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Coordenação geral Didi Rezende Editores Afonso Luz Sergio Cohn Editor de arte Tiago Gonçalves Imagem da capa César Oiticica Filho Produção Tay Lopes Revisão Evelyn Rocha Barbara Ribeiro Tiragem 20 mil exemplares Contato editorial@azougue.com.br Número 5 | dezembro de 2013 ISSN: 2318-1192

Caro leitor, a NAU segue seu roteiro de proposições, navegando pelo oceano bravio do contemporâneo. Nesse quinto número de NAU, começamos com um texto sobre universidades livres, retomando desde a maravilhosa proposta da Universidade Popular de Ensino Livre, de 1904, até as propostas que estão arejando as pedagogias no novo milênio. Pensando também as questões educacionais contemporâneas apresentamos um relato crítico sobre o primeiro Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, ocorrido em setembro deste ano. O entrevistado é Mario Bortolotto. Dramaturgo, ator, escritor, boêmio, Bortolotto é, sem dúvida, uma das figuras mais emblemáticas do atual cenário cultural brasileiro, criando possibilidades de linguagem e convivência. O pôster central é um poema de Thiago E., poeta da nova geração, agitador cultural de primeira. Em Vozes&Visões, o remix de um ensaio já antológico de Alberto Pucheu, “Pelo colorido, para além do cinzento”, reflexão primorosa sobre o diálogo entre crítica e criação poética. Por fim, seguimos singrando os mares ao lado de Caronte, a barqueira do amor, do grande Rafael Campos Rocha. Boa navegação!

Sumário Universidades livres Pôster | Thiago E. Entrevista | Mario Bortolotto 1º Encontro Nacional de Estudantes Indígenas Vozes&Visões | Pelo colorido para além do cinzento Caronte | por Rafael Campos Rocha

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< Texto sobre a Universidade Popular d’Ensino Livre na revista Kultur, em 1904.

universidades livres

Em 24 de julho de 1904, foi criada, no Rio de Janeiro, a Universidade Popular d’ Ensino Livre. Com uma proposta pedagógica libertária e buscando ampliar o alcance da educação nacional para além das classes altas, a UPdEL reuniu em seu corpo docente uma equipe impressionante. No ato de inauguração, quem teve a palavra foi o médico e militante anarquista Fábio Luz. Um texto sobre a Universidade foi reproduzido na revista Kultur, editada pelo poeta simbolista e futuro agitador modernista Elysio de Carvalho. Além deles, nomes como José Veríssimo, Evaristo de Moraes e Silvio Romero faziam parte do primeiro quadro letivo. A universidade era dotada de uma biblioteca, além de consultório médico, livraria, consultório jurídico e um museu social. Aconteciam ali cursos de filosofia, história natural, higiene, geografia, línguas, aritmética, arte decorativa, mecânica, dentre outros. A UPdEL tinha como objetivo, segundo o texto da Kultur, “a instrução superior e positiva e, sobretudo, a instrução daqueles que a burguesia condenou ao ostracismo. O plano da U.P. é muito vasto e abrange todos os meios capazes de contribuir à educação dos sentimentos e a cultura das inteligências do humano ser. Ela tem por fim: organização dum curso d’ensino superior de acordo com a ciência moderna, criação duma biblioteca e dum museu social, realização de conferências públicas sobre os mais importantes assuntos sociais, organização de representações d’arte social, excursões científicas, artísticas e expansivas, concertos, festas campestres, etc., criação de uma revista que seja o órgão da universidade, em resumo, fundação dum centro popular tendo por fim às vezes o prazer e a instrução – e a união moral entre os seus cooperadores. A U.P. será profundamente tolerante: não excluirá ninguém do seu seio, pois deseja estabelecer uma união necessária entre os que pensam e os que trabalham”. O surgimento de uma Universidade Popular com perfil livre naquele momento do país não foi acidental. Segundo o pesquisador

Silvio Gallo: “Foram inúmeras as experiências de pedagogia libertária no Brasil, concentradas principalmente entre as décadas de 1890 e 1920, em muitas cidades do país, em especial nos maiores centros urbanos, mais industrializados e com um movimento operário e sindical organizado. Cito apenas algumas dessas experiências, a título de exemplo, com suas respectivas datas de surgimento: Escola União Operária (Rio Grande do Sul, 1895); Escola Sociedade Internacional (Santos, 1904); Escola Libertária Germinal (São Paulo, 1903); Escola Livre da Liga Operária (Campinas, 1904); Escola Moderna nº 1 e nº 2 (São Paulo, 1909); Escola da União Operária de Franca (1910); Escola Operária 1º de Maio (Rio de Janeiro, 1912); Escola Moderna de Petrópolis (1913); Escola Operária de Pernambuco (1914)”. E o que é a pedagogia libertária? Segundo Gallo, “Podemos caracterizar a pedagogia libertária, de modo muito geral, em duas frentes articuladas: de um lado, o pensamento educacional anarquista, em suas muitas vertentes, compreendendo desde os discursos de afirmação da escola como instituição a ser repensada, até os discursos que negam a possibilidade de se fazer, na escola, uma prática educacional libertária, bem como suas propostas de educação fora do âmbito formal da escola, através da imprensa, do


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“Podemos caracterizar a pedagogia libertária, de modo muito geral, em duas frentes articuladas: de um lado, o pensamento educacional anarquista, em suas muitas vertentes, compreendendo desde os discursos de afirmação da escola como instituição a ser repensada, até os discursos que negam a possibilidade de se fazer, na escola, uma prática educacional libertária, bem como suas propostas de educação fora do âmbito formal da escola, através da imprensa, do teatro etc. De outro lado, podemos identificar como pedagogia libertária as experiências pedagógicas levadas a cabo por indivíduos ou coletivos anarquistas”. (Silvio Gallo)

