ele quer participar e entender um pouco mais o processo. Estou trabalhando atualmente na elaboração de um projeto para tentar desmistificar um pouquinho a peça de teatro. Queria que o público acompanhasse a montagem da peça: a escolha do texto, as leituras, o figurino. Queria que o público acompanhasse essas decisões todas, porque o público precisa saber. No mais dos casos, eles não fazem ideia de como aquele produto final surgiu. Como é ser um produtor cultural no Brasil? Estou aqui há quase quarenta anos. Só fui produtor cultural aqui. Então, não posso fazer comparação. Em termos gerais, considero-me um felizardo, porque faço algo que nunca pensei possível. Não há coisa melhor que trabalhar naquilo que você mais gosta. Adoro ter contato com o artista, participar. Participo de muitas escolhas de texto, discuto programas com músicos. Quando era estudante, na Europa, já mexia com essas coisas um pouco – cheguei a fundar um cineclube. Mas, depois da minha formação, quando cheguei aqui, fui trabalhar numa grande empresa, como executivo. Não é muito gratificante. Prefiro levantar às quatro da manhã e buscar um artista no aeroporto. Ter o prazer da convivência, de ter um relacionamento com pessoas que têm algo a dar, não chegaram ao patamar onde se encontram sem razão. Sempre são encontros fascinantes. O que é cultura brasileira para você, enquanto estrangeiro? Tenho uma história muito engraçada. Estou no Brasil por causa de um filme chamado Orfeu Negro. Vi quando tinha em torno de 12 anos e fiquei absolutamente fascinado. Desde então, era só Brasil e cultura brasileira. Isso enquanto eu morava lá. Depois, acabei encontrando uma brasileira e vim para cá. Era o meu destino, não sei explicar. Meus pais achavam tudo muito esquisito.

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Lárcio Benedetti Gerente de desenvolvimento sociocultural do Instituto Votorantim.

Lárcio, fale um pouco sobre a sua formação. Eu me formei em 1992 pela USP, em administração de empresas, com especialização em marketing. Logo no começo da minha carreira, achava que ia trabalhar no marketing, numa grande empresa, multinacional, porque na faculdade de administração você é formatado para pensar assim. E fiz isso, alternando com alguns trabalhos de consultoria de negócios, até 2000, quando me deu um nó na cabeça. Parecia que minha vida se resumia a vender mais e mais produtos. Me deu um vazio. Eu queria algo um pouco maior para a minha vida, mas queria continuar trabalhando com empresa, que era minha formação e era o que eu gostava, mas não com esse viés do consumismo desenfreado. Foi aí que descobri uma agência que trabalhava na área de arte, a Articultura, do Yacoff Sarcovas. Candidatei-me a uma vaga e comecei a trabalhar em 2000. Aí, sim, foi um marco na minha carreira. Como foi essa experiência? Foi maravilhosa. Fiquei seis anos lá, de 2000 a 2006. Foi interessante porque eu pude juntar um pouco da minha experiência, da minha formação enquanto administrador de empresas, com esse viés para o marketing, com a experiência de trabalhar com temas ligados à cultura. Fizemos alguns 159


trabalhos bem relevantes nessa área de políticas privadas de patrocínio cultural. O maior de todos foi para a Petrobras, entre 2000 e 2002, quando foram instaurados os primeiros editais de seleção pública no país, fruto do nosso trabalho. A Petrobras foi nosso principal cliente durante vários anos. Por ser a maior patrocinadora de cultura do país, e apesar de ser uma empresa de capital misto, ser conhecida como uma empresa brasileira, a Petrobras queria dar um caráter um pouco mais democrático para os seus patrocínios da área de cultura, de esportes e da área ambiental e social. Os editais surgiram para atender a esse desejo, de ter um caráter mais democrático na distribuição dos seus recursos, em que todo e qualquer produtor ou agente cultural do país tivesse as mesmas chances de participar, de ter acesso a recursos de uma empresa privada. Ela foi a primeira a realizar editais? Exatamente. A partir de então, começamos a atender outras empresas nessa área de cultura, a Philips, Nestlé, entre outras. Em 2004, nós fizemos um trabalho para a Natura, que virou o Natura Musical, que é também um programa de patrocínio, focado na área de música brasileira e realizado por meio de editais. A Petrobras foi pioneira e acabou servindo de exemplo para outras empresas, o que trouxe uma série de vantagens tanto para as empresas como para o próprio meio cultural. É uma forma mais democrática de acesso, que minimiza a questão do balcão, que é ruim para o meio cultural, em que nem todo mundo tem as mesmas chances. Quando uma empresa não tem uma política de patrocínio, um foco determinado, ou mesmo algum sistema, edital ou outro sistema de selecionar projetos, ela acaba não tendo muita justificativa para falar sim ou não. Os editais determinam até o período no qual as pessoas podem inscrever os seus projetos, o formato que ele deve ter. Isso é uma grande vantagem para o meio cultural, saber que você está mandando um projeto para uma empresa no formato correto para a avaliação, porque senão fica um tiro no escuro. O edital ajuda a colocar ordem na casa, tanto para a empresa quanto para o próprio meio cultural. Queria que você comentasse três questões a partir da perspectiva da empresa. A primeira é que lançar um edital e estimular a participação do proponente já é uma forma de marketing. A segunda é sobre a direção de políticas, conseguir focar em um tema, como a música, no caso da Natura. 160


A terceira é a formação de curadorias, bancas e grupos de seleção, que também é uma outra inteligência que se forma a partir disso. A primeira ação meritória ou esperada de uma empresa que queira atuar de uma forma profissional, de uma forma séria na área de cultura, é definir a sua linha de atuação. Se isso vai desaguar num edital ou não, é outra coisa, mas, primeiro, a empresa tem que olhar para dentro e para fora, para ver as demandas do meio cultural, para ver no que ela vai focar. Então, a Natura, por exemplo, através de vários estudos, chegou à música brasileira como foco de atuação. Assim como a Votorantim, em que o recorte não foi por área cultural, não foi por música, literatura, patrimônio, mas sim por aquilo que a gente chama de uma causa na cultura, um tema, que é a democratização cultural. A Votorantim trabalha sempre com projetos que promovam o acesso da população, e não projetos de produção. Em vez de patrocinar a produção de um filme, a Votorantim patrocina projetos que façam com que a população brasileira tenha acesso aos filmes produzidos, como festivais de cinema, por exemplo. O primeiro passo é a empresa definir o seu foco, definir a sua linha de atuação, e essa definição se dá por alguns fatores. Primeiramente, são os objetivos, o que a empresa espera. Se quer ter um programa de patrocínio para se relacionar com seus públicos, para demonstrar participação social, mostrar uma preocupação com a sociedade, com o desenvolvimento do país. A empresa pode ter várias intenções com relação ao patrocínio, pode ter motivações de marketing, mercadológicas, de comunicação, ou pode patrocinar simplesmente para aproveitar mecanismos de benefícios fiscais. Não importa se o motivo é mais ou menos nobre: importa que a empresa olhe para dentro e questione os motivos de entrar nessa seara. É uma decisão estratégica da empresa, não é algo para começar hoje e parar daqui a alguns meses. A partir da definição dos objetivos, a empresa tem que pensar do ponto de vista da comunicação, pensar o que ela quer comunicar pelos patrocínios, que atributos de marca. A Petrobras, por exemplo, há dez anos, quando pensou na sua política de patrocínio, falava que queria ser reconhecida como uma empresa brasileira, uma empresa de ponta, um Brasil que dá certo lá fora, que é reconhecido lá fora. Então nos patrocínios de cultura, assim como na área de esporte, na área social, os projetos que ela deveria apoiar deveriam estar alinhados com essa questão, com essa preocupação brasileira, com esses atributos de brasilidade, de desenvolvimento, de crescimento. O segundo item é isso, o que a empresa 161


quer transmitir por meio da sua atuação em cultura. O terceiro é qual o público alvo que ela quer atingir com isso. No caso da Votorantim, quando ela fala de projetos de acesso à cultura, tem que saber para quem vai dar acesso, para população brasileira como um todo, para população de baixa renda, jovem, criança, adulto. Quem ela quer beneficiar com isso. E o quarto acho que é a própria localização geográfica, saber se vai apoiar projetos no país inteiro, num estado, numa região, numa cidade. Esses são pontos que funcionam como filtros para a empresa definir o seu foco de atuação e, a partir daí, formalizar em um edital ou alguma outra forma de apoio. E sobre bancas de seleção, curadoria e mérito? Isso é decorrência da própria característica da seleção pública por edital. Quando a empresa escolhe realizar edital, ela tem que fazer com que todo esse processo seja o mais legítimo, transparente e responsável possível. Quando ela recebe os projetos, eles devem ser analisados por profissionais que conheçam aquela área cultural, aquele assunto, e justifiquem frente à sociedade a escolha dos projetos contemplados. Por isso que, pelo volume, pela qualidade, pelas características dos projetos e do próprio funcionamento do edital, nada mais coerente do que se formar comissões técnicas com especialistas da área, que se renovam ano a ano. Até para dar uma oxigenada, para envolver outras pessoas. A formação de comissões técnicas é uma prerrogativa importante para isso. Tem se construído um saber em torno disso? Você percebeu, nesse período, se as comissões técnicas vêm aprendendo a julgar melhor os projetos? Ah, sem dúvida. Sempre vejo os membros das comissões falando sobre seu aprendizado, ficando surpresos quando um estado manda um grande número de projetos importantes, ou criticando o fato de receber projetos muito parecidos, sem muita criatividade. Então gera um aprendizado, uma discussão para os próprios avaliadores da comissão. O edital tem todos os seus méritos, mas o balcão, às vezes, tem as suas funções também, por abarcar áreas que ainda não desenvolveram esse saber em trabalhar o edital. Você acha que existe a possibilidade de ter um núcleo de balcão dentro das empresas, ou isso é complicado? Chegamos a um momento em que parece que o edital é a única solução, a mais elogiável, e o balcão é o oposto. É a mais criticada, digamos assim. Eu 162


acho que não podemos ser oito ou oitenta. Se a empresa utiliza-se de um edital, do balcão ou vai desenvolver um projeto próprio, dependerá daquilo que ela espera ao atuar na área de patrocínio. Por exemplo, a Votorantim queria sair do eixo Rio–São Paulo e apoiar projetos do Brasil inteiro, que tivessem a característica da marca, quer dizer, que tivessem uma preocupação com o desenvolvimento do país. Achamos que criar um edital já seria uma solução. Achamos que íamos receber milhares de projetos de todas as regiões e conseguir pegar bons projetos em todos os estados, mas alguns estados nem mandaram projeto. Então a Votorantim, ano a ano, passou a escolher alguns municípios onde ela queria desenvolver a economia, a cultura local, mas não recebia projetos nos editais, e convidar proponentes locais para elaborar projetos. Fazia uma mínima consultoria para ajudar essas pessoas a tirarem a ideia da cabeça e transformarem num projeto e, em seguida, submetia esses projetos a alguns critérios de seleção. Isso é uma ação mais focada, para de fato desenvolver localmente alguns projetos que ainda não tinham condições de competir de igual para igual num edital grande. A empresa não deve ser elogiada porque faz um edital ou criticada porque não faz. O edital é apenas uma forma de a empresa selecionar projetos. Só que na área de cultura, mais de 90% do recurso empresarial são provenientes de lei de incentivo, e ninguém pode esquecer que é um recurso público. O edital acaba sendo muito elogiado por conta disso, é uma forma mais democrática de se investir. Mas, se a empresa entender que tem uma outra forma e, principalmente, se a empresa colocar recursos próprios, que é algo elogiável de ser feito, ela pode escolher sua forma de incentivar a cultura. Por que temos tão pouco investimento direto? Essa é também uma crítica minha. Nós vivemos um momento de apagão cultural muito forte na era Collor, e o incentivo fiscal entrou como se fosse o único remédio para se fomentar a produção no país. Passamos de uma situação na qual as empresas não investiam para uma de 100% de benefício fiscal, sem nenhuma contrapartida privada. Então acabamos acostumando mal as empresas. E é uma lei de incentivo, o próprio nome diz. Ela surgiu para incentivar as empresas a investirem em cultura, mas o que era para ser um remédio, acabou se transformando em um veneno. Já vi muitos gestores de cultura de empresas falando que não investem em cultura porque não têm Lei Rouanet, como se uma coisa fosse sinônimo da outra. A empresa só pode 163


investir em cultura se ela tiver o benefício fiscal? Não deveria ser assim. Na área ambiental, por exemplo, as empresas investem em projetos com recursos próprios. Na área esportiva, também sempre foi assim, até ser promulgada agora a Lei de Incentivo ao Esporte. Marketing esportivo é uma coisa que vem crescendo muito no país, e até existe o receio de acontecer com o esporte o que acontece hoje com cultura, que daqui a dez, 15 anos as empresas só vão investir no esporte se tiver os 100% de isenção. Então existem alguns desafios a serem vencidos. O principal é fazer com que as empresas patrocinem a cultura não mais de forma reativa, através de demanda de balcão, mas ativa, que as empresas planejem sua atuação em cultura. Para isso precisa formar gestores culturais dentro das empresas. Como fazer isso? Hoje existem cursos de formação para pessoas que querem trabalhar na cultura como agentes culturais, produtores culturais. São cursos focados na captação de recursos, mas a formação para profissionais de empresas que trabalham com patrocínio cultural, de fato, não existe no país. O que existe hoje são cursos de curtíssima duração e sempre focados em leis de incentivo. Quer dizer, mais uma vez educando mal o meio empresarial, com o discurso de que investir em cultura é usar a lei de incentivo. Do ponto de vista estratégico, o profissional que trabalha nas empresas precisa ter uma formação que possibilite conhecer as áreas culturais, ter um mínimo de conhecimento do que é o meio cultural hoje. Com essa base, ele pode partir ainda para um patamar mais complexo, ligar cultura com educação, com políticas culturais, com desenvolvimento, com reflexão crítica. Além de desenvolver conhecimentos sobre como gerir projetos, como pensar a comunicação, como se relacionar com o projeto patrocinado, com o prestador de contas do projeto, como gerir o dia a dia dessa relação. Prestar contas deveria ser mostrar em que foi gasto o recurso ou quais foram os resultados conquistados? As duas coisas são importantes? O mundo empresarial e o mundo cultural têm alguns mecanismos, algumas formas de operar o dia a dia, que são particulares. Cada um tem as suas. E esse relacionamento tem muito a contribuir para os dois lados, principalmente em relação ao respeito a algumas características, algumas peculiaridades do outro lado. Acredito em prestar contas mais do ponto de vista de 164


resultado mesmo. A partir do momento em que o patrocínio cultural ganha um caráter mais estratégico, ele acaba adquirindo certa importância dentro da empresa. Então, de tempos em tempos, os gestores precisam prestar contas a seus conselhos, a suas diretorias. É natural que elas queiram saber como andam os projetos. Já nas empresas que ainda estão no estágio reativo, isso não acontece, não importa se vai dar certo ou não: eles não acompanham o projeto, a empresa não tem uma estratégia. Já vi muitos gestores e produtores culturais elogiando a postura da empresa que acompanha, porque é muito bacana mesmo quando a empresa tem esse interesse. E, para a empresa que apoia projetos pelo país inteiro, fica difícil acompanhar de perto. São dezenas de projetos todo ano. Elas recebem telefonemas dos produtores perguntando quando irão visitar os projetos. Quando você cria uma situação de parceria, deixa claro para seu proponente que ele é um parceiro, a relação é totalmente harmônica. Os dois lados entendem que prestar contas, mostrar resultado e, às vezes, até mostrar como está gastando o recurso, é uma relação transparente e muito produtiva. Agora, quando vira um sinônimo de cobrança, do ponto de vista da contrapartida, da comunicação, aí o relacionamento fica, de fato, desgastado. O que é o GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas)? O GIFE é um grupo de institutos, fundações e empresas, no qual existem hoje mais de 120 associados. Fazem parte do GIFE grandes empresas e instituições, fundações ligadas às empresas que têm uma atuação social relevante, ou seja, utilizam recurso para o bem social. São empresas que atuam na área de educação, de esporte, na área ambiental e também na área de cultura. Foi muito importante se criar um grupo desses. Quanto mais a gente consegue sistematizar o que já é feito, ouvir diversos fatores, formar profissionais, pessoas que queiram trabalhar com essas áreas, por si só já é uma ideia muito meritória. Então o GIFE promove este trabalho: de pensar o investimento social privado no país e o que pode ser melhorado. Dentro da área de patrocínio cultural, existe um comitê formado por dez ou vinte empresas, em que acontece essa troca de experiências de empresas patrocinadoras. É uma experiência muito rica até para alinhar, tentar ouvir experiências bem e mal sucedidas dentro do mundo empresarial, das empresas que atuam em cultura, e tentar aprender.

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A Votorantim investiu em torno de R$ 54 milhões em cultura nos últimos 12 anos. Uma política cultural dentro da empresa faz com que o investimento aumente? Acredito que sim. Eu não digo com toda certeza, porque podem ter dois cenários. Depois que a empresa pensa na sua atuação e define um programa, ela precisa pensar em várias outras coisas, como, por exemplo, a sua estrutura de gestão cultural. Ela precisa ter pessoas qualificadas, às vezes precisa de uma consultoria, quer dizer, tem toda uma situação de retaguarda, uma inteligência por trás. Então, quando a empresa começa a atuar e a perceber que está alcançando os objetivos, que está tendo resultado e repercussão, ela pode aumentar o recurso investido ou qualificar mais esse investimento. A Petrobras, depois que definiu sua política cultural e a implementou por meio dos editais, conseguiu uma visibilidade enorme se comparada a 15 ou vinte anos atrás. Ela já era a principal patrocinadora do país, mas ganhou ainda mais visibilidade e reconhecimento. É um crescimento quantitativo em termos de recurso, mas qualitativo também. Ela poderia continuar com a política de balcão, colocando mais e mais recursos, mas ela continuaria sem esse reconhecimento. A cultura é uma boa arma de marketing? Sem dúvida. Eu não gosto de usar o termo “arma”, principalmente quando a gente fala em marketing, mas, quando a cultura é pensada de uma forma mais estratégica pelas empresas, elas só têm a ganhar. Esses apoios se desdobram e se transformam em ações de marketing e de comunicação mais coerentes, mais sólidas. A empresa está contribuindo para o desenvolvimento do país, o que já é um grande mérito. O meio cultural se desenvolve, a sociedade ganha com isso, a população passa a ter mais acesso à cultura. A Votorantim sempre investiu de uma forma significativa na área de cultura. Tem alguns projetos que são, inclusive, anteriores às próprias leis de incentivo. Quando entrei na Votorantim, fiz uma pesquisa para saber desde quando a empresa investia na área de cultura e peguei documentos que remetem à década de 1920, quando ela montava suas primeiras fábricas. Pela própria característica do negócio, que lida com cimento, alumínio, metais, as fábricas precisavam ser montadas em municípios e regiões remotas do país, e a empresa teve que montar pequenas cidades ali, com açougue, igreja, escola. E sempre tinha o seu cinema, tinha o seu teatro, sua banda de música. Então é uma coisa que a Votorantim já carregava desde o começo. 166


E a educação da cultura? Quando essas empresas tinham suas bandas de música, elas ensinavam às crianças a tocar instrumentos, havia dentro das empresas uma educação cultural. Você acha que as empresas criarem escolas de teatro, escolas de música, para seus funcionários, é um caminho interessante para a cultura também? Sim. Do ponto de vista de empresa, o mais importante é fazer algo que, de fato, vá desenvolver a cultura, a sociedade, o público, a comunidade, mas atuando em alguma situação que também tenha a ver com os valores e as crenças da própria empresa, porque se fizer isso por mero assistencialismo, sem acreditar, vira uma ação pontual, e não será perceptível o resultado. Então aquilo está fadado a qualquer corte de orçamento. Agora, se é uma empresa que está num município muito pequeno e tem que se relacionar com ele, fazer algo por aquela sociedade, aquilo vira um investimento estratégico para ela. Acredito que o ponto de partida sempre é esse trabalho preliminar de planejamento, de olhar a atuação da cultura como uma atuação estratégica, e não como uma ação filantrópica.

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José Martins Diretor do Instituto Gerdau.

José, como a Gerdau vincula responsabilidade social à cultura? O tema da “responsabilidade social” já foi internalizado pela maior parte das organizações. É uma tendência natural na nossa sociedade, principalmente num ambiente tão aberto, onde todos estão, de alguma forma, inteirados do que se passa e percebem nitidamente a importância do envolvimento das empresas com essas questões. Em nossa organização isso é um tema bastante antigo. Desde 1901, quando as primeiras atividades da organização tiveram início, a Gerdau convive estreitamente com comunidades. João Gerdau, o primeiro dono da empresa, chegou ao Brasil em 1869, instalando-se em Colônia de Santo Ângelo, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, hoje chamada Agudo. Um pouco por conta da tradição germânica, um pouco por causa de seus laços com a Igreja Luterana, suas primeiras iniciativas foram no sentido de apoiar a comunidade e dar-lhe uma boa organização, o que incluí a promoção de atividades culturais: a formação de um coral, uma pequena orquestra de músicas típicas alemãs (era uma colônia alemã). Essa preocupação com a comunidade – que já prenuncia o tema da responsabilidade social – acompanha toda a trajetória da empresa. Na década de 1960, a organização se envolveu em várias ações, tanto solidárias quanto culturais: o apoio ao Teatro São Pedro, em Porto Alegre, a constituição da Orquestra 169


Sinfônica de Porto Alegre, bem como a Orquestra de Câmara do Teatro São Pedro. Na década de 1970 começa a gestão de Jorge Gerdau Johannpeter, grande apreciador das artes e cofundador de uma das primeiras galerias de arte do Rio Grande do Sul. A arte sempre esteve tão presente na família que acabou se tornando parte da organização também. À medida que a gestão da empresa foi amadurecendo, a questão da cultura começou a ser trabalhada de maneira um pouco mais estratégica. Um marco para essa visão deu-se em 1992, quando começamos a preparar as comemorações dos 100 anos da Gerdau (que se dariam em 2001). Lembro que, em uma das reuniões, Jorge Gerdau disse: “Talvez a maior contribuição que possamos dar a Porto Alegre – cidade que deu origem a nossa organização – seja transformá-la numa Barcelona da América Latina. Para tanto, nosso primeiro desafio é criar um polo de investimentos na região Sul”. O segundo desafio seria encontrar uma figura emblemática que incorporasse o ideal de “herói gaúcho das artes”, pois, no dizer do próprio Jorge Gerdau, “a gente não faz nada sem um herói”. Foi assim que chegamos ao trabalho do artista plástico Iberê Camargo, que ainda era vivo na época. Quando Iberê chegou ao estágio terminal de sua doença, convidou-nos para organizar a Fundação Iberê Camargo. Realizou-se, por conta disso, todo um trabalho de organização da fundação: construção da sede, organização do acervo, e o desenvolvimento de uma programação cultural intensa. Ou seja, à guisa de recapitulação, dois movimentos importantes tiveram início em 1992 – a tentativa de tornar o Sul um polo de investimentos tão interessante quanto o Sudeste, e a criação de um herói local. Esses movimentos eventualmente redundaram na criação da Bienal de Artes Visuais do Mercosul, atividade bastante complexa que conseguimos estruturar satisfatoriamente, garantindo-lhe continuidade. Como essa participação da Gerdau nas artes se dá hoje em dia? Bom, no tocante à cultura e às artes, temos uma visão muito clara de que nosso papel é auxiliar na organização do processo. Falarei apenas sobre o Brasil, porque nossa política com relação ao tema é diferente no exterior. Procuramos favorecer projetos de todo o Brasil, trazidos para a nossa atenção pela comunidade. Alguns projetos são encarados como estratégicos em termos nacionais (como a Fundação Iberê Camargo e a Bienal), outros são focados em questões de inclusão social através das artes, como a Orquestra Bachiana. Nossa grande preocupação – em todos os casos – é a criança e 170


o adolescente. Por isso a ênfase em programas de educação pela cultura – mesmo que estejamos envolvidos na gestão de uma operação enorme como a Bienal Mercosul, participando do conselho e da diretoria desse organismo, nosso principal objetivo é trabalhar o tema da educação, encorajando o maior número possível de jovens a passar por esses espaços de exposição. Para nós, isso é fundamental: a arte e a cultura como alicerces para a juventude. Como é o posicionamento da empresa com relação à Lei Rouanet? Temos um entendimento de que nossa obrigação, do ponto de vista social, não para na renúncia fiscal. Alocamos também verbas de capital próprio, e defendemos esse tipo de atitude. Estamos um pouco fora da curva no que concerne o debate sobre a Lei Rouanet. Acreditamos que as empresas não podem se basear apenas na renúncia fiscal de 100%, elas precisam investir capital próprio. Percebi que todos os projetos mencionados são pensados a longo prazo. Isso é uma postura da Gerdau? Sim. Em todas as ações promovidas pela Gerdau há essa visão de longo prazo. É um pouco a tradição do negócio – siderurgia não é coisa que se preste a um planejamento de curto prazo. Tentamos empregar esse tipo de pensamento em todas as nossas iniciativas. Temos um programa de formação de jovens empreendedores – o Movimento Júnior Achievement –, que pega alunos de escolas e tenta mostrar-lhes a importância de uma educação empreendedora, a importância de uma mentalidade de liderança, para que não se tornem massa de manobra. Esse programa já tem 20 anos, e esperamos que dure muito mais tempo. Como o senhor vê toda essa malha de fornecedores e pequenos empresários que trabalham para a Gerdau? Quais são as relações que podemos estabelecer entre esses empresários e as políticas culturais? Bom, essa questão dá ensejo para discutirmos dois temas importantes. Primeiro, nossos esforços no sentido da responsabilidade social não se limitam a ajudar os menos favorecidos. Para nós, a responsabilidade social é um complexo de relações éticas. Por isso, prezamos a construção conjunta, visando a ganhos mútuos. Usarei o exemplo do setor de fornecimento. A siderurgia possui duas cadeias muito críticas nessa área – a cadeia da sucata metálica, que vai desde o lixão até os pequenos empresários que estocam ferro para vender às siderúrgicas, e a cadeia da mineração, que vai desde o problema da 171


mata nativa e do carvão até os fornos das siderúrgicas, que trabalham de forma integrada. Essas são cadeias muito impactantes em termos sociais. Nossa organização tem realizado alguns programas no sentido de fazer inclusão social nessas cadeias. Por exemplo, na cadeia do carvão, temos programas básicos de formação de cidadania, no intuito de evitar práticas agressivas do ponto de vista ambiental. Ultimamente, temos debatido muito com o Ministério da Cultura e com a Câmara dos Deputados uma possível reformulação das leis de renúncia fiscal e incentivo, e uma de nossas propostas envolve justamente o aumento de vantagens para pequenas empresas e pessoas físicas que quiserem investir na cultura. Bom, esse é um tema. O outro tema é a possibilidade de realizar isso através de cooperativas de pequenas empresas, o que significaria um valor maior de investimento. Eu diria que a legislação, hoje, não favorece esse tipo de iniciativa. Por isso estamos atacando primeiro o tema da legislação, para que, com ela e com o programa de educação, possamos dar continuidade aos programas de inclusão. Isso não é um problema só da Gerdau, é algo que abrange todas as grandes empresas e suas cadeias de fornecimento. Como o senhor analisa o binômio cultura-tecnologia? Refiro-me às novas mídias, a Internet... A tecnologia mudará muito a sociedade nos próximos anos e, por consequência, tanto a cultura em si quanto o consumo de cultura sofrerão transformações dramáticas. Essas questões já se apresentavam quando estávamos discutindo a estruturação de uma sede para a Fundação Iberê Camargo. Afinal, daqui a 50 anos, qual será o papel de um museu físico? Serão necessários ainda, ou será que nesse tempo a visita ao espaço físico do museu se tornará obsoleta, fora da cultura, tamanha a nossa capacidade de conexão? Não tenho essas respostas. Pressinto apenas que nossas vidas mudarão completamente, o que pode significar tanto um ganho quanto uma perda enorme. Depende de como a sociedade conduzirá essas mudanças, que são arriscadas por definição. Quem se debruça um pouco mais sobre essa questão vê claramente o problema da privacidade, da censura. Ou seja, há uma série de ramificações que precisam ser abordadas. Mas não há dúvida de que será uma revolução. Quanto a todas essas políticas de longo prazo – a organização tem acompanhado o resultado desse processo de formação de público? Como o senhor avalia o resultado desses empreendimentos? 172


