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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Foto da capa Edu Monteiro Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 4 | 2013 ISSN: 2318-1192

Caro leitor, como as vagas que se chocam com nosso casco, NAU faz nesse número o movimento de refluir para o futuro avanço. Voltamos 45 anos no tempo, para um momento expressivo da nossa história, 1968, quando no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro uma trupe de jovens artistas se uniu para pensar a Cultura e a Loucura na arte brasileira. Estavam lá Hélio Oiticica, Rogério Duarte, Lygia Pape, Caetano Veloso, Frederico Moraes, Nuno Veloso e Sérgio Lemos. O entrevistado é Guilherme Zarvos. Poeta, agitador cultural, criador do CEP 20.000, o principal evento de poesia do Brasil, Zarvos é uma figura central para a cultura carioca. O poster central é um poema de Marcelo Montenegro, “Buquê de presságios”, ilustrado pelo grande quadrinista Carcarah. A revista traz ainda Bixiga 70, um dos mais interessantes expoentes da cena musical atual, com suas experiências instrumentais baseadas na riqueza rítmica do afrobeat e de outras raízes da música negra. Por fim, uma coluna de Renato Rezende e a chance de continuarmos nos deliciando com Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!

Sumário MAM 68: Cultura & Loucura Poesia | Marcelo Montenegro Pôster Entrevista | Guilherme Zarvos Bixiga 70: Deixa a gira girá Vozes&Visões | A resistência da poesia brasileira Caronte | por Rafael Campos Rocha

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mam 68: cultura & loucura | 3


Em 10 de junho de 1968, quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sediou o debate intitulado “Amostragem da Cultura/ Loucura Brasileira”, era o lugar e a hora certa. O Brasil estava vivendo a efervescência tropicalista, que colocava em pauta muitas das questões tratadas naquela noite. E o MAM se tornou um dos espaços centrais de encontro dos artistas e jovens que estavam criando uma renovação da cultura brasileira. Era lá o cenário principal carioca para as conversas culturais, seja na sua cantina, na cinemateca, ou nos seus jardins, durante os “Domingos da Criação”, os eventos livres organizados por Frederico Morais, um curador independente que coordenava os cursos do museu. Foi Frederico Morais, aliás, quem realizou o convite para Hélio Oiticica e Rogério Duarte organizarem o evento, que ficou conhecido como Cultura e Loucura. Um mês antes, no dia 23 de maio, o MAM já havia sediado o debate “Critério para o julgamento das obras de arte contemporâneas”, em que a participação de Hélio foi feita através de um texto cujo teor era a provocativa constatação da crise dos valores tradicionais e acadêmicos como critério de julgamento nas artes de seu tempo. Esses

dois debates selaram uma parceria de três meses entre Oiticica e Rogério Duarte, que foi iniciada em maio e teve seu auge no dia 6 de julho de 1968, com o início do evento “Arte no Aterro – um mês de arte pública”, realizado no Parque do Flamengo, onde eles apresentaram o happening “Apocalipopotese”. “Cultura e Loucura” reuniu alguns dos principais nomes da vanguarda da época, para discutir o tema de forma inteiramente aberta. Estavam lá músicos, artistas, sociólogos. Mas algumas ausências foram sentidas: Abelardo Barbosa, o Chacrinha, estava convidado e não pode comparecer. O mesmo ocorreu com Fernando Gabeira e Glauber Rocha. Em 1973, o artista visual Antonio Manuel criou um Super-8 utilizando trechos do áudio do evento, sobrepostos em imagens filmadas posteriormente de alguns dos participantes. Mas foi apenas quase quarenta anos depois que as fitas completas reapareceram, permitindo um registro mais claro do que foi o debate. A transcrição de trechos delas permite a compreensão da riqueza do pensamento sobre o tema de então. Frederico Morais, o mediador, foi quem realizou a apresentação:

“Bom, nesta mesa, estão presentes, da direita para a esquerda: Rogério Duarte, que juntamente com Hélio Oiticica, é o organizador do debate. Ao lado, nós temos Sérgio Lemos, que é um brilhante sociólogo da nova geração, professor de Sociologia do Conhecimento e Sociologia da Vida Cotidiana, e que desde então tem procurado estudar, entre outras questões, o comportamento sexual e os mitos do consumo de massa. Em seguida, Lygia Pape, artista plástica, participante de um dos mais importantes movimentos da arte brasileira, que foi o neoconcretismo. Em seguida, Hélio Oiticica, também ex-integrante do neoconcretismo, e que, além de artista de vanguarda da maior importância, é também um teórico e um escritor de muito talento. Em seguida, Caetano Veloso, que não é preciso apresentação, porque vem revolucionando a música popular no Brasil. E, finalmente, Nuno Veloso, provavelmente o menos conhecido aqui, neste momento. Mas Nuno Veloso, que foi o ex-presidente da ala de compositores da Mangueira, e fez um curso de doutorado livre, na Alemanha, tendo como professor Marcuse, entre outros, exatamente os filósofos aí da moda, né, os filósofos pop. É assis-


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tente também da cadeira de Filosofia Alemã, na Universidade Livre, no Instituto da Europa Oriental. E foi um dos professores de Rudi Dutschke – isso é um fato muito importante. Bem, feita a apresentação, nós consideramos agora aberto o debate, e estamos ainda aguardando a presença de Chacrinha, que deverá sentar ao meu lado. Glauber Rocha e Fernando Gabeira não puderam comparecer”. O primeiro a falar foi Hélio Oiticica. Em 1968, Oiticica era um artista visual já reconhecido, que estava seguindo com a sua proposta experimental e já havia criado Parangolés e Penetráveis, inclusive o “Tropicália” que nomearia o movimento. A sua fala, como sempre provocativa, questiona as fronteiras entre alta e baixa cultura, num discurso que mostra a clara identintificação com os tropicalistas: “O conceito de gênio foi uma coisa criada pela classe dominante, na Renascença; é uma coisa que pra mim não existe mais. Eu já cansei de dizer, por exemplo: pra mim, a Mirinha da Mangueira, que mal sabe ler, diz coisas muito mais importantes do que qualquer gênio desses da humanidade. Hoje em dia, a tendência é acabar com tudo isso. Esse conceito de gênio não existe mais. É uma coisa que Lygia Clark define como a precariedade do momento. Quer dizer, cada momento é que é a criação. Agora, eu acho que o Chacrinha, dentro desse negócio, de momento da criação, ele é profundamente criador, porque tudo que ele faz é uma coisa criadora, ele não está lá pra desempenhar um papel. Eu sei que ele é consumo também, sei que ele pode ser um instrumento de domínio da massa, agora é também uma coisa criadora. Porque nós vivemos numa sociedade capitalista, todas as coisas boas e ruins são instrumentos de domínio, de modo que... Por exemplo, Danny Kaye é um gênio fantástico, um grande comediante, mas também era um instrumento de domínio da cultura americana, para se impor no mundo. Uma coisa não pode ser vista separada da outra. Já a loucura seria o que não é feito. Por exemplo, uma pessoa tem

um ataque, arranca os cabelos, isso daí é uma loucura, mas é uma loucura que se manifesta. Então, é um ato criador. É uma coisa que está se manifestando. Agora, a loucura morta mesmo, como uma coisa morta, é o que você não fez, e não manifestou. O que fica na subjetividade e se volta para ela mesma. Isso é que seria a loucura mesmo. Cientificamente explicada, seria isso. Ao passo que todas as outras coisas no mundo são coisas apreensíveis, e não são coisas loucas. Então, é isso”. O próximo a falar foi Rogério Duarte. Um dos mais importantes designers gráficos brasileiros, foi o criador do famoso cartaz do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, além de capas de alguns dos discos tropicalistas, como os de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1965, publicou na Revista Civilização Brasileira o texto seminal “Notas sobre o desenho industrial”. Em 1968, estava morando na casa de Oiticica no Jardim Botânico. Foi lá que os dois atuaram no filme experimental Câncer, de Glauber Rocha. É sobre o fotógrafo Carlos Saldanha, que participou dessa filmagem, que Rogério fala na sua exposição. Nela, ele também cita a crise que sofreu após a prisão e a tortura ocorrida em abril daquele ano, após a Passeata dos Cem Mil: “Eu gostaria que o Carlos Saldanha viesse aqui falar. Quem é Saldanha? Saldanha é uma pessoa que eu conheço há muitos anos, e que depois viajou, passei quatro anos sem ver, e agora ele aparece, e conta uma porção de coisas novas. Eu comecei a me interessar mais fortemente por Saldanha quando o vi no trabalho, fazendo um filme com o Glauber Rocha, do qual eu participei como ator, com o Hélio Oiticica, chamado “Câncer”... Então, quando eu o vi no trabalho, eu me surpreendi com um tipo de integração, que me parecia quase impossível, entre uma pessoa e uma ferramenta, no caso, uma máquina moderníssima, que é uma câmera de cinema, de som direto. Depois eu vi, junto com o seu instrumento de trabalho, um caderno de anotações sobre revelação de filme, sobre curvas,


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Hélio Oiticica no penetrável “Tropicália”.