teatro etc. De outro lado, podemos identificar como pedagogia libertária as experiências pedagógicas levadas a cabo por indivíduos ou coletivos anarquistas, dentre as quais podemos destacar, em termos históricos: a experiência de Paul Robin na direção do Orfanato Prévost em Cempuis, na França, entre 1880 e 1894; a criação da comunidade-escola de La Ruche, por Sébastien Faure, também na França, tendo funcionado entre 1904 e 1917; a Escuela Moderna de Barcelona, criada por Francesc Ferrer i Guàrdia, tendo funcionado entre 1901 e 1905. Para um exemplo contemporâneo, podemos citar o Centro Educativo Paideia, em funcionamento na cidade de Mérida, Espanha, desde 1978. É evidente que não podemos separar o que chamei anteriormente de ‘pensamento educacional anarquista’ das experiências pedagógicas libertárias, na medida em que cada um destes âmbitos só é possível através do outro. Por exemplo, é bastante interessante ler o relato escrito por Robin de seus anos na administração do orfanato em Cempuis: ele parte dos conceitos e teses de uma ‘educação integral’ formulados e defendidos nos Congressos Operários promovidos pela Associação Internacional dos Trabalhadores, mas na medida em que põe em prática uma educação calcada nestes conceitos e princípios, os próprios conceitos vão se modificando e se consolidando através da prática cotidiana. A pedagogia libertária, assim, é necessariamente um pensamento-ação no campo da educação. O anarquismo é um campo plural e múltiplo; neste aspecto, é mais apropriado falarmos em ‘anarquismos’, sempre no plural. E isso se estende pela pedagogia: o mais interessante seria falarmos em ‘pedagogias libertárias’ e diversas são as perspectivas e tendências que encontramos. Para entender a pedagogia libertária, penso que é necessário nos situarmos na perspectiva mais coletivista do anarquismo, com forte inspiração de Mikhail Bakunin, que vai defender de forma intransigente a liberdade como um fator social, uma construção coletiva, não como uma característica natural do indivíduo. Na direção de uma educação orientada pela liberdade como característica natural do indivíduo, teríamos aquilo que Rousseau chamou, em Emílio, ou da Educação, de uma ‘educação negativa’: quanto menos se interfere, melhor para a formação de uma criança. No nosso caso, de uma pedagogia libertária de orientação coletivista, o processo é distinto. Não se compreende a criança como livre por natureza, mas como alguém que precisa aprender a ser livre, que precisa conquistar coletivamente essa liberdade que não é apenas sua, mas também de cada um de seus colegas. As escolas anarquistas que se orientaram – ou se orientam – por essa perspectiva, procuraram construir aquilo que Robin denominou de uma ‘educação moral’, isso é, a organização da vivência coletiva na escola orientada para a construção da liberdade e da solidariedade, princípios fundamentais para os anarquistas. Assim, havia todo um


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cuidado nas relações travadas entre os alunos e os demais membros da comunidade escolar (professores e demais profissionais) e entre os próprios alunos. Nos jogos coletivos, era privilegiada a solidariedade. Os conflitos que ocorriam no cotidiano eram discutidos coletivamente, buscando a construção de seu enfrentamento e superação. Nessa prática, era comum a realização de assembleias periódicas, com a participação de toda a comunidade escolar”. É curioso pensar que as mudanças de séculos parecem um período propício para as iniciativas livres na pedagogia no Brasil. Após a efervescência do começo do século XX, o país viveu um período menos afeito a iniciativas alternativas no campo educacional. Em parte pelos ares políticos, em parte por ser a época das consolidações das nossas grandes universidades. Se ocorreram algumas propostas de grande valor, como a criação da Universidade de Brasília por Darcy Ribeiro em 1962, e o belíssimo período da Universidade Federal da Bahia entre o fim da década de 1950 e começo da década de 1960, na mão do reitor Edgard Santos, foram poucas dentro da consolidação de projetos tradicionais de ensino que foram se consagrando em território nacional. A Universidade de Brasília buscava a criação de um repertório e de métodos mais próximos da nossa realidade, visando a autonomia do país. Segundo Darcy Ribeiro, “Por muitos anos estivemos na condição dos índios xavantes, que, ao aprenderem a utilizar machados de aço, não mais puderam prescindir deles e se viram atados a seus fornecedores. Agora que já produzimos aço, telefones, penicilina e com isto muito acrescentamos à nossa autonomia, caímos em novo risco de subordinação, representada pela dependência de normas e de saber técnico. Só seremos realmente autônomos quando a renovação das fábricas aqui instaladas se fizer pela nossa técnica, segundo procedimentos surgidos do estudo de nossas matérias-primas e das nossas condições peculiares de produção e de consumo”. Assim como a Universidade de Brasília, a UFBA de Edgard Santos buscou a renovação dentro das estruturas tradicionais acadêmicas. Em Salvador, Santos conseguiu reunir uma equipe plural de professores e colaboradores que influiu profundamente na gestação de alguns dos grandes movimentos de renovação da cultura brasileira da época, como o cinema novo e a Tropicália. A UFBA reuniu, no seu período áureo, nomes como a arquiteta e designer italiana Lina Bo Bardi (na direção do Museu de Arte Moderna da Bahia, mas trabalhando em sintonia com a Universidade), o diretor de teatro Martim Gonçalves, o músico e artista visual suíço Walter Smetak, o músico alemão Hans J. Koellreuter, a professora de dança contemporânea polonesa Yanka Rudzka e o historiador português Agostinho da Silva. O projeto da Universidade de Brasília nunca foi concluído integralmente, encerrado ao meio pelo Golpe Militar de 1964. A UFBA também seria um período curto de brilhantismo dentro dos projetos

“Por muitos anos estivemos na condição dos índios xavantes, que, ao aprenderem a utilizar machados de aço, não mais puderam prescindir deles e se viram atados a seus fornecedores. Agora que já produzimos aço, telefones, penicilina e com isto muito acrescentamos à nossa autonomia, caímos em novo risco de subordinação, representada pela dependência de normas e de saber técnico. Só seremos realmente autônomos quando a renovação das fábricas aqui instaladas se fizer pela nossa técnica, segundo procedimentos surgidos do estudo de nossas matérias-primas e das nossas condições peculiares de produção e de consumo”. (Darcy Ribeiro)


