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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa Fernando Codeço Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 6 | dezembro de 2013 ISSN: 2318-1192

Caro leitor, este sexto número da NAU fecha o ciclo de 2013, ano de tormentas e venturas. Iniciamos com um texto sobre gênero livre, pensando a liberdade de trânsito e identidades, uma das propostas mais valorosas para o novo milênio. Em diálogo com essa proposta, reproduzimos o fragmento inicial da entrevista realizada por Hélio Oiticica com o performer Mario Montez, um dos grandes ícones do cinema underground norte-americano. O entrevistado é Ailton Krenak. Certamente, um dos mais instigantes pensadores atuais, liderança indígena com forte atuação no Brasil e no exterior. O pôster central é um poema de Beatriz Azevedo, “Peripatético Poema-de-chão”, poema-intervenção na cidade. NAU traz ainda um relato de César Oiticica Filho sobre o seu documentário “Hélio Oiticica” e um Vozes&Visões especial, sobre duas inquietantes vozes surgidas na poesia brasileira: Stela do Patrocínio e Regina Peixoto. Por fim, seguimos singrando os mares ao lado de Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!

Sumário Gênero livre Heliotape: Mario Montez Pôster | Beatriz Azevedo Entrevista | Ailton Krenak O gabinete do Dr. H.O. Vozes&Visões | Stela e Regina: outros olhares Caronte | por Rafael Campos Rocha

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Gร NERO LIVRE texto de Anita Ayres, Bia Medeiros, Eloi Nascimento, Fernando Codeรงo, Sergio Cohn e Vinicius Nascimento imagens de Fernando Codeรงo foto de abertura: Ana Carolina Fernandes


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O livre trânsito entre gêneros, orientações sexuais e identidades certamente é uma tendência para os próximos tempos. Mas, para essa liberdade se concretizar, há muita luta e muito espaço para ser conquistado. Em dois caminhos, que muitas vezes se encontram: de um lado, assegurar o direito à diferença, às diversas identidades que os indivíduos escolhem para si. De outro, permitir a não necessidade de uma identidade estanque, ao fluxo, às livres combinações e experiências. Esses desafios, que ganham novos contornos com o tempo, possuem a dificuldade de fazerem parte de uma demanda que tem conquistado maior espaço na sociedade apenas nas últimas décadas. Assim, enfrentam ainda preconceitos profundamente arraigados e o conflito de posições internas e desejos. Os movimentos de gêneros ganharam expressão social especialmente a partir da

contracultura, na década de 1960, em paralelo com as outras lutas pela diversidade e direitos abrangentes. A revolta de Stonewall, em Nova York, em 1969, é muitas vezes lembrada como um marco dos movimentos homossexuais. Mas se a contracultura foi um momento inaugural dessa difusão mais ampla das questões de gênero e orientação sexual, outros movimentos comportamentais das décadas subsequentes realizaram contribuições importantes, e muitas vezes obscuras, para a conquista dessas liberdades e elaboração de novas proposições. Para ficarmos em apenas um deles, importante na construção da liberdade, vale se debruçar na contribuição, embora indireta, do punk novaiorquino para o tema. E para isso, em Richard Hell, sem dúvida uma das figuras mais interessantes que passou pelo punk rock. Persona de Richard Meyers, Hell atuou como poeta, escritor e ator, além de ter tocado em bandas como Television, Voidoids e Heartbreakers. Filho de um professor universitário, sempre foi um erudito, amigo de Susan Sontag e leitor de Lautreamónt e Rimbaud. Ficou conhecido, entre outras coisas, por usar durante os shows uma camisa estampada com a frase “Please kill me” (“Mate-me por favor”). Na sua recém-publicada autobiografia, I dreamed I was a very clean tramp, Hell subverte alguns conceitos consagrados sobre a negatividade punk, e abre interessantes leituras.


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A primeira delas se refere ao conceito disseminado pela sua música mais conhecida, “(I belong to the) Blank Generation”, comumente traduzida como “geração vazia” e assim ligada a um niilismo inerente na juventude da época. Segundo Hell, o “blank” da frase, como pode ser visto na capa do disco e também no refrão da música, onde a palavra entra em suspensão, abrindo espaço para o silêncio, é a possibilidade de indeterminância, de nenhuma definição: “I belong to the ________ generation”. Para ele, o significado buscado na música é que cada um pode preencher esse vazio como quiser, não sendo aceita nenhuma classificação prévia e externa da geração. A ideia de invenção (ou reinvenção) de si perpassa toda a obra de Richard Hell. Numa entrevista para Lester Bangs, em 1977, o mítico crítico de rock o perguntou: “Não é verdade que muito do movimento Punk envolve o ódio a si mesmo?”. Hell respondeu: “Existem muitos motivos para o ódio a si mesmo. Para transcender algo você precisa aceitar plenamente que ele existe. Eu prefiro muito mais ouvir a música de alguém que odeia a si mesmo e expressa isso do que ouvir a música de Barry Manilow”. Mas continua, “Uma coisa que eu quis trazer de volta para o rock’n’roll era a consciência de que você inventa a si mesmo. Foi por isso que eu mudei o meu nome, por isso que eu criei todo o meu jeito de se vestir, o corte de cabelo, tudo o mais. Então, naturalmente, se você inventa a si mesmo, você ama a si mesmo. A ideia de inventar a si mesmo é criar a imagem mais ideal que você pode imaginar de si. Então, é totalmente positivo”. Essa construção livre da identidade, proposta por alguém que dividiu o celulóide com Andy Warhol em filmes como “Geração Punk” e “Cocaine Cowboys”, remete à estreita convivência entre os punks e os

transgêneros. Não é preciso ficar apenas em figuras icônicas, como Divine, que participou ativamente de manifestações da época, ou Rachel, a mítica mulher de Lou Reed no começo da década de 1970. A convivência era ampla, vindo do submundo de Nova York e passando pela Factory e outros espaços de vanguardas. É uma expressão radical do direito livre, que aprofunda o lema punk. Para além do “faça você mesmo”, podemos dizer que estava expresso naquele momento o “invente a si mesmo”. Essa expressão ganha mais força quando a colocamos em relação com a proposição de Judith Butler, de que o gênero é uma performance, um constructo social. Butler afirma, no seminal Problemas de gênero: “A categoria sexual e a instituição naturalizada da heterossexualidade são constructos, fantasias ou ‘fetiches’ socialmente instruídos e socialmente regulados, e não categorias naturais, mas políticas (categorias que provam que nesses contextos o recurso ao ‘natural’ é sempre político). Existe um corpo ‘físico’ anterior ao corpo percebido? Questão de resposta impossível. Não só a junção de atributos sob a categoria do sexo é suspeita, mas também o é a própria


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discriminação das ‘características’. O fato do pênis, da vagina, dos seios e assim por diante serem nominados partes sexuais corresponde tanto a uma restrição do corpo erógeno a essas partes quanto a uma fragmentação do corpo como um todo. Com efeito, a ‘unidade’ imposta ao corpo pela categoria do sexo é uma ‘desunidade’, uma fragmentação e compartimentalização, uma redução da erotogenia”. Se o corpo, portanto, visto como um todo, cria indeterminâncias, há ainda obrigações sociais que obrigam a afirmação do gênero. O que leva a disputas. Hoje, mesmo antes de nascer, já é imposto aos pais que se saiba o sexo da criança. Assim que nasce, certidões taxam a criança em gênero específico, masculino ou feminino. A brutalidade desses atos poucas vezes é percebida. Para a jurista Heloísa Helena, maior especialista no tema no Brasil, “um homem que vive como mulher (e vice-versa), isto é, que se apresente e se comporte socialmente como tal, põe em dúvida sua identidade civil, o que acaba não só por afetar o exercício dos seus direitos, como também por agravar o processo de exclusão social em que normalmente se encontra”. Conquistas nessas áreas estão se realizando em alguns países. Na Alemanha, crianças intersexuais já podem ser registradas como “sexo indeterminado”. Mas fica a pergunta: qual o motivo de, já no século XXI, continuarmos precisando do ritual de registrar o sexo das crianças? Afinal, vivemos numa sociedade onde os espaços sociais já podem ser transitados por ambos os gêneros sem restrições. Ou não? Laerte Coutinho se tornou um ícone do transgênero no Brasil atual. A partir de 2004, começou um processo de migração de gênero, o que se tornaria público seis anos depois. Laerte (que não trocou de nome tendo em vista sua visibilidade anterior como artista gráfico) começou então a defender algumas bandeiras, sendo a principal delas o banheiro unissex. Segundo ele, “o banheiro é tão sacralizado como culto de gênero que é o altar, a igreja dos heterossexuais”.

Laerte diz já ter sido expulso tanto de sanitários femininos como masculinos. E é aqui que a questão se complica. Se, no caso dos homens a resistência é por preconceito, as mulheres alegam a questão da segurança física e higiene para manter a separação de gêneros nos sanitários. Mas, se há um espaço público onde o gênero é determinado, não há como abolir o registro. Há aqui ainda uma barreira a ser transposta. O que não impede que surjam problemas, como o ocorrido com Indianara Alves Siqueira. Presidente do grupo comunitário “TransRevolução”, que luta pelos “direitos e qualidade de vida de pessoas Trans”, e uma das organizadoras da “Marcha das Vadias”, que luta pelo fim da violência sexual e de gênero, Indianara protagonizou em outubro de 2013 um episódio que expõe a contradição de nosso sistema jurídico e mais uma vez o despreparo, a ignorância e a violência policial. A ativista foi presa por atentado ao pudor, por estar com os peitos desnudos durante o protesto que ela criou com outras trans chamado “Meu peito, minha bandeira, meu direito”. Nas palavras de Indianara: “Após receber voz de prisão por desacato, fui liberada mediante pagamento de fiança feito por companheirxs vadixs. Então recebi a intimação do julgamento. Independentemente do resultado do julgamento, mais que uma pessoa ou um coletivo, o que estará sendo julgado é o gênero, a imagem do feminino que não tem o mesmo direito que o masculino. A justiça criará também um dilema. Se me condenar estará reconhecendo legalmente que socialmente eu sou mulher e o que vale é minha identidade de gênero e não o sexo declarado em meus documentos. Isso então criará jurisprudência para todas xs pessoas trans serem respeitadxs pela sua identidade de gênero e não pelo sexo declarado ao nascer. Se reconhecer que sou homem como consta nos documentos estará me dando o direito de caminhar com os seios desnudos em qualquer lugar público onde homens assim o façam, mas também estará dizendo que homens e mulheres não são iguais em direito. To be or not to be”. Indianara teve o mérito de com sua ação colocar a justiça num impasse “existencial”, colocando em choque duas visões conservadoras de nossa legislação. A ilusão de que gênero é sinônimo de fisiologia, algo biológico com o qual as pessoas nascem e não uma construção social e o tabu sobre o corpo feminino. Tabu este que parece desaparecer quando este corpo é exposto como um produto para ser consumido em propagandas, espetáculos e programas televisivos. O corpo de Indianara é criminoso porque está na rua protestando. Se estivesse num carro alegórico no carnaval ou ainda se estivesse no meio da “Parada Gay” não seria. Sim, porque a Parada também se tornou um espetáculo. Espetáculo, performance, corpo. O embate começa a tomar contornos nítidos. O que está em jogo aqui é o corpo. Uma das possibilidades que se cria, em resposta a esse corpo estanque, pétreo, rotulado e pronto que a sociedade busca impor, é a visão do corpo como roupa, ou de um corpo que é também uma roupa. A possibilidade de pensarmos o corpo


