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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa Guga Ferraz Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 7 | setembro de 2014 ISSN: 2318-1192
Sumário Debate: Brasil Hoje Pôster | Ericson Pires Entrevista | Ernesto Neto Rio em Chamas Vozes&Visões | Manifesto Poesia e Erotismo Caronte | por Rafael Campos Rocha
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Caro leitor, com esta sétima edição, a nossa NAU chega ao final da sua primeira travessia, esperando que outras venham. O presente número de NAU traz um debate sobre o Brasil hoje, no momento de uma ampla reinvenção política e social, retratada por exemplo nas intensas movimentações de Junho de 2013. O debate foi realizado por Bruno Cava, Cezar Migliorin, Idelber Avelar, Pablo Ortellado, Rodrigo Savazoni, Rosana Pinheiro-Machado e Tatiana Roque. A estrutura do debate foi horizontal, com os próprios participantes elaborando perguntas a serem respondidas pelos outros. O entrevistado é Ernesto Neto. Um dos mais importantes artistas visuais contemporâneos, Ernesto está criando uma obra de grande originalidade e intervenção, como ao incorporar elementos ritualisticos da etnia huni kuin, inclusive o ayahuasca, no seu último trabalho, exposto em agosto de 2014 em São Paulo. Ernesto também é um dos criadores da galeria de arte A Gentil Carioca. O pôster central é uma homenagem a Ericson Pires, poeta e agitador cultural falecido em 2012, com ilustração de André Dahmer. NAU traz ainda Daniel Caetano falando sobre o filme-manifestação Rio em Chamas, uma produção coletiva sobre Junho de 2013 e seus precedentes e desdobramentos, e o Manifesto Poesia e Erotismo, que faz parte do ato teatral P.U.T.O., com dramaturgia de Danilo Monteiro, e realizado pelo Dolores Boca Aberta. Por fim, o último ato nos mares ao lado de Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!
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bruno cava
cezar migliorin
debate
brasil hoje PABLO ORTELLADO Estamos vivendo em um Estado de exceção? O conceito é adequado para explicar as medidas que suspenderam ou limitaram os direitos civis durante a Copa? Ele é adequado para explicar os abusos e a perseguição contra ativistas? Ele é adequado para explicar a realidade cotidiana das periferias brasileiras? [Bruno Cava] Em muitos aspectos, o fim do período da ditadura militar não significou uma conversão à democracia. Exemplos disso estão em um contínuo de mecanismos ditatoriais que se mantiveram, como a prática de execuções sumárias e tortura, o racismo institucional e a concentração dos meios de comunicação em algumas famílias ligadas intimamente ao regime ditatorial. O Estado de direito formalizado pela Constituição de 1988, portanto, embute em sua dinâmica dois polos, de um lado a abertura democrática propiciada pela possibilidade de auto-organização social, direito de manifestação e algumas garantias básicas, de outro, a transmissão quase intocada dos citados mecanismos. Tal funcionamento é consistente com teorias jurídicas sobre o Estado de exceção, como por C. Schmitt e, mais recentemente, sua atualização por G. Agamben. O Estado de direito pode conviver com o Estado de exceção enquanto um limiar interno, que contrai ou dilata em função da ação do Estado. É que o direito estatal, para ser eficaz, precisa de uma situação de normalidade que determina a medida do justo/injusto, do punível/não-punível. O quantum de exceção depende, portanto, desse quadro de normalidade do regime. Se, no Brasil, os mecanismos ditatoriais se encontram normalizados (grande mídia, racismo, práticas de tortura e execução sumária), pode-se dizer que o Estado de exceção coexiste em relação ao Estado de direito. Isto significa que, não se trata tanto de reclamar pela restauração de um Estado de direito, uma vez que nele está pressuposta tal normalidade (a propriedade privada e concentração dos meios de produção são vistas como justas, a atuação dos grandes meios de comunicação como liberdade de imprensa, a homofobia como pluralismo etc). Trata-se, antes, de gerar por meio de lutas constituintes outro tipo de exceção, uma que seja a desarticulação do limiar interno ao Estado, em que a exceção existe como regra. O que Walter Benjamin, no seu debate de filosofia do direito com Carl Schmitt, chamava de Estado de exceção efetivo. Foi justamente isso que, muito incipientemente, aconteceu no levante de 2013. Campanhas como Cadê o Amarildo?, o enfrentamento direto da brutalidade policial e a aparição nas ruas de uma recusa aos grandes meios (como no grito “A verdade é dura...”), colocaram em xeque não tanto o Estado de direito, mas a normalidade pressuposta no regime de 1988. O que Marcos Nobre, da Uni-
camp, chamou de abertura de novo ciclo, não mais “redemocratização”, mas democratização direta, a fim de acelerar a transição à democracia que não se concluiu. A atual dilatação do limiar de exceção, pegando outros alvos, é uma consequência da força daquele ciclo, uma resposta do poder constituído. Essa dilatação é, contudo, um sintoma de um funcionamento normal, das potencialidades perversas dessa normalidade, menos do que algo novo. Por isso, Estado de exceção é adequado desde que não seja usado pra generalizar o regime político-constitucional pós-88, mas para diferenciar limiares internos e dispositivos de exceção articulados à operação do direito. Exceção não é anomia, mas excesso de direito, o momento em que a normalidade (a ordem pública, o respeito às instituições, a autoridade da polícia, da milícia...) deve ser garantida a qualquer custo, e os caldeirões de Hamburgo, invasões policiais na noite da favela ou ações de extermínio deliberadas são esse momento em que medidas com força de lei atuam com máxima incidência, sem lei. Estado de exceção e Estado de direito são ambos conceitos necessários na explicação, bem como um conceito de fuga, perspectivo, como a “exceção efetiva” de WB. [Idelber Avelar] Não tenho muito a acrescentar à resposta do Bruno, que subscrevo. Lembremos que ao dizer “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘Estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”, Walter Benjamin instala uma fissura no conceito de normalidade democrática com o qual trabalhava a social-democracia europeia daquele momento. Ele lembrava que, do ponto de vista dos oprimidos, a brutalidade que então se testemunhava era a experiência cotidiana. A tentação a se evitar ao adotar o postulado benjaminiano é não saltar daí para uma visão do Estado democrático de direito como mera ilusão ou puro formalismo. As conquistas associadas ao chamado Estado democrático de direito – livre associação e manifestação, liberdade de imprensa, sufrágio universal etc. – são reais e devem ser defendidas. Mas elas não podem ser defendidas como se já tivessem alcançado sua expressão plena, como se se tratasse meramente de manter um status quo já realizado. Diz-se, com frequência, que no Brasil a democracia é incompleta, que ela não é uma democracia verdadeiramente liberal e moderna. Mas, ao se dizer isso, em geral omitese o fato cristalino de que as democracias do Atlântico Norte também estão atravessadas por procedimentos do Estado de exceção: encarceramentos arbitrários, espionagem de cidadãos, restrições violentas ao direito de livre manifestação sempre ocorreram e são hoje cada vez mais comuns, especialmente depois dos movimentos de ocupação de 2011.
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idelber avelar
pablo ortellado
rodrigo savazoni
No caso brasileiro, acredito que o processo mais marcante dos últimos dois anos foi a extensão, a cidadãos de classe média, de procedimentos do Estado de exceção vividos cotidianamente pelas periferias urbanas, trabalhadores rurais e comunidades indígenas. Com as grandes manifestações de 2013, as prisões arbitrárias, a brutalidade policial e a tortura nas delegacias passaram a atingir também estudantes de classe média, professores universitários, funcionários públicos. Em outras palavras, o Estado de exceção passou a atravessar o Estado democrático de direito em interseções onde ele até então não ocorria, pelo menos não na mesma frequência e com a mesma intensidade. Vejo, então, um recrudescimento do Estado de exceção exatamente porque os limites do Estado de direito começaram a ser testados de forma que ainda não haviam sido no Brasil das últimas décadas. Não tenho dúvidas de que “Estado de exceção” é hoje um conceito chave para descrever o nosso presente. [Rodrigo Savazoni] Essa questão desperta em mim algumas ponderações: me parece que a questão da juventude preta e pobre é muito anterior a Junho. Parece-me que parte dessa juventude, organizada, tenta conectar Junho a uma ancestralidade outra. Recupero aqui um trecho do poema que o Sérgio Vaz, da Cooperifa, escreveu ainda em julho de 2013: “Teu medo faz sentido/ Em tua direção/ Vai as mães dos filhos mortos/ O pai dos filhos tortos/ Te devolverem todos os crimes/ Causados pelo descaso da sua consciência./ Quem marcha em tua direção?/ Somos nós,/ Os brasileiros/ Que nunca dormiram/ E os que estão acordando agora.” Vaz tenta abraçar todos os que se somaram e que tiveram a chance de se reconhecer como índios nesse processo, de se perceber índio, em luta contra um estado historicamente opressor, esse estado não-índio. Sérgio Vaz: “Somos nós, os pretos, os pobres/ Os brancos indignados e os índios/ Cansados do cachimbo da paz./ Essa voz que brada que atordoa seu sono/ Vem dos calos da mãos, que vão cerrando os punhos/ Até que a noite venha/ E as canções de ninar vão se tornando hinos/ Na boca suja dos revoltados.” Tenho só dificuldade de começar a ler a realidade a partir do momento de Junho, de não percebermos o quanto disso tudo é longa duração, que teve outros vários momentos de afirmação. Não se trata de diminuir a importância do ocorrido, mas também de tentar não visualizar em um levante momentâneo o momento definitivo em que tudo passou a ser distinto. Outra questão relevante é fazermos uma distinção apriorística em que todo autoritarismo é expressão de um sistema outro que não a democracia. Ou seja, a democracia passa a ser idealizada como um momento não -autoritário se levarmos esse raciocínio às últimas consequências. A nossa
rosana pinheiro-machado
tatiana roque
democracia, surgida de um pacto sem rupturas com o governo militar, é autoritária e violenta. Desmontar essa bomba é um dos principais desafios que temos pela frente. Ao menos para aqueles que entendem que é preciso insistir com uma ideia de democracia, uma ideia melhor de democracia. [Pablo Ortellado] Se me for permitido um breve comentário à minha própria questão. Acho que é preciso reforçar mais uma vez a dualidade de classe da proteção aos direitos civis. Para uma pequena parcela da população brasileira há uma vigência mais ou menos plena dos direitos civis – pelo menos se tomarmos como parâmetro de proteção plena a proteção supostamente conferida por esses direitos nos países “centrais”. À medida que vamos descendo na pirâmide social brasileira essa proteção é cada vez mais incerta, até ser completamente ausente na base. Essa dualidade de classe também vale para os países centrais nos quais a proteção do direito civil também não é igualmente distribuída (por exemplo, não vale plenamente para os negros dos guetos norte-americanos ou para os imigrantes na Europa). Apesar disso, nesses países, é possível criar a ilusão de que a universalidade formal do direito é efetiva enquanto aqui a crença na universalidade seria um verdadeiro delírio. Justamente por isso, talvez seja mais fácil exercitar a crítica a partir de países como o Brasil onde a ideologia obviamente não funciona – o que uma certa tradição crítica chama de “posição privilegiada da periferia”. A questão permanece sobre o que fazer com esse diagnóstico. Vamos fazer a crítica do direito e a partir daí vamos para onde? Pois se a solução é efetivamente universalizar o direito, não estamos fazendo uma crítica negativa, mas positiva – o que, aliás, creio que é o programa do Marcuse de “fazer cumprir a ideologia”, isto é, de não pressupor que a falsidade da ideologia está nos seus valores, mas apenas na presunção de que foram efetivamente realizados. [Tatiana Roque] Acho mais produtivo pensar o momento atual a partir da noção de governamentalidade (ou governança), como proposta por Foucault em O nascimento da biopolítica. Ele não parte de uma teoria do Estado, mas investiga o problema da relação entre Estado e sociedade por meio das práticas de governamentalidade. Na passagem do liberalismo ao neoliberalismo a questão não é mais saber que liberdade deve ser dada à economia, mas encontrar um modo para que a liberdade na economia possa ter um papel de estatização. O objetivo primeiro do neoliberalismo, histórica e politicamente, foi garantir que a liberdade econômica pudesse ser, ao mesmo tempo, fundadora e limitadora, garantia e caução de um Estado. É assim que o neo-
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liberalismo produz inversões importantes em relação ao liberalismo. Um bom exemplo é a concorrência, que não é mais vista como um dado natural, mas deve ser produzida por uma política governamental. A fim de que se produzam, se multipliquem e se garantam as liberdades necessárias ao liberalismo econômico, a sociedade torna-se alvo de uma intervenção governamental permanente. A tecnologia neoliberal de governo incide sobre a sociedade e produz certo tipo de subjetividade. Para o bom funcionamento do sistema, nada deve ser imposto, mas é preciso preparar um meio em que o indivíduo reaja de um certo modo, e não de outro. A ação da norma é, então, desnecessária, pois a gestão dos indivíduos se dá pela produção desse meio, dentro do qual cada um tem um espaço considerável para agir, mas é incitado a agir em determinada direção. A constituição desse meio é biopolítica. Do ponto de vista da subjetividade, surgem as figuras do empresário de si mesmo e do capital humano, que coloca no indivíduo a responsabilidade pela sua inserção no mercado. O que acontece com esse modelo depois das crises neoliberais dos últimos anos? A crise das hipotecas traz impasses para um modelo que se alardeava como capaz de produzir bem-estar social pela via do endividamento pessoal. Na Europa, os problemas são similares. Apesar do que se diz por aqui, isso tudo tem relação com o Brasil. Os megaeventos, e tudo o que se tem feito em nome deles, só confirmam nossa importância nesse cenário. É vital para o neoliberalismo que seu projeto ainda possa ser visto como capaz de abrir espaço para alguma justiça social, sem ferir seus fundamentos. Isso acontece no Brasil, mas também em outros países, como a Turquia. Mas para a surpresa de todos, surge algo que não estava previsto, os protestos. E junto com eles a recusa à promessa de emancipação pela via neoliberal. Em diversos países, as manifestações tiveram essa conotação (contra as marcas e os bancos, contra a privatização do espaço público e dos direitos básicos, como saúde e educação). O empresário de si parece cair em descrédito e se alastram as críticas contra o modo de vida neoliberal. Os levantes nos países árabes, na Espanha, na Turquia e no Brasil parecem ser facetas da mesma crise: institui-se uma disparidade entre o modelo de subjetividade proposto pelo neoliberalismo e a valorização capitalista em sua forma atual. Essa é a definição da crise neoliberal, como propõe Maurizio Lazzarato (Gouverner par la dette). Diante dessa recusa, as técnicas disciplinares e soberanas se intensificam, a violência estatal aumenta. O Estado precisa reencontrar seu fundamento e sua legitimidade e a polícia é sempre um recurso para o poder estatal. A nova ofensiva de repressão contra os movimentos sociais pode passar também por esses fatores. Para entender melhor, seria preciso analisar como a governamentalidade neoliberal se transforma depois da crise. Ainda não tenho as respostas, mas acho esse caminho mais promissor do que o uso do conceito de Estado de exceção. PABLO ORTELLADO O que explica a derrota da esquerda no que outrora chamávamos de disputa por hegemonia cultural? A esquerda cometeu um erro tático ou houve uma reconfiguração na dinâmica da disputa cultural? [Idelber Avelar] Creio que teríamos que precisar melhor o sentido dos termos “hegemonia cultural” e “esquerda” antes de responder essa pergunta.