Veja bem, na década de 1970, eu me considerava hippie. Até levava jeito, era magrinho, tinha cabelo comprido, andava de macacão para lá e para cá e acreditava que minha geração seria capaz de promover grandes mudanças na sociedade, o que não foi o caso. Isso para dizer que não temos ilusões quanto ao alcance de nosso trabalho. Resta saber se é possível fazer com que essas iniciativas correspondam às necessidades de uma sociedade como a nossa. Ainda temos uma trajetória enorme pela frente. Até lá, fazemos nossa parte e contamos todo ganho como positivo. Temos uma experiência importante com milhares de jovens que passaram por nossos programas educativos no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Recife. Mas essa medição que você me pede é difícil. Muitos desses jovens acabam largando tudo para poder sobreviver ao dia a dia, manter uma família. É cruel. O que o senhor pensa sobre a política de editais? Quando o recurso é público, o edital é fundamental, até por uma questão democrática. Mas quando o recurso é privado – como é o nosso caso – o edital pode não servir aos interesses do gestor interno da organização. No caso da Gerdau, por termos uma essa visão de trabalho sempre a médio ou longo prazo, não ampliamos muito o nosso leque de entradas. Temos uma linha bem estabelecida. Privilegiamos a música clássica, as artes plásticas, e temos alguns parceiros com os quais trabalhamos continuamente. Um edital, no nosso caso, serviria de impedimento a essa continuidade, que é essencial para nós. Adoraria dizer que a Fundação Iberê Camargo, ou a Bienal, já são empreendimentos que andam sozinhos e não precisam de apoio. Mas ainda não é o caso. Como pensar a divulgação de conteúdo? Vou usar novamente o exemplo da Fundação Iberê Camargo. Avançamos muito nesse campo. Temos uma revista eletrônica, um site aberto a debates, discussões. Estamos pensando em maneiras de intensificar a troca entre a Bienal Mercosul e a Bienal de São Paulo. Mas – falando de maneira bem simples – creio que aí já é um pouco a decoração do bolo, sendo que nosso bolo não está nem formado ainda. O senhor diria que a questão da política cultural, no Brasil, ainda não está estruturada o suficiente? 173


Bom, tomemos dois cenários distintos. No cenário A, a empresa reconhece que precisa fortalecer sua imagem junto a uma determinada comunidade próxima, e vê na música um bom instrumento para tal. Portanto, essa decisão estratégica já está tomada, independente da possibilidade de usar renúncia fiscal. No cenário B, temos uma empresa que pensa assim: “É provável que eu tenha uma renúncia fiscal de tanto, então, para não dar para o imposto, vou dar para qualquer um”. Acho que a tendência das empresas é caminhar para o cenário A, o que não quer dizer que o cenário B não exista. Mas acho que a tendência é a prevalência do cenário A, mesmo que não seja de imediato. Para que esse cenário prevaleça, profissionais capazes são essenciais. Qual é a sua opinião quanto à questão da formação de produtores e gestores culturais? Na realidade, existe um déficit no Brasil não só na formação de gestores culturais, mas na formação de gestores em geral. Para que essa empresa “cenário A” formule suas estratégias, ela pressupõe profissionais com outro nível de amadurecimento no que tange às questões da cultura, e não só oportunistas e marqueteiros de curto prazo. Mas o país como um todo tem dificuldade em formar lideranças, até porque nenhum país cresce tanto como o Brasil sem nenhum tipo de ônus. Segundo os dados que o Ministério da Cultura tem nos passado, a produção cultural aumentou tremendamente com relação à produção de dez anos atrás. Esse processo de crescimento foi muito mais rápido que a capacidade de formar gestores na área. Outra solução está na competência das empresas. Elas devem se abrir um pouco mais, trazer para dentro de seus quadros esse profissional. De alguma forma, o marketing ainda domina a maior parte das organizações. Não que isso seja errado. Inclusive, é o que se espera de uma empresa. Mas, num sistema mais evoluído, a empresa certamente favorece muito mais uma visão estruturada do que pontual. Porto Alegre teve uma experiência internacional fortíssima, com eventos como o Fórum Social Mundial e a própria Bienal do Mercosul. Em que estágio estamos nesse processo de integração cultural no Mercosul? Muito no início. Se presumimos 10 etapas hipotéticas, creio que estamos na segunda. Até um ano atrás não tínhamos nem uma associação de produtores culturais, tamanha a falta de organização e consenso. Tem muito caminho pela frente, mas estou otimista – tanto em relação à Gerdau como a outras empresas. 174


Como o senhor se posiciona quanto ao vale-cultura e demais questões de acesso? Em princípio, nossa política é de que todo programa apoiado por nossa organização via renúncia fiscal não cobre ingresso. Isso gera uma discussão terrível, porque muitas vezes não é possível garantir gratuidade. Na Fundação Iberê Camargo e na Bienal Mercosul – programas em que temos um papel duplo, de investidor e gestor interno – conseguimos gratuidade absoluta para tudo. Na Feira do Livro também. Já com o teatro, é um pouco mais complicado. Quanto ao vale-cultura, creio que desempenhe um papel importante, mas provisório, de inclusão. É preciso tomar cuidado para que não se crie o ônus de uma dependência absoluta. O senhor considera a economia criativa uma possibilidade? A organização já refletiu muito a respeito disso. Não apenas em relação à cultura; em relação à própria siderurgia. Nossa empresa se define da seguinte maneira: “Ganhamos dinheiro com siderurgia, ponto. Em outros temas, apoiaremos a sociedade no que for possível”. Não estamos interessados no retorno. Tanto que não investimos em cinema, onde teríamos participação de ganhos. Se o país continuar crescendo de maneira sustentável, em uma década, nossos problemas serão completamente diferentes. Poderemos ter uma nova onda de imigração, e novas políticas de integração serão necessárias. Como o senhor vê o futuro? Não sei como a humanidade será daqui a 50 anos. Creio que tendemos a uma crise de insumos global. Nesse contexto, o Brasil está em posição privilegiada. Tenho certeza de que o país continuará crescendo, mas terá de enfrentar novas questões, novas parcerias, novas bases de integração. Para a Gerdau, esse crescimento é maravilhoso. Quanto mais crescer a população, mais aço vamos vender. Do ponto de vista da cultura, creio que seja uma excelente oportunidade para novas integrações, também. Crescer não é ruim, basta saber como conduzir esse processo. Falta, naturalmente, um planejamento estratégico de longo prazo que dê conta de algumas questões que se apresentam, principalmente as de cunho ambiental. Abriremos mão de áreas hoje sagradas? Usaremos os recursos que o Brasil, em princípio, tem em excesso, como água ou minerais? 175


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Maria Arlete Gonçalves Diretora de Cultura do Oi Futuro.

Maria Arlete, como surgiu o Oi Futuro? O Oi Futuro nasce no final de 2001, após a privatização do setor de Telecomunicações. A Telemar – hoje Oi – adquiriu a maior área geográfica das empresas de Telecom, abarcando sudeste, norte e nordeste. Como se sabe, é exatamente nessa região que se encontra a mancha vermelha da exclusão social no Brasil. Então, desde o início, a empresa percebeu que teria de promover o desenvolvimento dessas áreas do Brasil profundo. Percebeu também, até por uma questão de mercado a longo prazo, que ela teria que devolver recursos à sociedade. Portanto resolveu criar uma estrutura, um instituto que pensasse a questão da responsabilidade social através da educação e da cultura. Foi assim que surgiu o Oi Futuro, cujos focos principais de atuação são justamente a cultura e a educação como maneiras de colocar no mapa da inclusão esses brasileiros à margem, com ênfase na tecnologia enquanto instrumento de aceleração do desenvolvimento. O que é o Oi Futuro, exatamente? Como funciona? Oi Futuro é uma OSCIP, ou seja, uma organização social de interesse público. Atuamos nos campos da cultura e da educação através de projetos próprios, pensados e desenvolvidos pela Oi a partir desse DNA teórico da 177


tecnologia. Ela também apoia projetos de outras organizações no campo social e faz a gestão dos patrocínios culturais incentivados da Oi. Ou seja, houve aí um entendimento por parte da empresa de que os patrocínios culturais incentivados, valendo-se das leis de incentivo, estão na realidade utilizando recursos públicos, dinheiro do contribuinte. Portanto, seria preciso ter um olhar responsável sobre a administração desse capital e da produção que surge dele. Temos hoje três centros culturais próprios, voltados à arte e à tecnologia: dois no Rio de Janeiro e um Belo Horizonte. Além disso, temos projetos sociais que trabalham a partir desse mesmo viés, como a Oi Kabum, que é uma escola de arte e tecnologia para jovens de comunidades. No campo exclusivo da educação temos outros tantos projetos, entre os quais se destaca o Nave, que é uma escola de jogos eletrônicos. Todos os projetos são fortemente marcados pela presença da cultura digital. E como se iniciou o seu envolvimento pessoal com a cultura? Meu processo pessoal de envolvimento com a cultura começa na infância. Frequentava bibliotecas públicas, e foi isso que fez minha cabeça no campo da cultura. O primeiro filme que vi na vida foi uma fita sobre pigmeus, exibida em praça pública, lá em Salvador. Nunca esqueci isso: aquele povo no meio da rua, vendo um filme em preto e branco e praticamente mudo. Aquela sensação de compartilhamento, de comunhão com o cinema, ficou para sempre. Creio que isso se reflete um pouco no meu trabalho de formação de plateia – quando nós do Oi Futuro pensamos a cultura, pensamos primeiro em acesso. Mas, voltando, fui rata de cinematecas, especialmente a do MAM do Rio de Janeiro, durante os anos 70, quando estava cursando a Escola de Comunicação da UFRJ. Nessa época, a efervescência cultural era muito grande, já que outros campos – nominalmente o político – não podiam desfrutar da mesma vitalidade. Com a minha geração, a rotina era essa. Íamos para a faculdade, depois para o MAM, depois para algum bar onde conversávamos sobre o que havíamos visto, depois para o teatro, e à meia-noite íamos ver os shows piratas. Afora essa imersão, havia também o próprio jornalismo. Sempre me interessei muito por jornalismo cultural. Anteriormente ao Oi Futuro, dirigi o Museu do Telefone no Rio de Janeiro. É possível promover a inclusão social através, por exemplo, dos jogos eletrônicos? 178


Acreditamos totalmente que sim. A cultura digital já é cultura, e o game, os jogos eletrônicos, é um instrumento muito poderoso. Já é uma das linguagens mais atuantes deste século. Não só isso, mas uma linguagem particularmente dominada pela juventude, grupo com o qual trabalhamos sempre. O Brasil precisa formar mais profissionais nessa área, e é essa a proposta do Nave, que significa Núcleo Avançado de Ensino. São duas escolas – uma no Rio de Janeiro e outra no Recife. Pela manhã, os alunos estudam disciplinas normais de 2º Grau. À tarde, têm aulas de desenvolvimento de games, roteiro, criação de softwares. São três anos de formação. Sabemos que é um mercado promissor, no qual o Brasil apenas começa a engatinhar. Nossa intenção é – dentro de um esquema de economia criativa, economia de cultura – gerar novos profissionais que atuarão em novos campos. Hermano Vianna fala muito sobre o game como uma nova forma de narrativa, explicitamente interativa, na qual o jogador atua também como interlocutor. Qual é o seu posicionamento quanto a isso? Como você avalia o impacto dessa nova narratividade na cultura, como um todo? Creio que seja um processo natural. Talvez seja exagero da minha parte, mas o game me parece praticamente uma extensão física de alguns jovens. Hoje em dia existem jogos totalmente interativos, games que se jogam com o corpo inteiro. Isso nos remete ao McLuhan, à sua visão do telefone como extensão do ouvido humano. Além de uma quase-extensão do corpo do jovem, o game é também uma maneira nova de pensar, uma nova lógica de raciocínio, e, por extensão, um instrumento poderosíssimo de educação. Além desses cursos que temos promovido no Nave, fizemos um festival de games ano passado, em tudo estruturado como um festival de cinema. Premiou-se o melhor roteiro, o melhor desenho etc. É preciso entender que ainda estamos engatinhando nessas novas formas, mas é preciso dar passos adiante, ajudar a quem quer dar passos adiante. É por isso que nos chamamos Oi Futuro. A China é um caso interessante de investimento em games e desenhos animados como forma de afirmação cultural. Você acha que esse é um bom exemplo para o Brasil? Sim. Por exemplo, ontem fiquei sabendo que a China elegeu a economia criativa sua prioridade número 1. Ou seja, quando um país do porte da China toma uma atitude dessas, o mundo precisa olhar e pensar nisso. Nada mais 179


lógico, em tempos de debate acerca de energias renováveis, do que focar na criatividade. A criatividade é altamente renovável. Não é à toa que a China mandou buscar designers e criadores no Brasil e em vários outros países. É por isso que, dentro dos editais do Oi Futuro, a tecnologia exerce um papel tão crucial. É por isso que nossos projetos próprios, como o Nave, o Oi Kabum e os Centros Culturais, são tão calcados na convergência das linguagens. Os Centros Culturais são modelares nesse sentido, pois você vê a tecnologia dialogando com as artes cênicas, a música, as artes visuais. Mas, embora as novas tecnologias tenham um papel vultoso nos patrocínios culturais da Oi, há também o patrocínio a manifestações culturais de raiz, patrimônio cultural e tudo o mais. Nosso compromisso é com a diversidade cultural brasileira, não se pode esquecer isso. Uma pergunta sobre sua experiência pessoal com o Oi Futuro. O Rio de Janeiro é uma cidade muito marcada por espaços de encontro cultural – nos anos 60, tivemos o MAM – nos anos 70, o Parque Lage – nos anos 80, o Circo Voador. Eram lugares onde o consumo de cultura se aliava ao encontro existencial, a conversa, o espaço da informalidade. Hoje em dia, por uma série de entraves, está cada vez mais difícil promover esse tipo de encontro. Você acha que o digital substitui esse espaço? Como o Oi Futuro pensa esses espaços de convivência e debate? Bom, a vontade de criar espaços de discussão e reflexão sobre arte – e sobre o futuro da arte – é um pouco a gênese do Oi Futuro. Sempre buscamos não só abrigar esse debate em nossos Centros, como colocá-lo nas ruas também. Por exemplo, no Oi Futuro Ipanema, nossa fachada é toda branca para que possamos realizar projeções. Temos o Oi Tempo, um festival de teatro no Rio de Janeiro. Temos a ocupação da praça General Osório, lugar que já foi palco de muita efervescência. Estamos contribuindo para que isso volte, de alguma maneira. O Rio de Janeiro tem essa característica – é uma cidade “para fora”, por sua própria riqueza geográfica. O carioca prefere o bar à casa como ponto de encontro. Mas essas iniciativas não são exclusivamente nossas, várias outras instituições estão tentando criar novos pontos de encontro. Além disso, há as redes sociais, que são espaços sem território, pontos de partida para os encontros de grupos afins. A mídia convencional não dá conta da cultura, não é um espelho fiel da efervescência de uma cidade. É aí que entram as redes sociais. 180


Recentemente,alguns periódicos de grande circulação começaram a dar espaço para uma reflexão critica da cultura digital. Hoje em dia vemos, em jornais como o Correio da Bahia, resenhas críticas de blogs, discussões voltadas às novas tecnologias, às novas linguagens. Como você encara essa questão? Acho que ainda é pouco. Mas estamos num processo de amadurecimento. Além do mais, o próprio ritmo das coisas faz com que você esteja correndo atrás o tempo inteiro. É uma loucura. Estamos aqui conversando, e as coisas estão lá fora, acontecendo. Lidamos com objetos em mutação permanente. Por exemplo, temos um museu de telecomunicações no Oi Futuro. Como nosso objeto é a própria tecnologia, como fazer um museu que não seja, em si, datado? Temos a obrigação de pensar o próprio museu da maneira mais atual possível. Por exemplo, estruturamos o espaço físico do museu de maneira a torná-lo um hipermuseu. Há várias camadas de informação superpostas, ou seja, customiza-se a visita. Você pode se demorar cinco minutos ou cinco horas e meia, dependendo do quanto quer interagir com as informações. Mesmo assim, estamos sempre correndo atrás. Para tentar dar conta dessa velocidade, pusemos um lettering na saída do museu, que dá as últimas notícias que saíram nos jornais sobre informação e tecnologia de comunicação. Você acha que o digital de “cultura digital” está com os dias contados? Não, acho que não. Acho que se tornará uma categoria em si. Assim como se tem cultura, patrimônio, cinema, teatro, breve se terá o digital. Essa questão da memória do digital é muito interessante. Face à tamanha mobilidade, como a Oi tem pensado essa memória? Como disse, correndo atrás. É preciso correr atrás e registrar o tempo inteiro. Naturalmente, muita coisa se perde – mas a própria perda já é um pressuposto do que se chama hoje em dia de cultura digital. Lidamos com a perda o tempo todo, porque não há como dar conta de tudo. O importante aí é qualificar. Entender o que deve ser guardado como memória, já que é impossível guardar tudo. Em outras palavras, trata-se de uma memória crítica. Sim, exatamente. 181


Um grande festival dessa área de arte e tecnologia é o Campus Party, evento criado na Espanha em 1997. Como pensar eventos desse porte? Vocês preferem ações mais descentralizadas? Bom, nós temos alguns festivais. Temos o festival de games que mencionei há pouco. Temos o CELUCINE, um festival de filmes feitos com celular. São festivais idealizados pelo nosso pessoal, que não se resumem à exibição do produto, geralmente envolvem outras atividades. No caso do CELUCINE, que é um festival móvel, sem data fixa (afora a premiação, que geralmente se dá durante o Festival de Cinema do Rio), realizamos workshops em todos os estados, para que as pessoas entendam a novidade do formato, suas possibilidades em termos estéticos, enquadramento. São atividades de fomento e desenvolvimento. Daqui a pouco, teremos um Festival de Música Digital, do Marco Mazzola. Creio que seja o primeiro festival desse tipo na América Latina. Você estava falando desses novos enquadramentos. Como pensar esse novo olhar suscitado pelas mudanças tecnológicas? No caso específico do cinema feito com celulares, há um mundo de novas possibilidades a considerar. Aconteceu uma coisa interessantíssima no último CELUCINE; num dos workshops, um diretor criou uma grua para celular, uma varetinha assim, tipo um bambu. (risos) Mas, voltando, os ângulos que o celular permite são incríveis, e o diretor não precisa de um aparato técnico muito grande. Você é obrigado a trabalhar menos elementos, já que a tela é tão pequena. E a própria questão do tempo do cinema precisa ser repensada, nesse caso. O olhar de quem vê é diferente; você tem que levar em consideração que o espectador não vai assistir àquilo numa sala escura. A concentração é outra. Exatamente. Acho que foi o Godard quem disse que, numa tela de cinema, todos os artistas viram deuses – eles enormes na tela, nós apequenados na sala. Pois isso mudou. Agora, eles podem ser até menores que nós. São mudanças que estão acontecendo, leva um tempo até absorver. Como lidar com a questão da qualidade? Quais são os critérios que devem ser levados em consideração? Ótima pergunta. Acho que ainda estamos aprendendo a lidar com isso. Hoje em dia praticamente todos têm acesso aos meios de captação – mas nem 182


tudo que se produz é arte. Então, o que é arte? O que distingue arte do mero registro? Há que se pensar sobre isso. Nesse tempo de multimeios, onde podemos situar a arte? O pensamento e velocidade são duas coisas que não vão muito bem juntas, infelizmente. Minha preocupação, falando pessoalmente, é esse ritmo que te impede de exercer um pensamento crítico. O produtor cultural hoje em dia precisa estar aberto para o novo? Não há manuais possíveis? No mundo em que vivemos, em que as coisas não param de acontecer, é preciso pensar fora da caixa o tempo inteiro. A arte é isso, não é? Um olhar enviesado que se lança sobre as coisas. E isso é maravilhoso, você se sente desafiado o tempo inteiro! E as propostas são incríveis. Por exemplo, estamos com uma peça no Oi Futuro chamada Hotel Medea. São seis horas de espetáculo, o público vai e dorme no espaço. É muito bom dar lugar a propostas desse tipo.

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Eduardo Saron Diretor superintendente do Itaú Cultural.