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como roupa e a roupa como corpo. Para isso, é preciso pensar sobre um corpo completamente distinto do modo como ele foi tradicionalmente concebido na civilização ocidental, ou seja, um corpo que está à margem do mundo capitalista do espetáculo, da sociedade do consumo, ou que se apresenta como um incômodo, um estranho no interior deste mundo. Neste contexto, índios, travestis, transexuais, punks e artistas performáticos unem-se numa perspectiva que não vê o corpo como sinônimo de fisiologia e que escapam aos padrões burgueses estabilizantes de beleza, comportamento e sexualidade. Num caso específico, a ideia de “corpo como roupa” parece estar implícita na própria palavra: travesti. Segundo o antropólogo Hélio R. S. Silva, é o que ocorre na prática: “O corpo é encarado como vestimenta. E, como vestimenta, corrigível, costurável, enxertável”. Em outro contexto, Eduardo Viveiros de Castro, referindo-se aos rituais indígenas em que se vestem roupas, máscaras e pintam o corpo, nos diz: “Trata-se menos de o corpo ser uma roupa que de uma roupa ser um corpo. Estamos diante de sociedades que inscrevem na pele significados eficazes, e que utilizam máscaras animais (ou pelo menos conhecem seu princípio) dotadas do poder de transformar metafisicamente a identidade de seus portadores, quando usadas no contexto ritual apropriado. Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal que ativar os poderes de um corpo outro”. Este “outro” corpo não é mero disfarce ou fantasia, é um “equipamento distintivo” que permite ao sujeito ter outras afecções e capacidades, que possibilitam aos xamãs se “deslocar(em) pelo cosmo”. Viveiros de Castro compara essa roupa/corpo aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais. O corpo,

nos estudos de Viveiros de Castro, não é sinônimo de “fisiologia distintiva”, mas sim um “conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus”, conceito este que escapa da clivagem tradicional na cultura ocidental que costuma separar corpo e alma. Outro antropólogo, Marcos Benedetti, nos dá a seguinte definição de habitus: “...é a própria naturalização da cultura, porque é o operador lógico que promove a ligação entre um nível propriamente simbólico (cultural) e o espaço corporal (natural). Assim, segundo Bourdieu, não haveria um estrato puramente biológico no corpo, governado por leis naturais, como querem as ciências médicas e biológicas”. Continuando a discussão, Benedetti cita ainda a teoria de Thomas Csordas, que entende o corpo como “a base existencial da cultura”, não como “um suporte de significados”, mas como “um elemento produtor e o cenário primeiro desses significados”. O antropólogo conclui: “O corpo das travestis é, sobretudo, uma linguagem; é no corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se concretizam e conferem à pessoa suas qualidades sociais. É no corpo que as travestis se produzem enquanto sujeitos”. Se o corpo das travestis é uma linguagem, o ato de travestir é a produção de um discurso no corpo, discurso que é uma desfiguração, ou uma falsificação declarada, ou ainda uma transição para “outro corpo”, transição que nunca se completa, nunca se torna propriamente o “outro”. É sempre uma passagem, um trânsito entre um corpo e outro. O travesti encarna, em seu corpo, um movimento perpétuo de alteridade. Hélio R. S. Silva expõe, nesse sentido, a ideia de uma “transcondição” da travesti: “... no sentido de que há em sua condição um princípio de mutação que, por incidir sobre aspectos, dimensões, características extremamente básicas e estruturantes, as torna virtualmente mutantes, mutáveis”, diz Hélio Silva. Assim, o travesti faz discursar no corpo uma transitoriedade. O travesti não é o híbrido, mas um movimento de hibridização. Essas características de uma subjetividade que se dá na exterioridade do corpo, que não possui uma identidade fixa ou rígida, que está aberta a mudanças e por isso mesmo aberta ao outro, ao diferente, nos parece uma alternativa ética e política ao modo de subjetivação que o mundo capitalista tenta impor: um indivíduo interiorizado, transcendental, autocentrado, que possui uma verdade sobre si, que se reconhece em determinada classe social, que se enquadra em determinada faixa de consumo. Assim, a crescente liberdade de trânsito entre gêneros, de uso dos corpos, a experiência entre os múltiplos encaixes de orientação sexual, desejo, gênero e invenção, possibilita uma deriva, um salutar rumo à indeterminância.


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heliotape: mario monteZ

(FRAGMENTO)

por Hélio Oiticica

Foi numa quinta-feira, primeiro de setembro de 2011, a primeira e única vez que tive a oportunidade de conhecer e conversar extensamente com Mario Montez. Falamos por horas, e sinto que horas não foram suficientes. Nesse primeiro de setembro que nos encontramos para conversar na casa de nosso amigo em comum, o curador e crítico de cinema norte-americano Marc Siegel, que vive em Berlim, eu estava com os arquivos de áudio da conversa que Hélio e Mario tinha gravado em 1971, nesse mesmo exato dia, 40 anos antes. Que coincidência cósmica! Lembro-me do sorriso epifânico de Mario ao escutar a gravação e compartilhar suas memórias com a gente como um dos momentos mais gratificantes da minha vida de pesquisador. Mario Montez (1935-2013), ator, artista performático, ícone do cinema e do teatro de vanguarda "underground" de Nova York, 1960-1970, o personificador de Marilyn, Carmen Miranda, a Esmeralda de Notre-Dame de Paris, Hedy Lamarr, e, como disse Hélio, a verdadeira “encarnação” de Maria Montez. Desde o início de 1960 Mario permanece como a figura central dos filmes lendários e apresentações de slides de “Flaming Creatures” de Jack Smith (1962-1963) e " Normal Love" (19631964), depois com o Teatro do Ridículo é estrela de palco e mais do que isso, se converte em estrela Warhol, Chelsea Girl, em Mario Banana. Nos anos 1970 é o guardião Drag Queen de "OraCULO" em “Agrippina Roma-Manhattan” (1972) de Hélio Oiticica e torna-se parte integrante dos " Subterranean Tropicália Projects” que Hélio planejou para Central Park, em 1971, sendo homenageado em um belo artigo (“MARIO MONTEZ. TROPICAMP” ) que Hélio escreve naquele ano. Após quase duas décadas de produção intensiva e uma vida dupla como um trabalhador porto-riquenho humilde durante o dia no Brooklyn e rainha subterrânea de noite e em seu tempo libre em Manhattan, Mario desaparece cenário em 1977, retirando-se para viver uma vida mais calma, caseira, na Flórida. Ninguém parece saber onde está, até que em 2009 aceita o convite de Marc Siegel fazer o seu retorno na primeira grande retrospectiva da obra cinematográfica completa de Jack Smith naquele ano, apenas na cidade de Berlim. Em seguida, apenas dois anos antes de sua morte inesperada em setembro de 2013, com mais de 70 anos, a estrela de gay babilônico subterrâneo de Nova York foi finalmente convidado para o Festival Internacional de Cinema de Berlim e pode parar de se preocupar no que havia mais temido em toda sua vida: nunca mais ser reconhecido como um dos verdadeiros astros do cinema do século XX. Parabéns Mario! Nunca vamos o esquecer! Max Jorge Hinderer Cruz Berlim, dezembro de 2013


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HO O que eu tinha em mente quando pensei em entrevistar você era algo que li num livro sobre cinema underground. Eu não sei se você tem ele. Eu esqueci o nome do autor. O livro se chama Underground Cinema e menciona muito você. Tem algumas fotografias de “Flaming Creatures” lá, e outras coisas. E quando ele menciona você num capítulo sobre superstars, ele diz uma coisa que achei muito interessante, que quando você escolheu seu nome, quando disse que você era o Mario Montez, você não estava realmente tentando representar Maria Montez ou fazer uma cópia ou coisa do tipo, você era realmente uma encarnação de Maria Montez. (MM ri) Eu pensei sobre o título dessa entrevista ser, por exemplo, "Mario Montez's Incarnation of Maria Montez". Eu gostaria de saber de você se isto é uma ideia plausível e todas as razões por que você pegou o nome de Maria Montez, para além de adorar Maria Montez. Havia alguma outra razão? Porque assumir um nome, eu imagino, é um tipo de um grande ato mágico, entende, como se você estivesse incorporando algo definitivamente em você. Então é isso que eu quero ouvir de você, que sabe melhor do que qualquer outro escritor. MM Bem, eu não sou uma total reencarnação, mas isso foi construído lentamente durante o período de um ano e meio. Eu realmente adorava – e continuo adorando – a falecida senhora Maria Montez. Mas, antes de pegar esse nome, meu nome artístico "Mario Montez", eu não tinha um nome artístico. Eu já estava sendo fotografado por Jack Smith havia um ano ou quem sabe um ano e meio. Então ele decidiu fazer “Flaming Creatures” e mesmo lá eu não tinha um nome, um nome artístico. Eu fui creditado como "Dolores Flores". Então, como você pode ver, eu não estava pronto para ser nomeado "Mario Montez" ainda. Isto foi em 1961, ou 1960. Depois do lançamento de “Flaming Creatures” e tudo o mais, eu percebi que eu precisava de um nome artístico. Durante o processo de conseguir um nome, eu comecei a desenvolver um sentimento mais forte, porque o Jack Smith falava sobre Maria Montez todo o tempo. Eu estava penetrando no – eu não sei se você entende o que eu digo – oculto, o oculto da senhora Montez. Mas realmente eu não estava apenas fascinado. Era além disso. Talvez você possa chamar isso de uma lenta reencarnação. Eu realmente penetrei nela. Em menos de dois meses depois do lançamento de “Flaming Creatures”, o falecido Ron Rice estava fazendo um filme, um dos últimos que realizou. Humm, o título era, era um título estranho, era... “Chumlum”! “Chumlum”, o que eu acredito que tem algo a ver com música japonesa. Ou é um instrumento japonês ou algo parecido ou pode ser uma louça. Eu não sei o que é. Durante as filmagens, eu já tinha o nome, porque eu disse "Eu quero ser chamado de Mario Montez". Eles colocaram nos créditos imediatamente. Isto foi mais ou menos dois meses depois, quando os créditos foram realizados. Mesmo antes eu já era o Mario. HO “Chumlum” foi realizado depois de “Flaming Creatures”? MM Sim, foi. Foi mais ou menos três ou seis meses depois.