Pelo menos segundo uma certa definição tradicional de “esquerda”, a hegemonia cultural no Brasil continua sendo dela. A maioria da população brasileira é favorável a algum tipo de intervenção reguladora do Estado que corrija as desigualdades produzidas pelo capitalismo, os inimigos das cotas raciais são hoje uma força marginal e nenhum candidato a Presidente, nem mesmo os mais direitistas, teria coragem de propor a abolição do Bolsa Família. Por outro lado, o apoio ao punitivismo estatal, à adoção de pena de morte, à limitação dos direitos reprodutivos das mulheres e à homofobia institucionalizada provavelmente ainda é majoritário. O senso comum brasileiro é economicamente de centro-esquerda e comportamentalmente de direita. O paradoxo dos dias atuais no Brasil é que boa parte da tração ganhada por esses temas tão caros à direita foi obra da própria esquerda governista – bastante zelosa das alianças fundamentalistas de seus líderes e, pelo menos em certas circunstâncias, virulentamente punitivista contra os protestos de ruas. Eu não me surpreenderia se o apoio à pena de morte fosse majoritário entre a base petista hoje. Ou seja, o próprio sentido do termo “esquerda” está em disputa, me parece. A definição de esquerda que eu, pessoalmente, uso, é minoritária: esquerda para mim é toda aquela força política que se recusa a pensar, falar e agir como se o capitalismo fosse um horizonte último, necessário e intransponível. De acordo com essa definição, evidentemente, o PT já não seria um partido de esquerda, posto que está completamente adaptado à ordem capitalista, sendo hoje, no Brasil, inclusive, o seu gerente mais eficiente. Se nos atemos a essa definição de esquerda, nos aproximamos do postulado de Gilles Deleuze, que uma vez disse que não há governos de esquerda. E, fazendo uma analogia com esse postulado, poderíamos dizer que não há “hegemonia de esquerda” no capitalismo tampouco. Por definição, a hegemonia é sempre outra coisa que não-esquerda. A esquerda verdadeira será sempre intensidade minoritária, guerra de guerrilha. Essa é uma maneira de ver a coisa, mas há outra, em que ecologistas, forças políticas alternativas, anarquistas e críticos dispersos do capitalismo têm insistido nos últimos tempos: segundo esse outro raciocínio, já não há que se lutar pelo termo “esquerda”; já não há que se falar em “verdadeira esquerda”, por oposição a forças que supostamente teriam traído o seu ideário. O termo “esquerda” já estaria irrevocavelmente perdido. Para os que propõem esse raciocínio, não haveríamos que nos surpreender com os rumos do PT no governo, pois a esquerda partidária, ao se apropriar do aparato de Estado, estaria fadada a colocar em cena uma prática de centralismo, fanatismo e obediência. Tenho para mim que mais importante que o debate acerca dos rumos da esquerda ou da sua possível hegemonia cultural é o debate acerca de como combater o capitalismo, como inventar uma sociedade que não se organize segundo moldes capitalistas. E é possível que a energia, a força, a vontade de potência que a possa inventar já não se deixe designar pelo nome “esquerda”. [Bruno Cava] O capitalismo integrado e globalizado do séc. XXI tem uma capacidade muito grande de evacuar todo tipo de código, signo, tradição, crença, tornando-os invólucros mobilizáveis para o giro do capital, o ciclo d-m-d´. Isso sucede, inclusive, com a esquerda brasileira, em particular, o
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PT. A integração nos circuitos do poder constituído tornou-a funcionalizada para a expansão do capitalismo no Brasil, o que André Singer chamou de “pacto conservador”, como uma das bases do lulismo (sua política de alianças). Tal aposta política significou a recusa da luta de classe, quer dizer, por um mundo em que não precisemos mais de capitalismo, em favor de uma gestão supostamente mais favorável da relação capitalista de produção, uma margem maior para a “regulação social” (A. Singer chama de “reformismo gradual”). Como contrapartida da aposta, o que antes eram símbolos, bandeiras e discursos autênticos de esquerda, em que muitos acreditavam e que mobilizava o desejo num ativismo vibrante, num envolvimento de ação e pensamento, aos poucos se tornam códigos evacuados, mais funcionais do que potentes. O cinismo da idade capitalista atinge a própria esquerda, uma vez integrada à sua dinâmica de quantidades abstratas e fluxos de dinheiro. Apesar de a geração de subjetividade no interior das políticas do lulismo exceder em muito o programa do PT e do governo, isso serviu sim para qualificar muitos processos sociais e dinâmicas políticas, mas muito pouco ou nada o próprio PT e o governo, que por vezes veem tais efeitos positivos como indesejados. O resultado final, para a esquerda, é que paradoxalmente foi quem menos se requalificou com a melhor parte dos efeitos favorecidos por seus governos. Enquanto isso, para fazer frente ao cinismo, uma esquerda residual insiste numa impossível integridade, nostálgica de um keynesianismo-fordismo hoje incompatível com as formas de vida e subjetividades implicadas na produção globalizada. Estou falando do campo que, no Brasil, se coloca não à esquerda, mas “mais-à -esquerda”. Esse é um fenômeno global. De outra parte, alguns teóricos, como Zizek ou Badiou, propõem reterritorializar o imaginário esquerdista numa espécie de nova fé, falando em termos duros por um novo partido vermelho e até em terrorismo (Zizek) – o que lembra o fenômeno dos novos fundamentalismos que começam a brotar como reação inautêntica e desesperada diante do cinismo geral. [Tatiana Roque] Esse é um dos pontos que mais me incomoda quando penso nos últimos 12 anos de governo do PT. O que eles fizeram para quebrar a hegemonia dos grandes meios de comunicação? Nada. Ao contrário, tornaram-se reféns da mídia. Aderiram completamente à lógica marqueteira eleitoral (considero os tais blogueiros progressistas parte dessa lógica, nada novo). Também não fizeram nada, ou quase nada, que pudesse favorecer a criação e o desenvolvimento de novos movimentos sociais. A relação com os movimentos parte da lógica aparelhista de sempre, com foco naqueles que possuem uma estrutura clara de representação; a tal “nova classe média”, de que se orgulham, é vista somente como alvo eleitoral. E finalmente, quando surgiram movimentos como os de Junho, que inicialmente não eram contra o governo, mas eram novos e ultrapassavam o entendimento do partido, resolveram desqualificar ou mesmo reprimir. Para mim, a vaia na abertura da Copa é paradigmática: por que a grande maioria no estádio era daqueles que se opõem obviamente à Dilma? Por que não pensaram especificamente em uma política para os pobres ou a nova classe média poder ir ao estádio? Porque cedem em tudo, mas também porque o PT não entendeu o que é hoje um movimento social, pararam no tempo, esqueceram a formação política, não se abriram para novas literatu-
ras que tratam do capitalismo atual. Enfim, talvez esteja exagerando, talvez queira algo que estruturalmente não é possível, mas eu era petista e via algumas possibilidades e não consigo tratar dessa questão sem me irritar... ROSANA PINHEIRO-MACHADO Após os movimentos de Junho, observamos uma reação conservadora raivosa de grande parte da população, o que é reforçada pelos meios de comunicação hegemônicos espalhando a “performance do horror” e, de forma molecular, observamos igualmente a distribuição de boatos sobre a possibilidade de “golpe comunista” e “atuação de terroristas”. Todo esse cenário legitima socialmente a atuação violenta, brutal e descomunal da polícia miliar. O Brasil e o mundo já viram esse filme: espalhar o medo para a “guinada à direita”. 1) Levando em consideração que a esquerda e os movimentos sociais possuem parcial ou impreciso apoio do Partido dos Trabalhadores, quais seriam as estratégias para a esquerda (atualmente pequena, e algumas vezes desunida e desamparada) lutar contra esse quadro? Como buscar maior sintonia na própria esquerda? Entendo que se trata de uma pergunta abrangente, mas minha inquietação atualmente versa sobre essa questão. 2) Em continuidade com pensamento, partindo do princípio que é preciso urgentemente alargar o apoio da população, quais as estratégias discursivas para dialogar e “politizar” esse contingente que não necessariamente está identificado com algum lado? [Idelber Avelar] Eu começaria por matizar um pouco a premissa das perguntas. Não sei se a reação raivosa às manifestações de junho possa ser atribuída a “grande parte da população”. Pesquisas de opinião pública realizadas depois das duas primeiras semanas dos levantes atribuíram um apoio de 80% da população brasileira aos protestos. Esse foi, inclusive, o dado que deixou o establishment político brasileiro atordoado: acreditaram inicialmente que seria possível desqualificar as manifestações como obra de alguns baderneiros até que se deram conta de que elas representavam uma enorme demanda popular represada. É correto que esse índice de apoio diminuiu com o tempo (e não é verdade, como já demonstrou o Pablo Ortellado, que essa redução de apoio popular possa ser atribuída à ação black bloc), mas tenho para mim que a reação raivosa que se viu em vários grupos de mídia está em descompasso com a maioria da população. Tanto é assim que os próprios grupos de mídia passaram, de uma estratégia inicial de desqualificação, à uma tentativa de apropriação desses levantes, ao apresentá-los como passeatas anti-corrupção, privilegiar as pautas de classe média e focalizar as imagens nas bandeiras brasileiras. Essa oscilação da grande imprensa já é indicação de uma vitória considerável dos protestos. Quanto às estratégias de construção de apoio popular às forças políticas (des)organizadas que se levantaram em Junho, não creio que eu tenha grandes novidades a sugerir para além do já sabido e acumulado desde as lutas de maio de 1968. Aqui eu incluo também minha resposta à pergunta de Tatiana Roque, formulada abaixo: não se apaixonar pelo poder, não perder a alegria, combater incessantemente todos os fascismos, incluídos aqueles que pululam dentro de nós, não ter ilusões com os coletivos centralizados, especialmente com os partidos. Fortalecer todas as iniciativas de
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auto-organização popular; instalar a todo momento as demandas minoritárias (das mulheres, do povo negro, das populações indígenas, das comunidades LGBT) mesmo quando estiverem em jogo outras pautas; lembrar que sem alterar os mecanismos de produção, circulação e consumo capitalistas, as próprias vidas humanas e não humanas no planeta correm risco. Fazer todo esse trabalho lembrando-se sempre de que a derrota será uma companheira constante, mas que não lutamos porque estejamos certos da vitória, mas porque não nos está dada a possibilidade de não lutar. [Bruno Cava] 1) A história dos 12 anos de governo federal encabeçado pelo PT é a história da institucionalização progressiva de movimentos, coletivos e grupos ativistas ligados ao seu campo de atuação. A institucionalização em si mesma não é ruim, ruim foi a forma como essa institucionalização aconteceu. Em nome da “estratégia superior”, tais movimentos se evadiram da tática, passando a agir apenas no modo reivindicatório, em dialética com o governo. Tal dialética tornou-se um bloco percebido cada vez mais como monolítico, com duas faces bem sintonizadas. Essa dialética gradualmente se tornou comandada a partir de sínteses de fechamento: as demandas eleitorais, as exigências da governabilidade, a harmonia geral do conjunto; o que terminou se transmitindo para as esferas de mediação do participacionismo (conferências, fóruns, “terceiro setor”). Uma evidência discursiva desse fechamento está no crescente uso da palavra “desestabilização”, para se referir a movimentos, coletivos e protestos que não partam do próprio PT ou do governo. Durante as jornadas de junho-outubro de 2013, parte do campo petista/governista mais ligado aos movimentos, sindicatos e coletivos de luta, se ressentiu que as pessoas não saíram às ruas com a pauta da reforma política, como se, depois de 12 anos desse processo de institucionalização, as ruas devessem por “iluminação” reproduzir as pautas do partido. Houve um “desaprendizado” geral de como relacionar-se com as ruas e grupos dissidentes. Outra parte simplesmente acusou a direita de manipular as marchas, como se milhões de pessoas fossem “alienadas”, “despolitizadas”, uma massa amorfa à deriva dos primeiros estímulos da mídia (que, primeiramente, foram de criminalização e condenação, até a segunda dezena de junho). Não vejo indícios de mudança nessa configuração, que canaliza as energias segundo cálculos eleitorais, de governabilidade, alianças internas ao sistema pemedebista. Nesse cenário, talvez seja preciso continuar construindo as alternativas constituintes – e não meramente reivindicatórias, – alternativas que não virão dos espaços de formulação de estratégia e tática ligados ao governo. Nesse sentido, me parece estar amadurecendo a percepção coletiva de que os movimentos precisem seguir os exemplos do MPL, Tarifa Zero, e alguns grupos ligados à luta pela moradia, para ocupar o campo da estratégia, sobretudo nos eixos do direito à cidade e de um possível alterdesenvolvimento, e não apenas o plano das táticas. 2) A politização é um processo imanente, prefiro não adotar a premissa que existam pessoas mais ou menos politizadas; existem, sim, aquelas que estão mais ou menos polarizadas em função de sua posição dentro de um conflito social – que se exprime em problemas graves no sistema de transportes, saúde, educação, ou nas várias formas de discriminação
estruturantes, como racismo, gênero, homofobia etc – e da capacidade de organizar-se em redes de solidariedade, produção de mídia, formulação e ação coletiva. Nesse sentido, o fato de parte da população não se identificar com os campos polarizados pelo imaginário tradicional esquerda x direita é antes um problema da esquerda, do que da população. A esquerda é que precisa “politizar-se”. E o caminho pra isso é voltar a tomar partido das partes nos conflitos sociais, *com* as partes, ou seja, abrindo-se às redes e formas de organização/mobilização já existentes, relacionando-se com elas, interagindo e reaprendendo o que é ser esquerda, enervando-se pela cidade – e não apenas governando desde cima com índices macroeconômicos e polls de marketing político e eleitorais. O lado certo não existe antes de ser reconstruído nesse processo. A resposta de boa parte da esquerda aos protestos de Junho, um momento possível de abertura, foi no sentido contrário: fechamento. Com isso, a distância entre a maioria da população e a tradicional bipolaridade esquerda-direita aumentou, pelo menos nos termos com que as esquerdas convencionam essa bipolaridade. [Tatiana Roque] Resposta às duas perguntas da Rosana: Essa é a pergunta mais importante. A partir de Junho, algo se produziu tanto nas pessoas que tinham uma identidade política bem definida quanto nas que não tinham. Ao pensar a construção de novas organizações, acho que devemos levar todos esses matizes em consideração e, nesse ponto, houve um equívoco nas tentativas de organização que surgiram depois de Junho. É o momento de fazer autocrítica. Tenho muitas críticas ao governo, como já disse na resposta anterior, mas a autocrítica é uma prática saudável e está fazendo falta. Não havia razão para a histeria coletiva da esquerda em relação à direita, aos coxinhas, aos grupos fascistas etc. Eu não vi esses grupos com uma força que pudesse justificar essa preocupação, e estive em todas as manifestações no Rio de Janeiro. Verdade que alguns quebraram bandeiras de partido e agrediram militantes, mas eram meia dúzia de gatos pingados (parece que em São Paulo foram um pouco mais numerosos, mas também estavam longe de ser maioria). O que sobressaía nas ruas em Junho era uma composição múltipla. Tinha de tudo, principalmente pessoas que não estavam acostumadas a frequentar manifestações ou a fazer política, mas queriam muito estar ali. Isso é de uma riqueza enorme! Nos esforços de organização que se sucederam, essa composição plural não foi valorizada o suficiente, seja pelos partidos ou por movimentos independentes que surgiram naquele momento. Outras mobilizações importantes aconteceram depois de Junho. No Rio, foi principalmente em outubro, com a greve dos professores e dos garis, trazendo um encontro potente entre as lutas tradicionais (sindicais, mas às vezes contra a gestão sindical), os grupos de minorias e o autonomismo das ruas. Movimentos de um tipo requalificando os de outro tipo. Lembro de um dos cantos mais emocionantes, que vi surgir na passeata dos professores: “A nossa luta/unificou/tem travesti, black bloc e professor”. A força estava aí! No entanto, esses momentos incríveis de atravessamento não se desdobraram em organizações que estivessem à altura das ruas, da multiplicidade e da novidade que expressavam. Assistimos, em seguida, ao menos no Rio, a uma fragmentação aberrante das tentativas de organização:
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brigas internas, dogmatismo, sectarismo e vanguardismo. Estou falando de dentro, pois tentei participar de algumas dessas tentativas. Cheguei a ouvir pessoas afirmando como algo positivo o fato de que os coxinhas e os partidos saíram das ruas. Pois eu acho isso muito ruim. Nem tanto pelos partidos, mas sobretudo em relação aos que foram desqualificados como “coxinhas”, mas que eram simplesmente os “sem lado” de que você fala na pergunta. Por mim, investiria tudo em construir um movimento com essas pessoas. A força de experiências como o Podemos, ou as candidaturas cidadãs na Espanha, não está na possibilidade de salvar ou não a forma partido. O que me parece extremamente potente e inovador é sua constituição de tipo “frente”, juntando todo mundo a partir de plataformas comuns. Mas também deixando claro, por meio das próprias pautas, que trazem um projeto de esquerda (não sabemos o que isso quer dizer, mas sabemos muito bem que se opor à privatização da saúde e da educação, por exemplo, é uma pauta de esquerda). O mais inovador nas iniciativas espanholas é que investem no diálogo com os “sem lado”, valorizam a participação das pessoas comuns. Nada de vanguardismo, nada de palavras de ordem manjadas que restringem a discussão aos iniciados. Há todo um novo vocabulário: marés, círculos, praças de discussão. Não importa, a meu ver, discutir o Podemos em si mesmo. Minha perspectiva se coloca no interior de nossos movimentos, aqui e agora. Como construir a continuidade dos levantes de Junho? Que novas organizações seremos capazes de criar? O problema está em aberto. Acho que nós mesmos temos um papel nisso e precisamos tomar cuidado com os discursos, justamente para não afastar as pessoas, não produzir fraturas e incentivar a fragmentação. O mais difícil é pensar a relação entre os diferentes tipos de movimento, mantendo um debate constante, evitando a reprodução do sectarismo de sempre, e criando uma relação frutífera que não suprima as diferenças. Sem os dogmatismos ou os hermetismos da linguagem de esquerda. John Holloway, autor do livro Como mudar o mundo sem tomar o poder, propõe que a base do diálogo seja a seguinte: ninguém sabe a solução. Sabemos que as formas de organização conhecidas são insuficientes para sair do capitalismo, mas nenhum de nós sabe como construir relações sociais que não passem pelo dinheiro. Ele diz isso em uma bela entrevista ao jornal espanhol El Diario. (http://www.eldiario.es/interferencias/John_ Holloway_Podemos_Syriza_capitalismo_6_287031315.html) Ficaria felicíssima de participar de um movimento com essa inspiração, mas não sei bem como... [Pablo Ortellado] Comentário lateral à pergunta da Rosana. Não acho que a reação conservadora tenha aumentado após Junho de 2013 – acho que a ascenção do conservadorismo é um processo anterior e mais estrutural. Acredito que esse novo conservadorismo que estamos vendo no Brasil é diferente da direita liberal tradicional. Ele é fruto da reorganização do campo discursivo que subordinou a política à moral nas chamadas “guerras culturais”. Nos Estados Unidos esse fenômeno foi sentido nos anos 1990 e foi descrito por James Hunter que notou a proeminência política de temas como aborto, drogas e pena capital sobre o debate tradicional que opunha justiça social a livre-iniciativa. Não se trata apenas de novos temas, mas da
reorganização do campo político a partir de duas ordens morais: uma conservadora, punitiva e disciplinar e outra progressista, generosa e compreensiva. Esse fenômeno americano se expandiu para diversas partes do mundo, reorganizando em muitos lugares o debate político, embora em cada lugar tenha adquirido uma colaração local. O que destravou a mudança por aqui, creio eu, foram as disputas políticas em torno das cotas na universidade e da vigência do programa Bolsa Família. A direita conservadora reagiu a essas propostas com uma abordagem moralizante que via esse tipo de programa social como uma leniência liberal e paternalista que concedia privilégios injustificáveis para quem não tinha demonstrado talento meritocrático. Visto a partir da ordem moral conservadora os programas sociais desse tipo aparecem como uma espécie de condescendência “feminina” e estéril que onera o Estado e desestimula os preguiçosos e inábeis a empreender e se aperfeiçoar, se preparando adequadamente para a dura e justa economia concorrencial. É um discurso extremamente violento que tem perigosa proximidade com a apologia da força que se via no fascismo. Isso posto, precisamos entender que essa mutação da direita mudou os termos do debate político para todo mundo. Precisamos entrar no novo jogo discursivo, por um lado, desqualificando a direita conservadora como violenta, desumana e sem coração e, por outro, subordinando nosso programa de justiça social a um discurso também ele moralizante. O que temos feito até agora, no entanto, é responder ao conservadorismo a partir do velho quadro discursivo – o que tem se mostrado ineficaz ou aderir parcialmente ao discurso moral, mas numa chave conservadora – o que é um verdadeiro desastre. BRUNO CAVA Nos últimos 15 anos, pelo menos, houve um aprofundamento das relações capitalistas de produção no Brasil, com o avanço de uma franja não só de proletarização como inclusão num mercado de trabalho, mas igualmente de aprofundamento das relações de consumo, com o alargamento do mercado de bens, comunicação, ensino, serviços. A mutação do regime de trabalho e produção implicou, além disso, uma transformação da sociedade desde suas bases sociais, no que muitos pesquisadores traçam como problemática de pesquisa a “nova classe média” (aka Classe C, Batalhadores, nova classe trabalhadora, subproletariado, e noutras coordenadas a discussão entre lulismo e pemedebismo). Essas transformações desbloquearam fluxos de produção e engendraram novos que, além da captura pela forma capitalista de dominação e exploração, também têm um correlato de subjetividade, um excedente maquínico de novos agenciamentos. O investimento dos corpos e subjetividades nos circuitos de produção implicou, ademais, a multiplicação de conexões, a disseminação de desejos e investimentos pessoais de vida, e a formação de redes sociais enervadas por esses circuitos, reorganizando o urbano, o entendimento sobre direito à cidade, ao trabalho, à qualidade de vida (no “comum”). Além disso, abriu-se para uma grande parte da população antes constrangida pela lei da sobrevivência e absoluta falta de acesso a vários espaços sociais, abriu-se uma perspectiva de futuro, com a estruturação de bases mínimas de renda, crédito e possibilidade de empreender em escala micro (inclusive autoempreendedorismo), de formular “socialidade” em termos próprios, muitas vezes inventivos. Nesse sentido, tomo por hipótese que seja possível pensar nas jornadas
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de junho-outubro, no ciclo do levante brasileiro de 2013, como consequência desse processo e, ao mesmo tempo, qualificação política dessas transformações. Pode-se pensar Junho como molecularização de um desejo político de autonomia e democracia mais direta, que o atual cenário representativo (governos, bipolaridade PT-PSDB, grande imprensa, forma-empresa, movimentos sociais tradicionais) parece não dar mais conta. Uma plenitude em movimento, adensada nos últimos 10-15 anos em meio a processos contraditórios, como preenchendo esse vazio existencial da representação, que explica a grande dimensão quantitativa e qualitativa dos processos de luta e produção do comum, ao longo de 2013. Formulando de maneira concisa: o que se fortaleceu em termos de dinâmicas de auto-organização das lutas sociais, que organizam tais ferramentas objetivas e subjetivas, como um novo ciclo de democratização da sociedade brasileira? [Idelber Avelar] De novo, passo a uma consideração da premissa antes de responder. Há uma relação a se estabelecer, por certo, entre as conquistas do lulismo e os levantes de Junho. É bem provável que as intensidades desatadas pelos novos padrões de consumo na chamada classe C tenham sido uma das condições de possibilidade das manifestações. Eu coincido com a descrição dos efeitos das políticas lulistas contida na pergunta, mas não estabeleceria a relação entre as transformações da década passada e as manifestações de 2013 com a linguagem da causa – consequência. Não sugiro que a pergunta esteja fazendo isso, mas é importante estar atento para não jogar água no moinho da tese governista de que os protestos aconteceram porque o povo conquistou muito durante os governos do PT e agora entendeu que poderia conquistar mais. Com os riscos em que sempre se incorre ao fazer história contra-factual, arrisco dizer que os protestos, ou alguma versão diferente deles, teriam acontecido mesmo sem as conquistas do lulismo, mesmo que tivéssemos tido uma década neoliberal, já que os levantes foram tornados possíveis, sobretudo, por um processo de construção de democracia direta, de autonomização (e aí eu coincido plenamente com os termos da pergunta), que é próprio dos setores populares e mantém uma relação apenas indireta, oblíqua, com as políticas governamentais. Dito isso, eu sugeriria que o grande fortalecimento acumulado a partir de 2013 se deu no movimento pela desmilitarização das polícias. Antes de 2013, essa era uma pauta restrita a certos círculos e sem grande visibilidade no país. A repressão aos levantes foi tão brutal e arbitrária que essa pauta, que inicialmente não era central no movimento pelo passe livre, passou a ocupar o centro das preocupações de boa parte dos manifestantes. Hoje há uma consciência muito mais aguda acerca de quão singular e intolerável é o modelo brasileiro, militarizado, de segurança pública. Nesse aspecto, vemos também como a política partidária está hoje divorciada dos desejos das ruas: a desmilitarização das polícias ou a revisão do modelo de segurança pública não é sequer mencionada ou discutida no programa de nenhum dos três principais candidatos à presidência. [Tatiana Roque] Discordo de um ponto na resposta do Idelber Avelar, mais na ênfase do que no conteúdo. Claro que não é uma relação de causa e consequência, a relação é mais complexa, mas acho fundamental en-
fatizar, como faz o Bruno na pergunta, a forte conexão entre as políticas dos últimos governos do PT e um processo inédito de subjetivação política. Não acho que se possa sintetizar as conquistas do lulismo os termos do consumo. Em um país com longa tradição escravocrata, que sempre pareceu suportar bem as absurdas desigualdades, qualquer iniciativa de redução de desigualdades tem um efeito surpreendente. Além dos programas de transferência de renda, houve uma democratização significativa do acesso às universidades públicas e privadas, com política de cotas, aumento de vagas para alunos e professores, novos campus. Claro que é preciso fazer muito mais, mas para se ter a dimensão da mudança, basta ver como a segurança tradicional das elites está abalada (podendo explicar inclusive a radicalização dos discursos contra pobres, pretos etc). Com mais direitos, acesso aos bens públicos e redução das desigualdades cria-se um ambiente também propício para a crítica combativa. Sempre volto a esse ponto, que me parece hoje incontornável, e que diz respeito às dinâmicas de produção de novas subjetividades. Parece claro, a meu ver, que isso tem muito a ver como fato de que as pessoas se empoderaram, se tornaram mais capazes de exigir seus direitos e de criar formas de auto-organização. [Pablo Ortellado] Queria concordar com o Idelber, mas também com a Tatiana. Sem dúvida, como ressalta a Tatiana, houve ganhos sociais notáveis no governo Lula e eles tiveram efeitos profundos na sociedade brasileira. Mas também senti na pergunta do Bruno um eco (talvez involuntário) da tese de que as reivindicações que surgiram em Junho são aspirações que foram destravadas pela ascenção social trazida pelo lulismo (a tese do André Singer, em resumo). Eu sou um enfático defensor de que essa tese é falsa e que essa falsidade se evidencia se olharmos para os dez anos de revoltas de transporte que abalaram diversas capitais brasileiras desde a revolta do buzu em Salvador e das duas revoltas da catraca em Florianópolis. Essas três revoltas iniciais aconteceram antes que qualquer efeito significativo das políticas lulistas se fizessem notar e antecipam todas as características dos protestos de Junho: proeminência da questão da tarifa dos transportes, protagonismo juvenil (mas não estudantil), organização horizontal e apartidária e a utilização de bloqueios e ocupações como estratégias de luta. Eu acho que Junho de 2013 deve ser visto como maturação desse processo de lutas de transporte – embora, obviamente, uma vez nacionalizado e ampliado, os protestos tenham inspirado outras demandas e mostrado a eficácia da luta não institucional para outros setores. Isso posto, penso que a relevância histórica de Junho foi marcar de maneira simbólica a ruptura do movimento social com o “processo do PT” que começa com as lutas dos sindicatos e dos “novos” movimentos sociais no final dos anos 1970, passa pela opção clara pela via institucional nos anos 1980 e culmina com a conquista do poder político nos anos 2000. Ao contrário do que vimos na Espanha (com o Podemos) e de certa forma na Itália (com o 5 estrelas) estou convencido de que não há espaço aqui para experimentos institucionais que não tenham já sido explorados pelo processo do PT. Assim, Junho de 2013 marca a reconstrução do movimento social numa via claramente autônoma que provavelmente vai se consolidar nos próximos anos, embora ainda por muito tempo coexista com resquícios do velho arranjo entre movimento e partido.
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[Rosana Pinheiro-Machado] Você pontua que as Jornadas de Junho foram causa e consequência (o que você chama de qualificação) de novas subjetividades políticas. Minha resposta se debruça sobre a hipótese que você levanta, que me parece um pouco mecânica para uma sociedade tão diversa. Ou pelo menos, muito teórica para este momento de indefinições. Mas válida enquanto hipótese a ser investigada no futuro. Por ora, tenho desconfiança com relações causais entre as camadas mais populares ou a nova classe C com as Jornadas de Junho, quando tratamos simplesmente de um dos maiores setores da sociedade brasileira, com diferentes histórias e tradições. É claro, isso parte de um ranço de antropóloga e pesquisadora de grupos populares e, por isso mesmo vou abrir para alguns grupos e situações. Empoderamento – aqui entendido como autonomia de grupos no processo de decisão, autoestima, democracia direta e aprendizado social – é o conceito que melhor define o pré e o pós-Junho. Sobre as razões que levaram aos movimentos, sua pergunta já explorou algumas nuanças importantes do fenômeno. Vou brevemente deter-me no pós com dois exemplos, um de natureza formal e institucional e o outro mais molecular. O primeiro exemplo que, para mim, não pode ser esquecido é a vitória da greve dos garis no Rio de Janeiro. A forma de retroalimentação praticamente dos movimentos espontâneos e horizontais com formas mais tradicionais de prática politica sindical – trazendo conquistas históricas e concretas para categoria. De forma menos tangível, entre os estudantes universitários, parece haver uma investida de interesse em debates calorosos renovados sobre o passado e o presente do socialismo, inclusive nas universidades privadas, onde o movimento estudantil nem sempre desempenha centralidade. Aliás, eu diria, as universidades privadas hoje se constituem espaços privilegiados devido a uma massa crítica e engajada proveniente do ProUni e FIES. Mas eu não quero me deter a tantos exemplos práticos, que abundam. Eu penso que todo esse novo contingente que você elenca em sua pergunta ainda está em profunda disputa no Brasil atual. Tendo a ser um pouco mais pessimista – e por isso insisto na dimensão prática das estratégias de aproximação e interlocução (e sim, concordo com você quando responde a minha pergunta, é evidente que não se trata de dizer que existem grupos mais ou menos politizados) com as difusas camadas mais populares brasileiras. Por meio de meu contato diário, direto e diverso com esses grupos, confesso, tenho dificuldade de visualizar essa relação causal com as Jornadas de Junho. Concordo com a Tatiana que o consumo deve ser visto sob o ponto de vista político, especialmente em uma sociedade pós -escravocrata. Mas sabemos que a hegemonia se constrói por meio desses signos que vêm com o consumo, aliando-se a instrumentos de comunicação poderosos e devastadores. Paradigmático, nesse sentido, é caso do rolezinho – que perfeitamente se enquadra em sua questão. Há uma relação clara de novas subjetividades empoderadas que, uma vez que ganham a visibilidade, se politizam de outra forma, eu diria, talvez, mais organizada e consciente. Por outro lado, a vida de muito daqueles jovens – após o fervor do momento – foram absorvidos pela estrutura desigual da sociedade brasileira e mantêm suas vidas organizadas dentro do sonho do consumo de marcas. Sem falar o
abandono que muitos grupos sentiram durante a Copa e durante a prisão dos militantes. É claro que existe uma relação de retroalimentação entre a emergência de novos grupos na sociedade brasileira e Junho, da mesma forma com que Junho rebate novamente sobre eles, organizando e empoderando. Não acho que minha amostra empírica seja suficiente para concluir qualquer natureza política dos grupos populares brasileiros: ela apenas serve para lembrar-nos que essa relação não é mecânica e que que não se dá de forma linear e homogênea. Com base em meu trabalho de campo, eu observo momentos de avanço e entusiasmo político, na mesma medida em que há recuo e tendência ao conservadorismo. O Brasil emergente é um Brasil em disputa. Nessa disputa, concorremos com instrumentos hegemônicos e ideológicos desleais. Ou não. Nenhuma força se compara à da população nas ruas. Mas esta população não pode deixar de ser reconquistada e capturada – em um processo cotidiano e incessante – para uma agenda de uma sociedade democrática, mais justa e igualitária. IDELBER AVELAR As manifestações de 2013 marcaram o primeiro grande ciclo popular de lutas nas ruas dos últimos 35 anos que não contaram com o PT (ou com o movimento pró-PT de 1978-79) como grande força organizadora ou partícipe. Os protestos de 2013 também prescindiram das grandes centrais sindicais e, apesar do fato de que os pequenos partidos de oposição de esquerda ao governo (PSOL, PSTU, PCO) estiveram neles presentes, é nítido que se tratou ali de uma grande irrupção que não era nem hegemonizada nem dirigida por partido ou central sindical nenhuma. Embora o início do movimento tenha sido catapultado por uma organização militante da sociedade civil (o MPL), a dinâmica das ruas claramente se pautou por outra dinâmica, na qual partidos e sindicatos foram de importância menor. Considerando esse fato em conjunto com outro fato – o de que o interesse pelas eleições presidenciais de 2014 é significativamente menor no interior dos novos movimentos sociais do que o de eleições anteriores –, qual é o balanço que podemos fazer do potencial transformador da forma partido nos dias de hoje? [Tatiana Roque] Claro que a democracia representativa vem sendo questionada nas manifestações recentes. Há uma enorme descrença em relação aos mecanismos eleitorais e, portanto, em relação aos partidos. No entanto, diante do problema não resolvido de saber como dar continuidade às lutas, penso que a forma partido ainda pode ter um papel, ao menos tático. Por exemplo, a experiência do Podemos na Espanha é muito positiva. Um partido novíssimo que obteve mais de 1.000.000 de votos, elegendo cinco deputados para o Parlamento Europeu. É um partido de esquerda, mas construído em novas bases, sobretudo com grande ênfase na participação, por meio de plataformas na internet, renovando os mecanismos de democracia interna. Além disso, as candidaturas cidadãs também inovam na Espanha, como Guanyem Barcelona. Tratam-se de candidaturas municipais, construídas coletivamente. Enfim, penso que processos como esses poderiam ser viáveis no Brasil e, ainda que estejam em fase de experimentação, apontam na direção de uma redefinição da democracia.