Como começou seu trabalho com cultura? Meu interesse por cultura começou no movimento estudantil, quando passei a participar de um grupo de teatro, a ver shows, ir ao Centro Cultural de São Paulo, mesmo que fosse para ver as pessoas, para paquerar. Você percebe, até pela história do movimento estudantil, que a cultura é um ponto forte de amadurecimento, de reflexão, de aproximação das pessoas. Foi nesse momento que eu percebi que esse universo tinha um espaço de reflexão importante sobre a própria vida. Confesso que o meu primeiro interesse foi muito mais pelo pensamento crítico, pela reflexão sobre o homem contemporâneo, do que por um apelo estético. O mais importante para mim, naquele momento, era debater. E a cultura era uma forma belíssima de uma provocação, que me deixava atento, me fazia perceber o que estava acontecendo. Onde você estudou? Eu fiz a PUC de São Paulo, mas tem um momento interessante, quando fiz magistério na escola pública. Foi nesse momento que eu comecei a fazer movimento estudantil, cheguei a ser vice-presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas, em São Paulo, depois fui para a União Nacional dos Estudantes, a UNE. Minha família é de classe média, e eu percebi que 185


havia um abismo entre o universo da escola privada e o da pública, e que era importante se mobilizar para, ao menos, tentar diminuir essa diferença. E a ida para a produção cultural, especificamente, como foi? Foi há dez anos, através da Milu Villela, que dirigia o Museu de Arte Moderna de São Paulo. Eu trabalhava na área de comunicação do governo federal e a conheci, porque ela tinha uma série de projetos para o MAM-SP dialogando com instituições públicas. Na época, ela já tinha assumido o Itaú Cultural, e a gente logo descobriu uma afinidade de interesses. Comecei a acompanhar mais de perto o trabalho dela e recebi um convite para trabalhar lá, participando de um profundo processo de transformação da instituição. Naquele momento, o Itaú Cultural estava num movimento de abertura, de nacionalização, de aprofundamento dos instrumentos que já tinha, mas que ainda eram frágeis, de edital público para seleção de novos talentos. A intenção era transformar o Itaú Cultural num espaço de reflexão e difusão da arte contemporânea brasileira. Eu comecei a minha atuação de gestor cultural exatamente nesse momento de efervescência do Itaú Cultural, e já estou lá há mais de oito anos. Fale um pouco sobre a trajetória do Itaú Cultural. O Itaú Cultural é muito inovador na sua forma de trabalho, imaginando uma participação mais orgânica do setor privado dentro do mundo da cultura. O Ministério da Cultura tem 25 anos, enquanto o Itaú Cultural tem 23. Ele surge dentro do escopo de uma lei de incentivo à cultura, com a Lei Sarney, e de uma maneira muito interessante. Quando a Lei Sarney foi criada, o doutor Olavo Setúbal, então presidente do Itaú, chamou um grupo de pessoas e pediu um estudo de como usar o incentivo fiscal da melhor forma possível. Duas propostas foram feitas: uma era criar um núcleo dentro da unidade de comunicação do Grupo Itaú, onde os recursos pudessem ser usados alinhados com o pensamento de marketing, e a outra era criar uma organização com missão e identidade próprias. Reunir um grupo de profissionais do mundo da cultura, que tivesse uma gestão muito clara, e construir uma política cultural construída a partir dos inputs do Grupo Itaú, mas, fundamentalmente, a partir do diálogo com o mundo da cultura. Dizem que todo mundo imaginou que ele fosse optar pelo primeiro, porque agregar valor à marca e impactar a imagem é muito mais fácil, imediato 186


e pragmático, se você coloca essa organização, ou esse núcleo, dentro do marketing. Mas ele optou pela segunda. Ele percebeu que, se colocasse uma unidade dentro do marketing, não é que não pudessem acontecer bons projetos, mas, necessariamente, seriam feitos projetos sempre de curto prazo, de impacto pragmático, de retorno imediato. Se ele fizesse uma organização à parte, ela teria certa independência, certa qualidade de tempo para poder pensar, porque o tempo da cultura, o tempo da arte, é diferente do tempo do marketing, que precisa ter um retorno o mais rápido possível para a marca. Então, ao escolher a instituição, ele criou as condições para que se criassem produtos como, por exemplo, as enciclopédias. Hoje nossa página na internet é um dos sites mais acessados de uma instituição cultural com o nosso perfil. Desses acessos, a metade é para as enciclopédias. É claro que, quando o doutor Olavo pensou em criar uma organização que tivesse uma identidade própria, uma missão e uma política, ele pensou também que, se essa organização desse certo, iria agregar valor à marca. Isso seria um desdobramento natural. É o que ocorre hoje. O Itaú Cultural tem praticamente 25% de mídia espontânea de toda a empresa Itaú. Como funciona o Itaú Cultural? Temos uma equipe de mais de cem profissionais, todos praticamente oriundos do mundo da cultura. Os outros são meninos e meninas em estágio, que estão se formando e, com toda a certeza, se não ficarem no Itaú Cultural, vão continuar no mercado da cultura. Esta é uma questão importante: afinal, quem é esse profissional da cultura? Quem é o gestor cultural? Quem é esse organizador cultural? Quem está formando, qual a universidade, qual a instituição que forma essas pessoas? Trabalham conosco pessoas de arquitetura, ciências sociais, filosofia. São os cursos que, geralmente, o mercado tem mais dificuldade em contratar, mas que têm a formação do pensamento humanístico, o que é fundamental para se trabalhar com cultura. Mas a universidade, ou o mundo da educação, ainda não percebeu que é preciso criar um curso interdisciplinar, que passe pelas humanidades, pelo mundo da administração, pelas questões práticas da produção cultural, do planejamento, da comunicação, para se criar bons gestores culturais. A universidade não percebeu que precisa formar esse profissional. Então, muitas das vezes, o Itaú Cultural acaba, na prática, formando esse profissional que o mercado demanda cada vez mais. 187


Temos também um conjunto de comitês, um conjunto de núcleos internos, que compõem uma governança que não é exclusiva do Itaú Unibanco. É um grupo composto também por pessoas da sociedade. E decidimos, estrategicamente, não fazermos espaços culturais nos estados. A partir de São Paulo, a gente dialoga com o país inteiro. A nossa compreensão é que os espaços culturais existem, o que não existe, em condições suficientemente bem colocadas para atender o consumo cultural no país, é uma programação, um produto de qualidade. A ideia é construir programações locais com os espaços que já são legitimados nas suas cidades. E nós já temos vários programas. O primeiro, e um dos mais importantes, são as enciclopédias. Hoje temos enciclopédias de artes visuais, de teatro, literatura e arte e tecnologia. Em breve, teremos também de cinema, música, dança e política cultural. Além disso, temos o programa Rumos, que já tem 11 anos e é um edital público que trabalha em 11 áreas. Não só áreas artísticas, mas áreas do pensamento. Eu diria que o programa Rumos e as enciclopédias são as principais ações do Itaú Cultural. Com a mudança do projeto de lei da Lei Rouanet, os institutos e fundações, que estão enquadrados na faixa de 40%, terão que colocar 20% do próprio bolso. Como o Itaú lida com isso? Historicamente, o Itaú Cultural nunca utilizou o artigo 18 da Lei Rouanet, que possibilita a isenção de 100% de impostos. A gente sempre utilizou o artigo 26, o que significa que sempre realizamos contrapartida. Além disso, nossa operação não é só com a Lei Rouanet. Em 2009, a gente operou quase R$ 40 milhões; desses, somente R$ 30 milhões foram por meio da Lei Rouanet. Então a mudança do projeto de lei não afeta diretamente o Itaú Cultural, mas, como gestor, me preocupam outras questões envolvidas na mudança da Lei Rouanet. Considero que algumas áreas estratégicas, principalmente educacionais e de formação de gestores, precisam de 100% de isenção para serem estimuladas, senão não serão efetivas. As leis de incentivo não correm o risco de institucionalizar a produção cultural? O debate da institucionalização é histórico. Se pegarmos a história do incentivo no mundo, pode-se questionar a produção do Michelangelo, por exemplo. Afinal, Michelangelo foi apoiado pela Igreja, e não quer dizer que 188


ele teve a sua criatividade, a sua importância minimizada. Esse é o primeiro ponto. Quando o artista se associa a um patrocinador, independente se é renúncia ou não, ele se vincula de tal forma que a sua criatividade fica em segundo plano, em relação ao interesse do patrocinador? A história prova que existem coisas maravilhosas que foram patrocinadas. Há uma outra questão que se coloca: se o incentivo atual é público ou privado. Quanto a isso, o que está distorcido nesse modelo é o desequilíbrio entre os outros espaços de capacidade de investimento na cultura. Se pegarmos historicamente, o mecenato, e a Lei Rouanet é mecenato, foi o que conseguiu avançar mais rapidamente, se descolou de maneira muito dramática do Fundo Nacional de Cultura e do próprio orçamento público. E é esse desequilíbrio que gerou esse desconforto todo. Agora, esse desequilíbrio não é culpa do mecenato, é culpa da diminuição do investimento para o fundo e do orçamento público, federal, estadual e municipal. Em 2008, o mecenato era quatro vezes maior que o Fundo Nacional de Cultura, e o orçamento do Ministério da Cultura era o penúltimo orçamento da União. Só ganhava do Ministério da Pesca, que tinha acabado de ser criado. Esse desequilíbrio é o grande problema, em relação ao patrocínio, ao incentivo público brasileiro, ou à operação de injeção de recursos no mundo da cultura. Foi esse desequilíbrio que fez com que o mecenato virasse a ovelha negra, mas, na verdade, o mecenato não é ovelha negra. A ovelha negra é a distância desses outros dois espaços de recursos. É preciso mexer na Lei Rouanet, porque, afinal, ela tem 18 anos. Sempre falo que a Lei Rouanet surge antes da internet, e só por isso já merece ser revista, porque o mundo da internet, para a cultura e para a arte, fez uma revolução. Além de mexer na lei, é preciso crescer o Fundo Nacional de Cultura e o orçamento ministerial. Senão, não terá efeito. O Itaú Unibanco acabou de passar por uma das maiores fusões de bancos. As duas instituições culturais dos bancos, o Itaú Cultural e o Instituto Moreira Salles,têm características bastante particulares, sendo que os próprios donos do Unibanco fazem parte da presidência, do conselho, do Instituto Moreira Salles. Como você vê essa fusão? Para mim, é fundamental, para se conseguir um projeto cultural, que existam instituições e organizações com o sentido de perenidade, de construção de legado, de pensamento estratégico e visão de longo prazo. Se existem instituições assim no Brasil, são as ligadas aos bancos: o Itaú 189


Cultural, o Instituto Moreira Salles, o Centro Cultural Banco do Brasil. Essas instituições conseguem transformar a sua capacidade de ação num projeto de médio e longo prazo, o que é fundamental na perspectiva de construção de política pública. Não se constrói política pública num curto prazo, num evento pontual. O Itaú Cultural tem um programa de edital público há 11 anos, então há uma dinâmica junto aos artistas, ao mundo cultural, e, faça chuva ou faça sol, todo ano, em março, os editais são abertos. O sentido de perenidade do legado está muito presente nessas organizações, e isso é um grande diferencial para quem quer fazer cultura benfeita. Eu sempre faço duas perguntas quando me apresentam projetos: se ele tem condição de ser perene, e qual o legado, qual o rastro que ele vai deixar para a cultura e para a arte brasileira. Se pelo menos uma dessas perguntas tiver uma resposta negativa, esse projeto não merece estar próximo do que a gente pensa de apoio, de fomento, de construção, de difusão de arte e cultura no Brasil. Aí, voltando para o nosso universo, o Instituto Moreira Salles tem essas duas características muito presentes. Eles constituem acervo, digitalizam e difundem esse acervo, estão presentes no país, têm uma série de publicações fundamentais para essa reflexão a respeito do mundo da cultura, que se aproxima muito das características do Itaú Cultural. É interessante que o Itaú e o Unibanco se juntaram agora, mas são duas organizações que tinham espíritos muito parecidos. Os dois bancos vieram de uma série de fusões entre bancos e também são frutos dessa diversidade de pensamentos sobre banco e sistema financeiro. Quando a gente olha para as instituições culturais dessas duas organizações, vê que são muito parecidas na sua origem, com dois importantes patrocinadores, Walter Moreira Salles e Olavo Setubal, e são muito parecidas no seu objeto de trabalho, na sua forma de trabalho. Agora, do ponto de vista prático, o Instituto Unibanco não entrou na fusão, ele é hoje um instituto da família Moreira Salles, e o Itaú Cultural também não entrou na fusão, porque o Itaú Cultural é do grupo da Itaú SA, que é parte da família Villela e Setúbal. O que a gente tem feito, neste momento, é conversado muito mais do que nós conversávamos antes. Talvez esse seja também um dos gaps da cultura: a falta de articulação entre as organizações, a falta de diálogo entre o mundo cultural faz com que alguns projetos sejam sobrepostos e outros nem aconteçam. Então, a gente tem conversado mais, numa perspectiva dos princípios que nos aproximam muito, que é essa questão do legado e da perenidade. 190


A questão da formação de público foi um ponto que pesou bastante na Lei Rouanet, nesses oito anos. Como realizá-la? A formação de público está intimamente ligada a uma outra questão estrutural do Brasil, que é a educação. Não se faz um grande projeto e um grande programa, um grande processo de formação de público, sem dialogar firmemente com a educação. Não se faz um programa de formação de público imediatista. Faz-se um programa de formação de público para vinte anos. Por outro lado, é comum a cultura se aproximar da educação como uma simples e medíocre ferramenta, um instrumento de melhoria das condições metodológicas, pedagógicas do mundo da educação, mas não como um espaço de efetiva transformação e de construção de pensamento crítico. Então, enquanto a educação e a cultura não se juntarem, não para serem instrumentos uma da outra, mas para terem um pensamento estratégico unificado, em que a educação perceba que a cultura e a arte são fundamentais para a construção do pensamento crítico de uma nação, não se consegue fazer um programa de formação de público que tenha, de fato, impacto. O Itaú Cultural está agindo nesse sentido? O Itaú Cultural tem um público de trezentas mil pessoas por ano, com todas as atividades gratuitas. Temos uma série de projetos de formação de professores e um curso gratuito de pós-graduação para gestores culturais. As limitações econômicas não existem, portanto. As apresentações que nós fazemos são de várias matizes, então é possível um impacto sobre um público de x a y. Existem programas para atrair os professores, para que os professores depois tragam os seus alunos. Inclusive, ano passado trouxemos trinta mil crianças de escolas públicas, em nossos ônibus, para realizar atividades do Itaú Cultural. Então, essa aliança entre a educação e cultura é fundamental para se pensar de fato um programa estruturante, para que tenhamos um processo de formação de público mais qualificado. Sem contar o mundo digital, que aí é uma outra história, outra conversa, que passa desde as questões de direitos autorais até a sensibilidade para o mundo digital. Então, esse é uma das preocupações que têm nos ocupado no Itaú Cultural.

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Eliane Sarmento Costa Gerente de patrocínios da Petrobrás.

Você fez física e trabalhou na área de tecnologia de informação da Petrobras. Como você foi parar na cultura? Eu sempre fiz várias coisas ao mesmo tempo. Antes da física, eu já tinha feito o curso normal e o científico. Agora ninguém sabe mais o que é isso, mas normal formava o aluno para ser professor primário e o científico era para quem gostava de matemática. Eu gostava muito dos dois, adorava escrever e também adorava matemática. Os testes vocacionais piravam. Então fiz normal e o científico, um de manhã e outro de tarde, uma maluquice. Quando cheguei ao final do científico, tive que fazer o vestibular e optei pela área de exatas, mas ao mesmo tempo eu fazia pesquisa em música popular brasileira, estudava samba e choro. Cursei física, mas nunca trabalhei na área. Assim que me formei, fiz o concurso para a Petrobras. Naquele momento, em 1974, assim como hoje, trabalhar na Petrobras tinha todo um simbolismo, uma militância. Em pleno movimento contra a ditadura, com o movimento estudantil, trabalhar lá era a afirmação de uma busca por um Brasil que eu queria. Até hoje tenho orgulho da Petrobras. Quando fiz o concurso, o único curso de ingresso na área de ciências exatas que eu podia entrar era o de informática, como analista de sistemas. Era uma coisa que nunca tinha passado pela minha cabeça. Trabalhei nessa área durante 17 anos, se não me engano, sendo 193


que, ao longo desse período, fui migrando mais para a área de comunicação. Paralelo a isso, fui pesquisadora freelancer da FUNARTE (Fundação Nacional de Artes) sobre a história do choro. Sou fundadora de um bloco chamado Escravos da Mauá, onde toco cavaquinho todo mês, na região portuária do Rio de Janeiro. Participei de algumas monografias como pesquisadora. Nesse período, em 1982, pedi demissão da Petrobras e fiz formação em psicanálise. É uma carreira de muitas pontas. Meu pai dizia que eu tinha muita iniciativa e pouca “acabativa”. Só que hoje isso meio que juntou, fez sentido. Fiquei um ano e meio fora da Petrobras e acabei voltando para a área de sistemas mesmo, de informática, mas percebendo que a minha relação não era com o suporte. Trabalhava com o relacionamento com o cliente. Fui gerente de apoio ao usuário, estruturei uma pequena área de comunicação na área internacional. Depois fui para o Órgão de Comunicação Corporativa, institucional, onde tem a área de cultura. Foi uma casualidade baseada no meu gosto: eu sempre trabalhei com cultura fora da Petrobras. Além de fazer pesquisa para a FUNARTE, fui produtora cultural, desenvolvi dois trabalhos em CD-Rom sobre histórias de dois bairros do Rio de Janeiro e acabei ganhando o prêmio América Latina de Multimídia. Fiz um elogio tão entusiasmado de um projeto patrocinado pela empresa que a gerente de patrocínio quis me conhecer e me chamou para trabalhar como fiscal de contrato de música, na área de patrocínios. No final de 2003, ela saiu e eu assumi essa gerência de patrocínios culturais. Para mim, isso foi muito significativo porque juntei as duas vidas paralelas. Ainda mais hoje, que estou fazendo mestrado sobre a questão da cultura digital. Senti que consegui juntar efetivamente meus 17 ou vinte anos de tecnologia, com dez ou 15 de comunicação e cultura. Você tem a preocupação de que os funcionários da Petrobras acompanhem os projetos que a empresa patrocina.Como é essa relação dos funcionários, como eles veem e participam do trabalho de cultura da empresa? Isso é uma coisa que hoje eu venho trabalhando muito na área de comunicação da Petrobras. A ação da Petrobras na cultura é muito mais compreendida e valorizada externamente. Hoje eu dou palestras em diversos lugares, de todos os tipos, e às vezes eu vejo que os públicos para quem eu falo têm mais entendimento da ação da Petrobras na cultura, da expressão que isso tem, do que muitos empregados da Petrobras. Essa questão me intrigava porque eu 194


recebia algumas perguntas e ouvia muito nas assembleias de sindicato que, em vez de a empresa patrocinar, deveria aumentar os salários. É uma falta de compreensão, de não perceber até que são dinheiros diferentes. Quando se fala de apoio à cultura, e principalmente do apoio à cultura com as leis de incentivo, está se falando de uma oportunidade numa questão tributária, e o salário tem uma outra localização dentro das contas da companhia. Então, no ano passado, começamos a fazer uns programas de televisão corporativa, junto com a área de comunicação interna, explicando a questão do patrocínio, que não é absolutamente uma coisa voluntarista, personalista, de alguém que está ali e resolveu patrocinar cultura. Queremos trabalhar o entendimento das pessoas, fazer com que elas compreendam que o patrocínio é uma ferramenta de comunicação da empresa, é também uma ação da empresa junto à imprensa, à publicidade. É uma ferramenta de relacionamento, de comunicação com o seu público de interesse, com os seus investidores, com os seus consumidores, com o público em geral. Num patrocínio, você pode estabelecer oportunidades de relacionamento, não só de comunicação. O patrocínio é uma ferramenta, por isso os projetos têm que ser bem escolhidos. É através dessa ferramenta que você busca comunicar a identidade da empresa. O correto é se pensar uma política de patrocínio que esteja em sintonia com o planejamento estratégico daquela empresa, aonde ela quer chegar, qual a sua visão, a sua missão e quais são os valores associados a ela. Tem empresas que trabalham patrocínio muito na base da veiculação da marca a qualquer custo, disputando mais selvagemente o mercado. A Petrobras trabalha num viés de agregar mais reputação à marca através das suas escolhas, à medida que a marca de qualquer empresa hoje é um ativo da companhia, não só de um ponto de vista conceitual e subjetivo, mas também de valor. A marca da companhia tem crescido barbaramente nos últimos anos, e eu acredito que o patrocínio cultural contribua para isso. O Yacoff Sarkovas falou que, quando começou a montar as políticas de editais, a Petrobras era conhecida por ser uma caixa-preta, o que gerou um problema. Eles precisavam da transparência dos processos de patrocínio. Ele também disse que no estudo de marca a Petrobras queria deixar de ser uma empresa de petróleo para ser uma empresa de energia e que isso era fundamental para o conceito de uma empresa contemporânea. Como você vê essas questões hoje? 195


A Petrobras já patrocinava desde a década de 1980, inclusive o Flamengo e a Orquestra Petrobras Sinfônica, mas não existia uma política de patrocínio estruturada. O Yacoff foi nosso consultor em 2001 e estruturou a política de patrocínios, as prioridades e, principalmente, a estratégia de seleções públicas. Inicialmente, isso foi feito de forma segmentada para música, artes cênicas, curtas-metragens e audiovisuais. Em 2003, quando entrei, juntamos todas essas áreas em um programa só, o Programa Petrobras Cultural. Passava por isso uma indicação de política pública, de fortalecer a questão dos editais, democratizar o acesso às verbas de patrocínio. Nos últimos anos, um dos grandes ganhos da Petrobras na cultura foi ter começado a trabalhar numa sintonia muito grande e muito permanente com as políticas públicas, porque é inadmissível que uma empresa que chegou a colocar em um só ano R$ 205 milhões na cultura andasse para um lado e a política pública, para o outro. A convergência era fundamental. O Conselho Petrobras Cultural conta com a presença de um representante do Ministério da Cultura e o diretor de patrocínios da SECOM, que preside o comitê de patrocínios estatais. É importante que nossas diretrizes estejam caminhando em sintonia com o Ministério da Cultura, sem perda de autonomia para a empresa. É preciso manter um equilíbrio, coisa que nós conseguimos nesses anos. Mais especificamente sobre a pergunta, a opção por políticas públicas é fundamental, e esses processos sempre podem ser melhorados. A concepção de comissões de seleção pública compostas por pessoas externas à companhia foi muito importante porque agregou um olhar muito mais amplo. A Petrobras também participa do processo, é a mediadora, mas não tem direito a voto, que fica a cargo da comissão externa. Essas bases que foram lançadas em 2001, com a consultoria do Sarkovas, ainda permanecem, e foram potencializadas pelo ministro Gilberto Gil, a partir de 2003. E tivemos a felicidade de já estar no meio do caminho. Quando o Gil começou a trabalhar a questão dos editais, da democratização do acesso, com uma profunda preocupação com a questão da diversidade cultural, que foram as marcas de sua gestão, a gente ja estava nesse processo. Então muitos desses valores e práticas da Petrobras já existiam, e foram reforçados. Claro que alguns outros nós incorporamos, como essa questão do patrimônio imaterial, por exemplo, que ganhou muita força na gestão Gil, e que nós incorporamos no edital de 2003. Ou como a questão da cultura digital, que incorporamos em 2007, se não me engano. O 196


edital procura ser dinâmico, não se colocar como uma coisa que já chegou ao seu apogeu. Pelo contrário. Como é a relação com os proponentes contemplados? A Petrobras não é uma empresa de cultura, é uma empresa de energia e tem uma área de cultura, mas não temos uma estrutura que nos permita, por exemplo, comunicar mais e melhor os nossos patrocínios. Tem vários contratos de patrocínio que, quando eu vou ver, já acabaram. É claro, a equipe trabalha, os fiscais de contrato estão lá fiscalizando o patrocínio, o desenvolvimento do projeto, as parcelas desembolsadas, as contrapartidas, os relatórios, mas eu mesma, quando vejo alguns projetos selecionados, tenho vontade de acompanhá-los o tempo inteiro e quando me dou conta já estou assinando o término de desenvolvimento do projeto. A gente não tem tempo. Em 2007, tínhamos mil projetos ao mesmo tempo. É claro que tem coisa para avançar nos editais e na ação de patrocínio. Uma das principais é estimular a articulação entre os patrocinados, o trabalho em rede, mas é mais difícil do que parece. Na prática, ficamos muito envolvidos com a fiscalização, fazer relatório, a burocracia toda. Essa é uma questão importante: como diminuir as amarras burocráticas do incentivo à cultura? Essa estrutura baseada nas leis de incentivo, que a gente tem desde a década de 1990, faz com que as empresas desempenhem um papel preponderante na cultura, na injeção de recursos. Isso trouxe pontos positivos na injeção de recursos, mas também muitas fragilidades, como a concentração em projetos que trazem muita mídia e a centralização regional. Como a maioria das empresas não escolhe via edital de seleção pública, elas acabam apoiando projetos que já possuem visibilidade na mídia, com grandes produtores, principalmente se a empresa estiver focada exclusivamente na divulgação da marca. Sendo um mecanismo de financiamento por empresas, no caso das empresas estatais, somos muito amarrados pela legislação. Temos a Lei 8666, e existe uma série de processos que têm que ser seguidos. No patrocínio, existe a questão da inexigibilidade da licitação, e, por conta disso, temos uma facilitação de processo de seleção. Por exemplo, podemos escolher por edital e também por convite.

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No caso de projetos que a Petrobras considera estratégicos, por exemplo. A Petrobras tem patrocínios por seleção pública e tem projetos que são convidados. O Grupo Corpo e a orquestra, por exemplo, são patrocinados em caráter de continuidade, assim como grandes festivais de cinema. Temos seleção pública para a área de cinema, mas apenas para festivais de médio e pequeno porte. Os grandes festivais são projetos de continuidade da Petrobras, no sentido realmente de uma associação de valores e de marcas, de uma forma mais permanente. Então, tanto ocorre a seleção pública quanto a escolha direta, permitida por essa inexigibilidade da licitação, pela legislação e pelo próprio manual de contratação da companhia. Ano passado, nós tivemos uma CPI. Em vez de fazer o que tínhamos que fazer, que era trabalhar em articulação com a cultura, passei praticamente o ano inteiro falando o que eu faço, escrevendo sobre o que eu faço. Atendi a demandas de como é que faz, como fiscaliza. De uma certa forma, é razoável, na medida em que a gente trabalha com dinheiro que é público, mas encontrar o meio termo entre a burocracia e o zelo pelo dinheiro público é difícil. A Petrobras é uma empresa brasileira, mas também é uma empresa global, que acaba representando a cultura brasileira no mundo, patrocinando iniciativas em outros países e,ao mesmo tempo, construindo uma relação de fora para dentro também, de trazer coisas dos outros países. Como você vê o caminho da Petrobras diante dessa discussão global? A cultura neste mundo contemporâneo desempenha outros papéis, que seriam impensáveis alguns anos atrás. Se a cultura era uma coisa relacionada com erudição, com refinamento, experiências contemplativas, transcendentais, hoje, cada vez mais, a cultura é usada num plano da interseção das agendas econômicas e da justiça social, e sofre impacto da globalização, das migrações. A gente fala da globalização, do fluxo de capitais, do fluxo de mercadorias, mas tem todo um fluxo de gente pelo mundo, migrações voluntárias e involuntárias. Hoje os jovens estudam na Europa, nos Estados Unidos, como, há uns anos, se estudaria na Unicamp. O mundo ficou pequeno, como diz o Gil. Ao mesmo tempo, você tem as migrações involuntárias, os acidentes, as questões ecológicas. Isso faz com que o caráter globalizado do mundo não seja só na circulação das mercadorias, na circulação do capital, que é o que caracterizaria mais esse conceito econômico da globalização, mas também 198


por um fluxo de pessoas e consequentemente de culturas. Aí você tem uma série de questões. A cultura passa a representar, nesse momento, uma forma de mediação de conflito, é um recurso de promoção de sustentabilidade. Então, antes do papel da Petrobras nesse mundo, eu vejo o papel da cultura. A Petrobras está em 26 países hoje, é uma empresa multinacional brasileira. E não só o Lula é “o cara” para o mundo, como alguns personagens já colocaram o Brasil como “o país”. Eu recebo várias pessoas querendo entender como é a política de patrocínio da Petrobras, como uma empresa de energia se relaciona com a cultura, como são os programas socioculturais brasileiros, como é isso de AfroReggae, de fazer cultura em área de conflito. Isso tudo é muito novo. A Petrobras, na medida em que vai para 26 países, é meio confundida com o Brasil. Fora do país, como as pessoas veem sempre o nome da empresa nos filmes brasileiros, acham que a Petrobras é uma produtora de cinema. A empresa é muito confundida com a cultura brasileira. E a cultura brasileira está num momento especial no mundo. Outra questão são as legislações brasileiras, que em várias áreas atrapalham a difusão, tanto nacional quanto internacional da cultura. A Petrobras, ou a produtora cultural Eliane, toma posição em relação a essas leis? Eu participo, me interesso pelo assunto, obviamente, pelo meu trabalho. A Petrobras, em si, só trabalha com a Lei Rouanet. Ela não trabalha com leis no formato de investimento. Por uma opção tributária oficial da empresa, a Petrobras só trabalha com lei de patrocínio, de incentivo, não de investimento. Hoje, com a proposta dos novos fundos, eu não sei como a Petrobras vai se posicionar, porque isso é uma decisão que não é da minha área, é uma decisão da área tributária da empresa, mas temos participado juntos. Quando houve a consulta pública, a minha área estudou essa legislação e as novas propostas, junto com o tributário. Eles colocaram o ponto de vista deles, a preocupação com a perda dos 100% de incentivo fiscal. Eu, pessoalmente, não falando em nome da questão tributárias da Petrobras, penso que as empresas têm realmente que botar um dinheiro não incentivado nos projetos. A própria Petrobras, no meu ponto de vista, poderia ter, pelo papel que ela assumiu na cultura e pelo papel que ela tem na sociedade brasileira, uma ação na cultura menos embricada com a Lei Rouanet. Eu acho que a Petrobras hoje já poderia dar um salto à frente e trabalhar sim com a lei de incentivo, mas dentro 199