HO Então foi antes de você fazer qualquer coisa com o Warhol? MM Sim. HO Ok. Isto é muito importante. Então isso significa que quando você começou a trabalhar com Warhol, você já possuía o seu nome, o nome de Mario Montez. MM Sim, eu já tinha o nome. Não, eu não peguei ele do Warhol. HO Isto é muito bom, porque mostra que muito das mitologias do Warhol começaram muito antes, com Jack Smith, creio. MM Sim, se não fosse por Jack Smith, eu não teria nunca encontrado Warhol. Creio que enquanto eu estava filmando ou no mesmo ano que filmei “Chumlum”, Warhol estava apenas começando a fazer filmes também. Ele estava filmando um longo épico que tem cerca de oito hora, chamado “Dracula”. Eu não sei se ele irá utilizar o mesmo título que Hollywood, mas é sobre “Dracula”. E Jack Smith estava atuando no papel principal. O filme tem um grande elenco, como Beverly Grant e uma diretora de cinema, uma garota... Beverly Grant está dirigindo agora, por sinal. Ela está dirigirindo os filmes de Tony Conrad, como aquele com Francis Francine chamado “Coming Attractions”, que recentemente estreou, uns dois meses atrás. Não sei se você soube. HO Não. Eu teria adorado assistir ao filme. (...) MM Voltando para o Warhol e Jack Smith – ele estava no processo de fazer o “Dracula” e me convidou para uma sessão de filmagem. Ele perguntou ao Andy Warhol se podia me levar. Então eu fui e falei para eles, "bem, talvez eu pudesse fazer a Dama de Branco", porque havia aquelas damas de branco, ou uma dama de branco, no “Dracula”. Então foi isso que aconteceu. Eu fui a uma filmagem e Jack me deu um vestido de Ceil Chapman, encardido, todo pregueado. Era muito bonito, então eu usei ele. Eu não tinha uma peruca, mas Jack tinha algo como uma ombreira. Era como um pequeno bolero que as mulheres usavam, mas feito de pelo de coelho branco. Eu coloquei sobre a minha cabeça, então ficou


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parecendo uma peruca platinada na fotografia preto e branco. Parecia Harlow também, porque era crespo, curto e crespo. Eu usei isso para fazer a Dama em Branco. E também usei a mesma peruca e o mesmo vestido em “Harlot”. Por sinal, eu não sabia – acredite ou não – que significava mulher da vida. “Harlot” é mulher da vida ou prostituta. HO Quem inventou o nome? Talvez não tenha sido o Warhol. Talvez tenha sido o Ronald Tavel, porque ele fez oMM Ele fez o cenário. Não, não foi o cenário. Aquele foi o primeiro filme sonoro de Warhol. HO O som veio de foraMM Ele foi gravado ao mesmo tempo que se filmava. Não havia fotógrafos. Eram apenas eu, Gerard Malanga, Phil Fagan, Carol Koshinskie, e meu gato, cuja garota, Carol, está segurando em seu colo. HO Qual é o nome do gato? MM Bem, seu nome teatral é "White Pussy". Soa como o nome de uma stripper, de uma verdadeira vagabunda, mas não é... (...) HO Antes que eu me esqueça, eu gostaria de perguntar para você algo sobre “Harlot”. Que tipo de instruções Warhol deu para você quando você estava se vestindo para o filme? Ele falou que você deveria buscar algo relacionado com Jean Harlow ou Marilyn Monroe? Ou ele sugeriu alguma relação com aquelas estrelas ou uma síntese dessas duas coisas? MM Não. Eu não consigo me lembrar. A única coisa que me lembro são coisas do tipo "coma a banana devagar". É a única coisa que euHO "Coma a banana devagar". Oh, eu amei isso! MM Ele ficava sussurrando: "Coma a banana devagar. Muito, muito devagar". HO "Muito, muito devagar". É exatamente o que acontece. (Para o Carlos Vergara) Porque “Harlot” é exatamente isso – ele descasca bananas, bananas muito grandes, com luvas, luvas brancas. Então ele come elas e então quando você pensa que as bananas acabaram, tem mais uma-

MM Tem uma atrás do forro do sofá. Eu vou encontrando elas pelos lugares e puxando para fora. HO (ri) Eu amei isso. MM Sabe, ele fez belíssimos testes de imagem para “Harlot”, onde eu apenas comi a banana. Eu comi umas duas bananas. Ele lançou essas imagens por um tempo, com o título de “Mario Banana”. São apenas dez minutos. Três testes de imagens juntos, cerca de cinco minutos cada. HO É muito bonito. É um dos mais importantes filmes do Warhol, creio, porque já possuía todas as implicações de todas as coisas que ele fez depois disso, mas de uma maneira muito pura. É claro, seu personagem é um tipo de apropriação das coisas do Jack Smith, você sabe. É possível ver a influência de Jack Smith muito diretamente. MM Quando eu fui para as primeiras filmagens de “Dracula” – tem apenas uma cena em que eu apareço – tudo o que eu tinha que fazer era sentar num sofá naquele apartamento na 18º ou 19º Avenida, em algum lugar perto do Gramercy Park. Ele filmou de cima da escada. Era como um apartamento duplex. Eu estava sentado no sofá, com um marinheiro branco. Eu estava no meu vestido branco Ceil Chapman e ele estava me dando barras de chocolate Hershey. Nós estávamos comendo e eu tinha meu gato no meu colo. Então, no meio, havia uma grande cama, com Naomi Levine – eu não sei se ela ainda é uma atriz – inteiramente nua! Com quatro caras vestidos de couro segurando velas. HO Uau! MM Mas isso nunca foi lançado. Foi apenas uma cena. Há muitas outras cenas. HO Nunca foi lançado? MM Acredito que foi o seu primeiro filme. Foi o seu primeiríssimo filme. HO Ele ainda deve ter isso. Ele deve ter todas as imagens. Será que poderemos ver isso um dia? MM Você teria que falar com Warhol, ou com Paul Morrissey. HO Da Factory? MM Sim. HH É? E ele é um cara legal? Porque eu sempre senti muito medo dele. Eu creio que de alguma forma ele deve ser um cara difícil. MM Talvez com pessoasHO Você sabe, nunca me aproximei dele. Nem ao menos tentei. MM Não. Comigo, ambos mudaram. Paul nunca foi – mas ambos tem sido muito legais comigo ultimamente. Veja, eu posso conseguir praticamente tudo o que quiser com eles. Não que eu queira muita coisa, que eu possa solicitar! (ri) Como por exemplo eu pensei que eu poderia ter dificuldade em tentar pedir quatro semanas de agenda de modelo, que tive que cancelar para filmar o meu primeiro filme em cinco anos, que se chama “Heat”, com Sylvia Miles e Eric Emerson. Eu ia voar para Hollywood para filmar no motel Tropicana. Mas era muito quente para filmar lá, então eles vão filmar na cidade. Eu tive que cancelar uma agenda de quatro semanas de modelo – porque eu faço modelo masculino. Então


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eu pensei, "Caramba! Como eu vou conseguir esse dinheiro?" Era em torno de 180 dólares. Exatamente hoje – não, foi ontem – eu falei com ele que eu precisava do dinheiro imediatamente. Ele me deu 75 dólares adiantados pelo “Heat”, mais 50 para cobrir os gastos. Os gastos vão para as roupas e os sapatos que eu comprei. Mas agora ele vai me dar 100 dólares, hoje, em cheque, e então ele só vai me dever 25 dólares. Mas, é um milagre, sabe? Antes, tudo o que eu conseguia era 10 dólares por filme para comprar coisas em lojas baratas! Por 10 dólares! Você acredita? HO Mas agora você já espera mais, porque eles estão fazendo milhões com “Trash” e “Flesh”. Eu sei que os outros filmes não fizeram... MM Mas eu deveria receber uma porcentagem ao invés de uma diária. HO Este filme chamará “Heat” ou “Tropicana”? MM O título será “Heat”. Veja, quando eu assinei o contrato, ele dizia "Tropicana" primeiro, e "Heat" depois. Mas, atualmente, eles estão falando – desde que, você sabe, Sarah Miles é muito famosa. Ela foi indicada ao Oscar como atriz coadjuvante pelo “Midnight Cowboy”, mas eu não creio que ela conseguirá o prêmio. Ela fez alguns outros filmes que eu não consigo me lembrar agora. Mas ela é muito conhecida. Eu ainda não a encontrei. HO Mencionaram você na Interview, que estão trazendo você de volta. MM Essa volta será muito lenta. Porque quando eu perguntei para ele quando serão as filmagens, ele disse que ainda não sabe. Mas ele disse que o filme irá acontecer. E isso foi já há dois meses. HO Sabe, uma coisa que eu penso que seria muito divertida é a ideia do Tropicana. Porque no Brasil nós tivemos este grande movimento artístico chamado Tropicália. Tropicália foi uma palavra que eu inventei. Você sabia disso? MM Sabia. Eles me contaram que era uma nova dança. Ou um movimento? HO Quem disse isso? Quem contou para você? MM José Arango me contou. Não, não José Arango. Leandro Katz? HO Leandro? Creio que temos pontos fantásticos aqui. Porque creio que há muita relação entre o trabalho de Jack Smith e o seu trabalho e as coisas da Tropicália no Brasil. MM Nós fomos para o Brasil para filmar para alguém. Um dosHO Jack Smith? Sim, eu soube que você esteve lá. Então ele quebrou a perna e tudo o mais... MM Ele guardou as sequências porque ele não gostou delas. Mas creio que permitiram que ele ficasse com eles. HO Sim, ele tem as sequências. Mas você sabe o que aconteceu? Ele caiu – ele fez incríveis slides que foram perdidos porque alguém roubou seu carrossel. E o carrossel estava com todos os seus slides dentro. Imagine isso! MM Oh! HO E ele caiu em um buraco no Rio e quebrou sua perna. Porque no Rio você simplesmente não pode andar com a cabeça levantada. É cheio de buracos.

MM Os buracos dos homens! HO (ri) Sim. Mas quando você não tem buraco de homem, você tem os verdadeiros buracos nas ruas, crateras. E sabe o que acontece: Eu creio que a Tropicália no Brasil tem muito de trazer de volta coisas como o mito de Carmem Miranda e tudo isso. MM Mas você sabe, Warhol, você sabe, WarholHO Então não é coincidência entre o que, por exemplo, eu penso que Jack Smith é como um pré-Tropicália e também um pós-Tropicália, de certo modo, sabe? E você é, você é a encarnação disso. MM Você sabe, Paul Morrissey queria filmar lá por causa do clima tropical em volta. Mas não apenas disso, porque o nome do motel é Tropicana. Mas também porque uma série de astros de rock ficam por lá. É como um Chelsea Hotel de LA, o Chelsea Hotel de LA. HO Isto é fantástico! Eu adoraria filmar em um lugar como esse. Porque Tropicana já é o tipo de marca registrada para um drink, sabe? Então o motel Tropicana deve ser algo que tem alguma relação com a firma que faz esses drinks. Creio que algum tipo de coisa californiana. Isto é fantástico, porque concentra a ideia de tropicalidade e coisas tropicais, com o tipo de crítica às coisas tropicais, o que é muito importante. E eu penso que você é, por exemplo, um tipo de encarnação da Tropicália e Tropicana e mais que isso. É por isso que penso que é muito importante quando você se identifica com Carmem Miranda e quando você usa a imagem dela sem nem mesmo mencionar o nome, porque é muito arrebatador. É o tipo de síntese dos trópicos. Jack Smith tem muito disso em seus filmes quando ele usa as trilhas sonoras, com os velhos foxtrots e músicas cubanas e mexicanas. Agora eu vou fazer uma pausa de um minuto para pensar sobre algo que quero perguntar para você. (A fita para)


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foto: Lenise Pinheiro

Beatriz Azevedo Poesia

Em Beatriz Azevedo, os espaços se encontram e se subvertem. Música, teatro, poesia. Corpo e cidade. Palavra e gesto. Como diz Zé Celso Martinez Correa, “o refinamento maior do Teatro é quando vira Música, quando vira Dança. É quando a Prosa desaparece e vira tudo Poesia. A Bia é uma mulher contemporânea nesse sentido, ela é atriz, é poeta, antes de tudo ela é uma poeta extraordinária. De poeta, evidentemente, ela quis ser poeta em tudo, e está conseguindo tudo, está misturando tudo, e a mistura de tudo é o desejo de todo artista”. Autora de dois livros de poesia, Peripatético (Iluminuras, 1996) e A idade da pedra (Iluminuras, 2002), além dos CDs “Bum Bum de Poeta”, “Mapa Mundi” e “Alegria” (em 2014 irá lançar “AntroPOPhagia ao vivo em Nova York”), Beatriz cria, mais do que um encontro das diversas formas de expressão artística, um olhar refinado sobre o contemporâneo. [Sergio Cohn]