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[Cezar Migliorin] Tenho dificuldade de imaginar um partido realmente transformador que não seja um partido que tenha como princípio seu próprio questionamento, no limite, sua negação como partido, pelo menos nos moldes que conhecemos hoje. Qual partido está disposto a propor sorteio para o legislativo, por exemplo? Falamos de uma reforma política. Essa reforma precisaria ser feita fora do sistema de partidos, de outra forma ela não se efetiva. A experiência canadense na British Columbia é uma experiência a ser estudada. Pessoas comuns foram escolhidas por sorteio e durante 12 meses elaboraram uma proposta de reforma política que foi então submetida a referendo, obtendo 57% de sim, dos 60% necessários para ser efetivada. Uma nova força randômica parece ser necessária nas formas deliberativas, pessoas escolhidas para atuarem por período determinados, longe do profissionalismo e das campanhas partidárias. Uma força que não precise passar pelos partidos ou pela força do capital para atuar na democracia. Sim, os partidos parecem ter longo papel, ainda que tático, como disse Tatiana, mas a questão que toca é: como torná-los permeáveis à outras formas de poder que não suas burocracias internas. [Rodrigo Savazoni] Pois é Cezar, e partido para ser transformador também não deveria prescindir de um programa, não é? Que programa hoje seria capaz de expor com radicalidade mas sem fanatismo o desafio global que temos diante de nós, um desafio que passa pela própria sobrevivência da vida no planeta? Se as pautas mais concretas da esquerda já têm dificuldade de ecoar em amplas parcelas da sociedade, o que dizer de algo que faça a crítica profunda e aponte caminhos efetivamente anti-capitalistas? [Bruno Cava] O sistema político brasileiro está mais estanque do que nunca, tendente a um bipartidarismo estéril, onde se discutem projetos de gestão com pequenas diferenças programáticas, enquanto há uma convergência sólida em barrar temas relacionados a direitos de minorias que, na verdade, são a maioria. O veto à Rede e Marina, independente de qualquer discordância com o conteúdo político-ideológico, mostra a dificuldade em escavar alternativas por dentro do mundo partidário-eleitoral. Depois de 2013, esse bloco único bipolar convergiu também para reprimir movimentos e criminalizar ativistas, assinando cheque em branco para o sistema penal esmagar o dissenso e disseminar o medo nas redes de mobilização. Tudo indica que a mudança não virá de dentro dos grandes partidos, mas de um fortalecimento dos movimentos capaz de exercer uma força de fora para dentro, que leve o sistema político representativo a democratizar. Durante esse processo de fortalecimento, é claro que determinados mandatos de luta podem assumir um papel tático: estrutura, apoio, financiamento, segundo uma estratégia dos movimentos, a construir melhor. O caso espanhol é relevante, porque lá também se viveu um processo de esgotamento da democracia, segundo um bipartidarismo progressivamente estéril, incapaz de lidar com as redes e grupos intensificados a partir do Movimento do 15-M, em 2011. O Podemos, nesse sentido, é antes resultado da falência da forma-partido do que a sua última esperança. Diferentemente do 5Stelle, na Itália, o Podemos tem uma pauta que é de esquerda,
e ao mesmo tempo mídias capazes de articular os vários níveis, da TV à micropolítica das redes sociais. O principal eixo dissensual do Podemos é contestar o “Régimen de 1978” e sua “casta política”, isto é, o esquema PSOE-PP com pano de fundo monárquico. Transpondo ao Brasil, hipoteticamente, isto significaria movimentos suficientemente organizados, fortes, para lançar um vetor de contestação ao “Regime de 1985”, isto é, contra o sistema político pemedebista gerenciado por PT-PSDB, que tem por pano de fundo a concentração de propriedade, meios de comunicação e renda. Mesmo com as políticas distributivas da última década, o Brasil está entre os 20 países mais desiguais do mundo (Índice Gini) em termos de renda – e a posição é ainda pior em termos de distribuição de propriedade e riqueza. Para além da transição nos moldes pemedebistas pós-1985, só um novo ciclo de democratização, – de que os protestos de 2013 são somente um sintoma, – reuniria condições de conferir outro ritmo e outro caráter às lutas e às formas institucionais, inclusive a forma-partido. Um processo constituinte, portanto, e que não virá de dentro do sistema com a ideia da reforma política, acessória diante do tamanho dos impasses e desafios. [Rosana Pinheiro-Machado] Eu tendo a ir ao encontro das ponderações da Tatiana, que citou o caso espanhol e o Podemos. Junho estampou muitas das fragilidades de nossa democracia representativa (i) o esgotamento do dualismo PSDB e PT (ii) o fracasso do Partido dos Trabalhadores enquanto uma alternativa de esquerda (iii) os limites de organização e diálogo dos pequenos partidos de esquerda e, finalmente, (iv) a aversão da população de uma política que, na base da pirâmide é clientelista e personalista e, no topo, alia-se ao grande capital coma finalidade de sua auto reprodução. Eu vejo diferentes cenários para a política partidária, mas ambos cooptando positiva ou negativamente as demandas das ruas. Como efeito negativo do impacto pós-Junho nos partidos eu destacaria a tendência de se acreditar que o problema é das pessoas e não da estrutura sistêmica – mas isso eu não digo me baseando na análise dos movimentos sociais em si, mas nas dinâmicas da base da pirâmide social, com a qual tenho algum contato e me sinto a vontade para discutir. Como vivemos em uma cultura personalista, corre-se o risco de que algumas figuras capitalizam aspirações e repitam o erro histórico saciar a ânsia por uma “política renovada”. E isso passa, sem dúvidas, pela política partidária. Isso é bastante complexo, especialmente se levarmos em consideração o fato de que os movimentos sociais mantinham justamente esse cunho anti-personificação. Mas eu acredito que a base da base da pirâmide – uma vez que se movimenta por meio de uma ascensão parcial e limitada de capitais simbólicos e culturais, e sequer teve o vale transporte para descer “à cidade” para juntar-se às manifestações – negociam o direito à cidade por meio de práticas e canais políticos bastante tradicionais, recorrendo ao vereador e à grande mídia para tentar solucionar seus problemas. Mas como sou otimista, eu também entendo que o esgotamento desse modelo partidário pode ter como efeito a sua própria renovação. Como disse a Tatiana abaixo, Junho foi uma fábrica de subjetividades. Uma delas é o meu próprio espelho: após quinze anos afastada de um projeto partidário, Junho forçou-me a “tomar partido” literalmente, e o mesmo aconte-
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ceu com outros intelectuais, como Vladimir Safatle. Baseando-se em minha própria retomada a uma política imperfeita, porém necessária, eu comecei a analisar informalmente algumas estatísticas da filiação a alguns partidos políticos no pós-Junho. Há leve crescimento, mas os dados são imprecisos porque estamos às vésperas de eleição, quando as filiações sempre aumentam. É preciso uma perspectiva no longo prazo para saber se o movimento das ruas – horizontal e direto – igualmente fortaleceu a política vertical e partidária. Ainda com participação muito tímida, o surgimento de novos partidos pode se constituir um novo cenário possível, especialmente aqueles com demandas particulares e internacionalistas, como o Partido Pirata. Dada a importância centralizadora que a democracia representativa desempenha na decisões da vida política brasileira, eu entendo que os novos movimentos sociais, especialmente aqueles baseados na ação direta, ao mesmo tempo em que escanaram as fragilidades do sistema, produzem uma pressão imediata e positiva sobre a política partidária. Mas é claro que essa convergência entre a democracia direta e representativa por ora só existe enquanto cenário ideal – em uma democracia de direito e de fato. Se não houver imediata intervenção no processo de criminalização dos movimentos sociais, a tendência da política partidária é retroceder ao seu modelo mais autoritário, personalista e clientelista. É fundamental, portanto, que a sociedade civil e os movimentos sociais continuem se mobilizando neste momento tão crucial da democracia brasileira, que infelizmente é abafado pelo processo eleitoral. [Pablo Ortellado] Acho que o rechaço das instituições representativas que ficou patente em Junho de 2013 é um processo global que se vê em muitas revoltas e movimentos desde o final dos anos 1960. Para nós ele teve um sabor especial porque significou a rejeição explícita da experiência histórica do PT que é, na minha opinião, a mais potente e interessante experiência da forma partido. Ao contrário da experiência social-democrata clássica, de um partido dando orientação política a um movimento, o que vimos no PT foi o contrário, foi a construção de um partido de baixo para cima – uma verdadeira federação de movimentos sociais com vistas a constituir uma expressão política institucional. Não há nada parecido em uma grande democracia – talvez apenas o Partido Verde alemão, que foi muito menor em abrangência social e eleitoral. Exatamente por isso a rejeição da forma partido por aqui tenha adquirido tanta relevância histórica. Se um partido com movimentos tão diversos, como uma base social tão larga e com uma democracia interna tão viva (pelo menos no início) não foi adiante, o que poderia dar certo? Obviamente que não acho que os limites do PT se devam a algum tipo de “traição” do seu programa original, mas a limites estruturais da experiência política institucional. Por isso, tenho profundo ceticismo com propostas como a do PSOL no Brasil ou o Podemos na Espanha, que acredito que, se derem certo, poderão quando muito explorar variações da experiência histórica do PT. Isso não quer dizer que esses partidos, PT, PSOL, Podemos, não possam ter relevância institucional, muito pelo contrário – acho apenas que não são capazes de produzir transformações políticas num nível mais profundo. Num outro sentido da palavra partido, no entanto, creio que Junho de 2013 apontou uma interessante novidade que é o MPL. O MPL nasceu
como uma espécie de antipartido, uma organização política para negar a forma partido, no sentido leninista. A sua formação é muito marcada pela história da revolta do Buzu em Salvador em 2003. Lá, uma revolta mais ou menos espontânea de jovens contra o aumento da tarifa de ônibus encontrou seu limite quando a prefeitura, sem saber com quem negociar (pois a organização dos protestos era assembleária e de base), optou por negociar com os sindicatos estudantis controlados pelo PCdoB. Os sindicatos negociaram então sua própria agenda política e não deram prioridade à verdadeira demanda dos estudantes que era a redução das passagens, permitindo que o movimento, apesar da sua força, fosse derrotado. Simplificando e encurtando um pouco a história, o MPL se constituiu como uma organização política que buscava expressar com fidelidade esse processo espontãneo de revoltas de transporte, superando o dilema que tinha se mostrado em Salvador. Não se tratava mais de uma organização leninista de velho tipo que subordinava as demandas imediatistas dos movimentos a um programa estrutural de longo prazo do partido – pelo contrário, tratava-se de se ater às demandas espontâneas do movimento, conferindo-lhe estratégia e uma face visível para interlocução institucional. É um partido no sentido de ser uma organização política, mas é um antipartido porque não quer dar ao movimento uma orientação política, mas extrair sua orientação política dele. Em outras palavras, é um partido que cumpre apenas um mandato imperativo implícito conferido pelas ruas. A despeito de Junho de 2013 ter sido um processo extremamente anti-institucional, horizontalista e especificamente anti-partidário, é notável que a liderança do MPL que negociou com a prefeitura e o governo do estado, falou pelo movimento nos jornais e na TV, não tenha sido significativamente questionada. É uma novidade organizacional muito interessante. TATIANA ROQUE Junho foi uma fábrica de subjetividades. A democratização significativa que vivemos nos últimos anos levou, por um lado, a uma reação raivosa das elites e, por outro, ao surgimento de um ambiente propício para a politização. O grito “não vai ter copa” escancara a transformação subjetiva: não é contra a copa, mas exprime uma recusa em se reconhecer na velha identidade destinada ao brasileiro, na qual o futebol tinha um papel preponderante. Muitos autores já mostraram que a valorização capitalista passa cada vez mais pela produção de certos tipos de subjetividade, Foucault é apenas um exemplo. Portanto, como entender o momento político sem fazer uma análise fina do capitalismo atual, de suas transformações e suas crises? As semelhanças entre as mobilizações no Brasil e em outras partes do mundo indicam que há algo, de fato, que transcende os problemas locais. Todavia, a maior parte das análises leva pouco em conta a necessidade de entender o que está em jogo na crise neoliberal e como isso afeta o Brasil. Digo isso porque, a meu ver, o grande desafio que temos pela frente é pensar novas formas de organização que estejam à altura de Junho, transformar a espontaneidade das ruas em experiências mais duradouras de colaboração e associação, construir a continuidade. Será possível fazer isso sem uma análise das transformações do capitalismo? Sem levar em conta seus modos cada vez mais sofisticados de captura? Sem entender o que vivemos como parte dos conflitos globais?