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“A UniNômade é um espaço de pesquisa e militância, para pensar as brechas e os interstícios onde se articulam as lutas que determinam esses limites do capital e se abrem ao possível: pelo reconhecimento das dimensões produtivas da vida através da renda universal, pela radicalização democrática através da produção de novas instituições do comum, para além da dialética entre público e privado, pelo ressurgimento da natureza como produção da diferença, como luta e biopolítica de fabricação de corpos pós-econômicos”. (Manifesto 2.0)

universitários brasileiros, belamente retratado no livro Avant-garde na Bahia, de Antonio Risério. Durante o século XX, o que ocorreu foi uma crescente burocratização do meio acadêmico brasileiro, que também permaneceu incapaz de absorver camadas mais amplas da população, mantendo o ensino superior restrito, salvo exceções, a pessoas advindas das classes mais abastadas. Desta forma, quase um século após a criação da UPdEL, quando uma nova proposta pedagógica independente surge no país, ela mantém como preocupações questões muito semelhantes. A Universidade Nômade, criada em torno de docentes da UFRJ em 2003, foi uma das primeiras propostas de ensino livre do século XXI, e continua intensamente ativa. Inicialmente, a UniNômade era uma “rede de movimentos composta por núcleos, grupos de pesquisa, militantes de pré-vestibulares populares, movimentos culturais, revistas, artistas etc”. Segundo Giuseppe Cocco, um dos criadores da UniNômade, “O termo deleuziano de nomadismo entrou de uma maneira muito concreta e material pelo fato de termos percebido que não era possível pensar uma pauta universitária a não ser através de uma conexão entre quem está dentro da universidade e quem está fora e quer entrar. E, portanto, os pré-vestibulares comunitários como o movimento mais expressivo de uma crítica do neoliberalismo. Então a UniNômade se constituiu inicialmente como uma rede de docentes da UFRJ, muito poucos estudantes, visando criar pré-vestibulares comunitários para negros e carentes”. “A nossa proposta era juntar mais um termo para a plataforma tradicional, que era o desejo de uma universidade pública de qualidade e gratuita. Para nós, a universidade tinha que ser, sobretudo, democrática. Porque o governo sempre usou o termo ‘público’ como ‘estatal’. A universidade era estatal, mas não era pública, porque não era democratizada, era elitista. Então essa era a nossa discussão, de que é preciso criar algo que não seja nem privado nem estatal, mas realmente público”, completa Tatiana Roque.


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Essa luta está explícita no manifesto de fundação da universidade, assinado, além de Cocco e Roque, por nomes como Ivana Bentes e Francisco Guimarães: “Universalizar o direito à Universidade significa, hoje, repensar e refundar suas bases públicas (a universitas), a comunidade de fora para dentro, isto é, a partir da multidão dos excluídos que lutam para furar a cerca. Mas, ao mesmo tempo, refundar as bases sociais da Universidade (torná-la efetivamente pública) implica em transformar a natureza dos processos de produção e de difusão do conhecimento: produzir um saber nômade, ou seja um contra-saber de lutas que, unificando-se, não reduzem suas fontes, mas potencializam suas múltiplas dinâmicas”. Se algumas dessas preocupações iniciais seriam minimizadas com as políticas de expansão da universidade durante o Governo Lula, que permitiram o acesso de camadas mais abrangentes da população ao ensino superior, outras permaneceram ou foram radicalizadas durante esse período. É o caso da tendência à burocratização do trabalho acadêmico, através de formas de controle e produtivismo, se aproximando de regras de mercado. E também o isolamento cada vez mais radical da universidade em relação à sociedade. Em resposta a essas mudanças, a UniNômade se adaptou com o tempo para se tornar, conforme o manifesto escrito em celebração aos seus dez anos de existência, “um espaço de pesquisa e militância, para pensar as brechas e os interstícios onde se articulam as lutas que determinam esses limites do capital e se abrem ao possível: pelo reconhecimento das dimensões produtivas da vida através da renda universal, pela radicalização democrática através da produção de novas instituições do comum, para além da dialética entre público e privado, pelo ressurgimento da natureza como produção da diferença, como luta e biopolítica de fabricação de corpos pós-econômicos. Corpos atravessados pela antropofagia dos modernistas, pelas cosmologias ameríndias, pelos êxodos quilombolas, pelas lutas dos sem-teto, sem

“As universidades livres pensam uma formação contínua por modulação, e não por molde. A universidade como temos hoje ainda foi pensada no século XX, é estanque. A ideia do fluxo dentro dessa universidade não funciona. As universidades livres pensam em fluxo: o estudante vai se agenciando, modulando seus interesses, agregando o que está disperso, e cria uma trajetória”. (Ivana Bentes)


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“Mais do que formalizar, queremos abrir diálogos para sermos reconhecidos como projeto de formação legítimo. Houve diálogo com o Ministério da Cultura, com universidades, com Pontos de Cultura e outros coletivos. Do formal ao nãoformal. A gente já começou a fazer o nosso certificado, temos algumas parcerias locais e até internacionais que chancelam algumas ações. Sempre existe o risco, que é debatido dentro da Rede, do certificado e da formalização obrigar a uma normatização do processo da UFdE. Mas como movimento social que disputa sociedade, o certificado é importante. Só que ele precisa sempre ser visto como tática e não como fim”. (Carol Tokuyo)