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“Peripatético”, além de poema-título do seu primeiro livro, se transformou numa performance de rua. Como foi? Adoro a imagem dos filósofos gregos, discípulos de Aristóteles, caminhando pelos bosques e pensando em movimento, ao ar livre. Eu mesma sou muito peripatética, preciso movimentar o corpo para expandir o pensamento. O título do meu poema é “Peripatético Poema-de-chão”, uma experiência de sair do “céu” enquanto espaço tradicional da poesia, com estrelas, luas, etc, e colocar a palavra na terra, no chão. Colocar o poeta em movimento e convidar o público a ler o poema com o corpo. Meu trabalho tem essa vertente, palavra, corpo, som, experiência coletiva, ritual, somando à experiência estritamente “individual” da leitura de poesia no quarto, no espaço privado. Peripatético questiona o “convencional”, o espaço “marginal”, “sem público”, esse lugar confinado (até as estantes de poesia nas livrarias ficam num cantinho de difícil acesso). O meu poema ao mesmo tempo fala sobre isso – “um poema difícil de se exibir nos meios em certos meios que só justificam os fins...” –, e instaura na prática aquilo sobre o que ele fala, provocando o público a viver uma experiência. “Peripatético” se aproxima das Artes da Cena, do teatro, da dança, da performance, com o leitor/ espectador atuando junto com o poeta, vivo e ao vivo, para fazer “a cidade passar dentro do poema no ventre do poeta o poema passarela para ela lendo-se neste poema que é um problema para a cidade”. Um “problema” por tirar a poesia do céu para o chão, trazer da cabeça para o corpo, tirar o leitor do seu quarto, fruir poesia no coletivo, ler a cidade como um “livro”, como um poema. Tirar o poeta da torre de marfim, do inefável, do “elevado”, do “impecável”, da “intelligentsia”, encarnar um poeta com corpo, coxas, sexo, suor, e mais, no meu caso, uma poeta mulher, revirando também essa imagem da musa e do poeta. Além de poeta, você é atriz e cantora. O seu trabalho de intersecção entre poesia e música a levou para uma especialização musical

nos EUA. Qual a importância do estudo formal em música para o aprofundamento das suas experiências? Para mim as artes estão todas integradas, são linguagens dialogando. Ludicamente, eu sempre criei encorporando todas as perspectivas, palavra, som, gesto, movimento, canto, fala, e mais, visualidade, espaço… Como gosto de me aprimorar, de enfrentar desafios, fui sempre procurando somar uma linguagem à outra, e aprofundar todas. Estudar é um meio de organizar melhor tudo isso. A música é uma linguagem, é um outro alfabeto, e penso que é bonito e respeitoso você saber se comunicar nessa língua. Vejo muitos poetas querendo “fazer” música, “fazer” teatro, sem a menor dedicação, humildade até para conhecer as linguagens. Nesse sentido, me parece até meio “aproveitador” se “utilizar” da música, com a vã intenção de “popularizar” suas poesias. Querem “chupar”, mas não se entregam, não se dão à música, ao teatro. O que eu fiz minha vida inteira foi me entregar e me dedicar às artes. Não ter medo de começar do beabá. Se você se entrega, a própria arte te conduz. E eu gosto dessa coisa milenar, de aprender com os mestres… Zé Celso, Cristóvão Bastos, Hilda Hilst, Viveiros de Castro… são os xamãs que me iniciaram nos ritos, nos mistérios do teatro, da música, da poesia, da antropologia… E muitos outros… Voce foi uma das organizadoras do EIA - Encontro Internacional de Antropofagia, e o seu mestrado é sobre o Manifesto Antropófago. Como você vê a atualidade da proposição de Oswald? Fiz a Curadoria e a direção artística do EIA! a convite do Zé Celso, exatamente porque ele sabe da minha ligação profunda com Oswald e a Antropofagia. Desde a adolescência eu tive acesso aos manuscritos dele, graças à Marília, filha de Oswald de Andrade. A Antropofagia é muito mais do que “atual”, na verdade ela inverte a perspectiva… Como se o “futuro” nos atravessasse, no presente, e ressignificasse o “passado”. O matriarcado de Pindorama não é um “passado”, é uma utopia futura.

um poema Liebe Eu sou outra n’outra língua quando beijo a mesma boca somos frágeis crianças aprendendo a falar o mundo não tem pátria o céu está em todo lugar. Então me beija se quer mostrar sua língua não tem tradução. Palavras servem para montar quebra-cabeças para colar na geladeira para etiquetar os produtos nos supermercados para preencher as páginas dos dicionários para dar nome às ruas dar nome aos bois palavras servem para dizer eu te amo eu te odeio não entendo o que você está falando entendo tudo que você não diz palavras são pó de giz, fumaça desenhando o silêncio? ~ Ñe’e. Sou a mesma em qualquer língua eu brinco de ser eu mesma sempre outra cidade dividida que eu amo unir numa terceira cidade trindade toda iluminada ó linda berlin o sol está em toda parte. O amor já existia há muitos séculos antes da invenção do alfabeto. Pessoas servem para montar quebra-cabeças para colar na geladeira para etiquetar os produtos nos supermercados para colorir as páginas dos dicionários para dar nome às ruas dar nome aos bois pessoas servem para dizer eu te amo eu te odeio não entendo o que você está falando entendo tudo que você não diz pessoas são pó de giz, silêncio desenhando o tempo? Palavras são fundamentais e não servem. Palavras são servidas, se alimentam da vida. A palavra corpo mantém o ser de pé, é preciso sentar a palavra na pessoa. Pessoas são dervixes devires de eras e inventarão outras palavras para dizer as mesmas coisas, e as mesmas palavras para não dizer outras coisas. Liebe. Em que língua nasceu o amor? Palavras e pessoas ficarão em silêncio e gritarão. Você está em tudo a todo momento. Eras de Eros.


dei o primeiro passo para trás e já me pergunto por que estou andando de costas agora neste momento o que me move por onde não vejo vendo no chão as letras que nunca vi no chão porque elas sempre estiveram em outros lugares mas nunca embaixo dos meus pés como agora eu pisando nas palavras antes mesmo de saber com os olhos pisando com os pés o pé da página do livro da cidade que esta rua escreve para quem vê de cima para quem voa vendo o movimento dos automóveis dança de bauhaus ou para quem anda quem é a dança como você por exemplo peripatético andando de costas muito curioso por exemplo ou corajoso por exemplo ou ou ou pateta ou crítico achando tudo isso uma bobagem uma viagem de volta ou vodu uma vadiagem ou em último caso uma viadagem da minha parte ou ainda uma obra de arte da linguagem a conversa fiada de poeta redemoinhos de palavras no liquidificador as cascas da cebola descascando palavras cozinhando a prosa passo a passo descendo esta escada quantos degraus ainda a poesia vai deslizar no tempo me desesperar nesta suspensão que parece não ter fim mas tem sim uma surpresa : agora vamos virar esta página virar esta esquina na mesma máquina em movimento perpétuo de andar sobre as palavras agora misturadas com a sombra das outras com o eco das esquinas quebradas bruscamente com buracos no meio da frase um poema sobre o meio do poema paquerar a cidade parar a cidade para ler o poema fazer a cidade passar dentro do poema no ventre do poeta o poema passarela para ela lendo-se neste poema que é um problema para a cidade andando atrás das palavras com este anzol este anzolho pescando peixes para comer embaixo da sola do meu sapato em plena metrópole eu andando devagar enquanto tudo vai a galope eu aqui caindo deste golpe nesta armadilha que me ilha no centro das palavras de um poema esdrúxulo um luxo de poema explícito sujo com buracos no meio dos edifícios um poema difícil de se exibir nos meios em certos meios que só justificam os fins um poema meio sem fim que não acredita no fim do poema e quer parar a cidade para ler o poema fazer a cidade passar dentro do poema a cidade ser o poema do futuro agora nesse poema que é um presente para a cidade

PERIPATÉTICO POEMA-DE-CHÃO

Beatriz Azevedo




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Ailton Krenak entrevista por Sergio Cohn

Como começou a sua atuação como liderança indígena? Eu sempre me vejo diante dessa pergunta, porque eu mesmo também me faço, e é muito comum que as pessoas que trabalham comigo façam quando ganham um pouco mais de intimidade. Elas perguntam: “Ailton, quando foi que você passou a ser porta voz de índio?” Aí fico me buscando, dou uma regredida e acabo indo para minha infância. Porque remete ao incômodo que eu sentia quando era moleque, de perceber que o outro que me olhava estava sempre me inquirindo, perguntando uma pergunta tão besta, que era “de onde você veio?” Quando os colonos da nossa região me viam, geralmente, me chamavam de “Cabo Verde”. Provavelmente eles eram da colônia portuguesa e acharam que eu era do Cabo Verde, lá na África. E eu ficava irritado com aquilo. 50 anos depois, as pessoas me encontram no meu gabinete de trabalho ou em uma rua em Belo Horizonte e me perguntam: “O senhor é peruano?”. Ou indiano, ou árabe. Aí eu pergunto para os brasileiros, meus patrícios, por que é mais fácil você identificar um peruano, um indiano, um boliviano, ou até um japonês andando nas nossas ruas e não aquele que é índio, um nativo daqui? E o outro desconforto era me identificar como índio, porque índio é um erro de português, plagiando o Oswald, que disse que quando o português chegou no Brasil estava uma baita chuva, aí ele vestiu o índio, mas se estivesse num dia de sol o índio teria vestido o português, e estaria todo o mundo andando pelado por aí. Isso continua valendo até hoje, e eu atualizei dizendo que índio é um equívoco de português, não um erro, porque o português saiu para ir para a Índia. Mas ele perdeu

a pista e veio bater aqui nas terras tropicais de Pindorama, viu os transeuntes da praia e acabou carimbando de índios. Aquele carimbo errado, equívoco, ficou valendo para o resto das nossas relações até hoje, e a resposta para uma pergunta tão direta e simples, poderia ser tão direta e simples quanto. Quando foi que eu atinei que eu tinha que fazer essas coisas que eu ando fazendo nos últimos 50 anos da minha vida, que é quase que repetir o mesmo mantra, dizendo para esse outro: “ô, cara, essa figura que você está vendo no espelho não sou eu não, é você, esse espelhinho que você está me vendendo não sou eu, isso é um equívoco”? E saí do sentimento para a prática na pista dos meus parentes mais velhos do que eu, que estavam sendo despachados da zona rural para as periferias miseráveis do Brasil, o que acontece em qualquer canto, no Norte, no Sul, em qualquer lugar. No Rio Grande do Sul, que é tudo bonitinho, arrumadinho e alemão, também tem periferia, miséria, pobreza. As pessoas têm feito um saneamento mental a imaginar que algumas áreas do nosso país são tão bem colonizadas que já não tem mais favela, banalização do crime, miséria transbordando da beira dos córregos e dos esgotos. Mas na verdade não tem um lugar do Brasil onde a miséria não transborde, só quem é cego ou já perdeu o olfato é que não sente o cheiro de merda. As relações entre as diferentes culturas e povos que vieram se juntar aqui no Brasil são reflexo desse estado ambiental que estou descrevendo. Por isso são tão desqualificadas. As pessoas se relacionam de uma maneira tão ostensiva, os pobres ostentam sua raiva e miséria e afrontam os outros com seus 38mm quando podem, os ricos afrontam todo mundo com

sua arrogância, com seus Shoppings Center e seus Mercedes Benz, como se a gente estivesse numa corrida maluca onde ninguém tem lugar para chegar, mas todo mundo está correndo. Eu convivi um pouco com a Danielle Miterrand nos últimos anos de vida dela. Depois que o marido dela, François Miterrand, morreu, ela passou a vir no Brasil uma vez por ano. Em alguns casos mais de uma vez. Sempre engajada em campanhas muito importantes. Uma dela era a campanha por um bem inalienável, de que nós todos precisamos, que é a água. E Danielle viu que a água passava por um processo de virar commodity, e grandes empresas, Coca-Cola, Nestlé, estão comprando as fontes de água naturais do planeta e botando tudo isso no balcão. Cada vez mais as pessoas vão ter acesso ao esgoto e cada vez menos a uma água pura para beber. Você imagina que coisa mais chata se quando você quiser tomar água pura, não puder ter acesso a ela por causa da barreira econômica que haverá em torno? E haverá os povos com água e povos sem água, da mesma maneira que nós já temos os com grana e sem grana, sem terra e com terra, a gente vai ter os sem água e os com água. O alerta sobre essa questão da água que a Danielle trouxe para essas bandas mobilizou a visita de alguns xamãs da América do Sul, da Colômbia, do Peru, do Brasil. Ela levou uns sábios mesmo de um povo que vive na serra de Santa Marta, lá no litoral do Pacífico, e mais alguns amigos meus para uma turnê com ela na França para conscientizar a Europa, falando sobre a política de mercado que estava cuidando dos recursos naturais. Aí um dos pajés, de um povo lá do Pacífico, assistindo à fissura dos europeus de abrir estradas, mudar a natureza, mudar a