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[Cezar Migliorin] A questão gigante da Tatiana pode começar com uma resposta breve. Não. Não é possível pensar novas formas de organização que contemplem os processos subjetivos engajados nas manifestações de Junho sem uma análise das transformações do capitalismo, levando em consideração movimentos globais e locais. Para tentar o diálogo com a questão vou dar uma certa volta, mas espero conseguir retomar o fio no final. Por conta de um trabalho de extensão que temos feito na UFF, tenho visitado e acompanhado o trabalho em muitas escolas do país, o que tem me levado a uma reversão da questão que normalmente colocamos para a escola e, consequentemente, para o país. No lugar de perguntarmos que escola queremos ou como deve ser a escola para o país, podemos olhar para a escola e identificar ali processos inventivos, subjetivos e políticos que apontam para um certo país que é frequentemente limitador das potências de estudantes, professores, funcionários. Talvez no cotidiano da escola estejam as marcas mais explícitas dessas transformações do capitalismo. Ali convivem os muitos medos e tentações em relação ao futuro. Para muitos pais e mestres, a aposta na disciplina parece ainda ser a única forma de garantir um lugar de sobrevivência para os filhos. Como se a resistência à disciplina fosse também a impossibilidade de entrar no mundo do trabalho, na convivência harmônica em comunidade. Paralelamente, a evidencia da falência da disciplina, como sabemos, é explicita. No Brasil ela nunca foi tão eficiente assim, entretanto, parece não haver mais espaço ou processo subjetivo que não esteja tocado pelo seu desmoronamento. O que temos, a partir da escola, configura-se assim em, por um lado, uma aposta que precisa apelar cada vez mais para métodos violentos para que a disciplina se efetive, multiplicando os níveis de violência também de alunos. Por outro, a vivência cotidiana de um mundo em que a disciplina não é vista com bons olhos. Os trabalhos que exigem mais disciplina salvam, mas são considerados menores – todo pai sabe disso, todo trabalhador vive isso na pele. Pois, as transformações do capitalismo, com seus evidentes modos de captura que passam pelo cotidiano dos dispositivos midiáticos, está na escola frequentemente tomado por uma esquizofrenia. Só a disciplina salva, mas ela é um fracasso. A disciplina fracassa mas rejeita-se o que esse fracasso tem de positivo, entregando-se assim todos os processos subjetivos pautados pelo fracasso da disciplina às formas mais perversas do capital, onde a colaboração, ação política, o comunitarismo laico, etc parecem ter pouco espaço. Resumindo essas voltas. A disputa que se faz na escola hoje é fundamental uma vez que ali há a possibilidade de se construir outros modos de estar junto não pautados pela disciplina nem cegamente aderidas às benesses não disciplinares do capitalismo global. Perdoem-me o desvio, mas é por onde procuro pensar a questão trazida pela Tatiana. [Rodrigo Savazoni] A meu ver, na conjuntura que propicia Junho temos (1) uma redução do espaço de participação e colaboração na construção de políticas públicas na transição de Lula para Dilma. Sem dúvida, a ex-
pressiva inclusão social via consumo de massa ocorrida de 2003 a 2010 engendrou a necessidade de mais e melhores serviços públicos. Não à toa, portanto, muitos dos cartazes abertos pelos manifestantes nas ruas tomadas exigiam justamente melhoria da educação, da saúde, da segurança pública e do transporte; a (2) centralidade adquirida pelos novas tecnologias de informação e comunicação, que se popularizaram no país nos últimos anos, em especial de sites de redes sociais, como o Facebook, uma verdadeira ágora proprietária da política contemporânea; a (3) expressão de uma geração decepcionada com os rumos da política institucional; a (4) influência viral das revoltas em rede, que têm se espalhado pelo planeta a partir da Primavera Árabe, dos indignados espanhóis e do Occupy Wall Street dos EUA, entre outras importantes iniciativas de desenvolvimento do “espaço da autonomia”; a (5) reabertura das ruas por iniciativas de protesto, de diferentes colorações, de 2011 a 2013, do Churrascão da Gente Diferenciada às Marchas da Liberdade, das Vadias, da Maconha, entre tantas; a (6) conformação, nos termos descritos por Castells, de um novo tipo de rede militante, baseada em indivíduos e coletivos interconectados, e também de agrupamentos políticos de coloração anarquista/autonomista que se dedicam ao trabalho de base e à micropolítica. Acho muito bacana o desafio que a Tatiana nos coloca: como se organizar a partir disso? Confesso que tenho muito mais dúvidas do que certezas. Inclusive daí a dificuldade de mergulhar neste debate. Parece-me que precisaríamos nos conectar a uma efetiva formulação de saídas e perspectivas. E é prático também. O desafio ou é planetário ou não é. Não há, por exemplo, nesse contexto eleitoral, até agora, nenhum debate sério sobre a questão indígena, sobre a questão ambiental, em específico o aquecimento global, sobre a estrutura de violência permanente que se reproduz a partir do núcleo econômico do narcotráfico... De fato, o que está posto na estrutura política brasileira me parece muito menor do que o desafio que temos diante de nós. [Bruno Cava] O capitalismo é paradoxal de cabo a rabo. Ao mesmo tempo que é a organização político-econômica mais abstrata, é também a mais dramaticamente violenta: pequenas mudanças percentuais do sistema financeiro, decisões tomadas em cúpulas douradas ou nas entranhas de um supercomputador são capazes de impactar a vida de populações inteiras, de determinar processos brutais de reordenação territorial, social, trabalhista, urbana. A crise capitalista não é só econometria: é dor, racismo, refugiados, remoções. O desafio, a meu ver, é organizar a luta na imanência e com antagonismo, mantendo-se a tensão entre os termos, e habitando essa tensão. Se simplesmente fazemos apologia dos fluxos, entramos na vibe de dissolução de formas antigas e criação de novos valores e potencialidades, acabamos acriticamente coincidindo com o próprio movimento impelido pelo capital. A tensão desaparece, ficamos no polo da imanência, em que o capital opera. Por outro lado, se estabelecemos uma distância crítica demasiada, se nos descolamos demais das tendências objetivas e subjetivas, caímos no erro simétrico, o utopismo, o purismo, uma castidade política que também é incapacidade de fecundar. Um antagonismo transcendente, um culto à Ideia, à Causa, aos princípios sagrados da Revolução.
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Marx ensinou a não confundir o capitalismo com os donos das empresas e os banqueiros, e a não confundir o Estado com os governantes. Hoje, o objetivo pedagógico de tentar convencer as pessoas a não votar ou votar nulo porque, fora os “impecáveis radicais”, os políticos seriam todos a mesma coisa, é um objetivo triste e impotente. Primeiro, por se apoiar no desencanto dos eleitores; segundo, por incorrer no erro simétrico de situar, em primeiro plano, o plano operativo dos governantes e donos de empresas e banqueiros, isto é, os protagonistas das eleições. Estar “dentro e contra”, isto é, na imanência e no antagonismo, não significa nem um entrismo vulgar, como se fosse interessante ocupar e hackear tudo por princípio, nem um purismo igualmente simplório, como dos “pures et dures” que, inclusive com toda a abertura constituinte de Junho, podem acabar sucumbindo ao peso dos próprios princípios e desfalecer por hiperventilação teórica. Estar “dentro e contra”, habitar o campo problemático, onde as respostas não existem, devem ser construídas, é uma modulação ética de sensibilidade, perspectivismo e capacidade de compor e decompor. Organizar, portanto, é co-organizar; pensar é copesquisar e agir – constituindo um “comum” – que não é aquele “interesse comum genuíno” invocado por quem se apresenta como síntese de um tempo, seja essa síntese a do desenvolvimento progressista, do Programa da Esquerda Verdadeira (ou Possível, dá no mesmo), ou da luta anticapitalista à outrance. [Rosana Pinheiro-Machado] Não é possível pensar novas formas de organização que estejam à altura de Junho dissociando de uma análise das transformações do capitalismo global (só não sei se eu diria que existe uma crise neoliberal – mas isso é outra discussão). Mas temos aí dois desdobramentos. Um prático e outro teórico. O prático faz parte de minhas inquietações expostas acima e a resposta de Idelber é inspiradora. No ponto de vista teórico, o desafio é como fazer isso. Uma análise que ignora as novas ondas do sistema mundial fracassará na premissa básica de que devemos cruzar diversas variáveis – sincrônicas e globais, diacrônicas e nacionais – para compreender os movimentos difusos que eclodiram no Junho e pós-Junho. A força motora desses movimentos e outros que se sucederam espontaneamente (como a emergência dos rolezinhos, por exemplo) só podem ser compreendidos dentro de uma perspectiva global acerca de emergência de novas classes dos “precariados” como diria Guy Standing, bem como através da perspectiva do encorajamento de Castells, entre tantos outros aspectos recentemente explorados na teoria social. Mas para além dessas análises transversais que, muitas vezes, pecam em sua superficialidade, nosso desafio sociológico é não perder a perspectiva histórica das transformações do próprio capitalismo brasileiro e a sua inserção no sistema mundial. É importante observar as transformações econômicas que tem inserido o Brasil em redes produtivas internacionalizadas nos últimos 60 anos – o que levou a formação e consolidação, de um lado, das elites econômicas e, de outro lado, a produção e a manutenção de uma enorme massa dos “marginalizados” que, sob diferentes rótulos, ressurgem e assombram o establishment. Do mesmo modo, contemporaneamente, a análises dos “modos de captura”, como você mesma coloca, não prescinde da perspectiva geopolítica do Sul Global, em um momento
de reconfiguração do capital no qual os países em desenvolvimento, ainda que emergentes, são mais necessários do que nunca para manutenção da exploração do brand equity das grandes corporações e a criação do sonho da modernidade nos países do Sul. Aí novamente voltamos a essas massas desses trabalhadores “precariados” A chamada “marginalidade” vista como uma bolha nos anos 1970 se transforma numa massa enorme, difusa e complexa e do “precariado” que, nacional ou globalmente, assim como se alia ao capital em suas formas mais íntimas e subjetivas, rompe com ele por suas manifestações livres e inesperadas. A ação coletiva desses grupos é que está em disputa entre aquilo que podemos chamar de os movimentos sociais contemporâneos – onde o sindicalismo claramente mostra-se insuficiente em traduzir suas demandas trabalhistas – e o mercado hegemônico. Que saibamos canalizar essa energia pulsante para formas mais diretas e especificas de pressão e aperfeiçoamento da política institucional e, urgentemente, para a descriminalização dos movimentos sociais. [Pablo Ortellado] Eu gostaria muito, mas obviamente não tenho a resposta para a questão da Tatiana sobre qual é exatamente nosso problema e como saímos dele. Acho que não se trata apenas de apontar alternativas, mas caminhos concretos para essas alternativas que rompam tanto com a forma Estado, como com o mercado capitalista. Se pensarmos em todos os problemas que nos afligem, temos para elas soluções institucionais mais ou menos ao alcance da mão: temos propostas tributárias progressivas para corrigir a desigualdade social, temos modelos de serviços públicos para garantir direitos sociais, temos modelos de regulação para impedir a destruição do meio-ambiente etc. No entanto, todas as experiências históricas de regulação e limitação dos efeitos nefastos da economia capitalista se mostraram pouco duradouras. Isso se deve, penso eu, pelo fato de contrariarem a lógica interna do sistema que é a da auto-expansão ilimitada do capital por meio da livre concorrência. A força para limitar e regular é extrínsica ao sistema e por isso exige uma capacidade sempre renovada de mobilização extra-institucional. Os vai e vens históricos da regulação se devem a isso. É apenas por esse motivo que não vislumbro uma solução eco-social-democrata para os nossos problemas. O mesmo vale para os problemas relativos ao Estado. No Brasil tentamos mais do que em qualquer outra grande democracia liberal experimentos de participação direta como os conselhos e os orçamentos participativos e nada disso parece ter apontado para a superação dos limites da democracia representativa. De novo, parece-me que isso se deve ao fato de que essas iniciativas contrariam a lógica interna do Estado que é a do exercício ilimitado da dominação política. Em períodos de mobilização introduzimos reformas, mas essas reformas não duram ou se descaracterizam porque dependem de uma força extríseca ao sistema. Em resumo, a questão é: como produzimos escapando da lógica autoexpansiva da concorrência de mercado capitalista?; como tomamos decisões sem criar um aparelho de dominação separado da sociedade? Desde o início da idade moderna, nunca tivemos tão poucas pistas sobre o que fazer para melhorar a sociedade. São tempos de indagação e de experimentação.
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Poesia
foto: Dri Simões
Ericson Pires
Ericson Pires (1971-2012) foi um dos grandes agitadores da nossa geração. “Vagamundo”, como o definia Julinho Diniz, foi poeta, músico, pensador da arte contemporânea, performer. Antes de tudo, foi um cometa, que estimulou os seus pares a criar proposições potentes para o mundo e perturbou criativamente todos os ambientes que compartilhou. Ericson publicou dois livros de poesia, Cinema de garganta (Azougue, 2002) e Pele tecido (7Letras, 2010), além dos livros de ensaios Zé Celso Oficina Uzyna de Corpos (Annablume, 2004) e Cidade ocupada (Aeroplano, 2007), este último um estudo inovador sobre a arte contemporânea carioca. Participou do grupo de música afroindustrial Hapax e do coletivo RRRadial. Em 2006, quando estávamos fazendo os números especiais da revista Azougue, com eixos temáticos para pensar o contemporâneo (saque/dádiva, nomadismo/habitar, traição/vínculo, invenção/experiência), eu e Pedro Cesarino fomos entrevistar Ericson, para o segundo volume (nomadismo/habitar), para debater sobre a cultura carioca atual. A conversa foi, como sempre, brilhante e livre. Reproduzo um trecho ao lado, assim como um poema inédito resgatado por Pedro Lago, um dos seus grandes amigos dos últimos anos. E nas páginas seguintes, o pôster com um poema do seu segundo livro e ilustração do grande André Dahmer. Viva Ericson! [Sergio Cohn]
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Você fala que o Rio é a “estética da restinga”. O que é essa estética? É precária, como tudo hoje. Mas há uma má compreensão do precário, principalmente entre a geração dos anos 1980, que é uma geração muito problemática. Outro dia estava num debate junto com o Lobão, entrou essa discussão do precário e ele ficou insultadíssimo. Ele disse que não fazia coisas precárias, mas de alto nível. O que é uma má compreensão do que estamos dizendo. E precisamos começar a dar nome aos bois, porque a geração 80, hoje em dia, é a geração que está nas cabeças. E o que seria esse precário, então? Falar de precariedade hoje é falar da vida, do que é transitivo, do que sugere, mas às vezes não consegue se consolidar, o que aponta, mas não determina, está em permanente mutação, em movimento. Mas há uma tensão entre a potência dessa precariedade e as imposições de uma lógica de mercado. Então esse precário é impulso de criação ou limitação? Vamos pegar o exemplo do moderno: a ideia de moderno no Brasil já nasce em xeque. Ela é totalmente contraditória, estavam olhando para trás, mas pensando o presente. Era uma invenção que, na verdade, trazia a manutenção de certa tradição. Essa ideia do moderno está, então, intimamente ligada a essa manutenção da palavra, à manutenção do texto, o texto como instrumento de poder, instrumento de determinação de quem pode nomear e quem não pode nomear. O moderno entra aí não para socializar ou para criar uma possibilidade de inserção de outros discursos, mas para corroborar um instrumento de poder. Ele instaura uma rachadura, e essa fissura é justamente uma fissura temporal. Inventar o Brasil. Mas o Brasil está sempre no atual. Ele sempre se atualiza e isso escapa do poder da palavra, porque às vezes a palavra cristaliza, codifica, de-
termina. O moderno é, na verdade, o contemporâneo. Isso que a gente chama de moderno historicamente, em termos de temporalidade, é contemporâneo. A contemporaneidade é o grande barato do Brasil. Agora, há uma tradição moderna mais radical, que permeia toda a literatura brasileira do século passado e que acabou sempre ficando um pouco à margem. Raul Bopp, Antônio Fraga, Agripino de Paula... O Flávio de Carvalho, que é um dos referenciais mais significativos para qualquer discussão de arte hoje, e não só no Brasil, e que depois se transformou de repente em um pintor fauvista, um engenheiro, um arquiteto fanfarrão que fazia festinhas e surubas em sua casa no interior. É complicado. O próprio Oswald só não se deu mal nessa por conta dos tropicalistas. Mais ou menos. Em 2005 se completaram os 50 anos da morte dele, e muito pouca coisa foi dita. Quando forem os 50 anos da morte do Drummond, espere para ver o barulho. Temos uma tradição de ruptura no Brasil que o tempo todo é interrompida e silenciada. E o contemporâneo é justamente o que escapa, o que vai dar nesse nicho, nesse trânsito perpétuo, que é esse precário que estava falando. Agora estou juntando o precário com o contemporâneo, com a contemporaneidade. Essa contemporaneidade é bruta, não obedece cronologia, não obedece linha nenhuma. Não é possível você pensar uma história linear causal. E me ocorre agora a frase do Oswald, “a contribuição milionária de todos os erros”. Um clichê básico, mas parece que ninguém leu direito. Não se trata de uma apologia da Estética da Fome. Não se trata de dizer se o Glauber leu daquela maneira essa precariedade, porque precisava determiná-la e encaixá-la num programa. Hoje a gente não tem programa. Hoje a gente não precisa determinar este precário, o precário é um modo que vem desse contemporâneo.
um poema inédito OFÍCIO DO ÓCIO ATENTO portas abertas sob o sol velhas maneiras de se ouvir pernas batendo fios batendo amainando respostas sem perguntas sinos reagem ao vento epiderme tênue daquilo que muito se riu daquilo que nunca se quis velho vinho da dúvida perene atividade do dia poeira em convulsão profética epilepsia do tempo diluindo bordas no centro a cada semente me aproprio me parto e reinicio jornada longo sem fim atendo atento
ericson pires
3 aqui é o ponto mais distante do agora. não poder ir. o tempo é sim e o rastro é simples. o que se move termina. continuar terminando. manter a roda rodando. cada instante é um sol. abrir cada olho. sentir o sol. cada instante queima. cada quimera cerca. manter rígido. manter de pé. o som de cada tempo brota sins. agora é gemido do sim. tudo é som que se expande.