latitude, sobre problemas de som, de eletrônica. Eu suponho que seja isso, porque eu não entendi direito, era um tipo de especulação de cientistas, que eu não me sentia assim, à altura de acompanhar, mas eu pude ver que aquilo era misturado com uma série de outros tipos de trabalhos, como os trabalhos de Pascal, onde ele questionava uma série de coisas fundamentais, ou mesmo onde ele fundamentava, onde ele nomeava, onde ele tomava a palavra. Eu quero fazer disso a minha resposta, pelo seguinte, me lembrando de uma antiga dificuldade de acompanhar o que o Saldanha sempre chamou de a velocidade dele, e vendo que dessa vez eu estava mais ágil para esse acompanhamento, de repente eu realmente perdi, a partir disso, a noção da diferença entre o processo de criação e a loucura. Porque eu perdi a medida, realmente uma série de medidas. Eu enlouqueci, fiquei embriagado, e me perdi. E eu não sei qual é o meu processo, se eu sou sujeito ou objeto da minha loucura, por exemplo. Eu não sei se a minha obra é criada por mim ou pelos outros. Eu não sei se existe alguma coisa que eu pudesse chamar de obra, entende? A dificuldade se estende, arrodeia o plano do conceitual, porque nos trai na própria matéria do conceito. Eu não sei se isso que eu estou dizendo faz sentido, e também não sei qual o sentido que faz o próprio sentido. E, de repente, as palavras começaram a se comer umas às outras, como num processo de leucemia...” Em seguida, a primeira convidada pelos organizadores, a artista visual Lygia Pape. Ela havia participado junto com Oiticica do neoconcretismo, e seguia uma trajetória experimental que fazia com que, embora fosse cerca de dez anos mais velha que os outros participantes da mesa, estivesse em plena sintonia com eles: “Bom, eu vou falar sobre Marcuse, mas isso não significa que eu seja especialista em Marcuse. Qualquer pergunta que vocês queiram fazer sobre ele depois, eu espero que se dirijam ao Nuno, que é especialista nisso. É


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Rogério Duarte em cena do filme “Câncer”, de Glauber Rocha.

que há um trecho num livro dele, que me pareceu uma resposta ao problema da loucura. E então, eu fiz uma pequena síntese, que eu vou ler aqui pra vocês. Marcuse nos fala que o homem animal converte-se em ser humano através de uma transformação de sua natureza. Isto é, do princípio de prazer, o homem passa ao princípio de realidade, onde esse homem desenvolve a função da razão. Torna-se um sujeito consciente, e que parte para uma racionalidade que lhe é imposta de fora para dentro, e, logicamente, condicionado por essa cultura. Mas é um modo de atividade mental que está separado ou isolado dessa organização mental nova, a fantasia, que está protegida das alterações culturais. Essa fantasia, que eu chamaria loucura, confunde-se com o sentido de liberdade, e é o elemento deflagrador da criação, da invenção. Toda boa cultura estabelece padrões sociais, morais, políticos, artísticos etc. Eles são a própria defesa contra qualquer mudança na sua estrutura. O homem enfia-se dentro de uma forma segura, fechada e castradora, mas que ele conhece. A loucura, fantasia e criação propõem estruturas abertas, em que o homem é levado a refletir e desmontar seus critérios de razão, e a ter uma visão dinâmica das coisas. Desconfio sempre do sucesso de qualquer... Bom, isso aqui agora já é a minha opinião. Desconfio sempre do sucesso de qualquer coisa aceita sem reservas, pois algo está errado: ou não foi compreendido ou é uma forma acomodada a essa cultura. Toda agressão supõe uma transformação. É necessário corromper os valores, e para fazer isto, temos coisas novas, que dão estruturas novas, que dão uma linguagem nova, que é a invenção. A criação é uma totalidade, a loucura como ato total. Relembrando: criação, loucura e fantasia são os elementos deflagradores de qualquer invenção. A razão vem depois, como elemento conscientizador, e como degrau para uma nova criação, fantasia, loucura. É um ciclo infinito, é a própria vida. É a loucura que salva o homem. Eu fiz uma colocação sucinta assim, mas a loucura pra mim significa uma abertura, uma liberda-


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Torquato Neto durante o evento Apocalipopótese (1968).

de, no sentido de criação e de invenção, isso dentro do meu trabalho, ou dentro de qualquer outra atividade humana”. Caetano Veloso, que havia então lançado seu primeiro disco solo, faz um testemunho do seu pensamento na época: “Eu queria dizer que o meu pensamento flutua. Eu só posso dar um testemunho, fazer uma espécie de confissão sobre o que aconteceu com o meu trabalho. Isso talvez me aproxime realmente de muito do que foi dito nesta mesa. Por exemplo, quando eu falei que o Chacrinha era mais cultura do que o Flávio Cavalcante, isso implicava necessariamente numa atitude. Eu acho que inclusive alguém, logo depois, disse: ‘Mesmo porque gostar de Chacrinha agora já é moda’. Eu não tenho muito medo da moda, mas acontece que ficou estranho gostar de Chacrinha, pode ser uma prisão mais fechada do que negar Chacrinha, e apagar, e não considerá-lo como representante da cultura brasileira. Entretanto, a resposta do Hélio Oiticica, quando disse que o Flávio Cavalcante é fascista e o Chacrinha não é fascista, realmente me agradou na hora em que eu ouvi. Eu não tenho muita consciência sobre isso, não é uma consciência imbatível, eu não quero impor o meu pensamento, mas eu gostaria de dizer que realmente, enquanto o trabalho explícito do Sr. Flávio Cavalcante é policiar a criação brasileira, que se dirige ao consumo de massas, o Chacrinha é um elemento criador dessa própria arte de consumo, e o mais genial e criativo de todos. Realmente, ele me oferece elementos para o enriquecimento da minha criação, mas eu não gostaria que as pessoas não viessem a pensar no Chacrinha como o maior pensador sobre a realidade brasileira, mas, sim, que reconhecessem, nessa criação brutal que vai através da televisão de um país subdesenvolvido, alguns elementos de brutalidade mesmo, que me podem ser muito caros. E que a própria inspiração, nesse sentido, já denota um movimento ao qual eu quero... Como se diz?...


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Caetano Veloso vestindo um Parangolé.

me engajar, sei lá, quer dizer, a um movimento de enlouquecimento da cultura nacional, no sentido de que seja uma intuição brutal, inicial, como a necessidade de uma nova razão”. O sociólogo Sérgio Lemos falou em seguida. Na época, Lemos era conselheiro do jornal-escola O Sol, uma aventura editorial importante, capitaneada pelo poeta Reynaldo Jardim. E portanto estava lidando com algumas das grandes questões da juventude: “Qual é a loucura que terá importância? Será a loucura de não prendermos as nossas limitações da aparência. Fundamentalmente, é isso. A conveniência nossa, da pequena burguesia, que se choca com o Programa do Chacrinha, deve ser derrubada, porque ela nos impede também de fazermos coisas inconvenientes. A nossa opção contra o sistema é prejudicada, é atrasada, pelo nosso culto à aparência, o nosso culto à conveniência. E quando fazemos, será sempre no nível da conveniência, como conveniência, como aparência, para aparentar negar o sistema. A negação real, a revolucionária, ela se torna impossibilitada a nós, pequenos burgueses, por esse culto à aparência. Quebrar a nossa aparência, nos humilhar, não é ruim, é bom. A alienação, a separação entre indivíduo e sociedade, evidentemente que não é irredutível, mas o que nos interessa é valorizar a loucura enquanto protesto, enquanto negação, formulação de novas estruturas. E a luta pela idealização de novas estruturas exige uma descrença, uma desmoralização das estruturas vigentes, através daqueles laços que os prendem a ela, daqueles controles – no caso especificamente do pequeno burguês, a aparência. Vamos dizer que eu não teria coragem de dizer estas coisas, se não tivesse renunciado, durante alguns acessos de loucura há anos atrás, da aparência do homem certinho, direitinho. Eu fui congregado mariano, inclusive, eu vivia do culto da aparência, eu seria incapaz de pensar que realmente pudesse haver o que na época eu chamara injustiça


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social no Brasil. Porque isso me faria trair aquela aparência do homem certinho, do bom mocinho, direitinho, bonitinho. Houve choques,vamos dizer, me chocaram, que de algum modo, me humilharam muitas vezes na vida. Eu tive que desistir da aparência pequeno burguesa, e que, realmente, aquilo podia não funcionar, deixou de ser sagrado. É claro que está sempre a cultura de massa, está sempre o sistema reabsorvendo todas as suas negações. Cada vez que for reabsorvido, passamos pra outra. Creio, nesse sentido, que as políticas são um pouco isso”. Por fim, falou Nuno Veloso. Figura curiosa, única, Nuno era parceiro de Cartola na Mangueira, e foi, conforme dito por Frederico, assistente de Herbert Marcuse na Alemanha. Transitava sem dificuldades por esses dois universos, para encantamento de seus amigos, como Oiticica. Em entrevista realizada para Maurício Barros de Castro, Nuno se lembra um pouco sobre a época: “Eu me perguntava como ia pra lá, então entrei para a marinha mercante, fui pra Inglaterra, fiz o tal Mestrado em Filosofia da Arte, aí voltei e apareceu a oportunidade de fazer Doutorado na Alemanha. Eu tive que aprender outra língua e lá fui eu para o doutorado. Foi lá que eu fui assistente do Herbert Marcuse. Eu só podia fazer o doutorado e voltar ao Brasil, a promessa era essa, mas na hora de vir embora, me convidaram pra dar aula em alemão, na Alemanha, e ser assistente do Marcuse, que foi embora pra Califórnia e eu fiquei como professor titular... Cartola dava força, me escrevia toda semana, no carnaval me mandava fantasia da ala dos compositores, que eu fazia parte, e eu chorava como um desesperado, era um débil mental, pior que ainda sou, qualquer coisa eu choro. Eu perdi meus pais muito cedo, mas tive sorte porque, de repente, todos eram meus pais e todas eram minhas mães, às vezes não sabia como, mas acordava na casa de um, ficava amigo do outro... Lembro que