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paisagem, furar a terra, abrir canais, represas, tudo, disse que olhando essa fissura de transformar o planeta, que queria perguntar para os brancos: “Essa pressa toda com que vocês estão andando está levando vocês exatamente para onde?” Essa pergunta também a minha. Acredito que esse lugar da minha infância, e de outras pessoas também, era um lugar onde as pessoas podiam nascer, crescer, morrer na natureza buscando tudo o que precisavam para viver. Pessoas e recursos estavam mais ou menos perto. As relações das pessoas nesses lugares tinham alguma qualidade, aí quando nós começamos a ser invadidos por todos os lados, olhos, nariz, ouvidos, os sete buracos na nossa cabeça, a partir daí pudemos entender tudo quanto é provocação externa. Os índios que viviam na região da minha família, os krenak, foram quase todos expulsos dos seus territórios de origem e despachados para qualquer lugar, sem endereço. Cinco, seis gerações depois desses despachos, muita gente ficou totalmente sem saber seu endereço de origem, saber de onde veio. E aí a pergunta do português: “você é de Cabo Verde?”, pode ser, de qualquer lugar do mundo, não faz mais diferença, porque esse índio foi arrancado do seu território cultural, lugar onde tudo tem significado para ele e foi perambular pelo planeta onde cada coisa que ele vê inaugura um significado novo para ele, mas ele não tem mais certeza de nada. A partir dessa sensação de desterro, você foi buscar sua identidade? Eu me agarrei a essa pergunta e fui fundo na busca dessa identidade. Eu sabia desde o começo, antes até de existir a ideia de movimento indígena, que a minha escolha pessoal de desvelar essa identidade abria um front do cacete, porque identidade implica reconhecimento de direitos, invenção de novos direitos, criação de novas personas. A erupção de novas identidades significa novos direitos, outros parâmetros de relação. E quem está fazendo esse enunciado tem que se preparar também para comandar a guerrilha, a guerra, onde re-

cua a retaguarda e avança a vanguarda, onde avança a retaguarda e recua a vanguarda. Acho que em todos os sentidos, quando os sem terra, quando os primeiros líderes atinaram para a ideia de que havia gente que não tinha acesso a lugar para plantar, uma terra, um lugar para si e começou um reclamo tímido por terra, ele resultou num movimento imenso no Brasil que foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, tão imenso que gerou muitas crias. Algumas dessas expressões se traduzem depois em poder político, novas forças dentro da sociedade que a gente vive. No caso dos índios, o enunciado de uma identidade significa reivindicar o Brasil de volta. Você tinha outros índios na mídia, na imprensa, outro lugar que pudesse lhe servir de... Exemplos? Não, porque não era um momento muito positivo para esse tipo de expressão, porque vivíamos um período na América do Sul inteira, no Cone Sul inteiro, que só tinha general mandando. No Chile, na Colômbia, todo lugar, estava o pau quebrando. Já era a ditadura do Pinochet, do Geisel e da turma dele. Só tinha monstro na periferia. E aqui no eixo tinha gente dizendo que éramos uma ilha da paz e o pau quebrando. O milagre brasileiro... Tem um camarada de quem vim a me tornar amigo depois, chamado Shelton Davis, esse cara é um consultor do Banco Mundial nesses programas de desenvolvimento para a América Latina, ele foi incumbido de fazer um relatório sobre o Brasil na década de 1970, quando ele terminou o relatório dele, tinha criado briga com quase todos os governos da bacia Amazônica e, principalmente, tinha se tornado inimigo do governo Brasileiro, ele publicou um livro chamado Vítimas do milagre. Livro que fala da destruição, mesmo. Ele mostra quando o Brasil descobriu que podia se destruir do ponto de vista ambiental, porque o Brasil vira um canteiro de Transamazônica, de Perimetral Norte, essa coisa que o governo da Dilma fica fazendo de conta que está inaugurando, não está inaugurando, só pegou o pacote da ditadura, deu uma escaneada, potencializou com as novas

tecnologias e está mandando brasa. O Geisel assinaria numa boa esse pacote da Dilma. Do ponto de vista do conceito e os procedimentos que eles usam é o mesmo. Não mudaram nem o estilo. Aquela imensa tragédia que estava anunciada para a cabeça dos índios em todos os cantos da bacia amazônica provocou um despertar de índios que ainda estavam acendendo fogo com palito, girando vareta na mão, e índios que estavam fazendo curso universitário em Brasília, bolsa de estudos da Funai, ou que estavam com algum contato privilegiado com informação sobre os brancos, sobre os instrumentos dos brancos, governança e tudo. E eu me juntei com essa geração, a primeira geração de índios que estavam sendo expulsos das suas origens para uma espécie de convergência não programada de ideias. Foi isso que permitiu que um menino xavante, outro bororo, guarani ou kaingang, uns com alguma diferença de seis anos, dez anos um do outro, mas todos com experiências próximas, a começar a cerrar fileiras numa frente que a gente chamava de movimento indígena. Começaram a se encontrar onde? Quando sentiram que eram vozes que se somavam? Não teve evento de inauguração tão delimitado. Lógico que toda narrativa acaba elegendo um ponto de partida para si e o pessoal fala que houve um primeiro encontro nacional dos índios. Quem fala isso são os amigos dos índios, os missionários, os antropólogos, os promotores desse primeiro encontro. Mas muitos dos índios que estavam lá não sabiam que aquilo era um encontro, nem que era o primeiro. Alguns daqueles caras estavam se vendo pela primeira vez naquela reunião grande ali em São Paulo, outros já se conheciam. Se já se conheciam, como podia ser o primeiro encontro deles? Estavam a três ou quatro anos fazendo militância, viajando, encontrando uns aos outros, indo para as aldeias. Fiz minha experiência inicial não foi em encontro, mas batendo estrada, indo visitar junto com um ou outro companheiro lugares que estavam numa pior. Onde os índios não podiam


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nem levantar a cabeça, porque os vizinhos estavam fuzilando eles, e isso era desde os kiriri no Nordeste até os kaingang no Rio Grande do Sul, ou os bororo no Mato Grosso. Os jornais não davam notícias do que acontecia com os índios, que existiam menos ainda do que hoje. Hoje eles conseguem invadir a tela, invadir terra e tela, duas paisagens que eles aprenderam a ocupar. Acho que o termo invadir pode ser mal entendido, pode dar mais sentido à carga agressiva e simbólica do que ao significado positivo do termo ocupar. Que tem sido muito usado, Ocuppy Wall Street. E ocupar é positivo, invadir é chutar a porta. E na época que estávamos ocupando não tinha jeito, tinha que chutar a porta mesmo. De bancos, de grandes corporações que estavam se implantando em cima dos territórios indígenas de maneira definitiva. O próprio governo, com os projetos de infraestrutura dele, estava se implantando nos territórios indígenas. A gente não podia ocupar, tinha que invadir, e tínhamos que confrontar quem estava fazendo essa invasão. Desde bancos que descobriram que podiam receber de massas falidas as terras dos índios como garantia por suas falências, até o próprio governo, governos estaduais, federal dando a terra dos índios em barganhas com interesses diversos, com o setor de mineração, com o pessoal de colonização. O próprio Incra vinha e botava o mapa deles em lugares sem perguntar se o índio estava ali e loteava a terra dos índios, o Instituto Nacional de Reforma Agrária. Nós tivemos mais da metade das terras do Mato Grosso, inclusive o Parque Nacional do Xingu loteado pelo Incra. Será que as pessoas sabem que o Xingu já foi várias vezes loteado? Conseguiram resolver isso? Mas você sabe quanta gente teve que morrer para resolver? Morrer, militar, se expor à violência, enfrentar a polícia, enfrentar o exército, interditar estrada. Aí quando as pessoas veem no jornal: “índios fazem reféns os fun-

cionários do governo, servidores da Funai”, eles não estavam vendo, não sabiam o que estava acontecendo na vida dessas pessoas. De uma hora para a outra parecia que os índios tinham estourado a tela e voltando para mostrar que era verdade todas aquelas fantasias que as pessoas tinham sobre índios montados a cavalo, correndo com a machadinha na mão. Essa caricatura que muitos brasileiros tinham só começou a ser desfeita quando índios de carne e osso começaram a aparecer nos programas jornalísticos, entrevistas com a Miriam Leitão, com o Alexandre Garcia, que são os porta vozes da Casa Grande. Porque quando estou dando entrevista ao Washington Novaes, ao Heródoto Barbeiro, quando estou discutindo um assunto desses com algum editor de jornal ou revista dessas na década de 1980 ou 1990, uma entrevista de uma página inteira para o Correio Brasiliense, ou quando o Marcos Terena vai para as páginas amarelas da Veja, ou quando Paulinho Paiakan aparece como grande bandido na capa da Veja na ECO92, bem ou mal, as pessoas estão entrando em contato com índios que suam, que transpiram, têm medo, carne e osso. Alguns têm até RG. Lembro da minha infância, de quando vi primeiro o Juruna e outras lideranças indígenas falando na TV, e outro dia revi uma entrevista dos anos 1980 com o Aleixo Pohi Krahô, elas eram feitas com todo o grau de preconceito e ridicularização possível. Havia uma conquista de voz ali que era terrível, porque vocês tinham que lidar com todo tipo de afronta. A entrevista já era uma afronta. Quando o repórter ou o âncora se dirigia à gente ele inquiria a gente. Não era entrevista, era inquirição. O cara vinha mandando todo o preconceito do imaginário que as pessoas supunham na cara da gente, você sacou muito bem. De quando é essa entrevista com o Aleixo Pohi Krahô? É de 1984, 1983. É de uma novela em que o Stênio Garcia era um índio e o Aleixo Pohi Krahô aparece falando que o Stênio não era

índio, não representava os índios, e pede para falar mas não deixam ele explicar. Criar a voz também deve ter desdobrado em mortes. Mas não tenha dúvida. Muitos foram executados pela Rolleflex e nunca mais. Essas execuções aconteciam às vezes seletivamente, alguns caras que nunca iriam ter algum lugar para ocupar na tela e em alguns casos, coletivo, uma acusação genérica: “Índio não”. Aí nessa trajetória eu comecei a perceber uma coisa em reflexo. Como percebi que tinha um lugar de representação de poder dos brancos que a gente não ia conseguir nenhuma visibilidade se não conseguisse ocupar alguns pedaços, decidi muito cedo a começar a fazer uma mimetização para ocupar o lugar do cara que fala na tela. A primeira coisa que fiz foi propor para meus colegas do tal movimento indígena que estava nascendo que a gente tinha que ter um boletim, um jornal. Aí começamos a fazer uma coisa que se chamava Jornal Indígena, em São Paulo, na PUC. O pessoal do direito tinha que pegar causas populares e defendê-las pra concluir o curso, como se fosse uma residência dos estudantes. Aí virei colaborador dessa turma do direito, apresentava casos de violência contra os índios para esses advogados e eles queriam que eu transformasse essas denúncias em artigos. Artigos de denúncia. Então comecei a escrevê-los nos boletins que eram enviados para 300 aldeias no Brasil. Depois eu descobri que um boletim escrito não ia cumprir a missão, então comecei a gravar fita cassete. Cada boletim era sonoro, ele foi virando programa de rádio, o Jornal Indígena foi virando um Programa de Índio, radiofônico, que chegava a 600 aldeias. Uma fita cassete num envelope lacrado chegava ao rio Solimões, ao rio Negro, chegava aos ribeirinhos da floresta Amazônica na década de 1980. Um dia chego a uma aldeia e escuto minha voz na fita, e os índios me falam: “Ailton, essa fita é aquela entrevista que você fez sobre os direitos dos índios, à terra, à língua, à cultura. A gente toca ela todo dia na reunião da tarde”. Naquele tempo não tinha ainda a disseminação de televisão, o aparelho receptor de tele-