da ótica da política cultural sem incentivo, porque a Petrobras trabalha sem incentivo no social, no ambiental e até mesmo em projetos culturais, mas com um viés mais de evento, de relacionamento com praças prioritárias, uma questão mais institucional, mais negocial. Mas isso não é uma posição da empresa. Então há estudos conjuntos dentro da Petrobras, mas os pontos de vista realmente são diferentes. Qual a sua visão sobre a formação de produtores culturais, a formação de mão de obra, a formação de gestores no país? Eu dou aula numa pós-graduação de gestão cultural e de produção cultural. Acho que não há muitos espaços. Andei olhando recentemente os poucos cursos que existem para montar um programa de formação, de capacitação, de atualização para a minha própria equipe de fiscais de contrato de patrocínio, que, na sua maioria, são formados em comunicação, mas não têm uma formação em cultura. Eu acho “super” importante que os fiscais de contrato, até pela interlocução que precisam ter, conheçam mais de cultura. Então eu andei montando um curso customizado para isso, porque eu vejo que em todos esses cursos faltam algumas coisas. Uns são mais voltados para a gestão de empreendimentos culturais, outros são mais voltados para produção de eventos, para área de entretenimento. Eu sinto que falta uma profissionalização maior dos produtores culturais, mas acho que isso está melhorando no mercado. Inclusive, dá para perceber isso no primeiro edital que fizemos do Programa Petrobras Cultural. Se compararmos os projetos daquela época com os de hoje, já se sente que são muito mais consistentes, muito mais articulados. São projetos que já não propõem uma ação isolada, são ações que buscam articulações com outras, com a cadeia produtiva daquele segmento, com aquela região, com a possibilidade de troca com aquela comunidade onde ele se realiza. Isso vem melhorando, mas falta ainda uma ação. A gente tenta fazer alguma coisa assim quando vai divulgar o Programa Petrobras Cultural pelo Brasil. Costumamos fazer uma caravana pelas capitais, quando eu faço uma palestra e depois abro para um debate. Inclusive várias das melhorias do programa nós captamos nesses fóruns. É incrível, você chega em um lugar e tem setecentas pessoas. Eu já tive que repetir a palestra em seguida porque tinha não sei quantas centenas de pessoas na porta. A Petrobras representa uma oportunidade real e, em alguns estados do Brasil, quase que a única. Algumas vezes as empresas locais não 200


estão interessadas em cultura, e não há também o fomento público. Há uma carência, uma demanda muito grande de uma ação mais estruturada, não só focada nas leis de incentivo. Como se libertar das leis de incentivo? Para mim, só tem uma maneira de se libertar das leis de incentivo. Quando falo “se libertar das leis de incentivo’’, não estou falando em “acabar com as leis de incentivo’’, mas criar outras alternativas. A única maneira que vejo de ter mais alternativas é aumentando o orçamento do Ministério da Cultura, que é um caminho que vem sendo trilhado desde a posse do Gilberto Gil. Haver um Fundo Nacional de Cultura forte, os fundos setoriais fortes, porque há uma série de projetos que não cabem nas leis de incentivo. Por mais que o edital da Petrobras não seja focado somente no mercado, tem ações que não cabem nele. Mas, indo além disso, como fazer para que o incentivo não seja a única forma de realizar cultura? Como fazer com que a cultura se torne, em algumas áreas, autossustentável? Acho que esse é o mundo ideal, mas eu não sei até que ponto podemos ter essa expectativa de uma forma mais geral. Quando você vê que as grandes companhias de dança não são sustentáveis, que o cinema não é sustentável, como você vai exigir sustentabilidade de um projeto como o Nós do Morro, que é um projeto sensacional? Como você vai exigir sustentabilidade desses projetos, se você não consegue ter sustentabilidade no âmbito da maior companhia de dança do Brasil? A questão é muito complexa. A autossustentabilidade na cultura seria o melhor dos mundos, mas eu não sei se é possível. Existem caminhos para essa direção? Deve ter caminhos sim. Talvez a gente tenha abandonado alguns caminhos possíveis no bojo do processo que foi priorizado nos últimos vinte anos na cultura. Talvez pudéssemos ter trilhado outros caminhos, e estaríamos em outro lugar hoje, mas também não sei se teria outros caminhos a serem descobertos se não tivéssemos ido pela linha das leis de incentivo, do Estado. Enfim, foi o caminho que aconteceu.

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Luciane Gorgulho Chefe do Departamento de Cultura, Entretenimento e Turismo do BNDES.

Como o BNDES pensa a cultura atualmente? O BNDES, como principal financiador do desenvolvimento brasileiro, passou a considerar a cultura como um de seus eixos de atuação. Isso se tornou mais forte de quatro anos para cá. Anteriormente, o banco já apoiava a cultura, mas utilizando as leis de incentivo para ações de patrocínio, de retorno de imagem. Só mais recentemente é que colocou a cultura dentro das suas políticas de financiamento. Então, hoje, a cultura é um departamento dentro do BNDES. Isso significa que tem uma equipe dedicada a entender melhor os setores ligados à cultura, estudar quais são seus gargalos, suas necessidades de financiamento, e desenvolver produtos financeiros que sejam adequados ao perfil dessas indústrias. Como funciona esse departamento? Como todo departamento dentro do BNDES, ele tem um foco setorial. E os departamentos setoriais se ligam a áreas. A Cultura está dentro da área de indústrias. Existem áreas de infraestrutura, social, e cada um desses departamentos tem uma dupla missão: de entender os setores que pretende apoiar e de executar as ações de financiamento. Então, o departamento é responsável por receber os players de financiamento, analisá-los, e propor à diretoria. 203


O que é o BNDES Procult? O Procult foi um programa piloto, que nós desenvolvemos em 2006, quando começamos a olhar para a cultura com esse novo olhar. Nós entendemos que o BNDES, como um banco de desenvolvimento, tinha que ter um papel diferenciado dentre as outras estatais, como a Petrobras, a Eletrobras, ou das grandes empresas privadas, porque elas não têm o desenvolvimento como parte da sua missão institucional. Dentro desse conceito, nós desenvolvemos um estudo pioneiro, preliminar, sobre o setor audiovisual, baseado na experiência que o banco já tinha, por ter apoiado durante muitos anos a produção cinematográfica, com editais de cinemas anuais. Esse foi o setor eleito para um olhar mais aprofundado, no primeiro momento, para entender a sua dinâmica, os seus elos. A escolha foi realizada principalmente por ser um setor que já conhecíamos melhor, e que tinha um custo de aprendizado menor nesse processo. Nós analisamos o setor em toda a sua cadeia produtiva, desde a produção até a distribuição, exibição, e também o que nós chamamos de infraestrutura, que são empresas que permeiam todos esses três elos. Analisamos a agregação de valor em cada um desses elos da cadeia, e existe hoje, por exemplo, uma dificuldade muito grande de geração de valor no elo da produção. Isso foi muito fruto da estrutura que se criou ao longo dos anos, pelas leis de incentivo, pelo desmantelamento da produção cinematográfica. Já no elo da distribuição, você tem talvez a maior agregação de valor da cadeia, mas é dominado pelas empresas estrangeiras. E se isso, por um lado, através do artigo terceiro, ajuda a financiar a produção nacional, por outro, tem elementos que prejudicam o florescimento da distribuição nacional e da produção de filmes brasileiros. Quer dizer, no Brasil, durante muitos anos, se desenvolveram leis de incentivo muito focadas na produção. Outros elos, especialmente a exibição, ficaram de fora. Não houve praticamente nenhum tipo de incentivo para isso. O resultado é que o parque exibidor brasileiro caiu de quatro mil salas, na década de 1970, para cerca de duas mil salas. Agora, está voltando a se recuperar lentamente, e um dos fatores que está contribuindo para isso são as prioridades de linhas de financiamento do BNDES. O Procult entrou com uma linha de financiamento reembolsável, que é o principal instrumento do banco. Ou seja, é um empréstimo, mas tem características adequadas aos setores culturais. Na política convencional de crédito do BNDES, por força de regras de risco, existem limitações do máximo de risco que o banco pode tomar diante de determinados clientes, e existe também 204


uma classificação de risco que a nossa área de crédito faz, e que estabelece um patamar abaixo do qual nós não podemos emprestar. Além disso, a política do banco é de trabalhar em termos de garantia real, e garantia real significa imóveis e ativos fixos. Isso era uma barreira muito grande para setores que não são baseados em ativos fixos, que não têm fábrica, trabalham com valores intangíveis. Hoje em dia, em geral, o exibidor não é dono do imóvel, da sala de cinema. Ele aluga, é um prestador de serviço, não tem aquela garantia para oferecer. Por conta disso, nós flexibilizamos essas regras internas, tanto de exposição ao risco, quanto das garantias, para poder viabilizar essa linha de financiamento chamada Procult. Por exemplo, em salas de cinema, nós passamos a aceitar como garantia o fluxo de recebíveis da bilheteria. E, em termos de limite de exposição ao risco, flexibilizamos, no âmbito do Procult, até R$ 10 milhões por grupo econômico. Nós podemos emprestar para cada grupo econômico, grupo de empresas, até R$ 10 milhões, abrindo mão das regras de risco genéricas que o BNDES segue. Há uma preocupação de fomentar e desenvolver microcrédito cultural para empresas mais ágeis, para pequenas empresas? Além das linhas de crédito diretas, o BNDES tem outros instrumentos, e também uma preocupação muito grande de reforçar o microcrédito, de desenvolver formas de financiar os setores formados por empresas de menor porte, como as microempresas e médias. Isso em qualquer setor, não só cultural. Então, para isso, o BNDES tem dois instrumentos principais: uma linha de crédito automática, chamada BNDES Automático, e o Cartão BNDES. O Cartão BNDES talvez seja o mais interessante para a área cultural. Ele funciona como um cartão de crédito empresarial, com o qual a empresa recebe um limite de crédito rotativo e tem prazo de quatro anos para pagar, com uma taxa de juros bem mais competitiva do que a dos cartões de crédito tradicionais. Isso tem viabilizado muitas micro, pequenas e médias empresas a terem acesso a financiamento. E o esforço que nós estamos fazendo é de incluir cada vez mais bens culturais no rol de produtos acessíveis a esse cartão BNDES. O que são esses produtos culturais? Desde equipamentos, instalações, montagens, computadores nacionais, instrumentos musicais. Praticamente qualquer bem produzido no Brasil pode ser adquirido, basta o fornecedor daquele produtor se credenciar para isso. 205


Não trabalhamos ainda com serviços. O BNDES começou a inserir, no Cartão BNDES, os serviços ligados à questão da inovação, à pesquisa científica, universitária. Isso já é um primeiro passo para começar a tentar abranger os setores de serviços, que são um pouco mais difíceis de controlar, de apropriar. Fale sobre a articulação que o BNDES fez com o BNB, que é sempre citado como exemplo de sucesso. Essa articulação com o BNB foi realizada com recurso não reembolsável, que é chamado “a fundo perdido”. Esse recurso, no BNDES, é bastante escasso. Enquanto o BNDES fez o desembolso de R$ 120 ou R$ 130 milhões, no ano passado, para todos os setores industriais, apenas 1% disso é recurso não reembolsável. A parceria com o BNB é um edital de apoio a pequenos projetos culturais com recursos não reembolsáveis. Apoio ao desenvolvimento de projetos, em vários setores, de linguagem das artes, sempre na região nordeste. A forma com que eles trabalham é interessante, com oficinas de capacitação dos proponentes. É um trabalho muito bonito, que vem a cada ano mostrando mais resultados concretos. O que nós fizemos foi aumentar os recursos que o BNB tinha disponível, que de R$ 3 milhões por ano passou para R$ 6 milhões, e eles puderam apoiar mais projetos e com valores maiores. Essa foi uma ação de atender ao segmento dos pequenos. Lógico que não conseguimos atender diretamente, nós somos um banco sem agências, temos uma sede única. O BNDES é um banco voltado para grandes projetos, então a gente tem que ter criatividade para conseguir atender pequenos projetos, e essa é uma das formas, através de parcerias com outras instituições financeiras. Estamos pensando outras ações não reembolsáveis, que estão ainda sendo estruturadas, dentro do escopo de ações estruturantes da cadeia produtiva da cultura. Como o BNDES vê a importância da economia criativa no mundo hoje? Cada vez mais os setores criativos e culturais vão ganhar espaço no mundo, e o Brasil está começando a despertar quanto a isso. O fato do BNDES ter colocado esse assunto dentro da sua missão, de uma forma mais organizada, é um sintoma disso. Pensando em um horizonte mais longe, essa civilização que a gente tem hoje, baseada no consumo de combustíveis fósseis, com desrespeito ao meio ambiente e muitas desigualdades sociais, certamente acabará. Isso não pode se sustentar por mais tempo. E o que vai substituir 206


isso são os setores intensivos em tecnologia, para minimizar o consumo de recursos naturais e sofisticar o uso dos recursos escassos do país. E, certamente, os setores culturais e criativos. O crescimento de setores de serviços, de conteúdo, lazer e entretenimento, é estratégico para se pensar a geração de renda, de empregos de qualidade, mais bem remunerados. São setores que podem contribuir, inclusive, com a formação cultural e educacional da população. Isso é uma tendência mundial, e o Brasil tem que atuar nela. Como gestora, você acredita que um edital público é um instrumento, ou é uma política de desenvolvimento? Pode ser as duas coisas. No BNDES, nós utilizamos os dois instrumentos: em alguns casos, edital, em outros casos, a política de apresentação de projetos. Lembrando que no BNDES toda a estrutura decisória tem uma governança muito forte, até porque a cultura não é tratada como um patrocínio de gabinete e de presidência, ela está dentro da estrutura do banco. Qualquer projeto que está pleiteando recurso entra, preenche um caderno chamado Consulta Prévia, com todas as informações necessárias, que é então analisado pelo Departamento de Prioridades, para avaliar se aquele tema está aderente às políticas operacionais do banco. A partir daí se faz uma instrução de enquadramento, que vai para o comitê de todos os superintendentes, para ser avaliado o mérito daquela proposta. Só depois disso tudo é que vai para o que a gente chama área operacional, onde eu trabalho, para que seja feita uma análise mais aprofundada da parte jurídica, financeira, econômica, de mérito. Então, é um processo mais profundo, que depois passa pela superintendência, assessoria jurídica, e vai para reunião do colegiado de diretoria. Tem muitos mecanismos de governança e, mesmo em casos em que não se utilizam editais, você garante um processo com lisura, com transparência. O edital é um instrumento muito útil quando se pretende atingir um universo que não se conhece bem, e em que existe uma dificuldade de aproximação. É uma convocatória, abre-se o edital, divulga-se, e fecha-se essa janela. É um instrumento propício quando o cliente está muito espalhado, não conhece a empresa e a empresa não o conhece. Serve também como um instrumento de marketing, de certa forma, porque você está dizendo que existem recursos disponíveis. É uma forma, inclusive, de mapear o mercado. E ele pode até ser um processo temporário. Depois de alguns anos com edital, é possível identificar aquele segmento, de uma forma tão íntima e profunda, que se podem 207


desenvolver ações permanentes, que não dependam de uma abertura de edital, de uma convocatória. Enfim, eu acho que é um instrumento excelente. Essa é uma questão interessante, porque uma coisa é fomentar ações, outra coisa é fomentar processos a longo prazo. O BNDES pensa nesse fomento a longo prazo para os seus parceiros? Pensamos, com certeza. Obviamente que no setor de audiovisual, que nós conhecemos melhor, já temos mais instrumentos desenvolvidos para isso, e temos mais resultados. Nos outros setores estamos começando a conhecer e a atender. Nós temos um edital de cinema desde 1995. Ao longo desses anos houve um conhecimento desse mercado, de quem são esses produtores, como se dá a dinâmica desses agentes, e com isso nós desenvolvemos as linhas de financiamento. O BNDES tem este estilo: para qualquer setor de atuação, ele faz um diagnóstico prévio, para saber onde está o gargalo, onde pode haver um desenvolvimento mais agregado ao recurso, que é o que a gente tem a oferecer. O banco é um forte financiador hoje dos mecanismos de integração na América do Sul, por exemplo, das estradas que ligam o Brasil ao Pacífico de uma forma muito mais estruturante. Chega ao Departamento de Cultura todo o aspecto de integração cultural, com essas próprias estradas e canais, que o país abre para o Pacífico? Sinceramente, não. O que existe no banco é uma tentativa, e isso vem crescendo nos últimos tempos, de não tratar a questão do impacto cultural, do impacto social, como uma esfera, um conhecimento do Departamento de Cultura, ou da área social. Isso é tratado em todo o banco. O BNDES, hoje, financia qualquer grande projeto, como uma hidrelétrica, um polo industrial, estrada, ferrovia, o que seja, e tem uma preocupação de minimizar o impacto no entorno. Para isso existe um subcrédito, uma parte do recurso que pode ser emprestado ao cliente com custo zero, para que ele faça investimentos sociais. E o próprio BNDES tem os seus recursos próprios não reembolsáveis para fazer ações que minimizem os impactos negativos e potencializem os impactos positivos de qualquer novo empreendimento que esteja sendo financiado. Essa é uma estratégia forte, que está sendo colocada dentro do banco nos últimos quatro anos, principalmente. E, aos poucos, está acontecendo uma troca de experiências. 208


O que é economia criativa? Existem vários conceitos. No BNDES nós adotamos mais economia da cultura do que a economia criativa. Existe a criatividade técnica, que é o que deriva para inovação, para o software, para o desenvolvimento usando a tecnologia, e existe a criatividade mais autoral, de conteúdo. Esse lado da economia criativa mais técnica o banco, de alguma forma, já apoia. São as empresas de softwares, de telecomunicações, fármacos. Toda a parte de inovação mais afeita à pesquisa científica já é uma área de atuação do banco. Então, a novidade é a economia da cultura, que são esses outros setores que, anteriormente, eram apoiados, mas com uma ótica de patrocínio, e que agora passaram a ser vistos como setores meritórios de receberem créditos, se desenvolverem e terem políticas públicas. Quando se tem o conceito de economia de cultura, quer dizer que o BNDES reconheceu a cultura nesse sentido? Ele reconheceu principalmente por ter um departamento para isso, ele botou na sua estrutura operacional uma equipe que tem essa missão. Hoje, na verdade, o departamento é cultura, entretenimento e turismo. Porque, em alguns aspectos, existe essa sinergia, e também porque não dá para ter um departamento para cada coisa. Então, existem hoje, dentro da estrutura operacional, profissionais dedicados a esse tema, e uma política com uma dotação orçamentária bastante grande nas suas diversas linhas: reembolsáveis, não reembolsáveis e renda variável. No banco, chamamos de variável quando o banco participa como investidor, como sócio, seja através de uma participação acionária minoritária, na empresa, seja através de um fundo de investimento. Existem vários fundos de investimentos e, particularmente no setor cultural, tem os Funcines e os Ficartes. O banco já atua com Funcines e pretende atuar também com o Ficarte. Em ambos instrumentos, o investidor é ou sócio do projeto, ou sócio da empresa, e participa dos resultados. Se tiver resultado, recebe uma parte; se não tiver, não recebe. Ou seja, é recurso investido. Então, temos esse mix de instrumentos, o empréstimo, o investimento e o não reembolsável, que, utilizados de forma organizada e planejada, podem dar bons resultados.

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Roberto Smith Presidente do Banco do Nordeste.

O que é o Banco do Nordeste e qual é sua posição com relação à cultura? O Banco do Nordeste tem uma faceta diferenciada, pois não se trata apenas de um banco. Ele se insere numa região deprimida, que se ressente de indicadores muito rebaixados com relação à média brasileira. A impressão que tenho é de que o Banco do Nordeste precisa se provar muito mais do que outras instituições para conseguir um lugar de respeitabilidade a nível nacional. Contribui para isso a visão escarninha que geralmente se tem sobre os atrasos da região, como se os elementos responsáveis pelo atraso fossem um estigma popular insuperável, algo que joga em descrédito todas as áreas da vida de um povo. O Banco do Nordeste faz esforços imensos para estar inserido em tudo que acontece no país e nos centros de decisão. Ele tenta operar uma ampla faixa de ações, nem sempre voltadas para objetivos comumente tidos como centrais. Isso muitas vezes passava uma ideia de que éramos um banco que não foi feito para dar lucro. Essencialmente, somos um banco de desenvolvimento regional, possivelmente o maior da América Latina na área de microcrédito rural e urbano. Aos poucos, temos conseguido provar que somos uma instituição modelar, em função de nosso rigoroso trânsito por vários setores que não necessariamente caracterizariam a atuação de um banco. Quanto à cultura especificamente, nós a entendemos como vetor da questão da 211


valorização e do desenvolvimento regional. Não vemos a cultura apenas como aproveitamento das leis de incentivo fiscais, como fazem outras instituições, para promoção de marca e de pontos estratégicos de marketing. Isso deu ensejo ao desenvolvimento de uma concepção de cultura muito mais ampla do que aquelas que estão normalmente atreladas a fatores de ordem mercadológica. Como o senhor analisa o desenvolvimento econômico do nordeste neste momento da história do Brasil? Somos um banco de desenvolvimento. Portanto, trabalhamos sobretudo com crédito, financiamento de longo prazo. Atendemos a investimentos e atuamos como elemento desencadeador do desenvolvimento regional, que é questão prioritária para nós. Nossos estudos mostram que existe uma boa integração da economia nordestina com a economia nacional. Se a economia nacional cresce, a economia nordestina também cresce. O mesmo valendo para movimentos contrários. Existem fatores de diferenciação, no que tange à presença e à participação no mercado interno. Como os padrões de emprego e de consumo são tradicionalmente rebaixados no Nordeste, uma política voltada para melhor distribuição de renda no país (algo que vem ocorrendo pela primeira vez na história do Brasil) tem um efeito muito marcante naquela região, porque é uma área muito deprimida. A resposta em termos de aumento no consumo é particularmente forte. Há toda uma reanimação do que seria um mercado interno, conceito lacunoso no que tange ao Nordeste. Celso Furtado colocava que o mercado interno não se desenvolvia em função de um padrão de economia escravocrata. Mas a questão de não haver um desenvolvimento no mercado interno está vinculada a uma série de outros fatores, que estão sendo rompidos agora mediante políticas sociais. Políticas que começam a integrar um contingente populacional há muito marginalizado. Os indicadores evidenciam uma lenta diminuição da distância que separa a economia nordestina da média da economia brasileira. Como o senhor se posiciona quanto à questão de infraestrutura, tanto de modo geral como no caso específico da cultura? O banco é um grande financiador da infraestrutura em geral. Entendemos esse elemento como algo capital, no sentido de manter a economia nordestina dentro dos padrões que vêm permeando a economia brasileira. Como afirmei, não o bastante para que haja uma recuperação realmente decisiva e 212


rápida do diferencial, em relação à economia brasileira. Porém, o Banco do Nordeste desempenha um papel muito importante nesse processo; somos hoje responsáveis por mais ou menos 60% da carteira de investimentos na região, e somos responsáveis por 35% de todo o crédito da região. Isso nos coloca entre as maiores instituições regionais ou nacionais. Atualmente, estamos em oitavo lugar no ranking bancário brasileiro. Dentro das linhas de financiamento do banco, tentou-se um apelo mercadológico via financiamento cultural. Gostaria de salientar que os resultados ainda são bastante pífios. Portanto, ainda que haja alguma movimentação nesse sentido, a infraestrutura da área cultural segue muito precária. Nossa percepção é de que esse é um fator importantíssimo na estruturação do desenvolvimento regional. É verdade que os centros mais dinâmicos da economia têm o condão de reunir todo aparato de produção e geração cultural, e que atraem fortemente todas as expressões culturais para essas áreas mais desenvolvidas, que muitas vezes se encontram fora do próprio Brasil. Durante cinco eleições, o edital do BNB de Cultura patrocinou 1.131 projetos, beneficiando diretamente 474 municípios. Por que vocês optaram por essa descentralização? Isso é uma opção nossa que se estende também aos padrões de atendimento de crédito dos investimentos. Não queremos que essas aplicações sofram uma excessiva centralização e, no caso específico de um edital, parece-nos apenas justo que o maior número de estados e municípios seja atingido. Creio também que nossos editais sejam bem recebidos justamente porque são concebidos de uma maneira democrática. Queremos ampliar o acesso ao debate e promover uma interlocução com toda a classe cultural. O banco atua nos editais no norte de Minas e norte do Espírito Santo. Por que essa configuração? O que caracteriza nossa participação nessas áreas é a questão do semiárido. Em torno de 60% da área do nordeste se enquadra no semiárido, cujo padrão de identificação é o baixo nível de pluviosidade, até 500 milímetros/ ano. Essa região do norte de Minas e norte do Espírito Santo se enquadra também nesse padrão regional, que foi abarcado pela SUDENE. Portanto, o banco – sendo Banco do Nordeste – abarca também essas duas áreas, dentro do contorno estabelecido pelo quadro operacional da SUDENE. 213