quando voltei da Alemanha, já Doutor, e eu não tinha pra onde ir, e o Nelson Cavaquinho foi me esperar. Nelson Cavaquinho, o Cartola e o Elton Medeiros, que ficou muito meu amigo... Aí eu disse: ‘Eu não tenho pra onde ir’, e o Nelson respondeu: ‘Vai lá pra casa’; eu respondi: ‘Não quero te atrapalhar, Nelson’,; e ele, ‘O último lugar que eu vou é a minha casa, você pode ir lá, ficar à vontade’”. A sua fala no evento “Cultura e Loucura” causou fortes reações na plateia, o que mostra o quanto as ideias defendidas pelos palestrantes, de encontro entre cultura erudita e popular, eram avançadas para a época. Como declarou Rogério Duarte, num depoimento de 1987, relembrando o evento: “Aquilo foi muito combatido pela esquerda tradicional, colonizada. Nós não cabíamos nessa gaveta e fomos rejeitados por isso, por buscar uma totalidade num momento em que tudo estava compartimentalizado. O tropicalismo, e sua força, significa isso. Ele não é um movimento, mas um momento de um movimento que já começa muito antes”. Vamos então para a fala de Nuno Veloso, que fecha a noite em grande estilo: “Eu tenho impressão que a gente pode encontrar fonte de encontros e desencontros em qualquer manifestação da vida. Isso não quer dizer que seja uma novidade, que esteja buscando qualquer coisa de nova, quando se faz uma nova arte. Acho também que a intenção do Hélio, quando foi procurar os morros, não foi criar o Parangolé, eu acho que a vivência nos morros é que levou ele a fazer essa arte, que fala muito bem da descoberta do lixo das favelas. Essa arte dele também é social, ainda que muita gente não entenda assim. E depois, eu acredito realmente que haja um certo exagero nele, nesse amor pela Mangueira. Mas eu acho que, na parte histórica da coisa, de toda a criação da arte eminentemente popular, no sentido de samba, e de bordados, e essas coisas todas, começaram com a liber-

tação dos escravos em 1888 aqui no Brasil. E o primeiro núcleo de escravos livres aqui, no Rio de Janeiro, foi justamente de Mangueira, onde hoje em dia chama-se Morro do Telhado – no tempo, Morro Pindura Saia, porque as escravas lavavam suas roupas e penduravam no alto do morro de Mangueira. É também a escola mais antiga. Vai fazer 40 anos, ano que vem. Essa ideia toda, que hoje se chama de burguesia no samba, essa coisa toda, nasceu de um erro de um governo: por volta de 1937, 38, se criou uma coisa chamada Estado Novo, e esse Estado Novo é que exigia, obrigava a escola de samba a manter um enredo que falasse de qualquer ato patriótico, que depois foi modificado para regional ou folclórico, mas era só ato patriótico. Eu, pessoalmente, sou contra isso, mas a ideia... Quando eu passei a morar nos morros, eu consegui mudar esses itens, para levar também o artesanato a essa ideia, quer dizer, contar esse ponto não só para a dança, e para o samba, e a música, mas também para o bordado das bandeiras, o bordado das roupas, que houvesse oportunidade para todo mundo ter a sua expressão cultural, no morro. Agora, se depois disso se desvirtuou, se hoje em dia existem escolas que empregam profissionais para o seu carnaval, isso evidentemente não é culpa do morro, e muito menos da Mangueira. [Auditório] Você veio aqui falar sobre Marcuse, e agora está falando da Mangueira? [Frederico] Um momentinho. O debate é sobre a amostragem da cultura brasileira; samba e Mangueira fazem parte da cultura brasileira. [Nuno] Quem tem questões sobre Marcuse, pode perguntar. Ninguém? Então, posso continuar. [Hélio] Por que é que Marcuse é bom, e a Mangueira não é? Ah, é muito melhor. [Nuno] Acabou”. Hélio Oiticica escreveu na época um texto sobre o evento, que reproduzimos ao lado.





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Poesia foto: Sergio Cohn

Marcelo Montenegro

A arte da poesia falada no Brasil ainda é coisa para poucos. Os eventos de poesia se multiplicam, poetas recitam seus versos em profusão, mas são raros os que criam uma dicção própria, capaz de cativar o público e levá-lo a outros lugares expressivos. Se você perguntar a Chacal, um mestre da poesia falada desde os anos 1970, quando junto com o grupo Nuvem Cigana criou as Artimanhas, quem é capaz de fazer isso no Brasil de hoje, ele citará certamente Marcelo Montenegro como um dos exemplos. Marcelo, nascido em São Caetano do Sul, em 1971, é autor dos livros de poesia Orfanato portátil (2003) e Garagem lírica (2012), e tem circulado por aí com o incrível espetáculo Tranqueiras líricas, onde funde poesia com rock’n’roll, jazz e blues. Sua poesia, lírica e coloquial, se encaixa perfeitamente com o espetáculo, conquistando entusiastas tanto entre leitores assíduos de poesia quanto o público em geral. Como diz o poeta e crítico Maurício Arruda Mendonça, “a sensibilidade de Montenegro é a do carinho pelos detalhes, porque ele busca o gosto de existir na celebração do momento presente, porque deseja captar fenômenos efêmeros e registrá-los velozmente antes que se desmanchem e sejam velados pelo esquecimento”. [Sergio Cohn]


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Marcelo, você estreou em livro nos anos 1990, mas diz que encontrou sua voz apenas na década seguinte, com o segundo livro. Fale um pouco da sua trajetória como poeta e das suas referências. Nos anos 90, eu e um amigo, Marcelo Capanema, fazíamos um fanzine, o Ruptura, que circulou de forma muito bacana, baita experiência. Inclusive, antes mesmo deste meu primeiro livro enjeitado (De soslaio, 1997), eu e o Capanema editamos em parceria umas brincadeiras concretistas – ele me apresentou aos concretos e, uau, foi um choque (já o De soslaio foi feito sob o choque dos surrealistas, hehe). Obviamente foi um caminho necessário para eu chegar a tal da minha voz, mas, numa versão ideal, não deveria ir parar em livro. O lance é que eu era movido pelo espírito de fanzine, tinha pressa. Não tinha lá muita noção de nada. Por exemplo. Estou lendo uma coletânea de entrevistas do Allen Ginsberg e ele diz que tudo se trata de um comprometimento profundo, em todos os níveis, com a literatura. Essa equalização dificílima – como diz o Bernardo Pellegrini: “o amor é mão de obra” – entre o que você é e o que você faz. Sabe a história juvenil de estar com os amigos, aí chega sua garota e você faz sinal para os caras não falarem sobre tal assunto na frente dela? Ou, sei lá, ela não gosta que você fume um negocinho, e você tem que fumar escondido? Pois eu fazia isso com a literatura também. O fato é que de lá até a concepção dos poemas que viraram o Orfanato portátil (2003) eu passei por um processo forte de definições. Uma espécie de refinamento. Artístico, mas, sobretudo, da minha própria vida. Até estudar eu fui. Era formado em história e nunca tinha estudado literatura formalmente. Resolvi, como diria o Nei Lisboa, levar “uma vidinha sincera” – em suma, a tal da equalização. Só aí passei a ter clareza da limonada que eu queria fazer. A paixão pela canção, pelo cinema, pela leveza, pelas

pequenas coisas da vida urbana, pelo efêmero, tudo que eu mantinha “escondido” da literatura, incluindo consciência de linguagem, apareceu. Por isso considero o Orfanato meu primeiro livro. O segundo, Garagem lírica, é de 2012. Do ponto de vista das referências, hoje posso brincar falando sério que minha poesia é um misto de João Cabral de Melo Neto e Jerry Seinfeld. Além da poesia escrita, você tem um trabalho reconhecido de poesia lida com acompanhamento de uma banda de blues e rock’n’roll. Como é esse espetáculo? Faço o espetáculo – que se chama Tranqueiras líricas – desde 2004. Pelo fato de ter essa influência da música, de trabalhar bastante o ritmo e a escolha de cada palavra, meus poemas acabam funcionando bem falados. É muito gostoso fazer e muito legais os comentários das pessoas depois de assistirem. Reforça o lance do Octavio Paz de que “compreender um poema é ouvi-lo”. Hoje está consolidado no formato guitarra, baixo e bateria, mas já fiz com piano, trompete, gaita. Muitas vezes faço só com o Fabio Brum, grande guitarrista e parceiro – são dele os arranjos todos. Sempre achei que é algo que funciona exclusivamente ao vivo, mas estamos tão entrosados e fazendo há tanto tempo que o Fabio me convenceu: vamos gravar um CD em breve. Quais são os seus novos projetos? Algum livro de poesia em andamento? De concreto só a ideia do CD. Livro ainda deve demorar, mas aquela história. Poesia você nunca para de escrever e de pensar, a cabeça não para, é uma desgraça. Mas tenho organizado coisas dos meus blogs antigos. Tem uns textos e poemas ali que gosto bastante. Talvez dê jogo. A ver.

dois poemas Poema estatístico Tem uma esquina prenha de um latido. Trechos de pássaros que permanecem nos muros que ficam. E vice-versa. Um e-mail anotado às pressas no canhoto do tintureiro. A cirrose portátil. A síndrome de pânico. O enroladinho de presunto e queijo. Tem a Mulher Mais Linda da Cidade. Groupies de cabelo rosa. Poodles da solidariedade. Alguém chorando lágrimas de tubaína. Penélopes Charmosas. Dick Vigaristas. Um cara que já sai desviando do cinema del arte, evitando ser atingido por alguma conversa perdida. Tem a mulher da video locadora que não conhece o filme que estou procurando. Um amigo que diz que escreve só para colocar epígrafes. Taxistas infláveis. Manicures em chamas. Um casal que desce a rua na banguela prolongando a gasolina daquilo tudo que um dia fora. Eu ando apaixonado pela mulher da video locadora. Lendo revistas na sala de espera do consultório dentário. Tem uma que venta. E um que desiste. De arranhar os vidros do aquário.