terra, precários, índios, negros, mulheres e hackers: por aqueles que esboçam outras formas de viver, mais potentes, mais vivas”. Com o correr da primeira década do novo milênio, outras propostas de universidades livres foram surgindo no Brasil. De forma ainda mais radical, visavam a constituição de espaços e métodos novos para o compartilhamento de conhecimento. Ao invés de espaços fixos, as novas propostas buscavam o fluxo de saberes e a convivência. São projetos como a Universidade de Cultura Livre, ou UniCult, a Universidade Fora do Eixo, ou UFdE, e a Universidade Griô. Segundo Ivana Bentes, uma das articuladoras e incentivadoras da UniCult, “Existe, hoje, uma percepção de que a universidade tradicional não dá mais conta da formação, com sua estrutura fordista, disciplinar, fechada, realizada dentro de um campus, que eu brinco que é um ‘campus de concentração’. Dentro dessa perspectiva, a universidade parte do princípio de que existe um campo de realidade. Então há essa divisão espacial: a biblioteca, a sala de aula, o campus concentrado, separado da cidade, de todas as ferramentas, as metodologias que se encontram na sociedade mais ampla. Um isolamento, criado por esse modelo de que é preciso ir para um lugar para se formar. O que acabou fechando a universidade para certas interfaces com o resto da sociedade. Mas agora estamos num contexto em que a sociedade inteira é formativa. Além de que, atualmente, com as novas ferramentas tecnológicas, o ensino não pode estar restrito a um momento específico da vida da pessoa”. Como ressalta Carol Tokuyo, coordenadora da UFdE, esse crescente distanciamento entre a universidade tradicional e os novos processos da sociedade acaba gerando conflitos e desistências entre os jovens, e é preciso criar novas metodologias: “Nós começamos a pensar o projeto da UFdE quando entendemos que a Rede Fora do Eixo é composta, em sua maioria, por estudantes (ou ex-estudantes) universitários. E em 2010 percebemos que, na medida em que a galera começava a se envolver com a Rede, se desestimulava da faculdade. Muita gente abandonava o curso no meio. O sentimento era de que a faculdade não fazia sentido algum, pois não estavam de fato aprendendo algo que não poderiam aprender em outros lugares, nem o que tinham interesse real em saber. E estavam sacando que a Rede trazia muito mais conhecimento e estímulo ao conhecimento.


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Como nós trabalhamos com cultura, onde o diploma acaba significando pouco em relação às outras profissões, isso se tornava ainda mais frequente. Hoje, na área de cultura, o trabalho free lancer é o que prevalece, é raro alguém ter carteira assinada. Mas isso não significava que não estávamos interessados em aprender. Então começamos a pensar projetos de formação, de estímulo ao aprendizado, que no começo eram os Observatórios. E quando pensamos a reestruturação deles, começamos a entender que, na verdade, a gente tinha muitos outros projetos de formação, que eram baseados no estímulo constante ao debate, ao compartilhamento radical e em tempo real de experiências e acontecimentos na nossa própria forma de mobilização e organização. Nos nossos eventos, enfim. Só que nada disso estava sistematizado. Então, passamos a reconhecer que esses projetos eram nossos processos de formação, e sistematizamos as trocas de conhecimento que já estavam rolando naturalmente na Rede em formato de projetos, em programas de formação”. A criação de novos espaços educacionais passa por desafios burocráticos, inclusive na sua validação institucional: “Sempre existiu essa troca de informação com a sociedade, mas agora aumentou muito em intensidade. Existe uma série de atividades profissionais que são formativas, mas que não se permite ainda que sejam absorvidas pelo ensino oficial. Hoje toda a sociedade é formativa, mas quem certifica este saber? Existe uma reserva de mercado através da certificação de certos cursos superiores, de títulos de mestre, de doutor, que já é um problema dentro da universidade, porque não consegue incorporar artistas, nem saberes populares. As universidades de cultura são formas de tentar criar o trânsito desses saberes”, diz Ivana Bentes. Para que esse trânsito seja possível, e visando a renovação das estruturas universitárias, as propostas livres buscam o diálogo com as universidades tradicionais: “O projeto da Universidade de Cultura Livre é trabalhar em sinergia com as universidades. Justamente queremos que a universidade reconheça essa formação alternativa. Se a universidade é o lugar de reserva de mercado e de certificação, é importante que a UniCult tenha uma entrada dentro da universidade através dos projetos de extensão universitária, para utilizar os recursos instalados hoje no campus, e possa assim tensionar as suas estruturas. Existe uma imensa infraestrutura instalada hoje no campus univer-

“A Universidade Griô não é feita de cursos, mas de percursos. É um lugar de caminhar. Essa coisa do caminhante tem muito a ver com a ideia do Griô e do aprendiz. A troca de conhecimento com os mestres de saberes populares sempre é feita através de experiências vivenciais. É um aprendizado que se transmite através da vivência e da criação de vínculos”. (Alexandre Santini)


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Reunião da UniFdE.

sitário que é subaproveitada e que também não é utilizada pela sociedade. Então, por que não usar os laboratórios, as salas de aulas, os equipamentos nos finais de semana e nos horários inativos?”, conclui Ivana. Carol Tokuyo também ressalta a necessidade desse diálogo com as estruturas formais de ensino, mas sem perder a independência das propostas: “Essa é uma questão polêmica. Mais do que formalizar, queremos abrir diálogos para sermos reconhecidos como projeto de formação legítimo. Houve diálogo com o Ministério da Cultura, com universidades, com Pontos de Cultura e outros coletivos. Do formal ao não formal. A gente já começou a fazer o nosso certificado, temos algumas parcerias locais que chancelam algumas ações, alguns coletivos que possuem relação com

universidade e conseguem pontualmente estabelecer uma parceria. Sempre existe o risco, que é debatido dentro da Rede, do certificado e da formalização obrigar a uma normatização do processo da UFdE. Mas como movimento social que disputa sociedade, o certificado é importante. Só que ele precisa sempre ser visto como tática e não como fim. A certificação vem para dar valor às ações que a gente faz, mas de forma alguma vamos seguir os modelos do Ministério da Educação. Os critérios são outros, mais simbólicos, intangíveis, menos engessados”. E o que são esses critérios? Segundo Ivana Bentes, as universidades livres buscam “uma formação contínua por modulação, e não por molde. A universidade como temos hoje ainda foi pensada no século XX, é estanque. A ideia do fluxo dentro dessa universidade não funciona. As universidades livres pensam em fluxo: o estudante vai se agenciando, modulando seus interesses, agregando o que está disperso, e cria uma trajetória”. E conclui: “A discussão não é mais separar teoria e prática. A universidade livre pensa práticas formativas. Existe uma discussão hoje dentro da universidade, que passa entre a teoriativismo ou o tédio da


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Mestres participando de evento da Universidade Griô. Foto de Neander Heringer.

erudição. A universidade hoje é uma máquina de reprodução de conhecimento, de revisão bibliográfica, de rituais de titulação. Ela não se sente constrangida em intervir em nada. As pessoas fazem mestrados e doutorados para apresentar papers em congressos, para circular dentro de um grupo de discutidores acadêmicos que não tem compromisso com transformação nenhuma. Isso é muito perturbador. A gente precisa de teoriativismo. Não só teorias engajadas em ações, mas a consciência de que ações também produzem conceitos. Porque se desvinculamos uma coisa da outra, vira o vazio e a fraqueza dos pensadores que só visam currículo”. Das metodologias de universidade livre, a mais inovadora talvez seja a da Universidade Griô. Ao pensar vivências formativas, a convivência como método de ensino, sabendo que a transmissão do conhecimento dos mestres de saberes populares não está separada da vida, e buscar os trajetos de locais como princípio formativo, a Universidade Griô de certa forma faz um retorno ao princípio das universidades medievais, onde os estudantes buscavam os mestres pelas cidades da Europa.