Como o senhor encara projetos em pequenos municípios e a questão do microcrédito cultural? Lembro de ter lido em algum lugar – assim que assumi o banco – a respeito de um professor carioca que doara uma enorme biblioteca para sua cidade natal, nos confins de Alagoas. Entrei em contato com esse professor e fiquei sabendo que, a partir dessa doação, o município organizara um centro cultural que realmente estava fazendo a diferença. Portanto, decidi fazer uma doação, para esse mesmo município, de 10 computadores que o banco iria vender. O efeito disso foi enorme. Os jovens do município começaram a trabalhar com teatro, música. Em suma, alguma efervescência começou a se estabelecer. Sabe-se que, no interior do país, essas oportunidades são praticamente inexistentes. Perpassam inevitavelmente a construção de pequenos cinemas, bibliotecas, centros de cultura. Pois, fiquei remoendo isso e comecei a conversar com o pessoal do INEC – nosso Instituto de Cidadania do Nordeste, uma OSCIP. Dessas conversas, acabou brotando a ideia de montar algo como um foco de cultura autossustentável em pequenas cidades onde não havia nada e onde pudéssemos jogar um pedaço de nosso microcrédito, do Agromigo, do PRONAF. Depois de mais algumas discussões, optamos por realizar a experiência-piloto em Pedro II. Onde fica Pedro II? É um município interessante do Piauí, a uns cem quilômetros da fronteira com o Ceará. Por conta da incidência da opala, surgiu lá todo um processo de confecção de joias. É uma região que possui uma cena cultural, um festival de inverno. Nosso pessoal foi para lá e começou a mapear a cidade. Começou o contato com a ONG que cuidava da questão ambiental, e com a Maçonaria local. Juntamente com o banco e o Instituto Cidadania, formou-se um mutirão baseado no Centro Cultural e de Negócio. O custo disso, diga-se de passagem, foi bastante baixo: em torno de 30 mil reais. Doamos alguns computadores, e a ONG usou recursos próprios no redirecionamento. A coisa começou a deslanchar. Seguimos então para Guaribas, outra cidade do Piauí. Lá, ganhamos da prefeitura uma pequena casa em frente à praça. Foi um trabalho muito caracterizado pela mobilização espontânea. As pessoas da cidade tinham sede disso. A partir desse movimento, recuperaram a praça, pintaram, ladrilharam. Organizamos uma sessão de cinema para a inauguração. Já estruturamos um mercado de venda de animais, com financiamento 214


do banco. O prefeito ficou entusiasmadíssimo. Ele não acreditava que aquela revitalização fosse possível a custos tão baixos. Estamos avançando nisso, hoje. O projeto – chama-se “Cresce Nordeste Cultura” – já conta com mais 30 unidades dessas pelo nordeste. O Ministério da Cultura entrou no projeto também, porque eles têm os Pontos de Cultura. Mas os pontos não têm essa virtude da autossustentabilidade. Eles dão recursos por três anos, e depois a coisa pode morrer. Como se estrutura a formatação financeira? Existe uma área que empresta, faz os contratos de microcrédito do PRONAF, e isso gera uma movimentação de aplicação no banco, cujos resultados são o bastante para manter um centro desses. Porém, o que acho importante salientar é que esses centros de cultura e negócio não partiram propriamente do banco. Foram muito mais uma iniciativa da comunidade. O centro se estrutura e se organiza em função do desenho que a própria comunidade – em parceria com o banco, o INEC, e suas próprias forças vitais – coloca. Sou grande entusiasta desse tipo de projeto, que tende a brotar de iniciativas próprias, e não de uma instituição forte, ou de um governo arbitrário. Dessa maneira, a comunidade é o sujeito da gestão. Por que isso não é visto como demanda real pelo setor bancário como um todo? Bom, creio que seja importante dizer aqui que o grande demandante do microcrédito, atualmente, é o setor comercial, strictu sensu. A demanda do setor cultural ainda é relativamente baixa, por conta de questões estruturais. O que me traz a outro ponto: os setores culturais, no Brasil, se acostumaram a uma grande dependência de um Estado supostamente benemérito. Essa dependência faz com que os projetos percam sua capacidade de autogestão e autoestruturação. Mas creio que exista um campo muito grande para alcançarmos. O Nordeste tem fatores relevantes que ainda não foram explorados devidamente, pois sua formação socioeconômica é muito distinta com relação ao resto do país. Por exemplo, o Nordeste não foi tão amplamente abordado pelas correntes migratórias quanto o Sul e o Sudeste do país. Por quê? Não foi apenas o clima proibitivo, como querem alguns historiadores. O que aconteceu foi um fechamento precoce das terras nordestinas, sobretudo para a agricultura canavieira e, na esteira disso, para a pecuária. O imigrante não 215


se sentia atraído pelo nordeste porque não havia terras lá, e a migração toda se baseia no sonho de se tornar proprietário. Em verdade, quase ninguém se tornava proprietário. A maioria era obrigada a trabalhar dentro dos regimes, e hoje em dia vemos como prosperam a cana-de-açúcar e o café no sul do país. Porém, no nordeste, as correntes migratórias não vieram em função dessa impossibilidade de se tornar proprietário de terra. Com isso, tivemos uma formação social em que certos valores mais tradicionais ficaram preservados da influência indígena, negra, portuguesa. É isso que caracterizou nossa formação, o sotaque, a música, a arte. Tudo isso em meio a um programa de real crise econômica que pega o nordeste logo nos primórdios, em função da crise da cana-de-açúcar. Isso gera fatores interessantes, mas que muitas vezes entram naquele quadro de desprezo e desvalorização ao qual aludi há pouco. Aos poucos, esses traços começam a se mostrar mais em nossa geleia cultural, em conjunto com influências mais modernas. Mas são aspectos de nossa formação histórica que permanecem no cerne de nossa sociedade. Como o senhor vê a questão da indústria do carnaval no nordeste? Como o senhor se posiciona quanto aos dilemas e contradições engendrados pelo turismo cultural? Não gosto da indústria do carnaval. Esse carnaval que brota na Bahia é algo interessante em sua origem, mas que acaba se perdendo numa exploração econômica. É uma forma de lazer que alija muito as pessoas. Toda a estruturação da venda de abadás, por exemplo. O carnaval levado dessa maneira é, a meu ver, uma negação de toda alegria, toda a excitação inerente ao carnaval. Estão fazendo algo parecido com as festas juninas do Nordeste, instaurando concursos de quadrilha e coisas parecidas. Enfim, acaba caindo no estereótipo. O senhor poderia falar um pouco sobre os centros culturais do Banco do Nordeste? Quando assumi, já tínhamos o Centro Cultural de Fortaleza, que ainda não havia visitado. Quando fui lá pela primeira vez, fiquei entusiasmadíssimo – inclusive por descobrir que meus filhos já o frequentavam há tempos. Nosso centro cultural tem uma fluência média de 1.500 pessoas por dia. 1.000 só para a biblioteca. Em todos os nossos centros culturais, as áreas mais procuradas são justamente as bibliotecas, o que me dá certeza quanto à importância do trabalho que estamos desenvolvendo. Quando assumi o banco, comecei a 216


viajar por todos os lugares onde tínhamos agências. Na agência de Juazeiro havia quatro andares desocupados, guardando lixo. Fizemos o Centro Cultural lá, e deu certo. Essa política de aproveitamento para espaços desocupados levou-nos a realizar a mesma coisa em Souza, na Paraíba, onde a agência local tinha um andar inteiro fazendo as vezes de lixeira. Em Souza escreve-se muito. É um povo com valores literários, que resolvemos cultivar. Nunca me esqueço de quando inauguramos o centro de Souza. A rádio local criticava-nos o tempo inteiro, dizendo que o Centro não passava de fogo de palha, uma atitude que o Banco do Nordeste tomava só para se mostrar, mas que em seis meses já teria acabado. Porém, o Centro cresce cada vez mais. Tivemos de ampliar a disponibilidade de horário e da equipe, porque a demanda é tão grande. Isso só vem nos mostrar o quão corretos estamos em nosso trabalho com a cultura. É um trabalho que joga fortemente com fatores como a formação de público, a valorização da leitura, do teatro, de todos os eventos culturais. Só gostaria que pudéssemos avançar um pouco mais com o cinema, porque acho essencial. Em suma, somos um banco de desenvolvimento, e desenvolvimento se faz com alma. Qual é a alma do desenvolvimento? A cultura. Desenvolvimento sem cultura é um desenvolvimento capenga. O que será o Nordeste daqui a 10 anos? Pensando o planejamento estratégico do banco, quais as suas previsões? Sou otimista. Acredito nas pessoas, acredito que as coisas vão melhorar. Outro dia encontrei um agricultor, que é cliente do banco, e perguntei para ele como iam as coisas. Sua resposta: “Ó, doutor, se melhorar, vai ficar muito melhor”. Ouvir essas coisas é muito alentador para mim, especialmente quando vêm de pessoas do povo, que têm carências reais e urgentes. Geralmente, quando se pergunta como estão as coisas, as respostas vêm com uma carga de negatividade imensa. Esse senhor sabe que estamos construindo uma história, um futuro. Sempre fui vidrado nesse tipo de pensamento. Sou um militante pela vida.

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Danilo Santos de Miranda Diretor do SESC de São Paulo.

Danilo, como você começou a trabalhar com cultura? Eu entrei no SESC em 1968, como orientador social, que era um trabalho que abrangia a área da cultura, entre outras. Sou uma pessoa com uma formação aberta, muito genérica, ligada às humanidades, e sempre fui ligado ao mundo da cultura. As artes plásticas, o cinema, os espetáculos em geral, leitura, música, sempre fizeram parte do meu universo pessoal e familiar. Sempre foi matéria fundamental de consumo diário. Fui aluno de padres jesuítas, que são reconhecidos pela formação intensa e rigorosa que propõem. Então fui educado com muita leitura, muita reflexão, com variedade de informação e, sobretudo, conhecimento dos clássicos. Os clássicos da literatura universal, os grandes nomes da literatura grega, latina, que para a civilização ocidental são fundamentais. E depois, mais tarde, os clássicos da música e da literatura moderna. Eu só fui mergulhar na cultura brasileira na mesma época em que comecei a trabalhar no SESC. Eu entro no SESC para poder realizar de uma forma profunda e contundente aquilo que eu imaginava como algo absolutamente adequado para o meu futuro profissional, que era trabalhar com os meus interesses sociais e culturais. Eu comecei a trabalhar nas unidades móveis de orientação social, que mobilizavam as comunidades, especialmente no interior, debatendo e propondo ideias para a sua transformação. Isso em plena época da ditadura brasileira. 219


Você também trabalhou no Senac, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial, não foi? Sim, um pouco mais tarde eu me transferi para o Senac, porque é uma instituição ligada ao SESC, voltada à questão da formação profissional. A nossa função no Senac era a de discutir a amplitude desse conceito, trabalhando a formação profissional não apenas do ponto de vista da transmissão da técnica, ou de tecnologia, mas também com arte e cultura. Eu fiquei no Senac por bastante tempo. Nesse período, houve um esforço das entidades, tanto do Senac quanto do SESC, para aprimorar os seus profissionais, os seus executivos, e eu tive a oportunidade de viajar para a Suíça e fazer um curso no Management Development Institute, o IMEDE, que é uma importante instituição suíça. Foi um curso bastante expressivo e forte, sobretudo no campo da administração. O curso era mais ligado à questão da informação e do preparo de especialistas para a alta administração: finanças, marketing, administração de pessoal no sentido mais amplo. Fiz esse curso em 1977, e ele foi muito importante profissionalmente para mim. Em 1984, eu entrei no SESC já como diretor regional, convidado pelo presidente. Como foi essa virada institucional do SESC, na década de 1970? O SESC é, desde sua origem, uma instituição ligada à questão do bemestar social. Entende o bem-estar social de uma maneira muito abrangente, muito completa. É uma instituição criada no decorrer dos anos 1940, visando, sobretudo, atender à categoria dos profissionais da área de comércio e serviços. Esse foi o objetivo do SESC, assim como o do SESI, o Serviço Social da Indústria, era atender os objetivos dos trabalhadores do seu setor. Num programa de bem-estar social, existe uma vastidão de questões ligadas à saúde, educação básica, à questão do próprio lazer, do esporte, da cultura. Um governo, quando pensa no bem-estar da sua população, está pensando em transporte, vestuário, habitação, educação, saúde. O SESC, portanto, tinha como objetivo trabalhar essas questões. Aí, numa visão estratégica bastante interessante, o SESC optou por atacar aquilo que era mais abrangente, por meio da educação e da cultura. Se você atacar de fato, de uma maneira completa e inteligente, um plano de educação e cultura para a população em geral, de alguma forma essa população será capacitada e vai não apenas evoluir, do ponto de vista da sua educação e da sua cultura, como também atender a outras perspectivas importantes. Explicando melhor: se 220


você atende a alimentação, habitação, transporte, vestuário, saúde, e acha que está resolvido, você, de alguma forma, mantém a população num quadro de dependência permanente do atendimento dessas necessidades. Se você não ampliar esse quadro, atuando no campo da educação e da cultura – e aqui a cultura no sentido bem amplo, não apenas da arte e do espetáculo –, você não resolve a questão. O Programa Bolsa Família, por exemplo, é importantíssimo, mas não terá a menor condição de atender a necessidade da população a médio e longo prazo, se não vier acompanhado de um processo de educação e cultura. O Mário de Andrade, quando secretário de Cultura, monta os PIs, os parques infantis, onde ele juntou teatro e piscina. Teatro e piscina combinam? Tem tudo a ver. O Mário de Andrade foi um propositor fundamental. Eu o considero o grande patrono da cultura brasileira. Mário de Andrade tem uma grande importância. Não apenas na Semana de 1922, que, para mim, é basilar, é a inauguração da cultura autóctone, da cultura verdadeiramente brasileira, um grito de independência da cultura. Mário de Andrade, além de ter sido um artista, um escritor, um pensador, foi um propositor. Ele foi um gestor, o primeiro grande gestor cultural deste país. E, como gestor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, ele criou esses parques infantis que aliam a questão da atividade cultural propriamente dita com a questão da atividade física: piscina, quadra poliesportiva. É essa ideia que fundamenta a proposta do SESC até hoje. Considero isso muito importante. E é curioso, porque às vezes recebemos visitantes estrangeiros em nossas unidades, e eles se espantam um pouco, dizendo assim: “Puxa! Mas vocês, além de teatro, de atividade cultural, têm esporte aqui?” Como se fosse um escândalo fazer isso, mas essas duas atividades são necessárias para o bem-estar. Nós não somos uma instituição de cultura, de esporte, de atividade social, de alimentação pública ou de qualquer outra ação isolada. Nós somos uma instituição voltada para o bem-estar social. O que chamamos de qualidade de vida e educação permanente. O que é o agitador cultural? O agitador cultural é o indivíduo que estimula a população a desenvolver o seu interesse no campo cultural. Não necessariamente é um professor de literatura ou de cinema, não é um cara que vai lá dar aula. É uma pessoa que 221


vai estimular o pensamento, a reflexão, o debate. É um animador. Isso tem a ver com uma proposta francesa dos anos 1950, que revolucionou a ação cultural na França. Então, muito mais importante do que produzir eventos, ou até mesmo uma programação cultural, é oferecer uma proposta permanente de reflexão em torno daquilo em que as pessoas têm interesse, sobretudo no interior do país. Aí eu abro um parêntese importante: ultimamente, no Brasil, temos um desempenho econômico extraordinário. Estamos crescendo, desenvolvendo, melhorando a vida das pessoas das classes C e D e também de outras categorias, mas o desenvolvimento econômico esvaziado do desenvolvimento cultural – essa frase não é minha, mas eu a acho fundamental – é escola de fascismo. Em uma sociedade em que as pessoas têm acesso aos bens materiais em grande escala, também tem que existir uma proposta de reflexão social, dos problemas das diferenças de classe, dos problemas dos excluídos. Tem que haver uma discussão sobre as questões culturais e comportamentais, sobre as diferenças. Se eu não tenho isso embutido nesse processo, eu formo uma sociedade absolutamente reativa do diferente. A cultura é fundamental para a transformação e evolução da sociedade brasileira, não apenas do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista educacional e cultural. Isso é absolutamente indispensável. A China anunciou há pouco um investimento maciço em indústria de animação e economia da cultura. A Índia tem um forte desenvolvimento em audiovisual, no planejamento estratégico e econômico de desenvolvimento. É preciso um pensamento estratégico de cultura também para o Brasil? Essa é uma questão bastante ampla. Você está trazendo questões, elementos e considerações de ordem mundial. É um fato. Eu estive agora na cidade de Hong Kong e percebi lá dois movimentos muito interessantes. De um lado, a presença exacerbada de uma sociedade do consumo. Não quero fazer considerações tiradas apenas de observações de alguns dias, mas Hong Kong me dá a impressão de ser um imenso shopping center, uma cidade onde o consumo rege, estabelece, cria condições de maneira bastante intensa. Isso reflete uma China um pouco diferente. Hong Kong é uma China ainda ocidentalizada, é uma China que está saindo do controle europeu, inglês, e passando para o controle chinês. Não é uma cidade típica chinesa, mas ela é muito representativa. Na China nova, nos deparamos com prédios altíssimos, de cento e tantos andares, vidro e aço para todos os lados. Uma coisa impressionante. 222


Isso realmente é uma pujança fantástica. Do outro lado, percebo claramente um esforço descomunal para se ter uma presença forte da cultura: novos museus, modernos, avançados, com tecnologia de primeira linha. Um centro de convenções com uma série de possibilidades de discussões e debates. Há esta tendência lá: a valorização cultural de um lado e a pujança econômica do outro. O Brasil precisa projetar seu crescimento também. Nós, no SESC, estamos planejando o futuro da instituição, então temos que pensar no crescimento da cidade, do estado e do país permanentemente. Planejamos uma expansão do ponto de vista físico: construir novas unidades, colocar mais equipamentos à disposição da população, como está acontecendo na cidade de São Paulo. São cinco novas unidades sendo planejadas para os próximos quatro anos. Uma delas, o SESC Belenzinho, está em fase final para ser inaugurada até o final do ano de 2010. É maior que o SESC Pompeia. É uma unidade com três teatros, com um equipamento fantástico, com uma piscina muito grande etc. Do ponto de vista conceitual, percebemos que a ampliação do conhecimento, a educação permanente, é um assunto cada vez mais presente no interesse da população. Por isso estamos ampliando nossas mídias, a nossa presença na rede, a nossa presença via televisão. Enfim, desenvolvendo o nosso trabalho de tal forma que possamos atingir um número cada vez maior de pessoas, porque sabemos que essa questão tem um caráter essencial para a população. Nós não lidamos com o supérfluo. Nós não lidamos com a cereja do bolo, como antes a cultura era tratada. A cultura hoje precisa ser vista como uma questão importante política, econômica e socialmente. Como é a formação de profissionais de cultura dentro do SESC? Há uma questão educacional geral, no Brasil, relacionada à desvinculação entre o que é oferecido e o que é exigido no mercado. Isso vale para a área cultural e vale para muitas outras áreas. Existe uma necessidade premente de análise profunda, em todo campo educacional brasileiro, voltado para as necessidades reais do país, mas tenho visto e tenho ouvido muita experiência interessante nesse campo, que pode dar frutos no futuro. Com relação ao SESC, há muito tempo existe um permanente processo de preparação e desenvolvimento dos nossos quadros, em todas as áreas, para que a gestão, a coordenação e a criação sejam sempre contempladas e desenvolvidas. Mais do que isso, já se iniciaram alguns contatos com o Ministério da Cultura para o SESC colaborar na formação de gestores culturais com cursos dentro das suas instituições. 223


Qual é a concepção de cultura do SESC? Existe um entendimento ainda muito presente, não apenas na sociedade, mas em administradores públicos, de que a cultura é vinculada somente ao mundo das artes, do espetáculo e das manifestações artísticas. Quando muito, se agrega a memória imaterial e a preservação do patrimônio histórico. Tudo isso é importantíssimo, é fundamental para a nossa realidade, mas é pouco. Cultura é muito mais do que isso. Para mim, a grande questão a ser vencida, a ser colocada na mesa, é discutir de fato a centralidade da cultura. É claro que saúde, educação, justiça e tudo mais também pode ser central, mas a cultura tem uma centralidade mais própria, que diz respeito ao seguinte: tudo que é desenvolvido pelo ser humano, pela mente humana, pelo engenho humano, seja na criação artística, seja na criação material pura e simples, é cultura. Isso é o conceito antropológico fundamental. A cultura é mais do que a questão artística, é mais do que a questão do patrimônio e a memória. Ela diz respeito a toda a capacidade humana de se relacionar consigo, com o outro e com o seu meio ambiente. O que é importante para se tornar um gestor de cultura? Em primeiro lugar, obter o maior nível de informação possível sobre o que está acontecendo à volta. Isso é muito difícil no cotidiano atribulado de um gestor e também nesse momento de excesso de informações. Hoje eu não consigo ter uma visão panorâmica. Quando eu entrei, acho que tinha essa visão ampla, mas hoje não me considero mais uma pessoa tão atualizada, sobretudo porque de lá para cá o nível de exigência se tornou praticamente incontrolável. Hoje em dia, para se ter um conhecimento efetivo do que acontece à sua volta, é preciso ter mil antenas à disposição. Principalmente no campo das artes, porque as opções e as formas de fazer cresceram demais. É preciso estar atento a tudo. Então, é preciso sobretudo ter a mente aberta e considerar a cultura e a questão cultural como algo a problematizar, e não a resolver. Isso é interessante. Aliás, o Edgar Morin fala isso com muita clareza: a cultura que não problematiza não é cultura. Não é cultura, ela não está propondo. E problematizar, que eu digo, é refletir, é provocar reflexão muito mais do que trazer o assunto resolvido, achar que as soluções e as respostas definitivas estão aí à disposição. Não existe mais resposta definitiva praticamente para nada. Existe salvação para a cultura? 224


Claro. Aliás, só existe salvação pela cultura. Essa para mim é a questão. Sem nenhuma conotação religiosa ou política, mas somente a cultura salva, de fato. Por que é que eu digo isso? Porque eu estou falando de informação, de conhecimento, de valorização do ser humano, da inteligência humana, como a capacidade fundamental do ser humano. O que nos diferencia dos demais seres vivos? É a nossa capacidade de refletir, de aprofundar, de ter cultura, no sentido mais amplo possível do termo. Ter cultura não só no sentido de informação, mas com informação elaborar, criar, desenvolver, refletir, avançar, entender melhor, conhecer melhor o que está à sua volta, refletir sobre o que está acontecendo. O que falta no mundo de hoje, no mundo político, econômico, social, religioso, e muitas vezes até em outros campos também, é cultura. Todos deveriam ter uma visão mais completa: os nossos dirigentes, políticos, líderes e todo mundo que tem poder deveria ter uma cultura, no sentido mais amplo. Porque cultura não é informação, é articulação da informação de um modo inteligente. Como evitar o uso puramente instrumental da cultura, como forma de inclusão social? Realmente, busca-se muito essa coisa do instrumental da cultura, até mesmo para desenvolver o social. Tem muita instrumentalização inadequada. A cultura é indispensável, independente da condição social. É indispensável para pobre, para rico, para todo mundo. Aliás, tem gente que acha que cultura é bom só para pobre, e vão fazer projeto social. A cultura é importante para rico também, porque tem que abrir a cabeça desse povo para que eles entendam melhor a realidade à sua volta. Todo reducionismo é muito perigoso. Alguém que diz, por exemplo: “Olha, nós temos um projeto cultural significativo, importante, porque na favela nós estamos lidando com teatro, não sei o quê.” Bárbaro! Bárbaro! Mas isso não é resolver o problema do Brasil. Isso aí é trazer a possibilidade de ampliar uma informação, que é importante, mas não é tudo. A discussão tem que ser colocada na mesa de maneira intensa, a política cultural tem que ser assumida como uma política, realmente, de Estado. Ela não tem que ser do Ministério da Cultura; ela tem que ser de todos os ministros e, sobretudo, assumida pela presidência da República.

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Décio Coutinho Gestor Cultural do Sebrae de Goiás.