Plano Morder o pássaro do pensamento sem apaziguar o seu voo. Caber na canção uma dor que não cabe no mundo. Um cachorro mancando na aurora. A beleza fugiu do assunto.





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guilherme zarvos entrevista por Sergio Cohn Guilherme, como foi que começou o seu interesse pela arte? É preciso entender que no Rio de Janeiro dos anos 1970, entre o surfe e a areia da praia, existia uma atividade cultural que não acontece mais hoje. Havia uma disposição para mostrar as coisas, que eu acompanhava aleatoriamente. Eu não conhecia os artistas, mas se você cutucasse encontrava tudo. E todo mundo fumando maconha. A ditadura era um ambiente terrível, mas numa situação de perigo parece que se cria vontade de encontros, de escapar da porra da doença. E nessa época eu comecei a fazer teatro no colégio, mas não produzia muita coisa. Eu escrevia muito mal. Meu primeiro texto foi publicado quando eu tinha entre sete ou nove anos. Era um texto que se espera de uma criança, mas não vem ao caso. Depois que comecei a fumar maconha, parti para o surf, drugs & rock and roll, e parei de escrever. Só fui retomar a escrita na minha tese de mestrado, no fim da década de 1980. Mas já naquela época você convivia com muitos artistas na casa da sua mãe. Convivia com escritores, intelectuais canônicos, mas de grande qualidade: Rubem Braga, Antonio Callado, Ferreira Gullar, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, um pouco antes com o Paulo Francis. Mas era uma coisa diferente. Nós éramos cinco filhos, minha mãe não tinha tempo de nos entrosar muito com os artistas. Mas o pessoal com quem eu fumava maconha com 15 anos também tinha uma excelente educação, tinha livros em casa, e a gente conversava sobre literatura. Depois, no meu caso, por ter

ambiguidades sexuais, eu acabava levado à procura da experimentação, quanto mais era a oferta. Se fosse ao cinema para ver “Mimi, o metalúrgico” já era um ato político efervescente, com palmas, porque a ditadura pegava muito pesado. E tudo era marcado por essa experimentação. Depois vieram os anos ultraliberais da década de 1980. Que foi quando você partiu para a política e participou da implantação dos CIEPs com o Darcy Ribeiro. Como foi essa construção? Isso foi uma alucinação maravilhosa, como se estivesse construindo Brasília. Por sinal foi mais quantidade de cimento movimentada do que no tempo de Brasília. Imagina, 500 prédios. E todo mundo acreditando. Até hoje, mesmo agradecendo ao Lula, não chegamos onde sonhávamos em 1980. Era um deslumbre, eu jovem, andando para todo lado, vendo tudo que o Darcy trabalhava, com entusiasmo e aplicação. Prática e delírio. Foram anos muito felizes. Depois disso nunca mais consegui um emprego. Um emprego estável, pelo menos. E nunca seria tão bom quanto... Não existe mais essa linha de liberdade. Quando a Jandira Feghalli foi secretária de cultura da prefeitura do Rio, ela me chamou com aquela conversa de boi dormir, me convidou para trabalhar junto, mas não dava para aceitar. Aí vai todo mundo junto, mas se você der dois gritos, está fora. Tem que ter bons modos. Mas cultura e política é emoção, e isso eles não entendem. Imagina com Darcy, ele não tinha bons modos, e se os maus modos saíssem, estavam dentro

de um contexto. Mas é claro que ele não falava besteira. Ele podia estar errado, mas o errado dele era certo, porque era como eu brincava com ele: os gênios têm razão, eles não têm que ser sábios, mas sim ter humores. O gênio tem muitos defeitos. Se você tem um mestre, e acha ele um gênio, você vai respeitá-lo, como os orientais. Nada de ficar questionando. Quando conheci o Darcy em 1977, eu tinha 19 anos, ele 55. Então foi um susto. Aí li tudo que ele escreveu. E para ele eu era de direita, o que era meio complicado. Dentro de uma tradição leninista, qualquer reformista é de direita. Mas nosso convívio foi tão bom que eu fui indicado por ele para candidato a deputado. Ele dizia: “Guilherme foi conquistado da direita pelo Brizola”. E eu respondia: “Tá bom, Darcy”... Você acha que os CIEPs acabaram por motivo político ou por ter sido um projeto muito ambicioso, um salto muito grande? Motivos políticos. O projeto era exequível. O Darcy queria era dobrar de tamanho. Mas o Darcy, como disse, era gênio. Ele fez uma lista junto com o José Mário Pereira, essa lista está no Senado hoje, dos mil livros mais importantes, e mandou comprar. Eram livros para as crianças e para as professoras. Nunca se comprou tanto livro por um governo de estado. Eu dizia a ele: “Darcy, os meninos não estão lendo!”. Ele respondia: “Buuurro, burro, burro! Você não entende que se sair um intelectual de cada CIEP os livros já estão muito mais do que pagos?” Quer dizer, o nível de pensamento dele era muito alto. E eu ria. Eu era muito jovem, ria e dizia: “Está certo, vamos lá!” E algumas pessoas liam, sim.


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O Darcy pensava o tempo todo em criar ambientes o CIEP seria um ambiente integrado, para toda a comunidade. O que vem já do Anísio Teixeira, voltamos ao modernismo. Mas a classe dominante é de um egoísmo, uma raiva contra a garotada desprovida, e não deixou esse projeto se consolidar. O MV Bill conta que leu ao menos alguns, no CIEP da Cidade de Deus, onde ninguém queria ir dar aula. Ele ia lá ensaiar com a banda dele, não sei se com gato de eletricidade ou se deixavam, no salão previsto para receber casamento, onde a juventude depois de fazer esportes de dia ia dançar à noite. O Darcy pensava o tempo todo em criar ambientes – o CIEP seria um ambiente integrado, para toda a comunidade. O que vem já do Anísio Teixeira, voltamos ao modernismo. Mas a classe dominante é de um egoísmo, uma raiva contra a garotada desprovida, e não deixou esse projeto se consolidar. Depois do trabalho com o Darcy nos CIEPs, você realizou as Terças Poéticas. Como foi essa história? Isso foi na prefeitura do Marcelo Alencar, no começo dos anos 1990. Eu já o conhecia de antes, quando namorou minha mãe, na época que foi senador após a cassação do Mário Martins. Depois, o Marcelo também foi cassado. Ele era legal, mas com o poder foi mudando muito. Mas ele foi indicado pelo Brizola, e o Gerardo de Melo Mourão, que trabalhava com ele na parte de cultura, era uma indicação e um grande amigo do Darcy. Quando fui

conversar com o Darcy sobre um projeto que eu queria fazer de literatura, ele foi bastante duro, e disse que se quisesse ficar com ele, que eu continuasse na área da educação. Ele já estava ficando irritado com as minhas tendências sexuais. Mas se quisesse partir para a literatura, podia ir conversar com o Gerardo, que ia gostar do projeto. Mas também fez um porém: “Não me traga os chatos dos poetas para falarem da própria obra, traga para falarem da obra de outros!” Aí eu procurei o Gerardo e ele abraçou o projeto. Então chamei as pessoas que achava legais, pesquisei. Falei com o Aloísio, que era maravilhoso e infelizmente já faleceu, mas na época tinha a Livraria Timbre e morava lá no Baixo Gávea, onde ficava bebericando o dia todo, e ele me ajudou a formatar o evento. Pensamos vários dias de projeto. As Terças Poéticas sempre tinham uma estrutura de duas pessoas conversando sobre poesia, e depois uma garotada recitando. Quem participou das Terças Poéticas? Muita gente. O próprio Gerardo. O João Cabral de Melo Neto, falando sobre si mesmo. Porque houve uma situação muito incômoda. Minha mãe estava casada com Rodol-

fo Sousa Dantas, que tinha sido casado com a filha do Vinicius e era diplomata, então bebericou muito com o Vinicius e, por ser diplomata, ficou amigo do João Cabral. Então minha mãe disse que eu não podia de maneira nenhuma chamar o João Cabral, que ia ficar irritadíssimo. Então chamei o Antonio Carlos Secchin para falar dele. E aí convidei a maravilhosa, mas não tão grande poeta, Marly de Oliveira, que estava casada com o João Cabral, para falar. Mas não é que no dia entra João Cabral pela porta? E ele falou sobre poesia. No último dia, consegui levar a Heloísa Buarque de Hollanda e ela fez as pazes com o Chacal. Eles falaram sobre a época definida como poesia marginal. Nesse dia feliz foi o Boato que participou, junto com outros poetas que até hoje a gente convive. E aí o Chacal viu aquilo tudo e queria continuar. Mas eu não. A responsabilidade de chamar gente importante para falar durante a tarde era muita. Não quis. Aí o Chacal falou de fazermos de noite. Fui conversar com o Tertulião dos Passos, que estava comandando a RioArte. Foi nesse momento em que o Carlos Emílio Corrêa Lima entrou em cena. Ele estava trabalhando como editor do Letras&Artes da RioArte, que ele fez se tornar um jornal amalucado e vanguardista, que ganhou até o prêmio APCA em São Paulo. E gostou muito do que viu nas Terças Poéticas, então ajudou no contato com o Tertulião. Depois, o Carlos Emílio espalhou que fundou o CEP 20.000, mas na verdade ele só ajudou nessa relação com a RioArte. E o Tertulião era muito ligado ao Marcelo e muito amigo da minha mãe. A participação do Carlos Emílio foi importante, mas não tanto. Então, ficou assim: o Chacal estava precisando de dinheiro. Já eu, mais uma vez de graça, queria criar ambiente, porque na Alemanha eu tinha decidido que seria basicamente homossexual, então lá vivi com os punks, no meio de ambientes maravilhosos, nem sempre com poesia, mas com muita música. Você estava em Berlim quando caiu o Muro?