“A Universidade Griô não é feita de cursos, mas de percursos. É um lugar de caminhar. Essa coisa do caminhante tem muito a ver com a ideia do Griô e do aprendiz”, afirma Alexandre Santini, um dos articuladores da UniGriô. “A troca de conhecimento com os mestres de saberes populares sempre é feita através de experiências vivenciais. É um aprendizado que se transmite através da vivência e da criação de vínculos. Esse ponto não pode ser perdido, mesmo quando criamos trocas com a educação formal e temos que lidar com todas as suas obrigações. Até porque é aí que se criam as tensões e os questionamentos de como a transmissão de conhecimento se estrutura dentro da academia e da escola. Então, quando fazemos um trabalho com uma escola ou uma universidade, normalmente a nossa abor-


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Mestres participando de evento da Universidade Griô. Foto de Neander Heringer.

dagem não é pelas vias convencionais, pelo colegiado ou conselho de classe. É através do vínculo que estabelecemos com um educador, com um professor específico mais aberto para essas questões”. A Universidade Griô surgiu como consequência da Ação Griô, criada pelo Ministério da Cultura em 2006, dentro do Programa Cultura Livre dos Pontos de Cultura. A Ação Griô foi lançada dentro do Encontro Sul-Americano de Culturas Populares, como um edital para contemplar, através de bolsas, Pontos de Cultura que possuíssem mestres de cultura popular que atuassem em projetos vinculados a escolas públicas e universidades. Esse edital foi elaborado através da metodologia criada por um Ponto de Cultura, o Grão de Luz e Griô, da Chapada Diamantina, na Bahia. O próprio projeto nasceu em consequência da solicitação feita pelo Grão de Luz e Griô para o primeiro edital de Pontos de Cultura. Os organizadores do Ministério da Cultura perceberam que havia naquela proposta o potencial para se fazer não apenas um projeto local, mas um articulador de redes nacionais. Segundo Santini, “A Universidade surge num momento de refluxo de toda essa história. A Ação Griô teve um grande desenvolvimento

no âmbito do Ministério da Cultura entre 2006 e 2010, chegou a ter na sua rede 700 iniciativas articuladas, em todas as regiões do país. Propôs até uma lei, que ficou conhecida como Lei Griô, na Conferência Nacional de Cultura, onde se reconhecia a importância cultural e econômica desses mestres da tradição oral, em diálogo com a educação formal. Mas, a partir do governo Dilma, com toda a nova configuração política, houve um grande refluxo dessas iniciativas. Ao mesmo tempo ficou um repositório, uma memória, e uma ação continuada. Mesmo sem o incentivo econômico do governo, ficou um grande manancial de experiências a serem sistematizadas. Esse conjunto de experiências e metodologias inspiradas pela Ação Griô é o que a gente vem chamando de Universidade Griô.


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Mestres participando de evento da Universidade Griô. Foto de Neander Heringer.

O que estamos fazendo é criar ambientes de circulação e intercâmbio de metodologias desses conhecimentos tradicionais”. O termo “griô”, advindo dos contadores de história da região subsaariana da África Central, acabou se difundindo mundialmente para expressar os mestres de culturas populares. A Universidade Griô, assim como as outras propostas contemporâneas de cultura livre, cumpre um importante trabalho de criar uma permeabilidade de saberes diversos, como os dos mestres das culturas ameríndias e afrobrasileiras, com a academia. E cria formas de compartilhamento e circulação de conhecimentos que, embora muitas vezes se aproximem de métodos mais arcaicos, também se ajustam melhor a demandas contemporâneas. Como aprofundar o diálogo entre essas iniciativas de pedagogia livre e as instituições oficiais é uma questão ainda a ser trabalhada, e demanda abertura por parte dos gestores públicos. Se no Brasil o avanço nessa direção é tímido, outros países tem demonstrado a capacidade de realizar ações corajosas nesse sentido. Em 2012, o Governo do Cabo Verde reconheceu a Universidade Fora do Eixo como Instituição Cultural Científica e Pedagógica, validando as suas for-

mações, graduações, títulos e outras transferências de conhecimento como qualificação técnica e científica para a área cultural. A multiplicação de iniciativas independentes de pedagogia livre no Brasil atual é algo para ser celebrado. O que esperamos, e lutaremos juntos, é que elas consigam se aprofundar e contemplar outras dimensões e faixas do ensino, lembrando que as últimas iniciativas de renovação dos ensinos de base e médio criadas pela sociedade civil já são de mais de trinta anos atrás, e não abarcam as grandes mudanças realizadas na sociedade desde então. A construção de novas iniciativas certamente ajudará ao ensino se renovar e se tornar mais livre e aberto para os desafios contemporâneos.


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Poesia foto: Maurício Pokemon

Thiago E.