O que é o Sebrae, e o que ele faz? O Sebrae apoia as pequenas empresas, empreendimentos de autônomos e pequenas iniciativas, que são 98% do que acontece no país. Na cultura isso não é diferente. Não tem como não atuar em cultura dentro dessa abordagem da economia, uma vez que 98% das pessoas que produzem cultura são autônomos, independentes. São artistas e grupos, na sua grande maioria, informais, e esse é o trabalho que a gente faz. Os setores em que o Sebrae tradicionalmente atua de forma mais intensa, e tem uma abordagem mais forte, são os de turismo, artesanato e moda. A cultura, em si, entrou bem depois. O Sistema Sebrae atende a cultura há uns cinco ou seis anos, já o artesanato e o turismo são atendidos há muito mais tempo. Em relação ao artesanato, existem diversas formas de atuação, com a criação de saberes, através das oficinas com mestres griôs, onde se transmite esse saber, para que ele seja percebido, entendido, preservado e replicado. E também na forma de acessar o mercado para esses produtos de artesanato, sejam eles de artesanato tradicional ou artesanato contemporâneo. O Sebrae trabalha com esse viés da informação e da formação desses artesãos e o acesso ao mercado. O que é acessar mercado? 227


É permitir que o seu produto chegue às pessoas interessadas em comprar, ou mesmo, na falta de interesse, provocar um estímulo ao consumo desses produtos. É uma forma de se levar um grupo de artesãos para uma feira, para uma rodada de negócios, para um diálogo com outros grupos de artesãos, e fazer trocas. Existem diversas formas de acesso, seja através de um modelo de economia solidária, comércio justo ou da economia tradicional mesmo. O Sebrae pensa então na cadeia produtiva, não é? Colocar o artesão em contato com o ponto de venda. Isso, inclusive, envolve uma plataforma internacional, já que o artesanato está profundamente ligado ao turismo cultural. Como vocês pensam isso com os artesãos? Existem formas de você prospectar mercado, seja ele nacional ou internacional. Prospectar mercado significa entender que tipo de artesanato teria acesso àquele mercado, e levá-lo até lá. Por exemplo, é inviável vender artesanato de fibras naturais no mercado oriental, porque lá isso é muito forte. Mas outros tipos de artesanato brasileiro já têm entrada lá. Então é necessário entender que tipo de material seria bem recebido em determinado destino, e que produtos nossos seria interessante levar, ou seja, é preciso fazer uma pesquisa prévia para entender esse mercado exterior, e uma pesquisa interna para fazer com que isso se encontre. E o Sebrae faz essa ponte entre a demanda e a oferta. Na hora em que você chama um artesão para uma oficina, você acaba criando também um modo de ensinar empreendedorismo e negócio. Como fazer para que o artesanato não se padronize? Isso aí é um desafio imenso, porque no momento em que se fala em mercado, se fala em produção em escala. E aí se propicia um encontro de um artesão, ou de um grupo de artesãos, com um comprador que pede, por exemplo, mil produtos, enquanto o artesão só faz 20. Então se gera esse tipo de conflito. O que a gente vem fazendo é criar sistemas de associações, cooperativas e coletivos, para que essa pessoa que faz 20 produtos consiga agregar pessoas da comunidade e possa trabalhar com uma quantidade um pouco maior. Mas sempre trazendo o seu toque pessoal, porque o artesanato subentende isso, que cada um tenha um toque pessoal. A ideia é que o mestre artesão crie um modelo de produção coletiva, transmita o conhecimento, e consiga entregar os produtos. 228


Isso nem sempre dá certo. É bem complexo, então procuramos deixar claro que ele não precisa disso. Ele tem a opção de aderir ou não, pode continuar buscando seu mercado dos 20 produtos e tratar o artesanato de forma que possa contar a história dele, narrar o processo da colheita do barro, mostrar a tradição que está imbuída naquela produção. As pessoas, muitas vezes, veem um prato, mas não entendem que aquilo é uma tradição secular, familiar, que existe um momento certo de fazer, que tem toda uma história por trás daquilo. Trabalhar o artesanato, e isso vale para a música, para o cinema e tudo mais, é saber contar a história daquilo que está sendo apresentado. E no momento em que se trabalha com commodity, isso fica praticamente inviável, até porque não tem muita história para contar. O ideal é a gente conseguir trabalhar essa história valorizando aquele produto, com a singularidade que ele tem. Continuando em artesanato, como trabalhar hoje com as certificações ambientais e de patrimônio imaterial? É bastante complexo. O artesanato depende de muita matéria natural, sementes, barro, argila, tudo isso tem um processo de manejo para ser produzido. No momento em que a pessoa derruba todo tipo de árvore para fazer uma viola de cocho, por exemplo, ela acaba com a árvore, acaba com a viola de cocho, acaba com tudo. Então é um processo de entender que aquele material que subsidia, que alimenta o artesanato, tem que ser também tratado de uma forma consciente, e para isso existem formas de manejo e de coleta apropriados de preservação. Chega num ponto em que as pessoas não têm onde pegar o barro, onde achar aquela semente, porque não houve esse processo de informação e de preparação. É uma questão de informação, de conscientização, de processo educativo. Quando você começa a vender cocar de índio em larga escala, você passa a matar muito mais araras. Como fazer para ter uma produção em escala que seja sustentável? Em alguns casos, como o do cocar, por exemplo, o pessoal tem usado muito a criação de animais em cativeiro, legalizado pelo Ibama. E outros estão substituindo, até por pena de galinha mesmo. Hoje há uma produção tradicional indígena feita com miçanga, que é comprada nas cidades. É miçanga, é plástico, é industrializado, mas é artesanato indígena. A semente pode ser substituída pela miçanga, mas a tradição do saber, aquela forma, 229


aquela cultura, aqueles traços, a geometria, é preservada. É um processo que não se pode impedir, é dinâmico. Existem várias formas de preservação, uma é o manejo, outra a substituição de materiais, mas preservando o fazer. E como começou o trabalho cultural? Na área cultural, em Goiás temos uma atuação mais estruturada desde 2001. Antes eram atendimentos pontuais, um artista que chegava querendo saber se tinha algum tipo de apoio, de patrocínio, com alguma dúvida em relação à produção. A partir de 2001 passamos a ter um sistema mais organizado, que começou com um projeto chamado Cara Brasileira, onde se discutiu, de uma forma sistêmica no país inteiro, a brasilidade nos negócios, a culturalização da economia, a agregação de valores brasileiros a uma cadeia padrão. A discussão começou nesse sentido e depois partiu para um segundo momento, de trabalhar a economia da cultura. Esses são eixos estratégicos onde a cultura pode trabalhar junto com a economia, agregando valor cultural ao produto, através do design, da identificação de origem, da arte, da música, do cinema, do teatro. O que é empreendedorismo cultural? O empreendendorismo cultural está muito ligado à atitude da pessoa em transformar algo de uma forma positiva, não necessariamente pensando na questão do resultado econômico, financeiro. Pode-se trabalhar o empreendedorismo como uma questão de comportamento, de atitude, de ação social. Empreendedor é aquela pessoa que tem atitude, que inova, e que transforma o ambiente numa coisa diferente e positiva. Ou seja, um professor empreendedor é aquele que inova, que faz dinâmica, que estuda e traz materiais novos para a sala de aula. O aluno é aquele que se dedica além daquilo que é encomendado, que busca novos elementos, que traz perguntas. Então o empreendedorismo não está ligado só ao lado empresarial, ao lucro financeiro, mas pode ser empreendedorismo social. Existe ainda certo mal estar quando se trata a questão da cultura e do empreendedorismo. Algumas pessoas ainda acham que trabalhar a cultura de uma forma empreendedora é uma coisa que pode ser negativa de alguma forma. Mas um compositor, por exemplo, é um empreendedor, ele está criando, transformando e materializando coisas que antes não existiam. Uma banda de rock que sai da garagem e consegue acessar um festival, um público, é uma banda empreendedora, 230


porque ela achou um canal, um caminho para virar o negócio dela. A questão do empreendedorismo é interessante que seja entendida como uma atitude de transformação positiva, de comportamento, de ousadia, de criatividade e inovação. O empreendedorismo cultural já é trazer para a cultura esse tipo de atitude. No momento em que você tem um grupo de teatro, de circo, artesãos que tratam a cultura de uma forma inovadora, que buscam mostrar o que eles fazem com uma atitude, que buscam inovar e trabalhar algum elemento novo, agregando e misturando outras coisas, já tem uma atitude empreendedora. Como fazer um planejamento estratégico na área de cultura? O planejamento estratégico na área da cultura não é muito diferente do planejamento estratégico tradicional. O que difere, na verdade, são os elementos que alimentam esse planejamento. Geralmente fazemos esses planejamentos de forma coletiva, em grupo, com os coletivos de cultura de uma determinada região. Fazemos um mapeamento inicial, levantamos as questões referentes a esse território, o que ele tem de bom, quais são as dificuldades, e a partir disso desenvolvemos um plano de ação. As dificuldades e os gargalos são comuns na maioria das regiões. As estatísticas no estado de Goiás são muito parecidas com as estatísticas do Brasil inteiro, de números de espaços, tipos de equipamentos, de políticas públicas, falta de secretarias, conselhos etc. Geralmente se trabalha dessa forma, fazendo só uma condução, uma facilitação no processo onde o próprio coletivo escreve o que ele já sabe. Todo mundo já sabe qual é o problema, já tem ideias para as soluções, mas às vezes não materializa isso num documento. O Sebrae ajuda a fazer esse documento: chama os participantes para levantar os problemas, as soluções possíveis, os pontos fortes, os pontos fracos, escrever tudo, ordenar, e junto com esse documento ajuda esse coletivo a pôr em prática as soluções. O que você pensa sobre as moedas culturais? Eu acho fantástico. Já existem várias, como o Cubo Card, em Cuiabá, e o Patativa Card, no Ceará. São moedas que existem no Brasil inteiro e que, além de que propiciar a troca, possibilita o acesso aos números de determinados eventos. Por exemplo, se num evento como o Festival Calango, ou o de Cuiabá, ou no Goiânia Noise, ou na Feira da Música de Fortaleza, houve uma circulação de 10 mil cubo cards, ou 10 mil patativas, podemos saber que rolou ali 10 mil reais em trocas. É possível medir o “PIB” daquele evento. An231


tes, isso era praticamente impossível. Então, se o movimento gerado naquele evento for feito através de uma moeda, pode-se ter acesso aos números e ver quanto de troca o evento gerou. É óbvio que tem um desdobramento, com essa informação, pode dialogar com qualquer instância. Pode chegar numa prefeitura, no estado, e apresentar essa estatística. Além do valor da troca, do valor da cooperação, do valor do trabalhar coletivo, se cria uma forma de medir, de mensurar. Isso é muito legal e muito inédito. Com funciona uma moeda cultural? Talvez eu não saiba responder a sua pergunta. Existe uma série de prérequisitos junto ao Banco Central, mas que não são muito complexos. Cumprindo isso, tem que criar um lastro. Por exemplo, se eu gerar 10 mil moedas culturais, eu tenho que gerar uma lastro de 10 mil reais. Esses 10 mil reais não precisam necessariamente estar numa poupança, podem estar alienados em instrumentos, equipamentos de estúdio, em palco, em som. Essa é a batalha do pessoal, criar esse lastro para que a moeda possa ser lacerada, e não só como recurso financeiro. Isso já está sendo conquistado hoje. Existem as moedas sociais, como Palmas Card e outras, que já fazem isso há muitos anos, que já têm isso funcionando bem, na troca de produtos em bairros, e as moedas culturais, que estão trabalhando na música, em outra dimensão. E o câmbio? O câmbio é 1 por 1. O que facilita é que você agrega. Por exemplo, no momento em que o cara da padaria, que fornece o lanche para os músicos do festival, aceita a sua moeda em troca de pães, você começa a gerar um comprometimento e envolvimento daquela padaria, daquele açougue, daquele hotel, daquele restaurante, com o seu evento, com o seu movimento, e até com os seus valores. Então passa a ser uma coisa não só comercial, de troca e de lucro, mas também de envolvimento e de engajamento numa causa, que geralmente todos esses festivais, ações e feiras têm. É possível envolver a localidade, a comunidade, não só na questão comercial, mas também na questão dos valores. A moeda é muito interesse nesse sentido. Como é para o Sebrae trabalhar com inovação nessa interface entre cultura e tecnologia? 232


Estamos aprendendo. Não é fácil, porque ensinar a vender uma calça jeans ou um tomate é diferente de ensinar a trabalhar com arte. Na verdade, o que existe hoje é uma série de mecanismos, ferramentas, suporte, associações, sindicados, voltados para essa economia tradicional. E em relação a essa economia da inovação, do conhecimento, da atenção, não importa o nome, ainda estamos numa fase de aprendizado, de entender como trabalhar com esse tipo de inovação. E isso vem sendo construído meio que na experiência. Durante muito tempo, no Brasil, os grandes talentos mudavam de suas cidades para as grandes capitais, os grandes centros de cultura, e isso, hoje, está sendo revertido. É importante pensar o território cultural como uma tentativa de fazer permanecer esses talentos no espaço? É. O que a gente tenta provocar é a diversidade. Quanto mais opção e mais diversidade se tiver dentro de um espaço territorial, mais rico ele será e mais possibilidades de desenvolvimento ele terá. No momento em que se tem numa cidade, num bairro, ou num território, uma diversidade maior de escolhas, de opções de consumo, de cultura, entretenimento, o cidadão pode não querer sair. A grande dificuldade é primeiro mapear e entender o que existe no local. Porque isso, no interior do Brasil, é muito no quintal, dentro da casa. São tesouros que estão guardados dentro de arcas, e que você tem que ir lá abrir e mostrar. Outro ponto, que talvez seja um segundo momento, é trazer de fora experiências, e fazer com que essas experiências locais visitem outros de fora. Porque é circulando que as pessoas começam a conhecer e abrir as possibilidades. Mantendo o máximo de diversidade possível em um território, as pessoas que moram lá terão condições de optar pelo que elas se identificam mais, e de se desenvolver mais. Se um jovem não sabe que é possível fazer cinema com o celular, ele nunca vai fazer ou se interessar. Mas no momento em que se leva uma oficina de arte móvel, ou leva alguém para falar disso, ou mesmo leva ele para conhecer isso em algum lugar, ele volta e às vezes em menos de um mês vira um talento. Então com muito pouco se gera essa mudança no local. Com muito pouco dinheiro, mas com engajamento. E a questão da reflexão crítica? Uma coisa é fomentar a produção, outra coisa é fomentar também a reflexão sobre essa produção, e os possíveis diálogos e qualificações disso. Como pensar isso? 233


Isso ainda está muito longe da nossa realidade. Estou falando do meu estado de Goiás. Ainda estamos num momento de tentar garantir o que já existe, assegurar que o que existe não se perca, sem refletir muito sobre a questão estética ou crítica. E, em paralelo, gerar esses encontros, essas trocas e essa sabedoria no território. Talvez a gente parta para outra fase talvez daqui uns quatro ou cinco anos, e comece a refletir em cima disso que aconteceu. Mas hoje o que está acontecendo é um movimento muito forte de produção. Agora tudo que está sendo feito está sendo absorvido. Fale um pouco sobre incubação e capacitação para moda e comportamento. Bom, eu acho que a essência de tudo isso é o que eu já falei, a questão do encontro, da troca e do acesso à informação. A gente trabalhou uma coisa em Goiás muito interessante, que foi mapear uma iconografia do estado. No momento em que se mapeia 120 ícones gráficos, de uma flor a um animal, a um personagem como Cora Coralina, pode-se pegar esses elementos gráficos e transformar, trazer esse conteúdo para dentro da moda, passar a agregar valor a uma coisa que já é uma criação bastante interessante. E, quando se traz esse valor, está trazendo um valor local, está agregando a uma produção de uma indústria têxtil, uma cor do Antônio Poteiro, uma imagem de uma cidade de Goiás. Agrega-se naquela produção um valor local, mas com uma estética mundial, e a partir daí não se tem concorrente, porque aquele valor só é produzido ali. Não se tem um concorrente, porque falta para ele uma das coisas mais difíceis de ter hoje, que é a autenticidade, é o genuíno. O chinês nunca terá Cora Coralina. Por mais que ele copie a imagem de Cora e coloque estampado num vestido, não tem a autenticidade que tem o vestido goiano. Trabalhar esse valor local com um elemento de autenticidade é um fator estratégico que faz com que a sua produção de moda praticamente elimine os seus concorrentes, desde que ela tenha uma estética global. É com isso que a gente tem trabalhado a questão da moda em Goiás. Para você existe diferença entre economia criativa e economia da cultura? Existe. A economia criativa é um conceito mais amplo do que a da cultura. A da cultura é muito ligada à produção, à parte artística, identidade, patrimônio. A criativa já entra mais com um viés de tecnologia, em que se pode trabalhar 234


a questão do talento, da tolerância, da tecnologia, e ampliar um pouco esse conceito, envolvendo moda, software, TI. Uma série de outros elementos que tradicionalmente não são de uma essência cultural, que não dependem de elementos de identidade e cultura para serem produzidos. Eu entendo a economia da cultura como toda essa produção em que o insumo principal é a questão da identidade, do patrimônio, do talento. E a economia criativa seria mais ampla, tendo dentro dela a economia da cultura.

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Ana Toni Representante do Escritório Brasil da Fundação Ford.

Como nasceu a Fundação Ford? A Fundação Ford nasce com o Henry Ford, que deu algumas ações da Companhia Ford para um grupo de pessoas independentes, com uma missão muito simples: trabalhar a paz e o bem social nacional e internacional. Na década de 1950, esse grupo vende todas as ações da Companhia Ford e cria um endowment, que é um fundo patrimonial com ações de outras companhias. E esse fundo vai crescendo. No final dos anos 1990, começo dos anos 2000, havia mais de US$ 15 bilhões nesse fundo. Com uma parte desse lucro, vivemos como companhia, como organização. Para ser uma fundação nos Estados Unidos, é preciso investir, no mínimo, 5% do patrimônio da instituição para a missão proposta. Esse montante, hoje, é em torno de US$ 500 milhões por ano, que são divididos em 13 escritórios em todo o mundo. São três escritórios na América Latina, quatro na África, quatro na Ásia e dois nos Estados Unidos. E como ela chegou ao Brasil? A Fundação Ford está no Brasil há praticamente cinquenta anos. O primeiro escritório brasileiro foi aberto em 1964. Logo que a fundação chegou, começou a ditadura militar. Muitas pessoas estavam sendo torturadas, e a 237


fundação teve um papel importantíssimo para a história do país, mandando pessoas – principalmente acadêmicos – para fora do Brasil. Desde o começo, a Fundação Ford teve uma posição bastante progressista com relação ao país. Ela ajudou essas pessoas a conseguirem asilo político em outros países, muitas tiveram que migrar para os Estados Unidos, o Chile ou a França. Entre elas, estava Fernando Henrique Cardoso e o pessoal do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o CEBRAP. A fundação também teve a possibilidade de apoiar, com bolsas individuais, pessoas aqui no Brasil, porque muitos deles foram expulsos das universidades. Elas conseguiram, com as bolsas, manter um grupo qualificado de pessoas atuando durante aquele período. Esse foi o papel principal da fundação até o final dos anos 1970. No processo de democratização, a fundação mudou um pouco o seu papel e começou a atuar junto à sociedade civil. A partir daí, o apoio da fundação é mais institucional, para que esses grupos ligados à sociedade civil se constituam como organizações não governamentais. Começa a financiar novas vozes do processo democrático, organizações ligadas às mulheres, aos grupos indígenas, aos afro-brasileiros. Na época, todos estavam com o mesmo objetivo, que era conquistar uma nova Constituição. Então, não havia muita dúvida de que forma a Fundação Ford se inseria naquele momento histórico. Depois da Constituição, da democracia ter sido estabelecida, a fundação começou a expandir os seus horizontes, como o Brasil todo, para novos desafios. Esses desafios se multiplicam com o desenvolvimento dos BRICs.1 Como a Fundação Ford pensa isso? Há cinco anos, nós propomos para a Fundação Ford, a partir do escritório Brasil, da África do Sul e da Índia, criar um pool de dinheiro, como chamamos dentro da fundação, para financiar a troca entre esses países. Então, a gente financiou por quatro anos diversos projetos que tinham como objetivo exatamente essa troca. E foram projetos maravilhosos. A minha total crença é que a relação sul/sul tem que ser fortalecida, tem que ser explorada, tem que ser enriquecida. É mais fácil sabermos o que acontece na Europa, nos Estados Unidos, do que acontece com nossos vizinhos, ou na África, ou na Ásia. Um desses projetos foi com o Conectas de São Paulo, que é um grupo de direitos humanos. Eles tentaram fazer uma análise do Supremo Tribunal desses 1 Sigla que se refere a Brasil, Rússia, Índia e China, cujas economias estão em significativa expansão. 238


países. A Índia vinha de um império, a África do Sul, do apartheid, e o Brasil, de uma ditadura militar. E foi um estudo muito interessante acompanhar os direitos humanos desses diversos países, dessas diversas perspectivas, e ver o quanto é possível aprender um com o outro. Infelizmente, é uma área pouco valorizada, mesmo dentro de uma Fundação Ford, e tivemos que acabar com o programa. Mas não tenho a menor dúvida que explorar os BRICs é o futuro. Embora o surgimento das novas tecnologias permita uma relação de rede, ainda mantemos as trocas entre esses países por intermédio do hemisfério norte. Os autores asiáticos conhecidos na América do Sul, por exemplo, são sempre os mesmos, porque passam pelos autores que conquistaram o mercado europeu. Não necessariamente são os mais interessantes para nós. Como reverter isso? É mais fácil financiar projetos que tenham um intermediário do norte do que financiar um projeto horizontal entre o sul. Por exemplo, quando financiamos um projeto no Brasil para fazer pontes com a África do Sul e com a Índia, o sistema bancário brasileiro não ajuda. É muito difícil fazer transferência de recursos. A barreira linguística é outro desafio, mas só é um desafio porque a gente não tem a tradição. Se houvesse já um diálogo sul-sul consolidado, isso já teria sido superado. Então, é mais fácil para uma fundação, que está nos Estados Unidos, dar dinheiro para Harvard e pedir para ela contratar um brasileiro, um indiano e um sul-africano, do que fazer isso por uma universidade brasileira. Você terceiriza a intermediação. Eu sou totalmente contra isso. Temos que investir nessas trocas horizontais. Capacidade é o que não falta, nem material para trabalhar. O que falta é a experiência. Como estimular, no Brasil, a criação de fundações como a Ford? Eu sou do conselho do GIFE, a rede de Institutos, Fundações e Empresas. Foi feito um levantamento e mais de 80% dos membros do GIFE são de fundações ligadas a empresas. As empresas normalmente dão 0,5% ou 1% do seu lucro para os seus institutos, que têm atividades relacionadas com os objetivos da empresa. Isso é muito diferente de uma Fundação Ford, que é hoje totalmente independente. O que acontece é que no Brasil não há nenhum incentivo fiscal para que os nossos ricos, como era o Henry Ford nos Estados Unidos, abram a sua própria instituição. E isso passa pela Lei de Herança. É melhor, aqui no Brasil, pagar as taxas devidas e deixar para os seus filhos o 239


dinheiro do que deixar a eles uma instituição filantrópica ou deixar para o país uma instituição. Até mudar a legislação brasileira para que estimule uma filantropia mais independente, mais familiar, menos empresarial, eu duvido que isso mude. Agora, há esforços muito importantes nessa direção. Ainda não se teve nenhuma resposta, mas imagine o quão difícil é mudar a Lei de Herança no Brasil. Há um debate sobre a Lei de Direitos Autorais, que no fundo passa também por mudanças de herança. É um começo de debate também? Tomara que sim, mas esses debates ainda estão divorciados, porque não são tantas famílias ricas que vivem de direitos autorais, então não houve ainda o impacto disso na sociedade. É importante estimularmos esse debate sobre a Lei de Herança, até porque as fundações norte-americanas ou europeias que financiavam esse tipo de trabalho no Brasil estão diminuindo sua participação. A Kellog e a MacCarthur já saíram do país. Isso acontece porque o Brasil não é mais um país pobre. Então, quando se vai trabalhar no Terceiro Mundo, uma fundação busca onde tem pobreza extrema. Esse sempre foi o pensamento. Não é mais o caso brasileiro. Ao contrário, o Brasil está jorrando poder lá fora. É o mesmo problema que o Japão está vivendo hoje. O Japão também tem uma atrofia de fundações japonesas. Qual a importância de uma fundação? Na minha perspectiva, a importância dessas instituições é que elas têm mais capacidade de disputar novos conhecimentos, porque tanto o governo quanto as empresas têm tendência a reproduzir desigualdade. Quando entra uma organização independente, ela tem a capacidade de com pequenos investimentos financiar novos conhecimentos, novas áreas de trabalho. Ela pode arriscar mais. Por exemplo, a Fundação Ford trabalha com a questão racial no Brasil há mais de trinta anos. Só agora, nos últimos cinco, dez anos, a questão racial é um grande tema brasileiro. Vamos passar para outro ponto. Conte um pouco dos projetos que a Ford desenvolve hoje. Na Ford, hoje, trabalhamos com cinco áreas de atuação. Uma é a do fortalecimento da justiça, do monitoramento da justiça, dos direitos humanos, que é uma área forte, tem toda uma infraestrutura de organizações de direitos huma240


nos. A segunda é a dos povos tradicionais e da questão da terra, na Amazônia, e aí tem novos conhecimentos de grupos indígenas, ribeirinhos – e posso contar um pouco de um trabalho muito bonito nessa área. A terceira é a da democratização da comunicação, do acesso à comunicação, do direito à comunicação. A quarta é voltada para a questão da discriminação e das relações étnicas e raciais. E a quinta área, na qual começamos a trabalhar um pouco mais, é a de ensino superior. Sempre trabalhamos, sempre financiamos universidades. Cinquenta por cento do nosso recurso ainda vai para a academia, para as novas pesquisas, mas agora estamos com o trabalho de olhar o sistema acadêmico brasileiro e saber o que precisa ser mudado para que novos conhecimentos possam florir dentro de um sistema acadêmico tão elitizado, na nossa sociedade. Então, essas são as cinco áreas com as quais trabalhamos. Conte um pouco do projeto com os povos tradicionais da Amazônia, de que você falou aqui. É um projeto muito legal, que consiste no mapeamento social de novos povos, chamados Novos Povos Tradicionais. Há bilhões de povos tradicionais na Amazônia, que nunca tiveram voz. Eles sempre existiram, mas nunca foram ouvidos. Através de um projeto com a Universidade da Amazônia, é feito um mapeamento social dessas novas vozes. Estão tentando mapear quais as comunidades que se veem e que se identificam como um grupo étnico, ou um grupo tradicional. Sejam os quilombolas, sejam os ribeirinhos, sejam as mulheres das castanhas, dando voz a esses grupos e tentando entender um pouco as suas demandas, não só culturais e sociais, mas principalmente em relação à demanda de terra e acesso a recursos naturais. O Alfredo Wagner, que leva esse projeto com o Aurélio Vianna, que é da Fundação Ford, mapeou milhões de novos grupos tradicionais, que têm suas culturas, que têm as suas identidades e que são ignorados pelo poder público. Absolutamente ignorados. A ideia desse projeto – é um projeto muito grande – é dar voz à diversidade e entender que as demandas são muito diferenciadas. Por isso, a política pública que se relacione com elas tem que ter um olhar focado na diversidade, principalmente em uma região como a Amazônia. É um projeto pelo qual temos muito carinho. Estamos falando sobre cultura e Fundação Ford, e, nesse momento,você está falando de comunicação. A questão da cultura indígena, ou dos 241


povos da floresta, não só está se fortalecendo como uma voz própria, como começou novamente a ser absorvida de uma forma original e viva pelas manifestações culturais; pelo teatro paulista, pelo cinema mineiro, pela literatura carioca. Quer dizer, você tem um diálogo efervescente, que nasce disso aí. Aí entra o ponto de cultura também: como fazer para fomentar esse diálogo com a Fundação? Como fomentar o diálogo cultural? Não financiamos cultura indígena, especificamente. Estamos tentando financiar o conhecimento indígena e a sua aplicação nas diversas áreas de conhecimento. Quando pensamos no indígena, pensamos no indígena que vai proteger a floresta, ou naquele ser. Temos um trabalho com o indígena. Tem o índio que quer ser físico, o que quer ser advogado, e, ao conseguir formar-se, ele leva a sua cultura para dentro da física e da advocacia. Ele não é de maneira alguma aculturado à nossa cultura; não é essa proposta, mas nem é aquela outra proposta, a de que o indígena só pode morar na aldeia. É preciso saber, dos indígenas, exatamente o que eles querem. Hoje em dia, há uma demanda muito grande da comunidade indígena de se capacitar para outras áreas. Estamos trabalhando nessa outra área, de que eu estava falando, na área de ensino superior, pensando nos indígenas que querem ir para a faculdade, ter acessos a outros conhecimentos, misturar com os seus próprios conhecimentos. Isso está trazendo uma legitimidade para pensar o indígena, não só como aquele que observamos e pelo qual temos curiosidade, mas como aquele com quem podemos aprender. É um processo longo, e eles são muito poucos no Brasil. São 0,4% da população brasileira, mas o conhecimento que eles têm é imenso. Como trazer isso para a nossa cultura do dia a dia, e não só para o apêndice do que vemos? Acho que ainda é um desafio. Como trazê-los sem precisar de intermediários? Como trazê-los para que eles próprios sejam os fomentadores das pesquisas? Esse tem sido nosso maior esforço, especificamente com os grupos indígenas. Tentamos de todos os jeitos não financiar o intermediário, e não financiamos. Financiamos, por exemplo, o Instituto Sócio-ambiental, mas para trabalhar com cartografia, não só para trabalhar com o indígena. Estamos financiando, por exemplo, o Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, o CINEP, que é uma nova organização de ensino superior dos acadêmicos indígenas. Eu tenho um grupo de advogados indígenas, que se reúnem e 242


se capacitam em conjunto. Nós financiamos diretamente essa associação dos advogados indígenas com o propósito de fortalecer as instituições indígenas. Eu não tenho nada contra o intermediário, acho que todos ali têm boa vontade, mas chegou o momento de termos a voz indígena. Ela sempre teve importância, mas agora mais do que nunca ela precisa ser ouvida com mais clareza e diretamente; ela não precisa de intermediários. Ela já é forte o suficiente para ser ouvida por todos nós. E é a voz de pessoas extremamente qualificadas. Acabei de vir do Mato Grosso. Um menino de lá, que está fazendo direito, mora na aldeia, e sua mãe resolveu ser empregada doméstica em Campo Grande para que ele pudesse continuar seus estudos; essa história está inserida em um projeto que nós financiamos da universidade e que consiste em dar apoio acadêmico aos indígenas, que, logicamente, têm mais dificuldades. Para eles, é como uma segunda língua; e eles têm algumas outras dificuldades, pois não tiveram acesso a muita literatura ou à língua inglesa. Então, a gente oferece, para esses indígenas, um tipo de reforço dentro da universidade. Aquele menino do Mato Grosso de que eu falava é muito capaz. Ele tem um professor de direito, que é filho do governador, e, na primeira aula, o professor falou: “Eu não vou dar esse capítulo sobre direito indígena, porque eu acho irrelevante, a gente não vai trabalhar esse capítulo em classe.” Aí o menino respondeu: “Por favor, eu sou indígena, eu gostaria muito de ter essa aula.” O professor insistiu: “Isso é uma bobagem. Eu me recuso a dar esta aula.” O professor sempre tratou o menino muito mal dentro de sala de aula, mas o menino é muito capacitado e conseguiu um estágio dentro do Tribunal de Contas do Estado. Por acaso, ele pegou uma causa na qual o professor era o advogado. O professor foi conversar com o juiz da vara, do qual o indígena era o assessor. O advogado tinha perdido algum prazo, tentou insistir para o juiz deixar passar, mas o menino respondeu assim: “Infelizmente, não.” Então ele vai ganhando uma autoestima. O problema de terra em Mato Grosso é imenso. Como aquele professor e advogado é de uma família de donos de terra, ele se recusa a ensinar direito indígena em sala de aula, mas essas coisas estão mudando mesmo que não no passo em que a gente queria que mudassem. Eu acho que a gente não pode colocar os indígenas só naquele espaço da aldeia; eles querem ser físicos, eles querem ser economistas, eles querem ser advogados, e podem, pois são muito competentes. E isso tem que entrar no nosso dia a dia, sem estranhamento. 243