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Não, foi antes. O Brizola seria candidato naquele ano, e voltei em final de setembro para fazer a campanha. No final de dezembro o Muro caiu. Em Berlim todo mundo se encontrava, os Verdes, os punks, era uma cidade muito livre. Qualquer um que com 17 anos não quisesse servir o exército ia para lá e ainda recebia um dinheiro para ficar morando. Todo mundo traumatizado porque o papai não falava da Segunda Guerra, e como não queria nem exército, nem serviço social, aquilo virou o que chamei no meu livro de “essa ilha chamada Berlim”. Era minha segunda grande viagem para o exterior. Um pouco antes, tinha voltado para o Brasil, para acabar o mestrado, e decidi me mandar novamente. Já havia tido várias experiências, ido para Índia, e resolvi escolher um lugar barato para fazer o doutorado. Mas em Berlim não tinha doutorado em inglês. Fiquei seis meses sem conseguir nada, a Universidade Livre de

tanto que continuo fazendo até hoje, é a junção de política e cultura, essa movimentação pela cidade, a circulação por esses ambientes. Na Alemanha o Partido Verde, que era mais progressista, desejava proibir carros de circularem por boa parte de Berlim. Eu era estrangeiro, pegava carona, parava os carros, mesmo à noite. Eles me davam carona para todo lugar. Então eu vi uma cidade grande funcionar com liberdade. Depois eu voltei lá e não é mais a mesma coisa, mas na época vi uma cidade mais libertária, até porque ela queria contrastar com a Alemanha do outro lado do Muro. Mesmo essa não era aquela desgraça toda que dizem. Muita gente tem saudade, especialmente os mais velhos. Mas era outra opção, muito desagradável, igual ao tempo da ditadura no Brasil. Voltando para a criação do CEP 20.000, você e o Tertuliano é que conseguiram o Sérgio

Quando o Brizola perdeu a eleição, eu percebi que na política real não ia dar mesmo. Sendo homossexual, não tinha jeito. Só se mentir. Mas vi que uma coisa que me agradava, ainda mais na verdade, tanto que continuo fazendo até hoje, é a junção de política e cultura, essa movimentação pela cidade, a circulação por esses ambientes. Berlim estava em greve e eu não conseguia aprender alemão, e decidi voltar para fazer a campanha do Brizola. Quando o Brizola perdeu a eleição, percebi que na política real não ia dar mesmo. Sendo homossexual, não tinha jeito. Só se mentir. Mas vi que uma coisa que me agradava, ainda mais na verdade,

Porto para abrigar o evento? O Teatro Sérgio Porto era considerado o patinho feio dos espaços culturais no Rio. Ele foi conseguido pelo Tunga, nos anos 1980, que propôs fazer algo como um espaço fantástico de arte contemporânea. Então, ele e o Waltércio Caldas fizeram uma exposição maravilho-

sa. E Darcy, junto com o Gerardo, que é pai do Tunga, conseguiu com o Marcelo Alencar a cessão do espaço que guardava a papelada da Secretaria Municipal de Educação, lá no Humaitá. Eu fui ao lançamento da exposição. Fui também à geração 1980 no Parque Lage. Mas o evento do Sérgio Porto foi lindo. E, quando precisávamos pensar um espaço para substituir as Terças Poéticas, eu me lembrei de lá. O Sérgio Porto era realmente visto como o patinho feio, com barulhos de chuva no teto de zinco, sem nenhuma estrutura. Era considerado uma caveira de bode. Mas o Chacal adorou o espaço e começamos a trabalhar. Eu saí distribuindo papel para a garotada toda... Para divulgar o evento. Sim. Quando começamos, já existiam à nossa volta todas as pessoas que tinham participado das Terças Poéticas. Já eram umas cinquenta pessoas, provavelmente. E o Baixo Gávea estava crescendo como ponto de encontro. Em 1987 já estava começando, quando saí do país. Quando voltei, em 1989, já estava fervendo. Em 1990, quando a gente começou o CEP 20.000, aquele ambiente já estava formado. Era 24 horas. Os nem-nems, os jovens que nem trabalhavam nem estudavam, passavam todo tempo lá. Você acha que o Plano Collor atingiu a turma do Baixo Gávea? Não!!! Ninguém tinha poupança. Era um ambiente muito próximo do que eu sentia em Berlim. Eu já tinha visto isso antes da Alemanha. Em 1978, eu vi um pouco do movimento punk na Inglaterra. Mas aí era mais careta. E tinha visto um lugar em Amsterdam, que hoje é mais formalizado, mas fui saber que havia sido criado pelos Provos em 1966, aquela turma que criou as bicicletas brancas. Já era uma resistência, uma criação de ambiente Provos. E era isso que me animava. E começamos a fazer o evento, que chamamos de Centro de Experimentação Poética. E, brincando com o número do CEP do Rio de Janeiro, incluímos o 20.000. No momento em que vocês criam o CEP, o Brasil está vivendo um período de escassez


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na cultura. Não havia eventos, nem mesmo livros de poesia nas estantes. Não tem quase ninguém publicando. Agora, vivemos o oposto, muito por consequência do CEP: temos dezenas de saraus de poesia no Rio de Janeiro, o Brasil publica 2 mil títulos novos de poesia por ano. Mas, em 1990, qual era a importância do CEP, da criação de um espaço livre de expressão para a juventude que queria fazer poesia? Foi muito importante, mesmo sabendo que no começou o CEP abrangia apenas da Zona Sul até Santa Teresa. Mas foi conquistando espaço com o tempo, porque quantos eventos vieram depois influenciados pelo CEP? Dezenas! De gente que ia ao CEP e aprendia a fazer. Em São Gonçalo, em Niterói. Depois, na comemoração dos dez anos do CEP, teve o CD encartado na Revista Trip, que repercutiu bastante. Mas a gente não teve um maior reconhecimento por causa

da RioArte, e queria ser vereador. E ele chegou para mim e disse: “Não pode ter maconha!” E eu disse: “Olha, isso eu não garanto. Quer ir lá na frente falar?” E ele deixou passar, porque sabia que não tinha como controlar. Eu já tinha falado com o Darcy sobre isso, que era preciso dar essa liberdade. O Darcy entendia. Quando rolou o festival de Águas Claras, em São Paulo, em 1983, eu fui lá e adorei, e então propus para o Darcy que a gente fizesse algo parecido no Rio. A gente pensou em fazer um Festival da Juventude, e chamou o Medina para conversar. Mas daí o desgramado do Medina fez o Rock’n’Rio. Águas Claras foi a coisa mais livre que eu tinha visto da vida. Foi uma loucura... Quais eram as bandas? Eram grandes. O festival era grande, numa fazenda. Chovia três dias, e era assim: se não agradou, laaaama! Laaama! Aí vinha a Wan-

Eu me defino como um borderliner, um fronteiriço. Não é que eu queira. É onde eu pude ficar. Eu gostaria de morar numa fazenda, ter meus filhos, minha mulher. Mas a minha natureza, a minha transformação que passou pela homossexualidade, me fez ir para onde eu me encaixava, que foi para a arte de escrever. das liberdades excessivas de comportamento. O que é uma caretice completa do meio cultural brasileiro. Pelo CEP ser totalmente livre, foi difícil de se manter politicamente. Mesmo no começo. Quando o Tertuliano chegou no primeiro dia, ele se assustou. Mas ele tinha vontades políticas. Era presidente

derleia, e queriam jogar na lama. E pediam calma, porque vinha o João Gilberto, o Fagner. Egberto Gismonti. Raul Seixas estava muito doente. Erasmão conseguiu segurar gente. Eu já tinha tomado ácido, estava com dez amigos, quinze, estava com a minha namorada. Você uma vez me falou que no Brasil logo

após a ditadura havia mais liberdade do que no Brasil anos 2000. 1979, 1980? Muito mais. Nós tivemos o Rock Brasil, as pessoas ainda acreditavam que o Brasil seria um país, não desenvolvido nesse termo que estão falando no governo atual, mas no sentido utópico. No caso do Darcy era socialismo moreno, mas em outros casos, não sei, vivia-se a ideia de uma realização associada, outros iam pensar na forma tradiconal Moderna. Mas todos pensavam em algo um pouco utópico. Ainda havia um sentimento que acabou com o neoliberalismo, com a globalização, que nunca que um bárbaro que vá invadir um império pode achar que o império exista. A gente chamava de alguma coisa, de “do mal”, de “desgraçados”, ou de “vamos entrar no poder para transformar o poder”, mas havia um desejo ali de mudança. Essa aceitação com naturalidade só surgiu nos anos 1990. A naturalidade de sonhar pouco. Isso foi se radicalizando até 2001, com o ataque das Torres Gêmeas. Aí que eu já estava desesperado. Foi quando eu conheci você e lançamos o Morrer. Eu achava que nada valia a pena nesse mundo. Sei lá de quê que eu estava tão puto. Mas em 2002 o Lula vence a eleição e reaparece alguma esperança. E você faz o Zombar... Aí já estava zombando demais. Zombei tanto que o santo me fez pegar AIDS. Toda vez que eu faço demais, acontece alguma coisa. O que é um pouco a situação grega do ficar cego. Ou eu quebro a perna, ou pego uma doença, ou arrebento as costas. Isso é do santo. Eu não quero ser um herói trágico. Eu me defino como um borderliner, um fronteiriço. Não é que eu queira. É onde eu pude ficar. Eu gostaria de morar numa fazenda, ter meus filhos, minha mulher. Não sei em que nível de libertário eu estaria se isso ocorresse, ou se estaria no poder mais establishment. Mas a minha natureza, a minha transformação que passou pela homossexualidade, que até hoje passa, me fez ir para onde eu me encaixava, que foi para a arte de escrever. Apesar de ser