Thiago E. é um dos mais interessantes expoentes da novíssima poesia brasileira. A sua poesia híbrida, marcada pelo ouvido privilegiado do autor e a capacidade de unir apuro formal e liberdade expressiva, foi elogiada por nomes díspares como Jorge Mautner e Augusto de Campos. Autor do livro de poesia Cabeça de sol em cima de trem, lançado esse ano, Thiago trabalha com uma literatura que, sob o formato do poema em prosa, utiliza ludicamente os metros fixos e rimas internas, jogando com musicalidades e ritmos. Nascido em Teresina, Piauí, em 14 de março de 1986 (mesmo dia de Castro Alves, convencionado Dia Nacional da Poesia, como gosta de lembrar, brincando, o poeta), é também um dos editores da revista Acrobata, primorosa publicação de poesia, e músico da banda Validuaté. O seu trabalho original e plural, de agitador cultural, músico e poeta, faz com que seja mais do que digno de atenção. [Sergio Cohn]


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A sua poesia contém elementos que remetem ao pós-concretismo, especialmente a experiências como o Galáxias, de Haroldo de Campos, e As Coisas do Arnaldo Antunes. Ao mesmo tempo, há um exercício interno com métricas e rimas que remete à música e à cultura popular. Fale um pouco das suas referências. É verdade. No livro Cabeça de sol em cima do trem (2013), até dediquei os poemas “mar” e “céu” ao Arnaldo Antunes e ao Garcia Lorca. E o poema “vruum”, ao Augusto de Campos. Meu ecletismo pode parecer estranho pra uns, mas pra mim é natural. É como me sinto autêntico. Experiências com palavras não são dogmas – são possíveis de prazer e transformação, dependendo de cada artista. Algum leitor verá e, se não gostar, vai atrás de outra coisa. As minhas referências são as mais variadas: de tratados poéticos portugueses do século XVII à poesia de vanguarda; do surrealismo ao forró e ao pagode dos anos 1990; do chorinho ao verso decassílabo. Também sou músico e compositor, fico à vontade praticando uma poesia diversa. Ficando só nos brasileiros contemporâneos, entre meus autores prediletos estão Roberto Piva, Augusto de Campos, Manoel de Barros, Ferreira Gullar, Arnaldo Antunes, Claudio Willer, Jorge Mautner, Nauro Machado, Hilda Hilst etc. Note que são autores de linguagens bem diversas. Inclusive, há brigas entre alguns. Espero que se entendam na potência de suas criações eternas. Gosto de todos e não sou preso a nenhum. É como recomendo no livro: não se identifixe. O seu trabalho poético abarca a poesia escrita, a falada e a cantada. Como essas diversas formas do fazer poético dialogam e se contaminam na sua obra? Poesia e música têm uma relação necessária. A ocorrência de sílabas fracas e fortes na língua, e o encadeamento de tempos fracos e

fortes na música, gera esse pandeiro interno que nos estrutura. Escrevi um artigo sobre isso chamado “O pagode da poesia”, publicado na revista Acrobata #1 e no portal Musa Rara, do poeta Edson Cruz. Além de poeta, sou músico e compositor na banda Validuaté, com a qual gravei um DVD e 3 discos: Pelos Pátios Partidos em Festa (2007), Alegria Girar (2009) e Este Lado Para Cima (2013). E, recentemente, lancei o disco de poesia Cabeça de sol em cima do trem (2013), interpretando 20 poemas meus, que produzi com o amigo músico Jan Pablo. Algumas faixas podem ser ouvidas e baixadas no <soundcloud.com/thiagoe>. Nesse diálogo de formas diferentes de usar a poesia, não há segredo – acontece inconscientemente. Começo a criar e sou levado pelo ritmo, pela batida. E sei se será canção ou poema escrito. Você é um dos editores da Acrobata, uma das revistas de poesia mais interessantes em atuação no Brasil. Conte um pouco do projeto. A revista Acrobata pode ser um livro ou um objeto não identificado – difundindo literatura, audiovisual e outros desequilíbrios. Editamos a Acrobata em Teresina. Além de mim, é feita pelos amigos Aristides Oliveira, Demetrios Galvão e Meire Fernandes. Tem periodicidade semestral e duas edições: sempre reunindo artistas e pesquisadores de vários lugares: cineastas, poetas, atores, prosadores, artistas plásticos etc. Estamos no Facebook e disponível pra venda e download no <issuu.com/revistaacrobata>. Queremos também que as regiões Sudeste e Sul busquem conhecer melhor o que está sendo feito na poesia do Norte/Nordeste – esses poetas ainda são pouco lembrados em antologias e críticas. Seguimos articulando um novo movimento, mostrando o óbvio: o Piauí tem muito a ensinar com sua identidade artrópode.

um poema Pressa s.f. & m. a pressa traz nos braços sua bagagem de atrasos ; distribui de bom grado relógios enferrujados ; engorda na avenida e ergue novos obstáculos ; a pressa pintou-se moça e diz dar conta do recado ; chegou cedo e abriu a fábrica pro operário ; a mil por hora faz máquinas muito rápido ; a pressa medida com fita métrica tem tamanho de máximo ; corre com as pernas bem abertas empurrada pelo horário ; não descansou com o funcionário e acendeu o asfalto ; a pressa abraça as ruas, os telhados, mas não se vê tentáculos ; ajudou a motorista a jantar, a juntar o salário ; a pressa mostra a pá com a qual enterrará o passado ; acabou com a festa dos pássaros no mato ; não seca o suor na testa do trabalho forçado ; se fez sangue e força destes dias, destes maios ; constrói a época em que mais nada é acabado ; a pressa e trinta inícios por segundo por projetos ávido ; a pressa apenas, e apenas por pressa e princípios tem apreço ; a pressa só, sem limites, sem finais, sem desfecho – só começo :





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Mário Bortolotto entrevista por Marcela Lordy e Sergio Cohn

Você começou a fazer teatro em Londrina, nos anos 1980, num momento especial da cidade, de grande ebulição cultural. Estavam lá o Arrigo Barnabé e o Itamar Assunpção, criando trabalhos inovadores na música... Sim. Eu comecei a fazer teatro em Londrina em 1979. Eu saí do seminário, fui expulso, e parti para Londrina. Quando cheguei lá, estava começando a rolar o Arrigo e o Itamar. Tinha uma lojinha, um quiosque no centro de Londrina, que vendia só LPs independentes. Na vitrine tinha o Isca de Polícia e o Clara Crocodilo. Eu comprei os discos e só então fiquei sabendo que os caras eram de Londrina. Aquilo mexeu com a minha cabeça. Eu tinha só 18 anos, era um cara recém-saído do seminário, não tinha muita informação cultural extra, só a da biblioteca do seminário, que era muito rica. Li muitos clássicos, de aventura e religiosos, São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, e muita enciclopédia, a Barsa, a Larousse. Só que não tinha conhecimento de música. Apenas o que se ouvia na rádio FM, e discos que eu conseguia emprestado para gravar em fita cassete. Rolling Stones, essas coisas. Mas música independente? Nada. Então o Itamar e o Arrigo mexeram muito comigo. Sou muito grato por ser londrinense. Era uma cidade muito bacana naquela época. Nos anos 1980, era tão bacana quanto morar em São Paulo, a juventude era muito louca, os bares ficavam abertos a noite inteira, todo mundo discutindo literatura. A Faculdade de Jornalismo era muito foda. De lá saíram Jotabê Medeiros, Ademir Assunção, todo mundo o tempo todo se encontrando, discutindo. A gente sabia que o Rodrigo Garcia Lopes estava na Inglaterra, mandava textos de lá. E a Folha de Londrina