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visão ainda era uma novidade. Só na década 1990 o aparelho de televisão fica mais banal, e depois com o advento do vídeo e do celular e tudo, aí foi explodindo essa tela toda na cara de todo mundo. Mas a tela por qual a gente lutava para ocupar um milímetro dela era muito mais rígida, dura. Hoje a tela está líquida, a tela de que quebramos um canto para entrar era de pedra. Hoje é líquida, porque eu mesmo posso gerar a minha imagem, o conteúdo e disseminar ele por aí, mandar como um vírus. Antes não havia essa possibilidade, estávamos num bloco tão fechado que, ou éramos aceitos pelo editor, ou não íamos ao ar. Podia ser a Tupi, a Record, o Canal Brasil, a Globo, a Bloch, o que for. Na revista Manchete entrava quem o dono deixava entrar. Ou o que é pior, deixava entrar e editava a fala para virar uma fala dele. Geralmente quando os índios saíam na Manchete era a fala do dono, os índios eram usados só para ilustrar. Tinha um grande jornalista da Manchete que ia em todos os Kuarup do Xingu, parecia o National Geographic, todos os Kuarup eram iguais, como se fossem um balé, um balé Bolshoi que se apresentava uma vez por ano. Ele era despersonalizado, qualquer sentido real que ele tivesse, que a vida das pessoas estava sendo cortada por uma estrada, que os índios estivessem morrendo de tuberculose, ou de gripe, surtando e morrendo lá na Escola Paulista de Medicina tentando salvar, não aparecia. Grupos inteiros, tribos que eram de 130, 150 indivíduos foram resolvidos a 15 indivíduos, pior que uma guerra química. Então eles matavam aquele tanto de gente, as revistas davam as notícias pasteurizadas, parecia que era totalmente normal. Aí quando essas pessoas começaram a ganhar voz, falar, apareceram coisas incríveis. Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500, e depois uma descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é a última. Os índios descobriram que apesar de eles serem simbolicamente os donos do Brasil eles

não têm lugar nenhum para viver nesse país. Terão que fazer esse lugar existir dia a dia. Não é uma conquista pronta e feita. Vão ter que fazer isso dia a dia, e fazer isso expressando sua visão do mundo, sua potência como seres humanos, sua pluralidade, sua vontade de ser e viver. Não botando uma questão de índios em cima da mesa e dizendo: “estou aqui para viver essa vida de índio”. Mas ele vai ter que criar seus filhos diante de uma nova realidade. Hoje acho que não tem quase aldeia nenhuma que não tenha escola da rede de educação no Brasil instalada lá dentro da aldeia, vinculada à superintendência de ensino regional, onde o português é uma das línguas obrigatórias dentro de sala de aula, em alguns casos é a única língua. As línguas maternas são admitidas, mas não são as que ocupam preferência do lugar da língua que a língua materna deveria ficar. Nós estamos experimentando várias camadas de colonização simultaneamente. Ao mesmo tempo que você é convidado a ter uma escola dentro da sua aldeia, você também é convidado a esquecer todo o repertório da sua cultura e começar a atualizar seu repertório para negociar as condições da sua sobrevivência. E eu não vi grandes avanços da década de 1990 para cá. Tudo que a gente conquistou foi da década de 1970 até o final da década de 1980, com o advento da Constituinte de 1988. De lá para cá foi como se a gente tivesse entrado no cheque especial e só está patinando. Como se a Constituinte tivesse sido o cheque especial. Você precisou, não sei se foi buscar, ou se apareceram alianças externas nesse processo. Os estrangeiros foram muito importantes na sua trajetória. Como isso aconteceu? Talvez a gente pudesse considerar que externo, na verdade, não tem que ser estrangeiro, nesse caso. As alianças foram de todas as direções. Penso que partindo do evento de os índios olharem para fora, toda a relação é estrangeira. Os krenak criaram a expressão para designar esse outro, chamam de craí. Craí, que é parecido com aquele outro caraí,

que os tupi, os tupinambá, nossos parentes do litoral chamavam o estrangeiro. O estrangeiro francês, português, qualquer um deles. É um outro que ainda não tem lugar na sua constelação, na sua cartografia. Ele ainda não tem janela para ele. Quando abriu a janela e ele entrou, ele entra já nomeado, numa categoria de aliado. Vira cunhado, irmão, primo, vira txai, amigo. Incluído, mas é incluído e alocado. Não é uma inclusão aberta, que você está incluído e pronto, é incluído dentro de uma categoria. Esses aliados foram sendo alocados. Aí você tinha claramente aquele aliado da Europa e que o front dele era a formação da opinião pública lá com relação ao que acontecia com a gente aqui na América do Sul. O cara poderia ser do Conselho Mundial de Igrejas, de uma grande organização humanitária, daquela Pão para o Mundo, de uma rede do tipo Médicos sem Fronteiras, uma fundação de cooperação internacional que estava na Inglaterra com projetos na Ásia, África e América do Sul. A gente foi qualificando esses aliados, buscava aliar esses tipos de competência que achava importante para nós, e sabia também que os índios não iam fazer isso. Nenhum de nós ia virar especialista e ficar na Europa fazendo opinião pública, mas íamos ter aliados que fariam isso na Europa, na língua deles, no país deles. A gente sabia que éramos poucos e que não tinha gente para ocupar todos os espaços, então tivemos que nos replicar nos nossos aliados. Eles é que passaram a ocupar espaços que precisávamos, e os aliados nos vocalizavam nesses espaços. Vocalizando através de uma rede enorme de aliados, de parceiros e tal. Essa experiência de rede, eu fui sacando na minha cabeça essa dinâmica de rede antes de existir a coisa da web. Eu já experimentava a atuação em rede, porque sabia que estava no Brasil, no Mato Grosso, mas tinha um cara na Holanda que não falava português, nem eu holandês, mas que sabia que eu estava fazendo aquela trajetória e ele estava divulgando aquilo. Eu tinha certeza que ele estava fazendo isso, e que aquilo resultava em potência


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para o que eu estava fazendo. Isso é rede. Na mesma hora que eu estava indo para uma situação de risco, que amanhã eu poderia estar preso ou morto, tinha um cara levantando fundos lá na Holanda para eu continuar fazendo hoje, amanhã e depois de amanhã. Isso é rede, cara. E não tinha contrato, protocolo. Era uma relação de confiança, que eu chamei de alianças afetivas. Como eu estava na frente da comunicação, bolei uma coisa e arrumei um lugar para mim nesse arranjo novo que estava surgindo no movimento indígena, o lugar da coordenação nacional de publicação. Isso porque naquela época, na década de 1980, fazer um boletim e um cassete que chegava para 300 aldeias, para 600 aldeias, era um trabalho de tempo integral fantástico, impressionante. Tanto que no final da década de 1980 eu tinha uma bolsa da Fundação Ford que me apoiava para eu continuar fazendo a Coordenação Nacional de Publicações. Mas aí eu já estava acumulando essa comunicação nossa com o fato de ser o coordenador político, executivo do movimento indígena, e já tinha uma agenda totalmente invadida por aeroportos, por Nova York, pela Europa. Ia para reuniões com o Banco Mundial, com a ONU, viajava pelo mundo, estava em tudo quanto é conferência. Quando virou a década de 1980, preparatória para a Rio-92, eu passava metade do ano viajando fora do Brasil. Pensando nessas alianças afetivas, hoje, sempre que um ruralista quer agredir ou depreciar o movimento indígena, ele fala: “isso são as ONGs internacionais tentando invadir o Brasil!” Naquele momento, quando as alianças internacionais começaram a aparecer, já tentaram desmoralizar essas alianças como enfraquecimento do Estado Nação brasileiro? Você acertou de cara. Foi uma coisa reflexa. Quando a gente conseguiu ser efetivo na mobilização dessa rede, que nós conseguimos projetar antes de existir a Internet no mundo inteiro, a reação aqui dentro foi imediata. Os primeiros a dizerem isso não foram os ruralistas ou os empresários, mas

os próprios militares, o Serviço de Segurança Nacional, que ainda estava atuante e agressivo naquele período. E a mídia institucional, grandona, começou a repercutir isso, dizendo: “Os estrangeiros estão de olho na Amazônia! Estão usando o pretexto de proteger os índios e a floresta para invadir a Amazônia!” Eles começaram a reagir com esse... Terrorismo informativo, digamos assim... Sim. Surgiu essa reação. Já que a gente estava sendo bem-sucedido numa campanha de opinião e na vasta e visível ampliação duma rede de alianças afetiva que juntava tudo, desde jovens roqueiros, o Sting só veio aparecer depois, mas a gente já juntava músicos lá atrás. Ele não apareceu de uma hora para a outra, mas sim porque o pessoal, o movimento musical, inclusive os punks, já tinham muita ligação conosco. Os punks da Alemanha, os punks da Inglaterra faziam doação para campanhas dos índios de proteção da floresta. Eles recebiam os índios em Bonn, em Bremen, em escolas na Europa e faziam durante uma semana campanhas de fundo que levantavam dinheiro que davam para os índios fazerem 20, 30 assembleias aqui na Amazônia. Eles sabiam, tinham conexão. Também no Canadá, a gente tinha relação com todo o mundo. Aí o que aconteceu? O governo começou a criminalizar algumas dessas lideranças indígenas. Eu mesmo, em vários momentos, sofri constrangimento. Se existisse a palavra bullying, eu diria que era bulinado o tempo todo, porque quase todo gol que eu tentava fazer, vinha um cara me canelando. Eu recebia cartão vermelho, canelada e tudo. Qual que era? Era não deixar esse movimento existir de verdade, se constituir. Porque se acontecesse, ele viria a ocupar, mesmo que minimamente, um espaço que desde a Primeira República é ocupado por um tipo de gente só, que são os donos de terra. No sentido real, que ocupam e dominam espaços territoriais, até os caras que são donos simbólicos de terra, que são os coronéis, os que mandam na política brasileira e que

dominam o Senado, como Renan Calheiros, como Sarney, que dominam a política desde a década de 1950. Eu nasci em 1953. Quando eu nasci o Sarney já mandava na política do Brasil, e ele manda até hoje. Existe um exemplo pior do que esse para dizer que estávamos disputando um lugar na tela com poderes tão consolidados? Eles não querem que nem um milímetro dessa tela seja ocupado por outra voz ou por outro ruído de comunicação que não seja o hegemônico, o deles. Isso não acontece apenas com os índios. Acredito que até o que eles chamam de crime organizado seja a mesma coisa. Eu desconfio que o crime organizado não seja tão organizado assim, da mesma maneira que eles atribuíam aos índios uma aliança que a gente nunca cogitou, de construir com os estrangeiros para ocupar e invadir a Amazônia, eu tenho dúvida também se tudo que eles atribuem ao crime organizado se é mesmo verdade, ou se tem muita gente aí que domina esses espaços, que ocupa as prisões, que tem as prisões como territórios políticos deles e que não vão deixar ninguém disputar com eles, não. Se você tiver na senzala ou na cadeia, isso não quer dizer que você domina o espaço da senzala e da cadeia. Você pode estar em espaços que já são pré-determinados. Você está na senzala, mas quem tem o mapa de lá e governa e mobiliza não é você, mas sim gente que está fora. Da mesma maneira que os índios têm lutado nos últimos trinta anos para se fazer ouvir de um lugar totalmente ignorado, devem existir outros segmentos da vida do nosso país que berram e que ninguém escuta de onde eles estão, porque tem gente que é dona dos lugares de onde eles estão berrando e não vai deixar a voz deles sair desse lugar. Eu não consigo pensar na luta que eu participei para conquistar uma voz, eu não consigo pensar nessa trajetória sem pensar em todos os outros possíveis caminhos paralelos ao meu que fazem a mesma busca e que não têm visibilidade. Quando no final da década de 1990, quando começou essa discussão da política de reparação para os negros, que se desdobrou depois...