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No início eu queria escrever romance, mas havia uma pressão interna no CEP pela plataforma poética como uma forma maior, e acabou que fui me deixando entrar na poesia. Lendo, pensando a poesia como expressão principal. Depois, já nos anos 2000, veio o pessoal das artes plásticas. Mas na verdade é tudo a mesma coisa. uma poesia sempre distanciada de um formalismo. No início eu queria escrever romance, mas havia uma pressão interna no CEP pela plataforma poética como uma forma maior, e acabou que fui me deixando entrar na poesia. Lendo, pensando a poesia como expressão principal. Depois, já nos anos 2000, veio o pessoal das artes plásticas. Mas na verdade é tudo a mesma coisa. Como o Marcos Faustini, que falou na entrevista que fizemos com ele que queria ser um vagabundo. Isso eu sempre soube também. Podia ser dentro do capitalismo, ou fora, eu sempre quis o igualitário e o vagabundo. Se eu tivesse uma fazenda, a propriedade podia ser até que eu gerisse melhor que os empregados, mas a diferença salarial teria que ser pequena. Você disse que o Darcy o considerava de direita. Você é contra a propriedade? Não, acho que as pessoas podem ter propriedade. Mas as relações humanas, muita gente detesta ser empreendedor, prefere um emprego, não se pode obrigar a todos a serem empreendedores. E a história da sua mãe? Ela passou por tudo. Pelo menos até 1974 sim. Entre 1959 e 1974. Ela se separou do meu pai em 1959, ti-

nha 28 ou 29 anos. Eu tinha dois anos, só fui ver meu pai com oito. Ele era um ser humano que escrevia e mandava presentes exóticos no mundo inteiro, mas eu não sabia quem era de verdade. Sempre tinha aquela empregada má em casa. Minha mãe não era de classe alta, e era desabutinada, então tinha aquela empregada que batia, que me apertava e ainda ficava dizendo: “ah, seu pai não é vivo!!!” Mas como chegavam os presentes, eu criava uma ideia de que esse pai era longínquo, e a mamãe era a super-heroína porque sempre convivendo com pessoas legais e perseguidas pela ditadura. Ela não pôde mais escrever com o nome dela durante a ditadura, assinar os textos, teve que ir inventando nome. Era jornalista, começou assinando Thereza Cesário Alvim, depois criou pseudônimo. A história de vida dela é forte. Ela nem terminou o segundo grau, já frequentava a PUC, que estava começando, com Raquel Jardim, Álvaro Americano e sua turma. E daí é uma história longa, porque a família da minha mãe tinha apartamento em Paris e ela passava temporadas lá. E acabou se casando com meu pai, que era fazendeiro, mas vendeu uma ideia totalmente errada. Em Paris ele gastava que nem um louco, e vendeu a ideia para ela de que estava bem de vida, mas já estava per-

dendo muito dinheiro. Ela achando que ele era boa vida, uma fazenda do nível da família Prado, e não. Era uma fazenda com uma dureza boa, mas uma solidão terrível. Aí ela exigiu que o papai mudasse para São Paulo. Isso dificultou. Ele era um jovem, casou com 26 anos, essa movimentação foi penosa, porque ela exigia um nível de vida muito alto. Já que casou com um grego que era rico, exigia um nível de vida condizente. Sei que deu tudo errado, e ela aproveitou que ele teve que ir embora do Brasil, por vários motivos, e falou: “não, vou voltar para o Rio”. E a família dele falou: “Se ficarem em São Paulo vão ter tudo o que quiserem, no Rio terão o mínimo”. Muito bem, ela aceitou o mínimo. E começou a trabalhar. Logo, poucos meses depois, ela faz uma tradução do Sartre. Aí já foi chamada pelo pessoal de teatro. Era uma jovem bem de vida, bem posicionada, de uma família com um lado moderno. Era tia da Miúcha, que tinha quase a mesma idade. E foi entrando no grupo de teatro, começou a namorar o Paulo Francis, que botou ela para escrever na revista Senhor. Depois ele não quis mais fazer crítica de teatro na Última Hora, e chamou ela. Ela não quis, porque achava que conhecia pouco de teatro, mas o Samuel Wainer foi educadíssimo num sentido progressista e falou: mas nós queremos uma opinião assim, de uma pessoa que tem bom gosto, você fica substituindo o Paulo Francis, mas não precisa saber de teatro. E depois ela entrou para a parte de política. E daí teve o golpe, e ela começou a escrever contra a ditadura. Em 1973, ela fez a Folha de Eva, o primeiro jornal feminista. Ela vinha bebendo menos, sempre bastante, mas nem tanto quanto antes. Ela sempre bebia muito. Mas sempre tinha projetos. Antes, ela tentou fazer um jornal com Sebastião Nery, Jorge Miranda Jordão, que ela namorou depois do Paulo Francis, gente de resistência. O Juscelino não quis bancar o jornal, que se chamaria Urgente. Isso ainda na frente ampla, 1966. Ou já depois de 1968, e por isso que não quis bancar. O Folha de Eva era de


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uma modernidade incrível. O desenho era da Marta Alencar, mulher do Hugo Carvana. Só que o pessoal do Pasquim, que era mais inteligente em termos de marketing, falou: “Nós temos que criar uma briga, senão o jornal não vai aguentar”. Eram amigos dela. Ela ficou ofendida com a ideia de uma briga falsa entre o Pasquim, que tinha fama de machista, e o Folha de Eva, para consolidar um jornal feminista. Achava que existia espaço para a mulher. Fizeram achando que o

va mesmo num Brasil grande, mas grande e libertário. E fui fazer economia. Aos 18 anos não, era um deslumbre, porque, ah, ele tinha uma fazenda imensa e eu fui tentando me aproximar e não conseguia. Era sempre confuso, louco, louco, louco. E fui me afastando, como toda a família. Porque ele não convivia, era difícil. Ele, desconfiando que eu era gay, já queria me deserdar. E me considerava um vagabundo. Agora, eu não ia para empresa privada para receber pouco, e não cabia na

Eu, infelizmente, por não achar um espaço sentimental que me agrade, ando muito com gente que também está na beira. Isso desde sempre. Eu não acho que isso seja motivo, nem isso que estou contando sobre a minha família. Claro que eu não deixo de ser confessional. Mas tenho que mentir, senão não traz literatura. Tem que ter as máscaras. jornal ia vender... Acho que isso contribuiu muito para ela... Foi o último ato de rebeldia. Depois ela até fez outras, mas já estava um pouco enlouquecida, não de loucuras, mas sem forma. E seu pai? Quando eu o conheci, comecei a admirá-lo, a achar ele um máximo. Mas ele admirava a ditadura, e não dava para admirar a ditadura. Mas eu podia admirar o Brasil grande que a ditadura propunha. Ele acusava a esquerda de festiva! Eu via a resistência, levava a sério, sabia que as pessoas eram importantes. Mas hoje, depois de ler a Odisseia, eu era uma espécie de Telêmaco entre os dois. E acredita-

política. Onde podia ficar? Ou na universidade ou na arte de rua. E a arte de rua foi o que primeiro me pegou. Esses temas todos permeiam a sua escrita, embora você diga que ela não é autobiográfica. Não é totalmente autobiográfica. Eu não vou ficar choramingando. No caso, o Morrer foi o livro mais autobiográfico que eu fiz. No livro mais recente tem algumas coisas, mas minha vida mesmo é muito mais barra pesada do que meus escritos, e eu não vou escrever essa barra pesada toda. Nunca escrevi. Escrevi talvez um pouquinho do segundo livro, Paulinho, um negócio intenso de garo-

to, mas já era distanciado. Eu, infelizmente, por não achar um espaço sentimental que me agrade, ando muito com gente que também está na beira. Isso desde sempre. Eu não acho que isso seja motivo, nem isso que estou contando sobre a minha família. Claro que eu não deixo de ser confessional. Mas tenho que mentir, senão não traz literatura. Tem que ter as máscaras. O Silviano já falava no início do CEP: “Se você trouxer os seus sentimentos reais sem a estética, sem a mentira, você está fazendo carta para a namorada, ou carta para a posteridade, institucional para quando morrer?” Eu acho que o escritor tem que ser feito de mentira. Ou, o caso da Beat Generation. Mas a gente nem chegou a isso no Brasil, escrever a realidade, Bukowski. A genialidade do Allen Ginsberg. Mas não acho que a literatura passe por aí não. O texto tem a marca da sua vida. Mas se está marcando demais, sai dela. Inventa! Vive mais feliz na literatura do que está sendo na realidade. Em vez de trazer mais choro, traz mais alegria. Vai bater sempre um pouco no Morrer, meio fora da curva. Mas foi você e o Ericson Pires que disseram: “Guilherme, isso é um livro”. Eu estava achando muito autobiográfico, geralmente eu fujo. Mas faço o caminho, principalmente nessa época, sem a linguagem do eu. Porque nos anos 1970 minha mãe falava: “quem escreve ‘eu’ não sabe escrever”. Mesmo tendo alguns caras bons, inclusive eu tenho impressão que, por exemplo, o Menino de engenho é uma boa escrita que está mentindo. Agora, Insônia, que é do maravilhoso Graça, eu tenho a impressão que é na primeira pessoa. Mas como jornalista dos anos 1970, não só ela, muitas pessoas falavam que é muito mais fácil escrever com o eu, e quem escrevia com o eu escrevia com menos força. Por isso que quando eu não aguentei mais ali, que foi o Morrer, antes é lírico, tem um eu. Ele bate na potência, mas a potência da escrita vem do estômago, quando já foi digerida muita coisa, não é dos poros. Fumaça de rua, falta de toque, não. Tem que ser outras pessoas, mas pouca gente escreveu na primeira pessoa bem.