publicava os textos de todo mundo. O Wilson Monteiro era o editor e conseguia publicar no caderno de cultura. Hoje não há mais condição para fazer isso. Naquele tempo a molecada furava esse bloqueio. A página de leitura da Folha de Londrina publicou a primeira tradução do Uivo, do Allen Ginsberg, que o Rodrigo fez. Isso antes da LP&M publicar a tradução do Claudio Willer. Na verdade Londrina estava sempre na vanguarda, não só da música da época, mas no jornalismo. A Folha 2 da Folha de Londrina foi o melhor caderno de cultura, do Paraná, pelo menos. Os jornalistas escrevendo textos muito vibrantes. Tanto que seguiram carreiras em grandes jornais. Eu aprendi muito com esses caras. Você já parou para teorizar por que aconteceu essa efervescência na cidade? Londrina era uma cidade muito nova, em torno de 50 anos de idade. E vinha gente de todo canto, a UEL é uma faculdade muito interessante. O Pinduca, como chamávamos o Ademir, por exemplo, era de Araraquara. Jotabê era de outra cidade. Esses caras todos iam para Londrina e se concentravam lá. E tinha uma liberdade em Londrina. O clima dos anos 1980 e o fim da ditadura ajudavam, os bares ficavam abertos a noite inteira. Sempre defendo isso. Não tinha lei de silêncio, tudo aberto, todo mundo bebendo, fumando lá dentro, todo mundo ouvindo jazz, lançamento de livro pipocando, discos pipocando. Tudo isso favoreceu o fato de Londrina virar um polo cultural naquela época. A cidade recebia muito bem as pessoas, diferentemente de Curitiba, que não tinha essa liberdade toda. Londrina recebia todo mundo, parecia muito com São Paulo.

Mas o mais importante era a liberdade de ficar a noite toda no bar, bebendo, discutindo, os bares sempre lotados, jovens entrando e saindo, indo para outro bar, usando drogas. A boemia favorece a efervescência cultural. No posfácio que você escreveu para o Tanto faz, do Reinaldo Moraes, você diz que houve um livreiro que lhe formou, um cara de sebo que lhe apresentou muita coisa. Esse cara era bacana. Era uma lojinha pequenininha, assim como tinha a Áudio Discos em Londrina, do Paulinho, que me apresentou todos os discos de blues e de jazz que até hoje eu amo. A primeira vez em que ouvi Fred King foi lá, foi muito foda. E tinha esse livreiro, onde comprei o Tanto faz, o Morangos mofados, que saíram pela Brasiliense. Tanto faz mudou minha vida. Quando saiu eu pirei, e fui lendo os outros que saíam na coleção até chegar à literatura beat. Já tinha lido Henry Miller, Fitzgerald, era leitor de biblioteca, mas o máximo que consegui de literatura maldita foi Cartas da rua, do Bukowski. Foi o mais maldito. O Henry Miller também. Mas ele já estava canonizado como escritor, mesmo sendo tão obsceno quanto Bukowski. Estava já no meio, era mais velho. Já os beats não, tinha preconceito, falavam que eles eram uns bostas, que era literatura para moleque. Mas a gente era moleque. E gostava de rock’n roll. Mas agora estou velho e continuo gostando de tudo isso, então tem alguma coisa estranha... Por que você começou a fazer teatro? Comecei no seminário, e gostava muito de fazer, achei que era um veículo interessante. Gostava de trabalhar como ator, escrevia bem


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para teatro, me divertia, e vi como um veículo bacana para expressar ideias, como a literatura, a música, fazer um programa de rádio, uma revista. É tudo a mesma coisa, um jeito de expressar o que pensamos do mundo, nós, os nossos amigos, e discutir ideias. O teatro serve para isso. Por isso faço peça para 30 pessoas. Não vai dar mais que isso, apesar de que hoje estava bom de público para a sessão da meia-noite. Às vezes são quatro, cinco pessoas apenas, mas essas realmente saíram de casa para vir ver a peça, e isso me interessa muito. A pessoa saiu de casa, pegou o carro, pagou o estacionamento, é porque está interessada em ver esse trabalho. Valorizo muito o pequeno público que tenho. Porque acho que o teatro é muito fácil de fazer. Se você for fazer um revista, precisa de um patrocínio para bancar a impressão. Na peça só preciso ter duas cadeiras e dois atores, um espaço totalmente vazio, uma luz em cima e conto uma história. Na peça de hoje não gastei um centavo, faço peças com o mesmo cenário, mesmo papel de parede. E foda-se, o que importa é contar a história que quero contar. Não sou Felipe Hirsch, Gerald Thomas, aquele aparato todo para contar uma história. Não preciso disso, nem gosto, não é minha praia. Prefiro colocar um foco em cima do ator e ele contar uma história, e se houve público interessado nisso, para mim é interessante. Você começou montando suas próprias peças? Assim que saí do seminário entrei no grupo da Secretaria de Cultura de Londrina, que montava peças muito antigas. Até hoje é assim, José Vanderlei, Joracy Camargo, Júlio Moreno, caras que são autores muito da velha guarda, de teatro de pavilhão, historinha com começo, meio e fim, o marido vai trair a mulher, no final ele é pego. A peça é toda contadinha, bem ruim mesmo. Tinha muito dramaturgo assim na época, e fiz muita peça desse tipo quando comecei, com um diretor catalão chamado Antonio Saperas, que conseguiu fundar um grupo dentro da Secretaria de Cultura. Eu ficava olhando os ensaios, com

vontade de fazer, aí o cara me chamou um dia para fazer. Eu tinha muito interesse, ia a todos os ensaios, mais do que os atores, ficava assistindo. Um dia ele me chamou para ler um texto no lugar de um ator que faltou, eu li, ele gostou e disse que me daria um personagem. Aí comecei. Fizemos um monte de peças, mas os textos não me agradavam. Não via a hora de sair de lá e montar outro tipo de peça. Foi

absurda que se chamava Você viu uma azeitona por aí?, que é muito ruim. Eu dizia que era teatro do absurdo, mas era absurdo de ruim. Era uma garota que tinha peitinhos de azeitona, era péssimo, era inspirado em Roberto Drummond. Estava lendo muito Sangue de Coca-cola, Quando fui morto em Cuba, O dia em que Ernest Hemingway morreu crucificado. O Roberto Drummond é mineiro, gosto