2 andar sem sair do lugar. sem sair do lugar. andar na frágil ponta do talvez. talvez, esperar de novo. esperar: o novo de novo de novo no novo. fechar o círculo. fechar o cerco. estar fechado no cerco. cada mentira leva a uma verdade que não pode ser dita sem ser mentida. medida rompida.
1 cobrir o tempo de sins. cair na terra. tentar ter terra. abrir as mãos no ar. lançar mãos. manter músculos tensos. passar no ventre do dia. encontrar dia na noite e noite no dia. esticar o tempo na mão. jogar o peão. raspar lixos no instante. poder o instante. esquecer o começo de novo. esquecer de novo.
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ernesto neto entrevista por Sergio Cohn, Fred Coelho e Guilherme Zarvos
[Sergio] Ernesto, como você vê o Rio de Janeiro nesse momento? Tenho visto o Rio de Janeiro vivo. Eu acho que o Rio acordou. Está bonita a situação. Está confusa, difícil, as opiniões são contraditórias, o que mais uma vez demonstra a vitalidade do que está acontecendo. Várias máscaras estão caindo. Quem está do lado de quem e quem não está, tudo está mais às claras. Mesmo quem está neutro está percebendo o que está acontecendo. Agora no calor do acontecimento é difícil fazer a reflexão, mas daqui a três anos vai ficar muito feio para o lado de quem reprimiu as manifestações. As coisas encobertadas vão começar a aparecer muito mais com o tempo. Não tem como esconder o que está acontecendo. E isso leva a pensar sobre a necessidade de termos mais de um jornal para a classe média e classe média alta no Rio, porque O Dia e o Extra ocupam outro espaço, falam para outra parcela da população, e com o fechamento do Jornal do Brasil se criou um vazio danado. Fico pensando, se o jornal O Globo quiser fazer uma entrevista comigo, não sei se aceito. Ou se eu for realizar uma exposição, não sei se tenho interesse do Globo fazer uma cobertura do evento. Claro que é superimportante a cobertura, divulga sua obra para pessoas que de outro modo não teriam acesso. Porque é aquela coisa: você é artista, seu pai acha que você é louco, sua mãe acha que você é um cara maneiro, que de repente isso é apenas uma fase que vai passar com o tempo. Seus irmãos acham legal para caramba, seus amigos acham bacana. Mas aos poucos sua mãe vai achando que você está com algum problema, que vai se dar mal na
vida. Seu irmão começa a achar que você pirou e seus amigos começam a falar: “Arte é lá na Europa, cara. Vai para a Europa”. Como se você fosse obrigado a sair do país porque você é artista, como se isso não pudesse acontecer aqui no Brasil. E fora que a sua conta bancária vai ficando a cada dia menor, você passa a ter dificuldade de acesso aos meios, comida e livros e coisas assim. [Guilherme] Você está falando de uma condição genérica do artista em relação à família, ou pessoal? Essa é a minha história. Mas quando você começa a sair no jornal, começa a fazer um sucesso, coisa pequena, artista jovem, você adquire um certo status diante da sua família, dos seus conhecidos. A coisa posterior é se você ganha algum dinheiro, que é a outra coisa que a sociedade define: “Se tem dinheiro, tudo bem, ok, aceito você como você quer”. E aí quando você não quer mais falar com esse jornal, está colocando em cheque esse tipo de situação. Mas, cara, eu acho que O Globo acabou. Para mim é um defunto. [Guilherme] Essa situação complicada perdurou no seu caso até você se tornar um dos artistas mais importantes do Brasil? Ou mesmo quando você fundou A Gentil Carioca? Foi diminuindo há muito tempo, e depende muito do espaço que você dá para isso na sua vida. Eu nunca tive esse problema com a questão de ser artista. Era um problema dos outros, não meu. Eu queria fazer arte. Eu não tinha muita dúvida no que iria acontecer comigo no futuro. Talvez eu não imaginasse que faria exposição nos lugares que andei fazendo
por aí, pelo mundo. Mas também ninguém imaginava isso. O mundo não era desse tamanho, não era tão próximo da gente. Mas eu estava contente com muito menos. Aliás, eu sempre estive contente. No meu atelier sozinho, com todas as dificuldades que eu tive, trabalhando no dia a dia, tomando uma cerveja mais tarde, para mim era a vida. Com os 49 anos de agora, se eu estivesse levando a mesma vida que eu tinha vinte anos atrás, com todas as dificuldades, provavelmente eu teria encontrado outras soluções. Mas daria certo. Eu acredito na vida. [Guilherme] Você chegou a ir à universidade? Estudei na Faculdade Estácio de Sá, comunicação social. E estudei artes em diversos lugares, na escola do MAM, no Parque Lage, curso da Fayga Ostrower... Eu ficava rastreando um pouco os cursos que aconteciam. Eu não quis entrar nas Belas Artes, primeiro porque sabia que era caidaça. Depois porque a arte para mim é uma coisa libertária, ligada à liberdade. Não queria ter essa coisa do colégio, da escola, isso de ter que passar na prova, tirar nota, encontrar um professor que não vai com a sua cara. Isso era muito comum comigo, a cada ano encontrava um ou dois professores que não gostavam de mim. Normal. Mas fiz faculdade. Sou um cara de classe média, era importante porque eu era o filho mais velho, cursando faculdade eu iria manter a minha família mais ou menos onde ela estava. [Guilherme] Mas já era uma faculdade gauche. O Tunga, por exemplo, fez arquitetura. Eu queria inclusive que não tivesse nada a ver com arte. Fiz comunicação e no segundo
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ano passei para publicidade. Claro que, na parte geral, na comunicação e na publicidade acabei vendo coisas que pude aproveitar para produção artística. Mas eu não queria que fosse arquitetura ou qualquer outra que tivesse o contexto de “se não der certo viver de arte, tem esse plano B”. Eu não ia fazer publicidade de jeito nenhum, detesto publicidade. Agora, de alguma forma a publicidade me parecia uma maneira mais objetiva de entender o mundo do que o jornalismo. No começo até pensei em fazer jornalismo. O que queria mesmo era fazer astronomia, mas fui reprovado no vestibular. Eu estava no vestibular para física também. E um dia meu pai me chamou para ir à praia, eu não tinha sunga e fomos comprar. Comprei uma listrada branca e vermelha e meu pai comprou uma igualzinha para ele. A gente foi para a praia do Pepino e atravessamos a praia, totalmente vazia, e não era uma sunga azul, mas listrada em diagonal, vermelha e branca. Era o maior mico. Mas era divertidaço. E nessa conversa meu pai me convenceu a abandonar o vestibular de física e fazer só o de comunicação. [Guilherme] Você consegue identificar uma origem para o seu interesse pela arte? Minha primeira escola foi de arte. Segundo a minha mãe, eu ficava andando com a merendeira pela casa, queria ir para a aula. Eu faço aniversário em julho. Se eu fizesse até junho, poderia entrar com dois anos na escola. Mas como era julho, só poderia entrar no ano seguinte. Por isso ela me botou numa escolinha de artes. Eu me lembro da entrada, é uma imagem que tenho na minha cabeça: um tipo de caverna. Eu me lembro de fazer esculturas. E depois teve um momento em que meu pai teve problemas de trabalho e mudou tudo. Ele e minha mãe pegaram uma grana que ela tinha e fizeram uma casa no Joá. Um projeto do Zanine Caldas. A gente foi morar lá e meu pai começou a construir casas comprando terreno, fazendo o projeto e vendendo. Isso em 1970. Em geral era do Zanine, mas tinha
também o Roberto Maia, uns caras maneiros. Essa foi mais ou menos a vida dele. No final, o Cláudio Bernardes fazia boa parte dos projetos. Ele fez boas casas. Mas porra! O Zanine era genial, revolucionário. Para mim o cara era um gênio. E vi essas casas todas crescendo. Eu andava sobre as vigas, antes de haver o assoalho. Tinha uma coisa legal em ver aquilo crescendo, eu estava sempre nas obras. Em 1975, meus pais se separaram. Foi um momento trágico. A casa era maravilhosa, era muito alta, o forro dela era um forro de pinho de riga, as portas eram portas de igreja, que se comprava quase de graça. Sabe o que eu descobri? Tinha uma sala em cima e uma embaixo, o piso era de granito, meio arredondado na borda, não era liso, não era esse granito que a gente costuma ver. Eu me lembrei disso faz uns dias e comentei com a minha mãe. Sabe o que ela me disse? “Neto, sabe de onde veio aquele granito? Das antigas calçadas da Lapa”. Estavam fazendo o recalçamento da Lapa e quem quisesse pegar, pegava de graça, era só levar o caminhão e pegar. Eu andei anos pela Lapa dentro de casa e não sabia...
lia, do Carlos Basualdo, achei que ele deveria ter incluído o Zanine. Colocou a Lina Bo Barbi, o Paulo Mendes da Rocha não sei se estava. Não dá para discutir, são arquitetos maravilhosos. Mas o Zanine tinha uma coisa muito relacionada com aquela época. Os próprios tropicalistas, o Caetano e Gil, moravam todos em casas do Zanine. A Bethânia mora até hoje. Tinha uma relação com a favela, as casas todas em morros, tinha uma tropicalidade. Não era o ato de colecionar os objetos da cultura popular que a Lina fazia. Ele era a própria cultura popular. Tenho o maior respeito pela Lina, estou usando ela apenas como anteparo para uma comparação. Ele era a cultura popular e trazia junto o modernismo, porque foi maqueteiro dos feras da arquitetura modernista: Reidy, Oscar, Lucio Costa. [Guilherme] Ele começa como jardineiro, paisagista e passa a fazer maquetes, para só depois projetar. Sim. E essa questão do paisagismo me lembrou uma coisa. Na minha história, teve um entreato. Em 1970, minha mãe começa a
O Zanine era genial, revolucionário. Para mim o cara era um gênio. E vi essas casas todas crescendo. Eu andava sobre as vigas, antes de haver o assoalho. Tinha uma coisa legal em ver aquilo crescendo, eu estava sempre nas obras. [Guilherme] E convivendo com o Zanine... É. Ele não era arquiteto, então tem uma ciumeira dos arquitetos em cima dele. O Zanine é muito mal aproveitado, digamos assim. Ele é um mestre para mim, mas como arquiteto não recebe o respeito que deveria receber. Não há grandes livros falando do Zanine, não há um pensamento sobre o que significou a passagem do Zanine pela arquitetura. Quando houve a exposição da Tropicá-
fazer desenho industrial na primeira turma da PUC. A minha mãe casou virgem e na escola onde eu estudava meus pais foram os primeiros a se separar. Foi ruptura total. Aquele clássico das pessoas que tiveram o azar de nascer um pouco antes do momento histórico, da revolução dos anos 1960, 1970. Então ela começa a estudar desenho industrial nos anos 1970. Isso foi muito difícil para o meu pai, me parece. E, ao mesmo tempo, nas aulas, quando ela
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tinha trabalho de grupo, como ela já tinha família, casa, compromissos, acabava sendo na casa dela, e eu acabava participando daquilo de alguma forma. O trabalho dela de fim de curso tem muito a ver com a Lygia Clark. Segundo ela, só quando apresentou o trabalho,
da arte é mais lento. Há um tempo, conversando com uma amiga jornalista, eu contei que o Hermano Vianna havia me dito que, apesar de o funk estar liberado, a polícia havia invadido e acabado com um baile, inclusive quebrando os equipamentos. E ela me respondeu: “Estra-
A nossa geração está vivendo a influência das manifestações, inevitavelmente. Certamente tem gente criando. Talvez a gente não esteja vendo agora. As coisas são muito rápidas, muito recentes, o processo da arte é mais lento. alguém falou da Lygia e outro completou: “a Lygia está dando aula aqui do lado”. Eu acho que na verdade tem uma sensibilidade particular dela, mas as ideias da Lygia pós-neoconcretas estavam na universidade também. Ela deve ter recebido isso sem saber quem era a Lygia. Mas em 1975, se formando, ela se separa e acaba virando paisagista. E é até hoje. Assim como o Zanine também era. Então, tive uma formação em torno dos dez anos de idade que marca muita coisa. Minha relação com o plano estético talvez tenha vindo daí. [Fred] Uma das coisas que a gente vê nas redes e conversando com as pessoas, dando aula, é que se usa muito os anos 1960 como anteparo para falar do que está acontecendo agora nas manifestações. A gente acabou ensinando e aprendendo que o que saiu dali foi uma puta geração de artistas, e às vezes me perguntam o seguinte: “Cadê a resposta da arte para o que está acontecendo agora?”. Ao que respondo: “Ela tem que dar uma resposta? Ou ela tem que viver esse fluxo e os trabalhos surgirão?”. A nossa geração está vivendo isso, inevitavelmente. Certamente tem gente criando. Talvez a gente não esteja vendo agora. As coisas são muito rápidas, muito recentes, o processo
nho, porque antes de o baile acontecer já tem que estar tudo arregado”. Então fiquei pensando sobre esse termo, “arregado”. Fiquei muito impressionado. Talvez já tivesse ouvido ele, mas nunca de modo tão firme. Isso ficou na minha cabeça. Ia haver uma exposição na minha galeria de São Paulo, então eu cortei uns ferros e escrevi: “Não pague o arrego”. E a minha galerista reclamou muito, porque era uma escultura, bem grande, e aquela frase. Segundo ela, ficava uma referência muito forte. Acabei colocando a frase no fundo da galeria, no jardim. Alguns viram, disseram que era incrível chegar no final e haver aquilo. Ao mesmo tempo, eu fui fazer uma gravura tipográfica para o MAM, chamada “Noite e dia” e acabei fazendo uma com a frase “quem paga o arrego”, que fiz, montei como gravura. [Sergio] E levou a frase como cartaz para a rua nas manifestações. Isso. Está aqui na mochila, inclusive. A partir disso fiz três trabalhos para botar na ArtRio, que é um tipo de trabalho que tenho feito com moldura de madeira, uma chapa de ferro atrás, crochê e uma tela de tule, de algodão. Havia feito isso no ano passado, e, nesse ano, tirei o crochê, botei o tule de algodão e um neon. Queria botar um cassetete em uma delas, uma
bala de borracha na outra e uma bomba de gás na terceira. Até consegui isso tudo, mas uma hora pensei: “Quer saber, não vou botar isso. Vou botar é a máscara, o óculos e o vinagre”. E aí fiz isso, chegamos a mandar para a feira, mas na época eu estava indo para a Colômbia e os caras não botaram, deu o maior estresse. Quando eu voltei, não queria nem discutir, já tinha discutido por e-mail, aí o pessoal de lá me disse: “Ah não, feira não é lugar para botar trabalho novo”. Mas houve um desconforto, acharam que... Enfim, é a galeria deles, não dá para forçar a barra. Mas são coisas que estão acontecendo. Outro dia, vieram me cobrar, um amigo, de que os artistas não estavam se posicionando. Cara, é uma questão de tempo. [Sergio] E o inverso? Quanto você acha que a arte preparou para que as manifestações acontecessem? Não sei. Boa pergunta. Como aconteceu tudo? Começou com o lance dos 20 centavos? [Sergio] Ou a Aldeia Maracanã? Pode ser. Fiz um trabalho para a Aldeia, está no ateliê. Mas antes da manifestação começar também. Tive um estresse no MAR também, brother. Saí da inauguração do MAR, tinha uma galera muito revoltada com a abertura do Museu, era uma galera, parece, dos atores que estava muito puta, que despejaram eles, uma coisa assim. Quando saí da abertura, estavam lá, me xingando e dizendo como se a gente fosse responsável pelo problema deles e do mundo inteiro, e eu comecei a discutir com os caras: “Galera, vocês não estão entendendo, vocês estarem aqui gritando está me ajudando”. Nesse dia, lá dentro, eu estava discutindo com todo mundo a questão do estado de notícia, em que tudo é ditado por um só jornal que conta a história que quiser. Eu estava muito puto com tudo que estava acontecendo. Quando saio vejo gente também muito puta, mas me agredindo geral. Aí eu saí de lá e voltei muito puto, eles segurando no saco e dizendo: “Quero ver vir me
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pegar?”. Na hora que começaram a me xingar, cheguei a mandar uma mão em cima do cara. Quase saio na porrada com aquela multidão. Qualquer um que sai você vai agredir? Estou fazendo uma porrada de coisa há muito tempo. Talvez nem soubessem quem eu era. Talvez soubessem e fossem críticos... [Fred] Antes das manifestações acontecerem já havia o Reage Artista que começou quando fecharam os teatros por causa do incêndio da boate de Santa Maria. Aí o MAR é Fundação Roberto Marinho. Porto Maravilha... [Fred] Essa discussão é interessante porque traz o caráter do ativismo contemporâneo. Para um tipo de ativista contemporâneo, estar em um evento de inauguração do Museu que tem a Fundação Roberto Marinho como um dos sócios, seja lá o que for... [Sergio] Você é um entreguista. [Fred] Você seria o que para os anos 1970 era o entreguista ou o alienado, ou está fazendo parte do jogo. Não há nenhum tipo de sutileza subjetiva que coloque em questão: quantos museus tem no Rio de Janeiro, vamos jogar fora um equipamento daquele? De jeito nenhum. Eu sou a favor do Museu. [Fred] Temos é que repensar a vocação pública daquele museu. E acho que o Museu está mandando bem. Está fazendo o trabalho de museu que agita um tipo de produção. E o diretor do Museu é meu amigaço. Tenho o maior respeito pelo Paulo Herkenhoff. [Fred] Que saiu à rua em outro momento para defender a manifestação. Exatamente. Isso aconteceu e fiquei pensando, escrevi um poema, até grande. Porque teve uma menina, nem a conhecia, fui conhecendo por causa disso também, ela estava também no MAR. E ela disse: “Os caras estavam querendo te pegar”. Mas ela pediu para eu escrever uma coisa no jornal. E eu achei que
a reação daquelas pessoas era muito baseada no estado de notícia em que a cidade ficou. E outra, todos falam o que não querem, mas não falam o que querem. As pessoas não estão indo para a rua, não sei agora, mas naquele momento, para dizer: “Nós queremos isso”. Aconteceu que detonaram o Maracanã, e quando começou a reforma todo mundo já sabia que o Maracanã iria ser o horror. Ninguém foi para a rua para dizer como queria o Maracanã, ninguém fez nada. A gente não sabe, não diz.