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Tem uma pesquisa difundida agora que 90% dos protagonistas da literatura brasileira atual são brancos, de classe média, jornalistas e tal. É a elite, da qual a princípio fazemos parte. E ao mesmo tempo, eu não me sinto representado pela literatura brasileira contemporânea... Elite sim, mas vamos falar dos humanistas. Elite do saber pelo menos. Aqui eu volto à questão que Ericson Pires colocava. Você é neguinho? Você é amigo de quem? Quer dizer, há uma literatura onde ainda são os humanistas falando em nome de classes de emergência, mas já tem os intelectuais vindo da classe de emergência se expressando. Você, eu e mais várias pessoas vivemos coisas que não estão aí. Não somos da classe dominante, não somos paupérrimos. Nosso termo é a liberdade, é a libertação. Acho que a literatura só vai ser boa quando misturar. Mas tem que ter escritores que não têm dinheiro, mas podem escrever. Não precisa escolher porque mora na favela. Quando der dinheiro cultural aleatório aí vai aparecer. Outro dia ouvi, acho que foi o Claufe Rodrigues na TV, que disse que o ato de ler um livro em papel tornou-se um pouco subversivo. A leitura e o pensamento. Falando em pensamento, antes de você sair do CEP, você tinha a proposta de uma plataforma dentro do projeto voltada para a reflexão, o CEPensamento. Você sempre teve essa preocupação com a ausência de espaços de reflexão no Rio de Janeiro. Como está vendo isso? A gente conseguiu sair do nada e criar o jornal Atual – o último jornal da Terra segunda dentição. O que seria impossível antes das manifestações de junho. Como seria impossível o Congresso aprovar 75% para a Educação, 25% para a Saúde se não fosse essa movimentação. Ela ganhou um tipo de alegria, de utopia, mesmo que a gente não saiba se vai dar tudo errado. Aí é o que estou chamando de “me dê motivo”, não importa mais se vai dar certo ou não. Se a tendência do mundo é vivermos cada vez mais em cidades, é claro que,

sim, uma cidade que nem Berlim, que nem Paris, não vai haver dinheiro para tudo isso. Então, eu vejo infelizmente uma sociedade de consumo, onde os subversivos devem ser apenas 2% da população. Você falava em 5 mil leitores no Brasil. Eu sempre achei esse número pouco, agora sabemos que é muito mais – com as manifestações de dezenas de milhares de pessoas, que devem estar dispostas a ler coisas interessantes. É preciso criar um jeito de produzir e distribuir livro para essas pessoas. Tem que ter projeto. Se quiser fazer sozinho, faça. Mas tem que ter projeto de estado também. Não essa pão-durice, que parece raiva dos editores livres, dos escritores livres. Não tem mais análise literária, a gente tem que resistir. Eu pessoalmente estou com 57 anos, não vou ficar pensando em como o mundo vai ser daqui a 50 anos. Não tenho a menor ideia, e

nem tenho o compromisso político que eu tinha aos 30, aos 20, aos 7 anos de idade com um país que ia dar certo. O Darcy inventou esse bordão. Não. Agora é estar junto com um grupo legal que esteja pensando. Parar também de chamar essa juventude narcisista para as coisas e escrever os meus livros, tentar conseguir uma escola que me deixe dar aula. Eu não quero dar aula o dia inteiro, vira uma confusão. Sou doutor, mas não há lugar para alguém como eu dar aula. Passar da universidade com escrita criativa? Tudo tem que ser formal, entrar no sistema. Se é federal não adianta fazer isso. Se é particular vão dizer que você está atrapalhando, a burrice impera. A gente tem que resistir e agir. Quem sabe o mundo no futuro não possa ser melhor? Quem sabe?


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deixa a gira girá

Bixiga 70

Vendo o show do Bixiga 70 no Circo Voador, é impossível não se lembrar da definição de arte por Mário Pedrosa: “alegria de criar, alegria de viver”. Acima de tudo, o que fica evidente no palco é o prazer dos músicos de estarem juntos tocando, dançando, celebrando. Cada arranjo, cada improviso é fruto desse encontro prazeroso de dez músicos da nova cena paulista, ocorrido três anos atrás. Em conversa no camarim, pouco antes do show, os músicos contaram e refletiram sobre a trajetória da banda. Mantendo o tom do Bixiga 70, as aspas são coletivas. “Todos nós já nos conhecíamos antes de tocar no Bixiga 70, bastante em função do Estúdio Traquitana, que virou um polo aglutinador da cena musical que despontou em São Paulo nos últimos anos. O estúdio fica no bairro do Bexiga, na rua 13 de Maio, 70, e existe desde 2009, dirigido por Cris Scabello e o Décio 7. A gente produziu lá discos do Leo Cavalcanti, Pipo Pegoraro e mais recentemente o disco da Alzira E. O estúdio também sempre foi um espaço de ensaios e encontros de vários trabalhos paralelos. Já passaram pelo Traquitana Anelis Assunção, Curumim, Karina Buhr, Ganja Man, músicos que fazem parte dessa mesma cena que a gente faz parte”. Segundo eles, todos esses músicos trazem em comum uma liberdade criativa que os aproximam da Lira Paulistana, surgida trinta anos antes: “A nossa cena é marcada pela liberdade de trabalhar com a música sem se preocupar com o que o mercado está ditando. É o lado positivo de não existir mais a possibilidade de atingir grandes sucessos de público. A gente pode se permitir experiências mais ousadas de composições e arranjos. Não temos uma preocupação em agradar o público geral. Nesse sentido, acho que nos aproximamos da turma da Lira. E assim como eles fazemos um trabalho colaborativo. Todo mundo toca junto, compõe, convive. Não há competição”. Foi em 2010 que a banda realmente começou a se reunir. “O Décio 7, que é o baterista da trupe, foi quem começou a juntar a turma. Ele saiu catando os músicos, que tinham em comum a ligação com a música africana, o jazz, o soul, reggae, o dub, com a ideia de uma big band instrumental. O Décio 7, junto com o Rômulo Nardes, que toca percussão, já haviam até acompanhado a Fanta Konate, que é uma importante música de malinké, o ritmo do Guiné. Então nós já começamos pensando bastante em arranjos que valorizassem a riqueza rítmica. E logo nos primeiros ensaios, quando estávamos montando o repertório, fomos convidados para tocar na Festa Fela, que rola todo ano para celebrar o aniversário do Fela Kuti, que é no dia 15 de outubro. Então a gente correu para montar um repertório para apresentar na festa, e chamou o grupo de Bixiga 70, em homenagem ao Africa 70, o grupo que acompanhava o Fela. E a partir desse momento a gente nunca mais parou”. Com dois discos já lançados, Bixiga 70 já mostrou que vai muito além da retomada do Afrobeat. Os arranjos sofisticados e as referências sonoras abrangem uma pesquisa muito mais profunda de estilos musicais, especialmente no segundo disco, onde a música brasileira ganhou maior espaço. “Tem a presença de Tincoãs, de quem regravamos ‘Deixa a gira girá’ e Moacir fotos: Nicole Heiniger


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Santos, por exemplo. Mas a principal diferença do segundo disco é a tentativa de captar o estilo de som que fazemos ao vivo, com mais pegada, com mais punch. Isso foi resultado da experiência que tivemos depois do disco de estreia. Foram mais de cem shows entre os dois discos”. Circulando em shows pelo Brasil e Europa, a banda tem conseguido encontrar seu público. O que não é tarefa fácil: “Com a parada de ter dispersado os fomentadores, com o fim das gravadoras, todo mundo se apropriou do seu próprio trabalho. Então é uma cena imensa de pessoas produzindo sem ter que passar pelo crivo de uma força superior, que não existe mais. O que é muito bom, porque permite que mui-

tamente nosso público, com as redes sociais e com as nossas relações pessoais. A gente eliminou vários intermediários com isso. O gerenciamento do Bixiga 70 é feito por nós mesmos, e sem ser necessariamente voltado para os grandes meios de comunicação. A gente está muito mais interessado nessa relação direta com o público do que depender dos grandes meios de comunicação”. Seguindo esse caminho, a experiência do Bixiga 70