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Nas cotas... Sim, mas também na ampla reivindicação dos negros com relação à terra para os quilombolas, acesso à educação, à saúde, à representação nos quadros, nos lugares, nos empregos que existem, depois dos assentos dos tribunais, nos ministérios, quando começou essa conta, o desconforto, a irritação dos caras que sempre estiveram no controle da vida política econômica do país foi tão grande que eles reagiram da mesma maneira que contra os índios. Reagiram dando porrada para todo lado, desqualificando a demanda dos negros, dizendo que esse negócio de cota é uma palhaçada, dizendo que você tem entrar pelo caminho do vestibular na universidade, da meritocracia. Os negros foram solidários ao movimento indígena? Quando começou, eles entenderam? Tem uma história de que os negros e os índios cooperaram entre si nos quilombos, que eu desconfio que isso não tenha acontecido. Tem um mito sobre o Quilombo de Palmares de que ele foi fundado pela três raças, eu acho que é uma colagem do mito... Para inventar um Brasil solidário, cordial... Pré-capitalista, pré-moderno. Eu não acredito que tenha acontecido isso de verdade, porque quando experimentei fazer, levantar isso que chamamos de movimento indígena não houve contato, ligação. É como se a gente rodasse em pistas paralelas, tão distintas umas das outras que a gente não se encontra. E uma das explicações que eu me dava era o seguinte: no Brasil os índios são do mato, e os negros da cidade. Negro no Brasil é urbano. Mesmo nas pequenas cidades? Negro é o Pelé, entendeu? É o Gilberto Gil. O Abdias do Nascimento. Quem mais que é negro? Negro do sentido de trazer com ele, representar uma coisa... Milton Gonçalves. São todos urbanos. Negro no Brasil é urbano, não adianta vir querer dizer que tem negro rural.

E o quilombola? É também uma construção, que aconteceu na Constituinte de 1988. Mas, o que é principal para se pensar, é que muitos desses quilombolas estão também reinvidicando espaços urbanos. São terreiros e outros sítios que são considerados sítios simbólicos, mas que incidem sobre espaços urbanos. Aí o pessoal reivindica esse espaço, mas acho que é menos do espaço físico e mais o reconhecimento, ter voz. O grande reclamo é menos por coisas e mais por visibilidade, voz. Quando dizem que os negros são invisíveis, ou os índios na nossa sociedade, eu digo que a mobilização dos índios e dos negros é por visibilidade. Menos por acesso a coisas, as que dão o poder, que são efetivas formas de representação do poder político, que é acesso, domínio, controle sobre áreas, territórios, bem materiais, e tal. Juntos reivindicam menos o acesso a esses lugares físicos e mais a esse lugares simbólicos de reconhecimento. O problema é que talvez a visibilidade leve tanto às coisas, que o que mais as pessoas temem é a visibilidade desses povos. Acho que aqui estamos fechando o ciclo da nossa reflexão, porque essa contestação dialoga com a pergunta que abriu essa conversa nossa, que foi o que disparou em mim a consciência de atuar como liderança. E aqui chegamos ao mesmo ponto da minha resposta inicial. Quando você consegue ocupar esse lugar simbólico, da representação, você se potencializa para ocupar o lugar de fato, reivindicar o território, dizer: “isso aqui não é terra do branco, do fazendeiro, do banco, é terra dos meus ancestrais, dos meus antepassados. Eu vou viver aqui, quero viver aqui, ela tem significado para mim. Essa montanha é sagrada, ela tem um humor, ela fala; eu desperto pela manhã e vejo o semblante da montanha e sei se ela está feliz, irritada, bem, descansada, repousando. A montanha fala comigo, porque eu me reconheço nesse lugar. A hora que me tiram daqui e me jogam em qualquer canto eu não ouço mais a

voz da montanha, e não escuto mais em que linguagem que o rio está falando. Se eu não entendo a linguagem do rio, ele vira um esgoto para mim. Se a montanha não fala comigo, eu posso pegá-la e jogá-la em cima de um trem e mandá-la para um depósito de minério qualquer”. Porque você despersonaliza a paisagem, tira o sentido, esvazia o significado desta cosmovisão, dá um chute no castelo, e isso despenca. Se você não tem um imaginário, se você não ocupa um imaginário, se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, pelo ambiente da visão, a visão da cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, que não tem sentido nenhum. Você foi jogado em qualquer lugar. Agora se você quer reclamar uma voz de humanidade, de conserto da humanidade, você tem que ser capaz de criar uma plataforma que caiba todo mundo. De onde você fica em pé sobre si mesmo e dialoga com um mundo de seres que são de verdade, não é uma mímica, um bando de imbecil num festival tarado no planeta, voraz no planeta comendo-se a si mesmo, chutando a própria bunda. Observando você esses dias, sua casa, seus textos, lembrei muito daquela frase do Darcy Ribeiro, sobre a vontade de beleza entre os ameríndios. É visibilidade, mas tem na essência uma vontade de cuidado, de beleza. Acha que o Darcy pegou uma essência mesmo dessas culturas ameríndias? Ele capturou essa fagulha, conseguiu traduzir isso com essa afirmação, não tenho dúvida. Porque mesmo quando você tem um pequeno grupo de famílias, que sejam duas, três famílias de qualquer povo nosso, se ele estiver vivendo na beira da estrada, de um rio, em cima da montanha, tudo quanto é prioridade deles vai ser uma prioridade de recriar essa beleza, seja numa pequena pluma de um cocarzinho de uma criança, seja em um pequeno coxo de bambu onde botar água, botar pequenos bastõezinhos de cera com algodão para acender o fogo ali em cima


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e com aquele pequeno altar criar um simbolismo de transcendência daqui da terra para as outras terras e outros céus. Sempre tem uma galeria de espaços míticos, sagrados, de representação, que não precisam existir nesse mundo que nós vivemos agora porque há a possibilidade de outro céu. Em cima deste céu tem outro céu e depois daquele tem um outro céu sem estrelas. E tem outro céu e outro e outro, e outro. Essa terra que a gente vive nela agora pode ter sido um céu, foi um céu em algum momento, ela caiu e nós estamos aqui nessa plataforma, é céu também. Aí ela pode cair e isso virar um céu. Essa perspectivas de a gente estar habitando céus, mas a gente só não experimenta ele porque a gente ainda não realizou toda a beleza e potência que ele tem, aí ele cai e a gente fica numa outra paisagem que a gente vai ter que trabalhar, trabalhar, trabalhar para criar, evocar essa beleza de novo, fazer ela pairar. À hora que ela estiver pairando, sendo capaz de se constituir nessa coleção de céus, aí ela vai ser céu, nem que seja por um instante. Aí vem aquela coisa de dançar, botar os cocares e dançar para manter o céu suspenso. Aí alguém fala: “Mas é na ponta daquelas plumas, aquelas coisas tão... Como aquilo vai... Como são infantis”. Não é infantil! Isso é o pensamento mágico! É ele que permite que as plumas sustentem o céu. Ou que cantar suspenda o céu. Essa

mágica de restabelecer o dom dos humanos, devolver para a humanidade essa potência de suspender o céu, de fazer a terra se mover, as montanhas falarem, isso é resgatar o sentido cósmico da vida. É a cosmovisão, viver dentro da coisa. Não é só verbalizar, mas viver dentro dela. Isso é maravilhoso, porque abre a possibilidade para nós, humanos, de recriarmos o mundo. Agora, como que a gente traz para o cotidiano essa mágica? Acho que foi isso que o Darcy sacou: “Essa gente fica o tempo inteiro recriando o céu, recriando beleza, chamando a beleza, expressando isso num pote, num bonequinho de barro, num balaiozinho, em tudo”. Isso está em tudo. No detalhe de tudo. É isso. Acho que demorei para caramba, uns 40, 50 anos da minha experiência, para compreender, conseguir trazer essa magia para o meu cotidiano. Essas coisas que eu avistei lá atrás e que eu tinha uma espécie de ansiedade, é como se esperasse por alguma coisa que já existiu há muito tempo, mas que eu ansiava por fazer existir de novo, para poder ter isso de novo. Daí veio a ideia de que eu posso contar meu tempo não como tudo que já passou, mas tudo que eu tenha daqui para frente. Estou experimentando com muita frequência essa visão: tudo que eu tenho é daqui pra frente. E a partir disso, vejo que o que passou é muito pouco. É como se daqui para frente você tivesse a eternidade, daqui para trás só

há o que você já viu. E daqui para frente tem tudo que pode vir a acontecer. Eu acho que essa circunstância de a gente ter sido encontrado aqui nos trópicos, nos psicotrópicos, e termos sido confundidos pelos portugueses como uma coisa pré-estabelecida que era essa gente que eles chamaram de índios, isso pode durar um tempo, mas eu fico com uma visão de tudo que tem daqui para frente que não é isso que vai prevalecer. Que esse embrulho que rolou aqui, esse meio milênio de confusão vai ser outra coisa lá na frente. Ontem você lembrou do “eu e as minhas circunstâncias”, que remete à expressão do Ortega y Gasset. Estamos falando disso aqui, não? Essa definição que tem a capacidade de estar aberto ao mundo para se pensar, que foi como você se definiu. Como é essa ética no mundo? Entender que todo o embrulho que a gente viveu até agora, que resultou na nossa ira, na nossa frustração, na motivação de a gente olhar a vida nessa batalha, isso tudo, lá na frente, no tudo que a gente tem por acontecer, vai se potencializar em outros céus, em outras criações. Essa é a garantia da circunstância. “Eu e minhas circunstâncias” não é só uma aposta no vazio, é uma confiança num porvir, em alguma coisa. Porque se não vira uma arrogância, um “eu sou eu”, e não tem nada a ver.


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O GABINETE DO DR. h.o.

Berlinale 2013. O documentário “Hélio Oiticica”, de César Oiticica Filho, recebe o Caligari, prêmio especial por inovação na linguagem cinematográfica. O texto que justifica a premiação, assinado pelo juri, formado por Juta Beyrich, Lena Martin e Esther Buss, declara: “Bem no espírito de Jack Smith, ‘Hélio Oiticica’ pode ser chamado de um ‘filme flamejante’. O mosaico de materiais de arquivo feito por César Oiticica Filho é uma frenética narrativa de imagens, movimentos, texturas, cores, ritmos e sons. O filme usa a postura de Oiticica como um artista híbrido para realizar um trabalho entre arte-filme-pintura -escultura-experiência física”. Resultado de 10 anos de trabalho por parte do diretor, o filme utiliza imagens de arquivo e da própria voz de Hélio para narrar a sua trajetória pessoal e artística. É o que nos explica o diretor: “Quando eu encontrei os filmes do Hélio, percebi que juntando eles com os tapes, com a voz gravada, era possível colocar ao mesmo tempo o público na sua cabeça e nos seus olhos. Ao perceber isso, entendi que já tinha um filme, na verdade. E ao mesmo tempo, achava que era muito importante dar voz ao artista num período em que os curadores e críticos falam mais que os artistas”. Oiticica é uma fonte propícia para esse tipo de exercício. Além de ter sempre refletido criticamente sobre a sua própria obra, como expresso nos seus textos ensaísticos, deixou uma série de gravações, realizadas durante os anos 1970, nos famosos Heliotapes. Mas a pesquisa de Cesar Oiticica Filho não parou aí: com a ajuda de Antonio Venâncio, um dos mais conceituados pesquisadores de cinema em atuação, ele localizou entrevistas gravadas, filmes inéditos e Super-8 que criavam um rico panorama de Oiticica e da cena entre os anos 1960 e começo da década de 1980.