na Europa, com os artistas que estão batendo de frente o tempo todo, e eles acabam valorizando o que estão confrontando. Temos que tentar ir para outro caminho, fazer um desvio. Acho a questão do índio muito interessante, porque o índio é de uma outra sociedade. Não está batendo de frente com essa sociedade aqui, simplesmente acha que essa sociedade está errada, e que não tem como consertá-la. Acha que o princípio está errado. Não adianta apenas olhar para os princípios europeus, da
Estou vendo o que está acontecendo na Europa, com os artistas que estão batendo de frente o tempo todo, e eles acabam valorizando o que estão confrontando. Temos que tentar ir para outro caminho, fazer um desvio. [Fred] Antes da entrevista, o Sergio lembrou uma coisa interessante: na própria A Gentil Carioca havia um artista que já estava apontando isso, o Guga Ferraz, um cara que estava vendo essa cidade em ebulição desde muito antes. Aquele ônibus queimado do trabalho dele... O que explodiu em junho já vinha há muito tempo. [Fred] À conta gotas, há muito tempo. O “Quem paga o arrego” foi feito há dois ou três anos. Mal ou bem pode ter chegado até as pessoas. O Vogler também tem uma posição crítica. Essa galera tem uma entrada para esse lado. No Brasil, quando você é objetivamente político, muitas vezes tem uma perda estética. Não estética, exatamente, porque não é o belo ou não belo. O samba é uma coisa assim, e acontece aqui, o problema vem e todo mundo sai de banda. Ninguém quer bater de frente do sentido protesto rock’n roll. Rock’n roll é bater de frente o tempo todo no protesto. Mas não sei, cara. Estou vendo o que está acontecendo
sociedade moderna em que a gente vive, e tentar ficar ajustando ela. O que acontece muito ali na Europa, até gente que eu conheço faz dessa forma. Mas não adianta, porque o problema está na raiz. Acho que o modelo brasileiro de tentar se livrar do problema, deixar a onda passar, é uma coisa que acaba refletindo um pouco na nossa maneira de fazer arte. [Sergio] Como foi a criação da Gentil Carioca? O Marcio Botner e o Franklin Cassaro me ligaram: “Estamos querendo abrir um espaço para as artes visuais”. “Vamos nessa, beleza!”, eu disse na hora. O Franklin era sócio no começo, mas depois ficou de saco cheio, achou que a gente era muito biruta. Houve uma exposição de que a ideia foi dele, infantil, ele queria trazer a família. Convidamos o Cabelo também, e ele pôs aquelas obras com criança fumando cigarro, meio pesado, e aí o Franklin ficou um pouco revoltado por termos aceitado isso. A verdade é que ele não estava comungando tanto da vibração incrível que rolou entre eu, Marcio e a Laura Lima.
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[Guilherme] Desde o começo já juntou gente na rua? Como foi essa história de colocarem a cerveja do lado de fora? Começou lá dentro do prédio, no Centro, a cerveja também. Então era aquele aperto, porque a cerveja ficava lá dentro, e ficava todo o mundo lá em cima, no segundo andar. Era incrível, até meio confuso, porque tinha que proteger as obras. Eu, pessoalmente, até sinto saudade disso. Mas claro que quando a cerveja foi para a rua foi bem melhor, o espaço se ampliou e foi crescendo. Quando abrimos A Gentil não sabíamos o que estávamos fazendo. É o futuro. Não dá para controlar o futuro. “Para onde vai?”, essa pergunta chave, a gente nunca sabe. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Esse é o mistério e o delicioso da vida, cara. Então a gente precisa acreditar e tentar viver, a gente nem sabia o que era e nem sabe hoje o que é A Gentil, e nem sabe para onde vai. Tem uma série de coisas que nos deixa
Quando você fala assim me dá a sensação de que ela está aqui agora. Caralho, ela era uma estudante, eram dez perguntas que ela havia enviado pela Internet. A primeira pergunta: “O trabalho que você fez no Panteão, Leviathan Thot, como pode duas culturas tão diferentes se tornarem tão integradas?”. Aí pensei: “Tão diferentes?”. E a quinta pergunta era essa: como me sentia expondo no Ocidente. Aí comecei a perguntar para todo mundo lá na França, eu estava no interior, mas estive em Nantes e perguntei para várias pessoas se elas achavam que o Brasil era Ocidente, elas ficavam meio sem graça, porque ser ocidental é ser um pouco classe A da natureza humana. [Fred] Embora hoje em dia não seja mais tão cool ser ocidental... E diziam: “Não, não, não, o Brasil é outra coisa”. Liguei para os meus dois melhores
Quando abrimos A Gentil Carioca não sabíamos o que estávamos fazendo. É o futuro. Não dá para controlar o futuro. “Para onde vai?”, essa pergunta chave, a gente nunca sabe. Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã. Esse é o mistério e o delicioso da vida, cara. descontente em relação a ela. É cansativo, difícil. Por exemplo: aquela festa de dez anos d’A Gentil, foi um êxtase, uma loucura, sabe? Uma choradeira, uma emoção. E no dia seguinte, a gente acorda da ressaca e diz: “E aí, como é que a gente vai pagar as contas?”. Volta a vida. A vida é festa, feita de símbolos. [Fred] E aquela história que o Hermano Vianna contou na coluna dele, quando você estava na França, e uma menina, pesquisadora norueguesa, perguntou qual era a sua sensação em estar expondo pela primeira vez no Ocidente?
amigos franceses: um intelectual, poeta, maneiríssimo, que disse: “Não, Brasil não, que é isso?!”. Ele tinha ficado dois meses na minha casa, depois ficou um mês. “Brasil não, vocês tem esse lance do corpo, da música”. Aí eu disse: “É porque tem preto?”, que tem gente que tem vergonha de falar. Ele respondeu: “É, é, exatamente, tem preto”. “E nos Estados Unidos? Lá também tem”; “Não, mas lá não teve essa influência na cultura que tem no Brasil”. Interessante. Ele falou do corpo. Aí dei o segundo telefonema. Uma amiga que é da área cultural também, trabalha em galeria, é uma menina da cultura, mas não é uma in-
telectual como o outro. Mas é da nossa área. “Você acha que o Brasil é Ocidente?”, “Não, Brasil, não. Vocês têm essa coisa do corpo... A gente é robô... A gente já era, isso aqui já era. Você não me falou que vocês eram Terceiro Mundo, que eu nunca tinha ouvido falar disso.” “O que para vocês é exatamente Ocidente?”; “Ah, são os países desenvolvidos, não é?”; “E o Japão?”; “Ah, não, mas aí é outra história”. Então fiz uma frase que soa melhor em inglês: “We are not western, because we are not pure, we’re poor”. Fiquei pensando nisso e comecei a achar isso maravilhoso, libertador, me deu uma leveza. “Que maravilha, cara, estamos livres disso!”. E aí comecei a perceber como isso é um problema grave para o Brasil. Na chegada para cá, perto d’A Gentil, encontrei uns amigos dinamarqueses e falei com eles: “Porra, vocês já sabiam que a gente não era ocidental, não é?”, “É, sim.”, “Porra, podiam ter falado para gente, cara!”. Os caras nem imaginavam que a gente se achava ocidental. Eu me lembro de ter falado com as pessoas que são um pouquinho mais o nosso nível, nada muito especial, designers, cineastas, comecei a contar essa história e as pessoas ficaram revoltadas, cara. Disseram: “Quem falou isso?”; “Os europeus.”; “E quem é que eles pensam que são?”; “Ué, os ocidentais!”. É libertador, é muito bom e libertador não ser ocidental. E a gente não é de fato. A gente é uma mistura. Eu percebo isso, sinto uma diferença muito grande. E isso começou quando eu li o texto do Eduardo Viveiros de Castro, sobre o padre Antônio Vieira e as culturas de mármore e as de murta. E comecei a me entender muito lendo aquilo, lendo a parte antropológica do índio, me vi refletido ali. Eu morei seis meses na Europa com a Lili, e minha frase era: “Sorry if I made something wrong”, desculpe se fiz alguma coisa errada. Porque se eu não tinha feito, ia fazer. [Fred] Dentro desse contexto Ocidente e Brasil, eu já vi pessoas destacadas da arte brasileira colocarem a questão de que não é mais pertinente usar o termo “arte brasileira”. Você
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acha que a arte não tem mais que andar com a sua localidade, com a sua nacionalidade? Vou ser bem sincero, quando comecei a entrar nesse mundo internacional, eu evitava essa dinâmica. Embora, cara, as referências com que dava para conversar, não ia falar de Amílcar de Castro para os europeus, eram o Hélio Oiticica e a Lygia Clark, que são importantes mesmo para mim. Tem outros artistas muitos importantes para mim, entre os vivos, Richard Serra, Giovanni Anselmo. Mas sou formado pela arte brasileira, nunca li muita revista estrangeira, até hoje não leio tanto. Bebi tudo que pude aqui no Brasil. Com 23 anos, fui para a Europa, e a tudo quanto é museu, não fui às galerias porque nem sabia quais eram elas. Vi o Richard Serra pela primeira vez, não vi o Anselmo, mas de volta ao Brasil vi uma foto do trabalho dele, foi superimportante, foi quase como se eu considerasse fruto daquela viagem. Mas quem me marcou mesmo foi o Tunga, o Cildo, o Waltercio Caldas, Zé Resende, Barrio, Antonio Manuel, a turma da escultura nos anos 1970. Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Willys de Castro, Barsotti. Claro que também Donald Judd foi muito importante, fui ler os minimalistas, a arte povera. Mas a minha formação passou por aqui. Quando era garoto, antes de começar a fazer arte visual, mas na boca de começar, eu achava que a gente tinha que defender um ponto de vista latino da arte. Achava que ia chegar na Europa, que me daria bem com os italianos, espanhóis, franceses. Me enganei, claro. Achava que a gente tinha o domínio, porque o belo é uma decisão, uma convenção, e quem dava as cartas era a arte latina. Mesmo na França já havia algo menos latino do que na Itália, na Espanha, mas com o pós-guerra o anglo-saxônico dominou tudo. O último grito foi a transvanguarda, não, foi a arte povera, porque aqueles são muito conectados com a Alemanha e os Estados Unidos. Então, eu não pensava em nacionalidade, mas em raiz cultural. E quando eu cheguei lá, estamos falando de 1994, a Europa inclusive já estava em um processo de
unificação, estavam muito mais interessados neles mesmo, nos anglo-saxões, é um domínio muito forte do pragmatismo. [Guilherme] Claro que Barrio e Hélio estão em outras situação, mas os vários artistas que você citou trabalham com material muito sólido. Você trouxe sua leveza desde o início.