A principal diferença do segundo disco é a tentativa de captar o estilo de som que fazemos ao vivo, com mais pegada, com mais punch. Isso foi resultado da experiência que tivemos depois do disco de estreia. Foram mais de cem shows entre os dois discos. ta coisa interessante surja. Mas depois fica todo mundo batendo cabeça para encontrar o rumo do seu produto, porque não existe mais os canais tradicionais de distribuição. Se você faz certo tipo de som, tem que conseguir que ele chegue ao público que você acredita que é interessado nesse tipo de música. Esse é o ponto. Se conseguir isso, terá maior visibilidade, pode conseguir respirar, ter um público pequeno mas fiel. Mas é uma cena gigantesca, e que não conta com nenhum meio divulgador”. As questões cotidianas se multiplicaram no gerenciamento de uma banda após o fim das gravadoras. Agora, os músicos precisam cumprir diversas funções, de produção à assessoria de imprensa, que antes possuíam profissionais especializados nas grandes empresas. De saber prensar e distribuir o seu próprio disco a se relacionar com a mídia, o Bixiga 70 aprendeu a lidar internamente com essas demandas: “Na divisão da tarefa, ajuda bastante sermos dez. Tem cara que cuida do agendamento do show, outro que cuida do mapa do palco, outro da comunicação e redes sociais, envio de discos, manutenção de sites. Em torno de uma banda existem mil funções, e é importante saber dividir e administrar essas demandas. Mas não somos só nós. O Bixiga 70 conta com profissionais além dos músicos, como a Verdura Produções, que é a nossa produção executiva, e a Pessoa Produtora, que cuida da venda de shows. Mas nós somos cara de pau, todos temos mais de uma década de estrada na música, e aprendemos a lidar com as tarefas, por necessidade”. A relação com a mídia e o público é pensada internamente pela banda: “A nossa principal maneira de trabalhar é tentar antigir dire-

vai na contramão dos que afirmam apenas o fechamento de espaço para a reflexão crítica no Brasil atual: “A resposta em relação aos discos é surpreendente. Saiu muita coisa em blogs e jornais, no Brasil inteiro, e é fantástico ver que as pessoas estão interessadas e pensando a música com profundidade. Muitas vezes a gente lê as pessoas escrevendo coisas que a gente conversava internamente, e que nunca expressou publicamente, o que mostra que elas sacaram o que a gente está fazendo. Nos interessa muito mais falar com veículos independentes, que dialogam com um público mais proativo, do que atingir um grande número de pessoas passivas por um veículo mais tradicional”. Essa relação de trabalho horizontal, com todos atuando ativamente, acontece também no processo criativo da banda e se reflete no palco. Todos participam dos arranjos e composições, contribuindo com ideias e sugestões. O resultado disso pode ser visto nos discos e no nos shows do Bixiga 70, um dos mais vibrantes e criativas em atividade.


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foto: Nicole Heiniger

Bixiga 70 Décio 7 (Bateria) Douglas Antunes (Trombone) Cris Scabello (Guitarra) Marcelo Dworecki (Baixo) Cuca Ferreira (Sax Barítono) Daniel Gralha (Trompete) Maurício Fleury (Teclado e Guitarra) Rômulo Nardes (Percussão) Daniel Nogueira (Sax Tenor) Gustávo Cék (Percussão)


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Vozes&Visões

a resistência da poesia brasileira Renato Rezende

Em O destino da pintura moderna, o crítico britânico Herbert Read assinala as mudanças da estrutura econômica da sociedade nos últimos três séculos, que fez com que o mecenato desaparecesse, e ironiza a então demanda dos artistas plásticos por um patrocínio estatal: “Não vejo qualquer diferença cívica entre o poeta e o pintor: cada um deles expressa individualmente uma visão, que pode ter ou não uma grande importância social; num dos casos, porém, a sociedade pode impunemente ignorar a criação, e no outro é agora compelida a aceitá-la e a pagar por ela um preço, com o dinheiro do próprio rendimento público”. Seria interessante, a partir dessa observação, comparar o circuito das artes visuais contemporâneas com o da poesia contemporânea no Brasil. Em ambos, existe a versatilidade dos papéis do artista, em ambos a distância entre a obra de arte e o “grande público”, mas, no caso da poesia, uma falta fundamental: não há mercado, não há retorno financeiro, não há verdadeira circulação. Para além das questões econômicas ligadas aos mecanismos financeiros da arte contemporânea, atados ao ultracapitalismo, o crítico e curador paulista Teixeira Coelho, no artigo “A contemporaneidade comum”, levanta a hipótese de que as artes visuais brasileiras só ganharam terreno e prestígio no circuito internacional da arte contemporânea depois de terem desistido do conceito de identidade, de brasilidade; em suma, depois de terem aberto mão do projeto nacional do modernismo.

Teria a poesia brasileira, que desde os seus primórdios e até recentemente (até o modernismo), lidava também principalmente com a construção de uma identidade nacional, perdido o público interno depois de ter, no mesmo movimento, abandonado essa questão e passado a majoritalmente versar sobre a própria linguagem e a rede tecida pela literatura? Por outro lado, talvez o que mais tenha contribuído para a poesia brasileira em termos de popularização e divulgação no século 20 tenha sido as gravações feitas por nossos músicos e compositores, possivelmente os verdadeiros herdeiros e parceiros dessa forte tradição, já no contexto da indústria cultural. Curiosamente, a canção popular brasileira nunca precisou se preocupar com a questão da procura ou da formação de uma identidade nacional, por ser, desde o início – e sem poder deixar de sê-lo – intrinsecamente brasileira, devido ao seu caráter e origem fundamental e irredutivelmente popular. Teria a canção, principalmente depois da difusão em massa de discos e cds, e do seu apogeu a partir da bossa nova e, logo a seguir, do tropicalismo, tomado para si a função de debater o país e suas mazelas enquanto que a poesia (e também as artes visuais) se tornava mais cosmopolita, mais voltada às questões da própria linguagem, e mais removida da “realidade”? Para Affonso Romano de Sant’Anna – um crítico ferrenho e nem sempre lúcido da arte contemporânea, mas frequentemente um arguto pensador da cultura –, o duplo fenômeno da proliferação dos poetas e da diminuição da circulação da poesia é global. Em seu estudo “O desemprego do poeta”, ARS afirma que “a história do poeta enquanto indivíduo social é a história de seu desemprego”, devido aos “fatores da vida moderna que vieram lhe alterar a função dentro da nossa sociedade burguesa”. Discordando de João Cabral de Melo Neto, que no Congresso de Poesia de São Paulo, em 1954, havia identificado o recuo da importância social da poesia na incapacidade dos poetas de valorizar e dominar os meios de comunicação em massa, como o rádio e a TV, para a criação e a disseminação de seus poemas, Romano de Sant’Anna acredita que o problema não está nem na poesia nem nos poetas, mas na própria sociedade capitalista burguesa, que


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tudo industrializa e transforma em capital e trabalho – tudo, menos a poesia, que, devido à sua própria natureza, resiste a este processo e, desta forma, teria se alienado do sistema e se tornado uma atividade socialmente intransitiva. Seja como for, como a poesia poderia resistir, em termos de linguagem, de contribuição ao diálogo e de lugar para reflexão? Para Jean-Luc Nancy, em ensaio justamente intitulado “Resistência da poesia”, “é preciso contar com a poesia”, mesmo se “poesia” não sig-

realidade, ou seja, vida e linguagem) e esvaziam radicalmente o dispositivo canônico da “literatura”. Importa, portanto, para a poesia, não mais transmitir noções sobre a vida, mas promover formas de vida. Vivemos uma época marcada pela instabilidade e por incertezas que, para o bem e para o mal, dissolvem fronteiras, abalam es-

A meu ver, a poesia contemporânea brasileira se mantém atual e potente ao desguarnecer as fronteiras que a separam, por um lado, de disciplinas como a política e a filosofia e, por outro, ao expandir o conceito de poema para incluir novos meios e suportes, além de aumentar seu corpus ao incluir em sua tradição linhagens esquecidas ou desdenhadas. nifique o poema, tradicionalmente compreendido como tal, mesmo ela se mantenha algo indeterminável. Talvez seja justamente para resistir e prosseguir resistindo que a poesia deva, no contemporâneo, abrir mão de seus suportes, narrativas, discursos e linhagens pré-estabelecidos pelo cânone. Talvez seja possível pensar a poesia, desde suas origens remotas à atualidade das mídias digitais, como uma disponibilidade à intermedialidade, à alteridade e à tradução, sendo, portanto, fundamental investigar suas bordas, suas zonas de passagens, transporte e trocas com outros discursos disciplinares, culturais e midiáticos. Para Nancy, a poesia insiste e resiste por um lado, ao discurso e, por outro, ao manter vivo, latejando, insistindo, aquilo que não pode ser capturado pelo discurso, aquilo que “anuncia ou contém mais do que a língua”. Poderíamos, aqui, talvez aproximar tais ideias de resistência e expansão da compreensão do ato literário (e poético) do que, mais próxima de nós, propõe Josefina Ludmer: “escrituras [que] não admitem leituras literárias; isso quer dizer que não se sabe ou não importa se são ou não são literatura”. Para a crítica argentina, tais escrituras, que ela denomina de ‘pós-autônomas’, embora continuem sendo apresentadas como literárias, permeiam o campo social constituído pela imaginação pública (fundindo ficção e

truturas, unem águas profundas e rasas, misturam, produzem o informe e o inaudito. É preciso dar sentido e significado àquilo que nos invade, que nos desafia e nos atormenta; ainda que, sempre, algo disso nos escapará – é preciso fazer desse resto, ou melhor, desse excesso, uma possibilidade de linguagem, um risco. É preciso, portanto, enfrentar a escuridão e as contradições do nosso tempo, identificar outras chaves de leitura e novas brechas e bordas para pensar a nossa poesia. A meu ver, a poesia contemporânea brasileira se mantém atual e potente ao desguarnecer as fronteiras que a separam, por um lado, de disciplinas como a política e a filosofia e, por outro, ao expandir o conceito de poema para incluir novos meios e suportes, além de aumentar seu corpus ao incluir em sua tradição linhagens esquecidas ou desdenhadas.


Rafael Campos Rocha




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