Vocês financiam pensamento e inovação; pensamento e inovação dão resultados, e vocês têm que lidar com isso. Como vocês pensam a construção de agendas políticas sociais futuras dentro da Ford? É fundamental que a gente não tenha uma agenda política. A gente tem, por assim dizer, o pensamento de que dar qualificação para um determinado grupo social, sejam os afro-brasileiros, sejam os ribeirinhos, sejam os indígenas, é permitir que ele possua suas próprias vozes qualificadas. Isso vale não só para esses grupos – vale também para as mulheres, logicamente. A partir do momento em que esses grupos sociais têm uma nova capacitação, eles têm uma nova voz. Os projetos chegam para vocês e vocês os avaliam, é isso? A fundação já está aqui há cinquenta anos, então as pessoas entendem um pouco o que a gente já faz e o que a gente não faz. Então, há uma tendência para a concretização de parcerias. Muitos projetos chegam até nós, enquanto a gente também busca muitos atores. Normalmente, quando começamos uma parceria, a gente financia por dez anos; alguns grupos a gente financia por vinte anos; e tem muita gente que nos recrimina: “Puxa! Vinte anos vocês estão lá subsidiando a fundação x, y ou z?” Sim, vinte anos. O governo financia alguns setores econômicos há cinquenta anos. A gente financia alguns projetos por muitos anos e com o maior prazer. Outros não precisam de um financiamento de longa duração, pois criam as suas autonomias. De todo modo, os projetos chegam e, normalmente, sofrem um direcionamento. Por exemplo, na área da comunicação: quando a gente começou, eu não tinha a menor ideia de que ia ter um COFECOM e não teria nenhum COFECOM em 2009, mas a gente tinha certeza, desde o início, de que era preciso ter uma articulação, uma discussão mais qualificada com outras vozes na área de políticas públicas e de comunicação. Essa era a única certeza que a gente tinha. Então, a gente precisava diversificar os atores nessa discussão e ajudá-los a se qualificar para uma discussão mais qualificada. Foi o que a gente fez, apoiando diversos centros acadêmicos que já estudavam o tema, mas não tinham tamanho suficiente para ser ouvidos. Algumas organizações não governamentais, como a INTERVOZES, a RITS ou a FNDC, já tinham voz própria, mas não tinham a estatura e a qualificação que talvez quisessem. Aí nossa intenção era ajudar essas organizações a participar do debate público de uma outra maneira, em um outro nível. Não existe uma fórmula mágica. 244


Eu acho que o fundamental é acreditar nos atores com os quais você faz as parcerias e aprender com eles, porque a gente aprende o tempo inteiro. São parcerias de visão. Uma coisa é a pesquisa e a construção do saber, isto é, a inovação a partir dessa pesquisa. Outra é a divulgação da pesquisa e o diálogo do saber com a sociedade, o que ainda é muito falho no Brasil. Como fomentar isso? Quais são as políticas que você encontra como caminhos para alcançar isso? Como eu falei, a gente financia mais ou menos 50% na academia e 50% na sociedade civil. Então, a gente valoriza ambos, tanto a formação de conhecimento quanto a ação social. Agora, nem sempre o diálogo entre esses dois atores é fácil, mas a gente percebe que a academia brasileira está se abrindo mais e mais para um trabalho de pesquisa aplicada, como alguns chamam, numa relação mais intrínseca com a sociedade civil – principalmente nos campos em que a gente trabalha. Por exemplo, no âmbito das relações raciais: antes, os grandes acadêmicos eram antropólogos que estavam lá em cima enquanto o movimento negro estava aqui embaixo. Hoje em dia, a gente financia os acadêmicos afro-brasileiros, que são ativistas também. Eles próprios fazem essa ligação da academia com a ação social. Temos, por exemplo, a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) – nós a financiamos. O mesmo se aplica aos indígenas. Eu acho que é necessário cada vez mais financiar determinados grupos, fortalecendo suas vozes também no âmbito acadêmico, até porque eles são muito excluídos dentro da academia. Quanto à questão de fazer esse saber ser “publicizado” para além da academia, isto é, fazer com que ele não se torne apenas um relatório, mas algo, como uma página na internet, uma revista ou um livro, que permita à sociedade poder dar alguma resposta? Com certeza, qualquer projeto que a gente financie enfrenta essa questão, principalmente os acadêmicos. Normalmente, os projetos pretendem realizar uma pesquisa. Então, a gente estimula que o banco de dados que eles estão coletando deverá ser aberto para outros pesquisadores. Como geralmente o banco é muito rico, o acadêmico quer segurá-lo para si próprio. Isso a gente conversa. Nós não falamos assim: “Não vou financiar se não for um banco de dados aberto.” Mas a gente assegura, de alguma maneira, que o banco de 245


dados seja aberto. Ao mesmo tempo, sempre estimulamos a organização de seminários ou a publicação da pesquisa. Muita gente agora está fazendo publicação de livros on-line, e muitos dos nossos projetos envolvem publicações desse tipo. Outros envolvem a produção de vídeos. A academia brasileira estava muito baseada em discutir ideologias, em discutir o certo e o errado, e, assim, possuía poucos números que a mídia pudesse utilizar para que ficasse um pouco mais clara essa comunicação. Isso também está mudando. A maioria das pesquisas que a gente financia hoje tem como componente trazer dados reais e números mais palpáveis. Isso também tem facilitado muito. O surgimento dessas pesquisas mais quantitativas tem facilitado a habilidade de outros grupos trabalharem com esses dados. Na questão da informação, a cultura digital é uma revolução? Uma revolução, sim, porque proporciona a possibilidade não apenas de uma disseminação muito maior do conhecimento de um determinado material, mas também a ampliação da utilização de dados. Por exemplo, a gente financia diversos projetos, alguns relacionados a orçamento público, outros à corrupção, isto é, projetos que precisam dos dados que o governo possui para que estes sejam recolhidos e ligados a outros, e isso se dá a partir da internet. Por exemplo, no Transparência Brasil, pega-se os dados do Supremo Tribunal Eleitoral, onde há tudo sobre as eleições. Aqueles dados são relidos e reorganizados de modo a facilitar a leitura na internet. É um projeto absolutamente digital: ele pega dados pelo sistema, reproduz esses dados, relendo-os e facilitando a leitura, reunindo-os com aquilo que sai todo dia no jornal. Eles têm, por exemplo, um boletim em que reproduzem todas as denúncias de corrupção que são publicadas no Brasil, sobre qualquer político. Nossos jornalistas amam. E quanto às universidades: que lugar elas ocupam hoje? Elas estão próximas ou não do debate contemporâneo? Eu acho que as universidades realmente devem se repensar. A universidade brasileira é uma contradição imensa. Se a gente olha a porcentagem de pessoas de 17 a 25 anos que estão na universidade no Brasil, são só 15% dessa faixa. Num país como a Índia, já há 32%. Um país como a África do Sul, 24%. Não somente quem vai para as universidades brasileiras ainda é a minoria da minoria, mas, dentro dessa minoria da minoria, é uma classe específica, 246


um grupo específico de pessoas. Enquanto isso, há no Brasil universidades excelentes, de qualidade internacional, no mesmo nível de universidades europeias e americanas. Eu acho que a universidade brasileira – e, de novo, eu acho que esse governo deu alguns passos para isso – tem que ser repensada. Primeiro, ela tem que se abrir a novos grupos e a novos conhecimentos. E acho que o PROUNI, e a discussão das cotas nas universidades, com a decisão destas de se abrirem à entrada de indígenas, deu um novo ar dentro dos campos universitários, mas esse ar ainda não é o suficiente para fazer com que as universidades – principalmente as universidades de elite – se repensem, porque elas têm uma qualidade muito boa, realmente muito boa, dentro de um projeto elitista muito forte. Então, é como se, ao deixar novos atores entrarem, a qualidade fosse cair. Eu acredito no oposto: eu acho que se você deixa novos atores entrarem, essa qualidade torna-se ainda mais rica; diferenciada, certamente, mas ainda mais rica. A maneira de financiamento das universidades é um grande tema; o quanto é sustentável ou não é, o acesso a ela, a questão do vestibular, onde elas estão localizadas etc. Universidades rurais, são pouquíssimas as que a gente ainda tem, apesar de previstas por um projeto do governo. Então, a gente está caminhando, mas acredito que a universidade brasileira está em xeque-mate: deve se repensar para se colocar em um novo patamar no mundo. Se quiser ter esse lugar, terá que trabalhar muito. E algumas estão trabalhando. O que se salva, no Brasil, é a autonomia das universidades, o que dá espaço para algumas delas se repensarem e se refazerem, mesmo que outras ainda se mantenham fechadas e não queiram se abrir.

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Gilberto Freyre Neto Coordenador geral de projetos da Fundação Gilberto Freyre.

O que é a Fundação Gilberto Freyre? A Fundação é uma instituição criada pela família de Gilberto Freyre para gerenciar seu patrimônio material e imaterial e promover estudos e interpretações da vida brasileira, com o intuito de fazer com que as novas gerações pensem o Brasil e criem, também, novas interpretações, novas análises, do patrimônio do autor ou do seu universo de pesquisa. A fundação tem trabalhado, não sem muita dificuldade, dentro de uma perspectiva muito positiva de continuidade dos trabalhos de Gilberto. Muitos pesquisadores que analisam cenários globais atuais vão à instituição em busca de documentos que foram gerados por Gilberto ou que fizeram parte da sua base de pesquisa dos anos 1930, 1940, 1950 do século passado, e que hoje, centrados no Brasil, servem de referência para o mundo. Como lidar, de forma responsável, com a disponibilização dos documentos, a abertura da obra e, ao mesmo tempo, com a preservação e curadoria dessa obra? A chave para fazer com que a obra seja lida, interpretada e analisada é dar liberdade a quem pesquisa, quem gera ou quem analisa esse material que foi gerado. Essa é uma âncora-chave da Fundação: nós não endeusamos o Gilber249


to Freyre, não tentamos protegê-lo. Nosso principal objetivo é fazer com que seus acervos pessoal e intelectual – e entendemos por pessoal todo o acervo de pesquisa que foi utilizado por ele para gerar suas obras, ou seja, os documentos que são primários para sua pesquisa, como fotografias, correspondências, artigos e periódicos científicos dos mais diversos lugares do mundo – sejam difundidos e analisados. Então, a casa se mantém numa neutralidade enorme em relação às críticas, sejam positivas ou não, à obra de Gilberto, e tenta, ao máximo, ofertar seu acervo aos pesquisadores. É com muita dificuldade que mantemos nosso acervo, porque fizemos questão que ele permanecesse em Pernambuco. É um acervo que podia estar melhor acondicionado e sendo melhor utilizado, se estivesse em universidades estrangeiras ou em centros de pesquisa que dessem a ele uma melhor condição de divulgação. Mas optamos por seguir alguns princípios que são bem gilbertianos. Gilberto fixou-se em Pernambuco, era filho de Pernambuco, e jamais saiu do estado. Então, para a gente, também era uma questão de honra permanecer em Pernambuco e fazer de lá a base desse acervo. É muito curioso receber estrangeiros que estudam a obra de Gilberto Freyre, ou se utilizam das suas fontes de pesquisa, como ferramenta para interpretar e analisar a Europa, sob a perspectiva da miscigenação cultural. Esses estudos estão sendo feitos a partir de uma visão gilbertiana. As pessoas estão vindo ao Brasil e à Fundação, analisando alguns cenários e tentando identificar as origens do pensamento de Gilberto Freyre lá fora. Tivemos, nos últimos cinco anos, por exemplo, dois grandes livros publicados pelo casal Burke, da Universidade de Cambridge, a Maria Lucia Pallares-Burke, de São Paulo, e o Peter Burke, que é um historiador inglês dos mais renomados. Os dois livros tentam interpretar o método de Gilberto Freyre, e boa parte da pesquisa foi realizada na Fundação Gilberto Freyre. Inclusive o Peter Burke chegou a dizer que teve acesso, na Fundação, a um acervo que não consegue, de forma centralizada, em nenhuma universidade europeia. E ele tem boa parte da rede das universidades europeias à sua disposição. Então, nós temos essa virtude. Vocês estão trabalhando agora com a disponibilização digital de alguns textos. Como é esse trabalho? A Fundação Gilberto Freyre entrou na internet em 1996, somos uma das primeiras instituições brasileiras a acreditar na internet como ferramenta de 250


divulgação. Mas para disponibilizar o acervo, eu preciso de recursos, porque não tenho como digitalizar toda a biblioteca, com seus 42 mil volumes. Então, o pesquisador que está distante, vai uma vez à Fundação, analisa todos os aspectos inerentes à sua pesquisa, identifica o que quer, a Fundação faz a digitalização e disponibiliza esse material na internet, para que ele possa, à distância, ter relação com nossa base de indexação. Trabalhamos com demandas específicas e passamos a alimentar essas bases de dados a partir dessas demandas. Como é possível preservar esse patrimônio? A Fundação nasce dentro da casa de Gilberto Freyre, que é tombada pelo Patrimônio Histórico, a nível federal. Ela está localizada dentro de uma área fechada por Mata Atlântica, na região noroeste na cidade de Recife, com umidade muitas vezes perto de 100% e que tem, dentro da sua área de preservação, um acervo gigantesco. Então usamos parte da expertise na gestão do patrimônio, não só do nosso, mas na gestão de patrimônio de terceiros, e o equilíbrio financeiro, para fazer com que essa casa funcione. Usamos essa discussão para trabalharmos com as parcerias adequadas, dentro, por exemplo, das estruturas de patrimônio histórico do estado de Pernambuco. As cidades de Recife, Olinda e Jaboatão, são das mais antigas do Brasil, com mais de 450 anos de vida e, portanto, têm estruturas de patrimônio histórico muito antigas. Então, o Instituto do Patrimônio Histórico estadual, ou federal, muitas vezes injeta grandes recursos para proteger, preservar e restaurar esse acervo, mas não consegue ver o ciclo econômico desse artefato, desse bem cultural tombado. Não consegue fazer girar economicamente e promover a sua manutenção, ou diminuir o custo da preservação, a partir do uso do espaço. Nesse sentido, a Fundação Gilberto Freyre tenta usar como ferramenta a visitação pública e turística, para criar um círculo econômico virtuoso e diminuir o impacto da ingestão de recurso público ou privado usados para restaurar esse bem tombado. Do ponto de vista material, tentamos diminuir o custo de restauração do patrimônio e do ponto de vista imaterial, atrelamos a visitação turística a toda uma gama de produtos e serviços relacionados ao entretenimento, à cultura, alimentação, moda, música, aos costumes e que podem ser utilizados dentro dessa área de patrimônio histórico. Ao tornar essas duas coisas atraentes, fazemos com que o turista não se interesse apenas pelo sol e pela praia para visitar o Recife, que tem mais de 450 anos de idade. 251


Como vocês analisam e trabalham toda a polêmica em torno da obra de Gilberto Freyre? A casa se mantém muito neutra em relação a isso, não entramos muito na polêmica. Na verdade, a polêmica faz parte da vida de Gilberto, que escrevia o que achava que tinha que escrever. E se ele não está mais aqui pra se defender, a Fundação também não está aqui pra defendê-lo. As perspectivas que Gilberto Freyre tinha em relação à sua obra, ele ou escreveu, ou se posicionou nas entrevistas que deu. Acho que não existe, desde que a Fundação Gilberto Freyre foi criada, nenhum tipo de manifestação da casa em relação a nenhum tipo de crítica, nem positiva, nem negativa, da obra. O que nós fazemos é estimular os pesquisadores a analisar, se posicionar e ter uma opinião sobre a obra de Gilberto Freyre. Trabalhar a obra do Gilberto é sempre trabalhar o homem, e talvez esse seja o grande problema, ou a grande deficiência de alguns críticos, que fazem a crítica à obra sem conhecer o homem, ou sem conhecer a profundidade que levou o homem a escrever determinado texto. O Gilberto viveu muito, teve muitos críticos, ele tem obras com mais de 70 anos de publicação. Mas muitas críticas são escritas sem que se analise críticas anteriores. Então, nós estimulamos a releitura, a reutilização, as pesquisas que estejam ligadas à modernização dos conceitos. O Casa Grande e Senzala não é o livro que mais reflete a civilização brasileira hoje, mas ele tem o seu valor do ponto de vista histórico e sócioantropológico e queremos que esse valor seja transferido para os dias de hoje. Esse é o papel que a Fundação Gilberto Freyre desempenha. Ela faz com que as pessoas não tenham essa miopia, não interpretem o livro apenas a partir do próprio livro. Nesse sentido, fazemos junto com a Editora Global, que é responsável pela linha editorial da Fundação Gilberto Freyre, ou por uma das linhas editoriais da Fundação Gilberto Freyre, um trabalho de atualização, colocando novos índices, novas ferramentas de pesquisa e cadernos de imagens, que não necessariamente faziam parte do livro original, mas que tentam pontuar o momento histórico em que aquele livro foi publicado. Tentamos colocar o leitor na perspectiva do autor e isso é uma coisa muito interessante de ser feita. A Fundação faz alguma restrição ao uso da obra de Gilberto Freyre? Não, nunca houve, por parte da Fundação, um pronunciamento sobre limitar algum trabalho sobre o Gilberto. Nossa posição é de que a obra deve ser interpretada de uma forma livre, desde que você assine embaixo e deixe 252


claro que a interpretação é sua. Além do respeito aos direitos autorais, que algumas vezes são nossos e outras são de terceiros. Nossa relação com a obra se dá muito mais do ponto de vista do acervo em si, do que nas análises e opiniões que podem surgir a partir do acervo. A família de Gilberto Freyre criou a Fundação na perspectiva de gerenciar seu patrimônio pessoal e intelectual, mas, muitas vezes, existem questões que passam pela relação familiar. Por exemplo, nós temos correspondências de amor entre Gilberto e Madalena Freyre e o filho deles resolveu não publicar. A Fundação é, certamente, proprietária desse acervo do ponto de vista legal, mas nesse caso, respeitou-se a condição de filho. Fale um pouco sobre o fim da vida de Gilberto Freyre e o começo da Fundação. Quando ele faleceu, no dia 18 de julho, aniversário de Madalena, sua esposa, eu tinha quase 14 anos. A Fundação Gilberto Freyre foi formalizada um pouco antes, em abril, quando ele já tinha sofrido um AVC e não falava mais. A formalização, na verdade, foi uma surpresa da família e amigos para ele, que não sabia o que estava acontecendo até ter a casa invadida por uma série de pessoas, com documentos para ele assinar. Foi uma surpresa muito positiva, porque ele viu a consolidação do seu acervo. No final da sua vida, ele tinha a consciência de que tinha um acervo de conteúdos importantíssimos, então ele demonstrava uma preocupação em relação a esse acervo, como isso seria preservado quando ele se fosse. A família abriu mão de qualquer tipo de herança e tudo virou acervo da Fundação Gilberto Freyre. Na casa que ele morou, nada foi alterado para se transformar em museu. Lá você tem a noção exata de como era o espaço do Gilberto. Quais são os recursos financeiros que geram a Fundação? Direitos autorais das obras de Gilberto Freyre. Essa ainda é a grande fonte de recursos, a principal. Mas temos conseguido diminuir a representatividade dela pelo aumento da base de capitação de recurso. No início, era quase 80% dos recursos que a casa tinha, hoje, acho que representa uns 30%, 40% do recurso usado para gerenciar o acervo. Utilizamos a lei de incentivo à cultura, e todas as estruturas de política de financiamento cultural que existem, tanto no estado, quanto no governo federal. A casa, hoje, entra num circuito de captação de recursos que está relacionada a atividades que são gilbertianas, em 253


conceito, mas que não estão relacionadas ao intramuros. Ou seja, não estão relacionadas ao gerenciamento do seu próprio acervo, mas à transferência da base de conhecimento que existe, para estruturas que estão fora da casa e na gastronomia, isso é muito claro pra gente. Hoje, no Recife, nós temos uma relação muito forte com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), porque começamos a pontuar o alimento não apenas como o que é produzido e entregue para você saciar uma necessidade, mas como uma ferramenta de congraçamento, o que é um conceito muito gilbertiano. Então, vamos atrás das origens daquele hábito de consumo, da produção daquele alimento, de como ele foi forjado, a partir de que influências, de onde veio o tempero. Começamos a fortalecer essa base de conhecimento a partir da perspectiva gilbertiana. Essa é a forma que a gente tem para tirar a obra de dentro do nosso acervo e transferir para as gerações, fazendo com que as pessoas absorvam esses valores a partir da nossa base de conhecimento. Ou seja, não precisa ler Gilberto Freyre, basta viver Gilberto Freyre. Para terminar, fale um pouco sobre o Seminário de Tropicologia. A formação de Gilberto Freyre é americana, ele foi alfabetizado em inglês, estudou no Colégio Americano Batista e, com 15 anos, foi estudar na Universidade do Texas. Na época, o Texas ainda vivia o preconceito racial, com a Klu Klux Klan e grupos que fortaleciam as discussões em cima da pureza racial, e isso mexeu muito com Gilberto. Por influência do colégio, ele desenvolveu algumas ações dentro da doutrina batista e colocou na cabeça que queria ser pastor. Inclusive, foi para o Texas na condição de desenvolver isso. Mas quando se deparou com aquela situação, rompeu com essa ideia e passou a ter um posicionamento mais neutro em relação à religião. Depois do Texas, por orientação dos próprios professores, o Gilberto foi para Nova York continuar suas pesquisas e tentar o mestrado na Universidade de Columbia. Talvez Nova York tenha sido o grande espaço de pensamento, de formação do caráter de Gilberto Freyre. Naquela época, no fim da Primeira Guerra Mundial, muitos bons pensadores europeus foram se refugiar na cidade e ela virou o grande espaço de pensamento e de criação desses pesquisadores, além de já ser uma cidade cosmopolita há muito tempo. Ele pegou a nata dos professores europeus e americanos da época, grandes economistas, cientistas sociais. A ideia do Seminário de Tropicologia vem da Universidade de Columbia, do Frank Tannenbaum, que é um dos grandes pensadores da Universidade. 254


O Tannenbaum criou um centro de estudos dentro de uma perspectiva de análise multicultural, com grandes pesquisadores estudando características de determinados povos que não estavam dentro da base de estudos originária daquela universidade. Gilberto participou muito dessas discussões, sentado na mesa com atrizes, diretores de cinema, políticos, engenheiros, físicos, pessoas das mais diversas áreas de conhecimento, que entrevistavam e discutiam com pessoas que tinham uma base de conhecimento que precisava ser sociabilizada. Havia um físico falando sobre a fissão nuclear e um teatrólogo que não entendia absolutamente nada disso, mas queria saber como o assunto poderia se relacionar com o teatro. A discussão se dava num nível em que todos podiam compartilhar e o Gilberto se interessou pela forma como elas eram criadas, fez alguns ajustes no modelo de Tannenbaum e aplicou no Brasil. Esse modelo funcionou, em Recife, durante mais de 40 anos. Não era um seminário aberto à discussão pública, era uma ferramenta extremamente controlada. Havia um palestrante, um debatedor, e o Gilberto mediava esse processo. E tinham 12 seminaristas, que faziam, provocados pelo debatedor, discussões cruzadas em relação ao tema, dentro da base de conhecimento de cada um. Isso gerou um acervo riquíssimo de conteúdo sobre o Brasil. E hoje todo mundo quer saber o que é o Brasil, o país está na crista da onda, no foco da mídia internacional, e temos um acervo de 40 anos que pode ser colocado à disposição das grandes universidades para se trabalhar, para se discutir. O Seminário de Tropicologia durante muito tempo funcionou na Fundação Joaquim Nabuco, então existem as revistas do Seminário, mas que circulam num ambiente muito pequeno de consumo, porque a tiragem é muito curta. É um material de belíssima coletânea de conhecimento, que marca períodos do Brasil muito interessantes, com discussões fantásticas mediadas por Gilberto Freyre, como a do General do 4° Exército com o presidente das ligas camponesas, por exemplo. As pessoas não conseguiam imaginar como é que o caçador e o caçado estariam juntos numa mesma mesa, mediada por alguém com livre trânsito, em uma discussão, que, na época, era inconcebível. E Gilberto conseguia se posicionar no meio, controlar e ordenar esse processo de uma forma muito mágica.