de juntar, o legal é juntar coisas que cada um desses artistas estão pensando em vários lugares do mundo, afinal somos seres humanos, todo mundo vai ao toalete, temos coisas comuns. Pessoalmente, tenho mais interesse pelo que nos é comum, do que pelo que nos faz diferentes. Quando você faz arte brasileira, vai ter que procurar a diferença. Vai
Sinceramente, hoje, acho que existe uma arte brasileira, existem certas particularidades na sensibilidade brasileira, dentro da pluralidade de produção.Acho que em qualquer viés da arte contemporânea vemos uma sutileza, uma indireta, um humor, uma maneira própria. Foi, realmente desde o começo. Mas quanto ao brasileiro, eu acreditava nessa coisa latina, as coisas foram mudando, e não queria, por exemplo, quando houve a exposição do Barroco em San Diego, não quis participar. Na exposição Arte Latino-Americana, também. Quando eu conseguia evitar, evitava, na Europa e tal, porque não queria entrar pela nacionalidade. Sinceramente, hoje, acho que existe uma arte brasileira, existem certas particularidades na sensibilidade brasileira, dentro da pluralidade de produção. [Fred] Mesmo na arte contemporânea? Mesmo. Acho que em qualquer viés da arte contemporânea vemos uma sutileza, uma indireta, um humor, uma maneira própria. Não conseguimos ser tão diretos, na política, na hora de falar, achamos meio bruto ser tão direto. Mas não é para criar um espaço restrito para isso. Fazer uma exposição de arte brasileira é um porre. Acho um saco. Porque o legal é misturar mesmo. E é difícil
separar o humano brasileiro do humano do mundo, pela diferença, pela particularidade, mas, pessoalmente, me interesso no que há em comum. Precisamos nos juntar. Quando fazemos coisas pela diferença, pela cultura, daí a frase que escrevi em neon na Argentina e nunca trouxe para cá: “a natureza nos une, a cultura nos separa”. Estou mais querendo que a gente se una. Quero a paz, tanto dentro do caos que é o Brasil, como a paz mundial. Sobre a pergunta da leveza, sabe o que acontece? Eu nem sei como responder isso. Mas o fato é que, há muito tempo, quando eu ainda estava estudando, queria fazer uma escultura, um trabalho, e estava pesquisando Calder. O Roberto Moriconi, que foi meu professor no MAM, começou a falar muito da arte concreta brasileira, a arte geométrica. O que aconteceu, quando comecei a fazer a escultura, primeiro fiz aula com o Jair Sampaio, que era o último dos moicanos da arte acadêmica do Parque Lage. E ele quando me viu entrando lá garoto, com 18 anos, 19,
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chegou para mim e disse: “Cara, é o seguinte, eu te ensino a fazer todas as paradas aqui de barro e tal, mas hoje em dia, na arte, você vai ter que procurar outras coisas”. Ele foi muito legal comigo, me deu diversas dicas. E quando fiz a primeira escultura, olhei para aquilo e disse que era aquilo que eu queria fazer na vida. Tinha acabado de reprovar no vestibular. e pensei numa escultura que fosse conceitual. Não sabia muito bem o que era arte conceitual. Seria uma caixa de 10cm de altura, e de 60x60cm de tamanho, com uma bola em cima, de fórmica, bem lisa, dura. Depois teria uma espuma também, mesma espessura, a placa com mesma dimensão, e uma
Clássico. Quando chegou minha vez eu disse: “Astronauta!”, nunca me esqueci disso. Um dia reencontrei a menina que eu adorava, gostava, a minha namoradinha, meu amor de infância. Ela era loirinha, bonita, sei lá, eu gostava dela. Eu implicava com ela, cara! E ela me contou: “Cara, lembra de um dia em que a gente estava em roda e a professora perguntou o que cada um queria ser quando crescer?”, eu já estava achando incrível o fato de ela se lembrar disso. “Eu me lembro”, eu disse. “Pois é, fiquei muito puta com a professora”. “Por quê?”. “Porque você falou que queria ser astronauta e ela falou para você que isso não era profissão!”. E o interessan-
Quando você faz arte brasileira, vai ter que procurar a diferença. Vai separar o humano brasileiro do humano do mundo, pela diferença, pela particularidade. Pessoalmente, tenho mais interesse pelo que nos é comum, do que pelo que nos faz diferentes. bola que se deformaria um pouco, afundaria na espuma. E depois teria uma moldura com tecido elástico, estaria pendurado e essa bola deformaria muito mais. Eu era muito ligado em relatividade, astronomia, gravidade, era o que eu lia e estudava, vivia no planetário, não passei no vestibular, mas lia todos os livros que apareciam que dava para ler nessa área. [Fred] Via os programas do Carl Sagan de manhã na Globo? Via! “Cosmos”, quando a gente era adolescente. Via, eu queria ser astronauta, era o que queria quando criança, com três anos de idade. Já morava no Joá, não em Copacabana, e a professora fez uma rodinha, e perguntou o que cada um queria ser quando crescer.
te é que eu não me lembro disso. Só fui saber porque ela me disse, antes de eu virar artista. Até ali eu estava fazendo vestibular para engenharia. [Sergio] Imagina o que essa professora iria achar se você dissesse artista... Outro dia estava andando com um pôster, na rua onde eu morava, de um filme desses aí de espaço. Acho que o 2001 me deixou louco quando era criança, e minha mãe nos levou, eu e meu irmão, para ver. Aquilo ali foi demais! Encontrei com uma amiga minha, que viu o pôster e acabei contando essa história para ela. Ela virou para mim e disse: “Se você falasse que ia ser artista a professora iria dizer a mesma coisa”. O que é legal, na verdade.
Acho que esse lance do tecido, da deformação gravitacional, vem disso tudo. Mas também vem de outra coisa: vocês se lembram daquele pufe clássico dos anos 1970? Meu pai e minha mãe tinham uma que era zebrado. Eu e meu irmão trazíamos as amigas para a casa, ficávamos meio namorando, daquele jeito de criança, em cima dele. O pufe era um lugar que absorvia a gente, a própria rede, que é uma coisa muito forte para mim. [Fred] E no seu trabalho tem esse abraço das coisas. Eu sempre quis abraçar. Quando comecei a fazer as naves, estava contente, mas sentia que a nave não abraçava. Eu queria fazer algo de isopor, em que, entrando, o corpo ficasse apertado lá dentro. Nunca consegui fazer isso de fato. Mas sempre tive a ideia do abraço, de querer abraçar. Quando fiz o show da Marisa Monte, a escultura que fiz para ela era como se tivesse uma cara e duas garras. Eu chamava Nave Show Esfinge Caranguejo. Era como se tivesse abraçando aquela galera e jogando energia. No show anterior dela, me levaram à festa depois, e tinham filmado ela, e botaram os filmes para ver. Eu já tinha dado um dois, e acho interessante a maconha, você sabe que em alguns lugares ela é sagrada, não é? Tem civilizações onde é sagrado e em outras é crime. Mas para mim aquilo é... Eu não entendo porque dividem o mundo em antes e depois de Cristo. Para mim é antes e depois do baseado. Porque, cara, fica tudo completamente diferente, é um corte, e é o mito do eterno retorno, porque depois você volta. Mas vi o filme e filmaram ela de costas, o tempo todo, o vestido dela era longo, bonito. Mas o fato de ela estar de costas me fez entender toda a relação dela não só com a banda, mas com o público. Porque quando damos o abraço, abraçamos de frente, mas é as costas que damos para o outro. E a energia sai das costas de alguma forma. Mesmo quando dou o abraço, agora, no vazio, a sensação que encontro é a frente, mas a força vem de trás.
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rio em chamas: um filme-manifestação coletivo por Daniel Caetano
Final da década de 1990. Um grupo de estudantes do curso de cinema da UFF, em Niterói, decide fazer um projeto coletivo de longa-metragem. O filme, denominado Conceição, nasce como uma subversão da obrigação de produção de curta-metragens para finalização do curso. “A gente teria que produzir um ou dois curtas, mas ninguém estava disposto a fazer um filme com estrutura, digamos, careta, com um diretor dando as ordens e os outros cumprindo. Aí decidimos fazer um filme coletivo, em que haveria diretores, mas todo mundo poderia dar ideias para o roteiro e discutir os conceitos”, lembra Daniel Caetano. Conceição foi um dos mais interessantes projetos audiovisuais coletivos da geração. Demandou quase uma década de realização, e foi lançado em 2007. Com direção de Daniel Caetano, André Sampaio, Guilherme Sarmiento, Cynthia Sims e Samantha Ribeiro, trazia no elenco nomes como Djin Sganzerla, Dado Amaral e Jards Macalé. Em 2014, outro filme coletivo, com a mesma estrutura aberta e fragmentária, é lançado, tendo em sua produção alguns dos realizadores de Conceição. Rio em Chamas é um filme-manifestação, dialogando e refletindo sobre Junho de 2013, seus precedentes e desdobramentos. Embora seguissem o mesmo preceito de buscar a coletividade, os dois filmes foram realizados de maneiras muito diferentes: “Digamos que o Conceição foi coletivo como concepção, como um filme de turma do início ao fim, enquanto o Rio em Chamas era um filme manifestação, em que cada um pode ter seu espaço para defender o que pensa, mesmo que os demais discordem de alguma coisa. No Conceição, o processo todo foi coletivo. Foi bem diferente do Rio em Chamas, em que, por mais que tenham acontecido inúmeras discussões coletivas, cada um cuidou do seu próprio episódio. A montagem final manteve cada episódio que foi entregue montado exatamente como ele foi feito.” A questão financeira também é um diferencial. Em Conceição, houve o apoio da UFF, embora insuficiente para finalização do filme. Já em Rio em Chamas, o filme foi realizado inteiramente com recursos próprios. Cada diretor bancou a filmagem de seu episódio, e os produtores Cavi e Daniel Caetano investiram os recursos necessários para a finaliza-
ção. “A grande diferença entre os projetos é a passagem entre película e digital. O Conceição demorou milênios a ficar pronto e se tornou uma lenda porque era muito caro finalizar um filme. Agora, qualquer pessoa que trabalhe profissionalmente na área tem equipamentos que permitem finalizar as produções em casa.” A entrada de Cavi no projeto foi fundamental. “Atualmente, o Cavi é uma figura central na produção de filmes do Rio e Janeiro. Num estado e numa cidade em que os poderes públicos tentam de todas as formas possíveis concentrar os investimentos em meia-dúzia de escolhidos, o Cavi conseguiu arranjar uma estrutura que o permite fazer vários filmes por ano sem patrocínio. Ele faz mais pelo cinema carioca do que a prefeitura e o governo do estado juntos.” Com doze diretores (Daniel Caetano, Vinicius Reis, Clara Linhart, André Sampaio, Cavi Borges, Eduardo Souza Lima, Diego Felipe Souza, Luiz Claudio Lima, Ana Costa Ribeiro, Ricardo Rodrigues, Vítor Gracciano e Luiz Giban), Rio em Chamas cria o conceito de filme-manifestação: “O filme sempre foi pensado como uma visão que não pretende ser totalizante. Não há um discurso único, uma fala explicativa e organizada para convencer o espectador de uma verdade única. O objetivo era nos juntarmos para cada um poder expressar o que mais lhe inquietava – e, juntos, esses pontos de vista permitem uma visão talvez assimétrica, talvez até um pouco caótica, mas
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mais verdadeira do que se buscássemos uniformidade. Isso remete à ideia de manifestação, porque numa manifestação as pessoas se juntam por terem alguns pontos de vista e objetivos em comum, mas cada um tem liberdade para se expressar de forma diferente da do sujeito ao lado. É normal que numa manifestação se juntem pessoas que pensam diferente e fazem coisas diferentes – estão lá porque uma mesma questão as move, mas sem chegarem a uma uniformidade completa. Nosso filme foi pensado assim, cada episódio representa quem o produziu. Não houve nenhuma mudança nos cortes dos episódios entregues, assim como numa manifestação deve-se respeitar os cartazes que as mais diferentes pessoas trazem, exceto se for algo que provoque completa discordância dos demais.” Os episódios do filme são bastante diversos, indo da ficção ao documentário, do lírico ao retrato da violência policial que permeou as manifestações políticas. Iniciando com uma ampla retomada histórica das manifestações recentes, que geraram o impacto de Junho de 2013, e seus desdobramentos, através de um diálogo ficcional entre um grupo de amigos, o filme segue por episódios como uma entrevista com a ativista Sininho ou um diálogo entre Marcus Faustini e Cezar Migliorin. O filme conseguiu um feito ainda raro para produções independentes no Brasil: foi lançado em circuito comercial, no Cine Odeon no Rio de Janeiro e depois em outras cidades, como Belo Horizonte. A sessão de lançamento lotou o Odeon, numa noite de alto teor celebratório. “A sessão no Odeon foi eufórica, talvez até demais. Ao mesmo tempo em que comemoramos a feitura do filme e sua difusão em cinema e internet, a gente sabe que ele só existe porque as circunstâncias atuais são graves – e nada indica que tenham melhorado. Mas, é claro, foi um prazer exibir o filme para um Odeon lotado que aplaudia várias cenas.
Por outro lado, esses aplausos talvez fossem mais motivados pela raiva que a plateia sentia dos agentes policiais que apareciam no filme do que pelo filme em si. Aí é do jogo de uma manifestação: quem chega com um cartaz ou faz um discurso pode ser longamente aplaudido e em seguida levar pedradas de pessoas que pensam diferente. E até um discurso aplaudido pode cair no esquecimento minutos depois. Acho que conseguimos registrar, divulgar, repercutir e provocar reflexões, mas sei que o filme parece insatisfatório para quem anseia por um discurso pronto, que explique historicamente todos os acontecimentos. Nesse sentido, me pareceu normal ver algumas polêmicas sobre ele acontecendo em discussões de ativistas. Me foi inevitável lembrar da frase célebre do Godard: não pretendíamos fazer uma “imagem justa”, mas só uma imagem dos acontecimentos. Nesse sentido, o verdadeiro problema da repercussão do filme é que gostaríamos que ela fosse muito maior. Mas isso me parece indicar muito mais a indigência da relação entre filmes brasileiros e seu público do que sobre características específicas do nosso filme. Os filmes brasileiros não têm espaço de difusão adequado ao tamanho do país.”
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Vozes&Visões
manifesto poesia e erotismo O Coletivo P.U.T.O.
Coletivo P.U.T.O.
Manifesto P.U.T.O.
é formado por garotos
“A prostituição nada mais é que uma expressão particular da prostituição generalizada
de periferia
“Toda autoridade é cômica! Todo trabalhador é escravo!
a que estão submetidos os trabalhadores” (Karl Marx) Fazer da anarquia um método e modo de vida. Conhecer praias amores novos.
que se dedicam a estudar
Poesia em cascatas de samambaias” (Roberto Piva)
Roberto Piva e Marx,
Sujeita e sujeito periférico!
escutar Dilermando Reis promover a rebelião e outros vícios requintados.
Você está P.U.T.O.? Nós também! Habitamos a periferia das cidades. Lugares da lei sem lei. Gente excedente.
As garotas do coletivo chamam a si
Operamos na periferia do sistema econômico-político-cultural-erótico
de Vinagretchens
A periferia do conhecimento
A periferia do trabalho A periferia do corpo
E desejam explodir postos de gasolina
A periferia das artes A periferia das políticas públicas
com suas mentes e bocetas lança-chamas para todos visualizarem o Universo Paralelo além das cinzas. Já os garotos chamam a si de Black Bofes e querem ser os contra-regras das rebeliões.
A periferia da economia planetária a periferia do Sistema Solar!!! Nós ficamos só com a casca do abacaxi, o amargo do giló e a nhaca do quiabo. Somos obrigados com nossos votos a desistir das decisões importantes em nossas vidas Somos compelidos a mutilar nosso erotismo para atuar dentro da putaria do trabalho Não somos nós que decidimos como devem ser nossas escolas, nossos hospitais, nosso transporte, nosso tempo lugar e energia para trepar. Nosso erotismo é reduzido à pornografia, à prostituição e ao matrimônio de consumo. Estamos submetidos à Prostituiçao Universal do Trabalho Organizado. Nosso discurso é Poesia Urgente Tocando o Osso. Estamos P.U.T.O.s. Perdemos a paciência Nossa PAUTA (Proposta de Atuação Unificada dos Trabalhadores Apaixonados) é única: Fogo nos palácios. Paz às periferias.
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Manifesto poesia e erotismo 2 Poesia não é decorar o hospício com flores 3 Poesia não é monopólio dos cornos e das suspirosas 4 Poesia é a palavra-pensamento que se desvia da regra para atacá-la 5 A poesia simula convulsões enquanto sai da fila para fazer um discurso 6 Poesia é quando uma pedra no meio do caminho se solta do calçamento e voa rumo às vidraças dos palácios 7 A poesia concreta precisa de isqueiro e gasolina para poetizar um ônibus ou um pedágio 43 A poesia se levanta inúmeras vezes durante uma palestra de um engenheiro de Belo Monte e contesta seus números e esperneia enquanto é retirada do local por seguranças estatísticos sob as vaias das senhoras de tailleur com suas bundas de bunker e senhores engravatados com suas panças-tanques-de-guerra 58 A poesia faz batucada fora do carnaval atrapalhando o trânsito e trocando os nomes de pontes e ruas, tirando os nomes dos assassinos do poder e colocando os nomes dos assassinados pelo poder 312 A poesia para uma estrada e faz 21 minutos de silêncio para poetas camponeses mortos pela polícia e oferece alimentos livres de agrotóxicos para humanizar carros que rosnam 8 Poesia é alucinação em carne viva 40 A poesia perde a paciência 1 Poesia erótica é muito mais que louvar as coxas do ser amado - embora isto também seja fundamental Porque erotismo é muito mais que um jogo sexual Eros quer a união, o encontro Uma revolta popular é o momento mais erótico de todos Portanto, da próxima vez em que eu disser que estou lambendo os últimos centímetros de uma coxa sagrada, quero dizer também que estou chegando às portas do Palácio com meus companheiros de luta, para festejar, com coquetéis em punho. A poesia queima na fogueira pra aquecer poetas machucados pelo vento. Sabe da dor da garoa fina e do frio na lama. Por isso a poesia mora nos terrenos baldios, garimpa lembranças, conserta brinquedos, vê nos cacos azuis cozinhas inteiras, banqueteia no estio, na febre e na falta.
Rafael Campos Rocha