“A pesquisa foi a parte mais emocionante do trabalho, e também uma coisa mágica. Ao mesmo tempo em que a gente acreditava que acharia várias coisas, e localizamos realmente muitas delas, outras foram surpresas, como o último Super-8 que a gente encontrou, onde estava a performance que Hélio batizou de ‘Delirium Ambulatório’ e que fez parte do evento ‘Mitos Vadios’ de Ivald Granato. Esse Super-8, de autoria de Aloísio Zaluar, estava guardado com ele de maneira primorosa e incrivelmente quando ele estava vivendo no que restou da Cinédia”. A dificuldade de localizar material passa também pelo fato de Hélio ter morado em diferentes países. A famosa mostra de WhiteChappel, na Inglaterra, em 1969, não teve o seu filme, registrado pela BBC, encontrado pela pesquisa. Mesmo tendo sido um programa de 20 minutos na TV inglesa da época, as fitas continuam perdidas no arquivo da emissora. Não realizar novas entrevistas com parceiros importantes de Hélio ainda vivos foi uma aposta corajosa do diretor, que acabou diferenciando o filme da série de documentários sobre personalidades da nossa cultura que estão sendo realizados atualmente no Brasil. “Isso foi uma coisa que eu estava determinado desde o início, porque para mim o filme precisava ser uma experiência, ainda mais no caso do Hélio. Sempre me incomodou um


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pouco quando você tem entrevistas longas e que param o ritmo do filme. Então desde o início eu botei isso em mente. Por outro lado, o Hélio foi o maior e o melhor pensador do seu próprio trabalho, o que também me facilitou essa proposta”. A edição do filme foi realizada em parceria com Vinicius Nascimento, e demorou mais de um ano. O desafio era criar uma narrativa usando esses materiais encontrados, costurados com materiais produzidos sobre a obra, e poucas reconstituições, que não deveriam se destacar como tal. Mas também era apresentar a obra e a trajetória de Hélio de forma coerente, sem criar uma narrativa puramente didática. “Já havia a vontade de trabalhar conceitos da obra do Hélio, principalmente da obra fotográfica e audiovisual, com um desenvolvimento contemporâneo e cinematográfico para as questões que ele se debruçou, principalmente a partir do conceito de Quasi Cinema. Então, utilizamos fotos recém-recuperadas do incêndio que ocorreu no Projeto HO, em 2009, que eram fotos em sequência, que geralmente Hélio projetava numa velocidade de slide show, como nas ‘Cosmococas’. Colocar essas imagens no filme a 24 quadros por segundo foi uma das experiências mais felizes da edição, pois podemos perceber como esse conceito era realmente uma forma ultravisionária de fazer cinema com uma câmera fotográfica e um rolinho de 36 fotos de uma película 35 mm”. O Quasi Cinema, criado por Hélio em parceria com Neville d’Almeida em meados da década de 1970, aparece não apenas internamente no filme. Durante as exibições nos festivais, como o de Berlim e a Bienal de

Moving Image de Frankfurt, foi montada uma exposição onde a proposta era que o filme funcionasse como uma grande porta de entrada para a obra do artista. O artista, por sinal, sempre esteve no centro das preocupações do diretor: “A montagem foi bem difícil porque ela precisava possibilitar todas as experiências que eu queria fazer, que eu tinha na minha cabeça, mas ao mesmo tempo ela precisava mostrar coerentemente o trabalho de Hélio e ser reconstruída toda vez que descobríamos um novo material de arquivo. A montagem é nuclear, e não linear. Esse conceito une Hélio e Glauber Rocha. Esse conceito aqui transborda da película e da tela e ganha o mundo quando posto ao lado das obras do artista. O filme passa a ser proposição para a participação direta do público nos trabalhos. Para mim, uma das grandes felicidades foi poder trabalhar com um montador jovem, que estava realizando seu primeiro longa-metragem, e ao mesmo tempo com um consagrado montador, Ricardo Miranda, que fez a supervisão e nos apoiou, como fazem os melhores, reconhecendo nossas boas ideias e nosso conhecimento do vasto material que tínhamos à disposição. Isso me deu, ao mesmo tempo, liberdade e confiança”. “Hélio Oiticica” recebeu, além do Prêmio Caligari, o prêmio Fipreci, da crítica internacional, também no Festival de Berlim, o prêmio de melhor documentário no Festival do Rio e o Prêmio Especial do Juri no Festival Filaf em Perpignan, na França. Será lançado em cinema no Brasil em maio de 2014. Mesmo com toda a premiação, enfrenta os desafios de conseguir atingir uma boa distribuição no cinema nacional: “Distribuição é a grande dificuldade do cineasta, não apenas no Brasil. Mas aqui me parece um pouco pior, pois para você conseguir entrar em cartaz é necessário lutar não apenas com os filmes de Hollywood, mas principalmente com a concorrência desleal dentro de casa, por uma série de blockbusters nacionais, que além de ter muito dinheiro e várias cópias por consequência, ainda encontraram incrivelmente no governo um combustível incessante para produções de mal gosto apoiadas numa receita água com áçucar de comédias românticas novelescas”. Contra essa receita pronta, a coragem da experiência de linguagem de filmes como “Hélio Oiticica” continua nos dando a certeza de que há sim invenção no cinema brasileiro. Só não vê quem não quer.


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Vozes&Visões

Stela e regina: outras vozes Em 2001, logo depois que abri a Azougue Editorial, encontrei a poeta Viviane Mosé numa mesa no bar do Planetário da Gávea. Falamos de livros, e ela me contou que estava fazendo um trabalho de poesia com a Stela do Patrocínio, uma interna do mesmo hospital psiquiátrico que o Bispo do Rosário que possuía uma fala altamente poética. Mostrou o material e eu fiquei muito impressionado. O projeto imediatamente me atraiu. Encaixava-se perfeitamente na ideia da editora, de trabalhar com o que o poeta norte-americano Jerome Rothenberg denominou “etnopoesia”: poéticas outras, para além das tradições literárias ocidentais. Rothenberg usa esse conceito de forma ampla, criando antologias que misturam poéticas africanas, ameríndias e asiáticas com textos de autores modernos e contemporâneos. Não há uma separação clara entre o que está dentro ou o que está fora da tradição ocidental, numa proposta próxima a de Mário Pedrosa, quando este pensou em fazer exposições abrangendo ameríndios, internos de hospitais psiquiátricos e culturas afrobrasileiras na década de 1970. A Rothenberg interessa não apenas o que há de particular nessas poéticas, mas o quanto elas podem contaminar as nossas próprias produções, ampliando os limites da poesia contemporânea. Em menos de dois meses publiquei o livro, chamado Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. A fala de Stela, versificada por Viviane, possuía uma força incrível e acabou sendo adaptada para o teatro, para o cinema e para a música:

por Sergio Cohn

Eu era gases puros, ar, espaço vazio, tempo Eu era ar, espaço vazio, tempo E gases puros, assim, ó, espaço vazio, ó Eu não tinha formação Não tinha formatura Não tinha onde fazer cabeça Fazer braço, fazer corpo Fazer orelha, fazer nariz Fazer céu da boca, fazer falatório Fazer músculo, fazer dente Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas Fazer cabeça, pensar em alguma coisa Ser útil, inteligente, ser raciocínio Não tinha onde tirar nada disso Eu era espaço vazio puro. O poema-título do livro da Stela se tornaria um pequeno clássico, sendo reproduzido em diversos lugares. Lembro-me vivamente da performance do artista visual Cabelo, com a voz gutural de Stela, gravada em fita k7 e reproduzida ao fundo, enquanto Cabelo andava com sacos de pão velho sobre caixas de papelão escritas com os versos do poema: Meu nome verdadeiro é caixão enterro Cemitério defunto cadáver Esqueleto humano asilo de velhos Hospital de tudo quanto é doença Hospício Mundo dos bichos e dos animais Os animais: dinossauro camelo onça Tigre leão dinossauro Macacos girafas tartarugas Reino dos bichos e dos animais é o meu nome Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista Um verdadeiro jardim zoológico Quinta da Boa Vista


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Dez anos depois, fui procurado por uma amiga, Daniela Albrecht, que estava trabalhando num CAPS e havia lido o livro de Stela. Ela e o Lula Wanderley, grande figura, tinham uma paciente que escreveu poemas muito interessantes, e queriam me consultar sobre uma possível publicação. Peguei os poemas da Regina Peixoto, e me vi novamente maravilhado. Mas Regina é em tudo diferente da Stela. Ou complementar. Não há na poesia da Regina o desmantelamento em estado puro de Stela. Nela, a tentativa de organização do mundo ao redor e do seu próprio estado ganha contornos muito mais claros. Se a fala de Stela era marcada pela crueza (Você está me comendo tanto pelos olhos/ que eu já não tenho de onde tirar forças/ pra te alimentar) e o embate cruel com sua situação (Tô carregada de uma relação total/ Sexual/ Fodida/ Botando o mundo inteiro para gozar e sem gozo nenhum), Regina cria poemas que, sem perder em contundência, são capazes de flertar com o humor e a doçura, como em “Pelos”: Cabelos são pelos que crescem na cabeça. Mais que os outros do corpo. São pelos contra os quais pelejo. Os meus são finos demais, vivem em constante briga, uns contra os outros e mais ainda contra o pente. Então, os ameaço: vou cortá-los. Eles me respondem: Não estamos brigando, só nos abraçando.

Ou, ainda, o belíssimo “Colo”, com seu eco de Manuel Bandeira: Sono. Coisa chata. Coisa muito chata, quando assim fora de hora, quando querendo me levar embora. Eu luto. Não muito, devo confessar. Perguntei outro dia para Regina se ela tem escrito. Ela me disse que não, que só escreve quando em crise. Ela havia começado a escrever para se comunicar com Lula. Lembrei de Henri Michaux, que dizia que escrevia para se curar. E de como os poemas e a própria Regina passam tanta sabedoria e serenidade, indo contra a ideia de poesia feita no olho do furacão. Como diz Lula, é difícil para nós entendermos que as pessoas não são loucas o tempo todo. Como ele diz, “a colocação de Caetano, de que de perto ninguém é normal, também pode ser invertida. De perto ninguém é inteiramente louco”. Da vasta pasta de poemas, fizemos uma seleção, que se tornará o livro Variâncias, com capa de Wlademir Dias -Pino, o grande autor da poesia processo.

Regina é em tudo diferente da Stela. Ou complementar. Não há na poesia da Regina o desmantelamento em estado puro de Stela. Se a fala de Stela era marcada pela crueza e o embate cruel com sua situação, Regina cria poemas que, sem perder em contundência, são capazes de flertar com o humor e a doçura. Ou este, epigramático, certeiro: Alguma Doralice Nem Dora Nem Alice

Perspectivas outras, outros olhares que vão enriquecendo a nossa poesia. Como escrevi na orelha do livro de Stela, “o povo, o inventa-línguas, como dizia Maikovski, ganhou mais uma voz. E isso tem que ser sempre celebrado”.


Rafael Campos Rocha




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