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Carlos Dowling Diretor da Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba.

O que é o Ponto de Cultura Urbe Audiovisual? O Urbe Audiovisual surgiu no primeiro edital do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Foi um momento muito importante para poder estruturar uma sustentação das ações associativas, que, no caso, a seção da Paraíba da Associação Brasileira de Documentário já vinha realizando há mais de duas décadas. A ABD é uma das organizações associativas do audiovisual de maior representatividade no Brasil, porque tem uma capilaridade nos 26 estados, além do Distrito Federal, e está há mais de trinta anos fazendo esse trabalho de articulação do audiovisual e das políticas culturais. O Ponto de Cultura Urbe Audiovisual foi um mecanismo muito importante para conseguir estruturar essas ações, que já vinham sendo realizadas de forma mais dispersa, sem uma estrutura de organização. A partir de 2005, tínhamos então uma perspectiva de planejamento, que no caso era bienal, e estaríamos investindo recursos nas três linhas principais de atuação da associação – e que viria a ser do Ponto de Cultura –, que eram a formação do audiovisual, a difusão do audiovisual e o auxílio à produção independente. Isso é importante porque a associação é formada de produtores independentes de audiovisual. Então, fazer esse diálogo e essa relação com a sociedade civil, e fazer planos e modelos de políticas públicas cultu257


rais, especificamente para o audiovisual, foram iniciativas governamentais muito importantes. Começamos o trabalho em 2005 e 2006, mas tivemos problemas, e até agora, em 2010, estamos esperando a última parcela do que seria os dois anos de trabalho, que deviam ter acabado em 2007. Formamos uma parte do grupo que fez o primeiro convênio dos Pontos de Cultura, que têm uma serie de problemas de gestão. É interessante ter essa consciência. A figura do boi de piranha não é muito benevolente, mas é fundamental ter a clareza de que são modelos novos, que abrem perspectivas importantes de inovações na área da gestão. Por outro lado, os procedimentos e as soluções de uma série de problemas não estão muito claros, não estão estabelecidos. É um processo em construção. Quer dizer, o programa Cultura Viva tem um ótimo conceito, mas, na prática, tem problemas de aplicação. Conte um pouco da experiência de vocês. O que essa experiência trouxe para perceber os problemas na prática? No nosso caso específico, na Paraíba, já tínhamos alguma experiência com o poder público, com o financiamento de projetos através das leis de incentivo, através da própria lei municipal ou dos prêmios federais, ou seja, tínhamos uma realização de projetos com prestação de contas. Ainda assim, tivemos sérias dificuldades em estabelecer um canal de comunicação efetivo com o Ministério da Cultura e com os gestores do projeto. Era uma equipe notavelmente pequena, diminuta em relação à demanda de trabalho. Não tenho os dados precisos, mas eram centenas de pontos de cultura, atualmente são milhares, e o grupo de gestão desses projetos era em torno de 15 pessoas. Vários deles eram funcionários terceirizados, que acabavam tendo uma série de problemas no encaminhamento desses recursos. Como eu falei, no caso do projeto do Ponto de Cultura Urbe Audiovisual, estamos esperando a terceira parcela, porque estão analisando as prestações de contas, que nós atrasamos para mandar. Mas eles também não têm uma equipe que responde em tempo hábil, nessa estrutura centralizada em Brasília. O conceito dos Pontos de Cultura é formidável, mas imagina uma comunidade quilombola, em Alagoas, que não tem experiência e que está situada em um lugar que não tem agência bancária: como você vai estabelecer esses contatos e esses modelos de gestão? Talvez fosse importante um tempo de capacitação antes de lançar o projeto, no caso específico do Cultura Viva. 258


Na verdade, foi uma aposta lançar o projeto com essa série de problemas e de impedimentos, na esperança de bons resultados e, ainda que com todas essas dificuldades, os resultados são muito interessantes. As comunidades, antes do programa Cultura Viva, não costumavam ter uma perspectiva muito clara, muito organizada, de como iam ser essas ações de formação e difusão cultural. A partir do momento em que você promete e não dá, cria-se uma sensação e uma situação de desconforto, que têm que ser corrigidas. E qual é a solução? Eu acho que o próprio governo federal está pensando mecanismos para resolver os problemas através da municipalização e estadualização dos novos pontos de cultura. Mas não é muito simples também, porque, se por um lado, o fato de se descentralizar pode aproximar os gestores dos produtores culturais, por outro, existe uma série de problemas políticos locais, que acabam influenciando na condução desses processos. Então, eu acho que é um modelo que não está muito claro, a solução não está clara. Acho importante comentar que uma possível solução a esse problema é o modelo de pontão de cultura, processo que conseguimos estabelecer entre 2007 e 2008. Pensava-se que, ao descentralizar o programa Cultura Viva, você teria células culturais que, naturalmente, iriam se organizar em rede. Mas, na prática, era notável que essa articulação em rede acontecia muito pontualmente, e de maneira descontínua. Então, surgiu o conceito dos pontões de cultura, que, basicamente, fariam essa articulação entre os pontos de cultura. E aí, em 2007, o governo federal abriu um edital. Preparamos o projeto Pontão Cultural Rede Nordestina Audiovisual, que pretendia articular os pontos de cultura da região Nordeste. Num primeiro momento, tínhamos centrado nos pontos de cultura, mas logo vimos que era interessante agregar outras iniciativas, inclusive porque o conceito do Cultura Viva é de cada vez mais ampliar o número de pontos de cultura. Então, trabalhamos pontos de cultura, associações de audiovisual, núcleos de produção digital e coletivos de produção audiovisual, de maneira geral. Acredito que o governo federal deve ter aprendido com a série de problemas na gestão dos primeiros convênios do programa Cultura Viva, e propôs um modelo diferente para os pontões de cultura. Em vez de parcelas de financiamentos, o dinheiro, quando aprovado, entrava de uma única vez, o que facilitou muito, e resolveu os problemas de atraso no repasse.

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O que vocês fazem no Pontão? A meta principal do Pontão é construir um espaço de articulação, interlocução e intercâmbio de processos, procedimentos e, inclusive, de modelos de gestão, que é uma coisa que precisamos refinar um pouco. São três linhas principais de ação. A primeira é catalogar e fazer um levantamento histórico das filmografias. Começamos pela Paraíba. Fizemos um levantamento, catalogamos e estamos verificando a qualidade dos curtas-metragens, desde a década de 1960, que é quando tivemos o primeiro acesso, até as produções atuais. Feita essa catalogação e esse levantamento, vamos estar disponibilizando isso em boxes de DVDs, que serão distribuídos entre pontos de cultura e cineclubes. A princípio não são para fins comerciais: só para uma distribuição, para difusão. Além dessa distribuição física, também estamos preparando um portal, o www.rna.org.br. A Rede Nordestina Audiovisual é uma plataforma, então? É uma plataforma feita em parceria com o LAVID, Laboratório de Aplicações em Meio Digital, do Departamento de Informática da Universidade Federal da Paraíba, que é um laboratório importante. Ele está na vanguarda dos estudos do vídeo digital e tem sido um grande parceiro. A plataforma está sendo desenvolvida para compartilhamento de conteúdo audiovisual, de curtas-metragens, num primeiro momento. Há uma diferença: como é uma comunidade de produtores de conteúdo, que trabalham também com a parte de difusão, através de cineclubes ou eventos de exibição, disponibilizamos downloads e uploads com, pelo menos, qualidade de DVD. Estamos experimentando agora os novos formatos de alta definição e alguns codex, porque a ideia é não só poder assistir no computador, como poder fazer cópias e exibir com qualidade nos cineclubes. Temos outras linhas também, porque existem uma quantidade de canais de TV digital, televisões comunitárias, redes públicas de televisão, que têm uma demanda enorme de conteúdo. E, por outro lado, há uma série de produtores de conteúdo que precisam estar escoando essa produção. O portal não está preparado para isso, mas é uma coisa a médio prazo. Estamos pensando como fazer essa comunicação, como mostrar esse catálogo de produções do Nordeste para essas redes de televisão, que podem se tornar um canal de acesso às obras.

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Como trabalhar com os direitos autorais se o download é gratuito? Essa foi uma discussão que levantamos em vários momentos, sobre qual modelo de licenciamento trabalharíamos, e pensamos que o mais interessante seria delegar, ou deixar que os produtores de conteúdo resolvessem como iam disponibilizar as suas obras. Então, quando você se cadastra no portal para disponibilizar um vídeo, surgem as opções de modelos de licenciamento. Temos quatro modelos de Creative Commons, com algumas variações para usos não-comerciais, para obras derivadas. Temos a opção Arte Livre, que é uma licença que surgiu a partir da discussão do Creative Commons, que é um pouco mais aberta. Uma opção em que o usuário aponta que licença ele está usando, além da opção em que o usuário opta por nenhuma licença específica, o que significa que ele está usando a atual lei dos direitos autorais, com uma série de restrições. E eu acho que isso tem uma função até didática, estamos levantando a questão. É um momento interessante, porque é a primeira vez que se delega ao artista, ao detentor dos direitos, a opção de licenciamento. Em relação ao conhecimento no meio digital, na ciência ou no meio acadêmico, existe a noção de open source, da fonte aberta, dos dados abertos. Você acha que é possível utilizar essa mesma noção de open source para documentários, em que as pessoas coletam um grau gigantesco de informação e editam apenas um pequeno pedaço? Em que as pessoas disponibilizem, além do produto final, as imagens coletadas? Acredito que sim. Essa é uma linha que tem que ser instigada e tem que ser promovida. Ela é ainda mais importante quando se fala em recursos públicos, especificamente para financiamentos de cultura. Existe uma linha de ativismo que achamos importante. O portal que nós estamos preparando é todo feito em open source, em código aberto, porque acreditamos que essa experiência tem que ser compartilhada, para poder ser replicada em outras redes semelhantes. No caso específico do documentário, acho que, por um lado, é muito rico, mas também é muito enigmático como vai se resolver essa questão, ainda mais com a presença das televisões comerciais. Temos esse repositório de conteúdo documental em código livre, mas, se isso está sendo usado com fins comerciais, como vai ser essa relação entre os produtores de conteúdo e os canais de exibição? Estamos num momento de várias dúvidas. Ainda não se tem um modelo muito claro, mas, ao mesmo tempo, é uma fase muito instigante de estar pensando e experimentando alguns modelos 261


e formatos novos, que podem até não dar uma resposta, mas que levantam hipóteses. Como são a Kaltura e o software livre de vocês? Na verdade, nós não estamos aplicando ainda o Kaltura, mas é um código que está sendo utilizado para vídeo, que dá a possibilidade de reedição de forma muito ágil, e que está sendo recomendado pelo Ministério da Cultura. Nós ainda estamos utilizando outro formato, o VideoFlow, em Flash, que é um formato proprietário, não é em código aberto. O Kaltura, sim, é um software open source, e estamos estudando como fazer essa migração. O interessante é que o Kaltura aposta nessa possibilidade de reedição de material, mas é um software que estamos precisando estudar mais, para ver como incorporar e como lidar com essas relações de reedição e sampler. Como é a relação dos realizadores que estão na Associação Brasileira de Documentário com a questão do licenciamento da produção pública? Dois tópicos a falar sobre isso. Primeiro, é reconhecer a importância de estar levantando e catalogando essa filmografia. Isso, de antemão, tem a simpatia dos realizadores. Essa caixa, com nove DVDs, contém uma importante produção paraibana, começando com Aruanda, um filme seminal, de 1959, que vai influenciar todo o cinema novo, até produções feitas no ano passado, com câmeras fotográficas subaquáticas. Então, de antemão, a catalogação e a disponibilização desse conteúdo são recebidas de maneira muito simpática. Os realizadores mais antigos, como Linduarte de Noronha e Vladimir Carvalho, e os da novíssima geração, ficaram felizes em disponibilizar seus curtas-metragens para exibições não comerciais. Mas eu acho que depois dessa simpatia inicial, virá a questão de como remunerar esses realizadores. Além disso, grande parte dos vídeos será disponibilizada no portal, e temos obras antigas, de realizadores, detentores dos direitos, com os quais não temos acesso. Quer dizer, não temos como simplesmente disponibilizar e escolher o tipo de licenciamento. É uma discussão que ainda está em processo, e por isso eu acho que é importante estarmos comentando sobre os modelos de licenciamento. Temos um projeto parceiro, que se chama Rede de Intercâmbio de Produção Educativa, o RIPE, e é desenvolvido pelo mesmo Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital. O RIPE é uma comunidade para professores e 262


alunos do ensino público da Bahia, e qualquer conteúdo do portal tem que estar necessariamente em licença livre, para que cada professor e cada aluno possa baixar o vídeo, fazer reedições, utilizá-lo. É uma linha diferente da que usamos no nosso portal, porque temos uma comunidade específica de utilizadores, onde não era interessante obrigar um modelo de licenciamento ou outro, mas estar divulgando. Nosso portal ainda está em teste, estamos resolvendo questões de cadastro. Até agora só tem dois vídeos disponibilizados, e um deles é um vídeo meu. Disponibilizei no Creative Commons, no licenciamento mais geral, porque me interessa, até para servir como exemplo, colocar minhas obras nesses modelos de licenciamento livre. Como está a produção atual, com as novas tecnologias e equipamentos? Foi ampliada e intensificada? Sim. Inclusive, nós fizemos uma catalogação por décadas, então tem um DVD para cada década, de 1960 a 1990. Quando chegamos na década de 2000 até 2010, tivemos que fazer três DVDs. Aí tem uma série de explicações, tem o problema do acesso às matrizes mais antigas e o problema da conservação dessas matrizes. Temos telecines com qualidade mínima. Isso porque estamos fazendo ainda os da Paraíba, onde temos o trabalho sediado, e temos mais acesso. Imagina quando formos fazer de outros estados do Nordeste. Cada estado terá um DVD com duas horas de curtas, escolhidos pela relevância histórica, digamos assim, e produzido em parceria com as ABDs estaduais e outras organizações. Então, temos essa dificuldade em ter acesso a esse conteúdo, especialmente os da década de 1960. Na década de 1990 isso já melhora, até por uma questão de proximidade cronológica e, naturalmente, pelo contato com os realizadores. O acesso às masters é muito mais fácil. Mas, por outro lado, isso reforça a importância de estar fazendo um trabalho de restauro, de levantamento, de conhecer essas produções feitas nas décadas passadas. Nesse portal, existe a intenção de criar, ou disponibilizar, uma reflexão crítica sobre a produção audiovisual? Sim, um dos pontos principais, nesse primeiro ano de concepção e desenvolvimento, é como vincular tópicos e fóruns de discussão sobre o conteúdo compartilhado, bem como catalogar e indexar os vídeos. A ideia é que, ao cadastrar um vídeo, o usuário preencha uma ficha que, automaticamente, 263


será direcionada para um fórum de discussão com alguns tópicos centrais. A primeira catalogação é estadual, através dos nove estados do Nordeste, que teriam fóruns para discussão da produção local. Eu acho que o interessante é refinar essas tags de indexação e pensar como podemos juntar essa troca de conteúdo com a discussão crítica. Além da discussão crítica sobre política e gestão, tem toda parte da discussão sobre a estética, e é interessante pensar em pontos de convergência entre essas discussões. O portal vai nessa linha. Tenho a impressão que está faltando ainda pensar em alguma ferramenta, algum dispositivo que torne esse diálogo mais fluido. Ainda estamos acostumados com o modelo do YouTube, que é um repositório, em que no máximo você pode baixar e fazer algum comentário. Mas como indexar discussões com outros conteúdos é uma grande pergunta, estamos experimentando e tentando ver se é possível apresentar alguns modelos através do portal. É possível fazer do portal um espaço de reflexão? Eu acredito que sim. Aí entra um ponto importante, que é essa relação com a rede pública de televisão, até para chamar atenção para o próprio portal. Uma revista eletrônica é uma ideia bacana, fazer uma revista sobre o audiovisual do Nordeste, onde cada estado produz, digamos, quatro minutos ou três minutos sobre a realidade local. Esse conteúdo pode ser editado de forma colaborativa e compartilhada, e pode ser disponibilizado depois na rede pública de televisões. Estou insistindo na rede pública porque fui convidado para assumir a direção de programação da TV UFPB, que é uma emissora associada à TV Brasil, e acho que é um momento muito interessante de juntar a fome com a vontade de ver. É basicamente isso, juntar os produtores de conteúdo, que estão com esse conteúdo meio que parado, e essa rede pública, que precisa de conteúdo. Então, acho que é um ponto de convergência quase natural, e, se não é natural, vamos fazer com que seja naturalizado. Estou trabalhando nos dois lados, com os produtores de conteúdos independentes e agora com a rede púbica de televisão. Quer dizer, na verdade, não se deve pensar em dois lados distintos: estão no mesmo campo de trabalho e batalha, digamos. A TV digital é uma questão em aberto, que, se não for pensada logo, será dominada, e será um espaço fechado de novo. Tem dois pontos importantes quando se fala na TV digital, que são duas linhas. Uma é a alta resolução de vídeo, ou seja, a quantidade de linhas e pixels 264


vai aumentar. Mas tem outra linha, que é a interatividade, que eu acho que ainda é uma incógnita: não se sabe como isso vai ser processado. No meu entendimento, fica muito claro que o papel da rede pública de televisão é de estabelecer esses novos padrões de uso da interatividade na TV digital. Porque, pensando na lógica das TVs comerciais – e aí até estou falando baseado em algumas falas de Guido Lemos –, se você está trabalhando interatividade com quatro finais diferentes, vai ter que quadruplicar o investimento. Mas o retorno, nesse modelo de comercialização, é o mesmo. Então, como justificar que eu vou aumentar o meu investimento e diminuir o meu lucro? Dentro da lógica das televisões comerciais, a forma de lidar com a interatividade não é um ponto pacífico. Acho que a rede pública, por ter outras especificidades e outros interesses, é o espaço para se pensar a interatividade e potencializar a televisão como um instrumento de utilidade pública, de serviços. E, na parte estética, da narrativa audiovisual, abre-se também uma série de possibilidades, até de uma dramaturgia estendida, com roteiro interativo, que eu acho muito bacana. A ideia da interação já está no conceito básico do drama, desde Aristóteles, mas tecnicamente temos como fazer com que o leitor, ou no caso, o espectador, deixe de ter uma atitude espectral passiva e passe a ter uma relação ativa. Nessa linha, dentro da interatividade, o que mais me encanta é a abertura do canal de retorno, que, para além de botar sim ou não, o espectador ou a espectadora pode mandar o conteúdo que faz em casa de maneira amadora. Essa é uma perspectiva muito rica, mas, no ponto em que estamos, isso ainda não é possível de ser testado na TV digital. Então é importante estimular e criar canais de experimentação para que, com sorte, a TV digital se transforme em algo mais do que apenas uma TV no mesmo modelo analógico que conhecemos, com os mesmos vícios, só que com uma tela maior, com mais brilho e mais linhas. O público do portal que vocês estão desenvolvendo é prioritariamente de realizadores? O primeiro perfil da comunidade de usuários é esse mesmo, de realizadores, mas logo teremos uma ampliação, com a rede de cineclubes. Existe um programa chamado Cine Mais Cultura, que está criando uma rede de cineclubes em todo o país e que potencialmente estará interessado nesse espaço, ou seja, você terá acesso a curtas produzidos em cada um desses estados, poderá fazer downloads e passar nas sessões do cineclube. Como ampliar o perfil do 265


público também é uma das discussões, e também pensar na rede pública de ensino, no audiovisual como instrumento pedagógico. Aí volta a questão da indexação dos tags, dos metadados e de como os professores podem utilizar esse repositório audiovisual como instrumento pedagógico. Nesse sentido, o público se amplia, entram os professores e, concomitantemente, os alunos e alunas da rede pública de ensino. Mas tem que existir um freio também. Não dá para querer ampliar demais, porque pode perder o foco. A ideia não é fazer um YouTube público, em software livre; é trabalhar no conceito de comunidade, ou seja, reunir um grupo de usuários interagentes, que tenham o mínimo de afinidades, o mínimo de proximidades no perfil. Isso é interessante porque dá força ao projeto. Outra perspectiva para a ampliação do portal é a relação com a rede pública de televisões, que pode ser muito rica para os dois lados. Mas ainda não ficou claro como seria a relação dos produtores com as TVs. É uma perspectiva muito plausível e interessante, e vale um investimento para ampliação da ferramenta. Nos anos 1970, houve uma grande onda de super-8, que unia João Pessoa, Recife e Natal. Essas redes naturais continuam existindo nessas cidades ou estão sendo reconstruídas? Nós fizemos esse levantamento do conteúdo do super-8, principalmente do final da década de 1970 e dos anos 1980. Existem algumas obras muito interessantes, que trazem essa relação entre Pernambuco, Paraíba, especialmente com a obra de Jomard Muniz de Britto, que foi professor na UFPB, e depois foi morar em Recife. O fato de Recife ter seu centro de produção mais bem consolidado faz com que sejam mais detectáveis essas redes de criação natural. Fizemos um encontro em João Pessoa com uma média de cinco a seis representantes de cada estado, para discutir as caixas de DVDs, o portal e o Pontão de Cultura, para, efetivamente, levantar essa rede que estava sendo proposta. Não está muito claro como vamos articular essas redes de produção de conteúdo colaborativo, compartilhado, mas uma experiência que está em processo agora é o projeto do XPTA.LAB, que é um edital de inovações tecnológicas, proposto pela Secretaria do Audiovisual e pelo Ministério da Cultura, em parceria com a Sociedade Amigos da Cinemateca. Entramos com um projeto junto com o LAVID e conseguimos articular nove estados da região, quer dizer, dois estados da região Norte e sete estados da região Nordeste. Basicamente, cada estado parceiro vai produzir um programa-piloto, que 266


trabalha com interatividade na televisão. E a relação de programadores de informática com os roteiristas, essa junção da expertise das Ciências Exatas com as Ciências Humanas, com a expressão artística, está sendo muito rica. Então, respondendo a sua pergunta sobre essa possibilidade de articulação, não está muito claro como vamos fazer isso na prática, mas existem alguns experimentos e processos nessa linha, que provocam e estimulam essa criação regional compartilhada. Por que até hoje existe essa timidez da produção audiovisual brasileira mais independente em criar diálogos com outras formas, como, por exemplo, o jogo eletrônico, a toy art? Não acho que o problema seja a falta de recurso. Acho que faltam esses espaços híbridos, olhar com mais tenacidade, digamos assim, essas novas formas de expressão. Essa é uma postura um pouco equivocada: não pensar o fluxo dos processos expressivos como uma coisa dinâmica. Tenho um interesse muito grande em trabalhar com os videojogos. Esse projeto que eu estava comentando, do XPTA.LAB, trabalha interatividade e teledramaturgia, e tem uma estrutura de composição narrativa muito inspirada nos videogames, nessa composição das múltiplas possibilidades dos jogos eletrônicos. Noto uma tendência de abertura a esses espaços híbridos, de experimentação de linguagens, e temos que ver como estimular e ajudar para que isso se fortaleça e se amplie. De maneira geral, o cinema comercial, o cinema de autor, a priori torce a cara para essas novas experimentações, mas acho que estamos num processo de aproximação com as novas linguagens e com as inovações tecnológicas.

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PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL

Coordenação do projeto | Beijo Técnico Produção Artística Fabio Maleronka Ferron Coordenação geral Ana Rosa Cruz, Caroline Rodrigues, Dalva Santos e Monnik Poubell Produção geral Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy Pesquisa Coordenação editorial | Azougue Editorial Sergio Cohn Coordenação editorial Carolina Noury Projeto gráfico e capa Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto e Larissa Pinho Preparação de texto Eduardo Coelho, Letícia Ferres e Vitor Ehring Revisão de texto

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Giselle Coelho, Marta Lozano e Evelyn Rocha | Azougue Editorial Equipe editorial Elisa Ramone, Filipe Gonçalves e Lilian Diehl | Azougue Editorial Produção editorial Coordenação da plataforma digital | Fli Multimidia André Deak, Lia Rangel e Rodrigo Savazoni Coordenação da plataforma digital Felipe Lavignatti, Gabriela Agustini, Leonardo Feltrin Foletto e Lucas Pretti Editores de conteúdo Rafael Mantarro Design gráfico Coordenação áudio-visual | Garapa Coletivo Multimídia Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes Fotografias Entrevistas Fabio Maleronka Ferron e Sergio Cohn Entrevistas Sergio Cohn Edição final das entrevistas Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni Participação especial

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Colaboradores Alícia Peres, Aline Rabelo, Aloísio Milani, Daniel Barosa, Daniel Yuhasz, Fabio Koji Tashiro, Gideoni Junior, Luís Pini Nader, Quadradão, Roberta Carteiro, Roberto Taddei, Simone Andrade, Sylvio do Amaral Rocha e Valterlei Borges

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