Não sou Felipe Hirsch, Gerald Thomas, aquele aparato todo para contar uma história. Não preciso disso, nem gosto, não é minha praia. Prefiro colocar um foco em cima do ator e ele contar uma história, e se houve público interessado nisso, para mim é interessante. quando montei um grupo chamado Chiclete com Banana para fazer peças por minha conta. O nome era em homenagem ao Angeli. No começo queria fazer outros autores, não achava que sabia escrever para teatro, mas é preciso entender que isso é 1981-82, era tudo muito caro, para conseguir os direitos do Plínio Marcos, por exemplo, era impossível. Nelson Rodrigues, por aí vai. Ia à SBAT ver o preço da peça e era absurdo para os moleques de Londrina que não tinham dinheiro para o cachorro-quente. Era muito complicado, mas a rapaziada sabia que eu gostava de escrever e me intimaram a escrever o primeiro texto, aí escrevi uma peça primeiro para esse grupo da Secretaria de Cultura, chamava-se Pé na estrada, que era um coisa meio hippie, temática riponga mesmo, forte. O diretor gostou e começou a montar, eu via os ensaios e comecei a odiar a peça, achei o texto ruim, a direção ruim, aí tirei o texto, não o deixei montar. Mas a rapaziada voltou a me intimar, já com o grupo montado, em 1982, e eu escrevi essa peça

muito, Hitler manda lembranças, bem legal. Mas minha peça ficou um arremedo da literatura dele, ficou horrível, pop falsa. O Sérgio Sant’anna tinha escrito O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, que eu tinha lido também, tinha me influenciado muito, mas eu queria fazer algo parecido com os dois e ficou um pastiche. Mas ao mesmo tempo a gente apresentou lá, para você imaginar, nós não tínhamos dinheiro nem para alugar o teatro, então a gente fazia na Associação Médica, tinha um auditoriozinho. Mas achamos que éramos muito fodões para Londrina, aquela bosta daquelas peças, na época a gente achava maravilhoso, e aí a gente veio para São Paulo estudar teatro. Falávamos que Londrina era pequena demais para nós. E quando surgiu o Cemitério dos Automóveis? 1987. Porque fizemos o Chiclete com Banana em homenagem ao Angeli, mas ele, na época, não era um super-star dos quadrinhos, era o Angeli, fazia tirinha da Folha de S. Paulo, não


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tinha nem revista ainda. E ele começou a fazer muito sucesso, a revista estourou, ele virou realmente um fodão. Aí comecei a achar que as pessoas iam achar que eu estava pegando carona no sucesso dele. Na época era só uma homenagem ao cara de quem a gente curtia as tirinhas. Tanto é que ele foi a Londrina lançar o primeiro livrinho, antes da revista, e a gente foi lá, maiores fãs dele, tem a foto da gente junto, eu, dois caras do grupo e o Angeli, no bar do Valentino. Eu sou o mais magro da foto, não tinha dinheiro para comer, puro osso. O Angeli era o mais saudável da foto. O grupo era homenagem para ele, aí com o sucesso dele, e também o fato de ter aparecido um grupo de axé com o mesmo nome, o que criava o risco da gente chegar a uma cidade e os caras acharem que ia tocar axé. Iam linchar a gente na cidade. Aí mudamos o nome. Escolhi “Cemitério dos Automóveis” por causa do poema do Lawrence Ferlinghetti, mas sempre acham que é por causa da peça do Arrabal, que tem o mesmo nome. E achei que tinha tudo a ver a coisa da decadência do urbano que tem nesse poema, era isso mesmo que queríamos. A primeira vez em que ouvi essas palavras foi no poema do Ferlinghetti, não na peça do Arrabal. Depois fiquei sabendo, mas aí já era o nome, foda-se. Mas quando mudou de nome você já tinha uma linguagem sua, já era dramaturgo? Já. Tinha ganhado prêmios em festivais, quatro prêmios, festivais amadores, Ponta Grossa, Campina Grande, São Matheus do Espírito Santo. O que era bacana no teatro dessa época, anos 1980, é que a gente circulava muito para esses festivais. Por exemplo, eu participei muito do festival de Rio Preto, quando era amador, de lá, mas hoje em dia é muito elitista, muito complicado. É um festival internacional, então chamam grupos da Venezuela, da Colômbia, o que é do caralho, mas não sobra espaço para os grupos brasileiros. Então acabam indo apenas sempre os mesmos grupos grandes. Fica difícil o Cemitério dos Automóveis que já tem 30 anos de trabalho conseguir ir para Rio Preto. Todo ano a gente manda o

projeto e recusam. Aprovam uma vez a cada dez anos. Na época nós íamos todo ano. Hoje em dia se formos para o festival de Londrina, chegamos na terça, apresentamos na quarta e voltamos na quinta, não ficamos para assistir as outras peças. Nessa época não, a gente pegava o busão, ia até Rio Preto, dormia em alojamento porque não tinha hotel e comia de bandejão. Mas ficávamos a semana inteira, fazia a peça na segunda e ficava de terça a domingo vendo todas as outras peças. Então bebia com todo mundo, debatia os espetáculos, conhecia os jurados. Conheci o Fauzi Arap lá em Rio Preto, também o Ademar Guerra, que dirigiu o Hair. Esses caras fodões eu conheci nos festivais. Isso era muito rico para a gente, hoje não tem mais. Você falou de nomes de uma geração anterior. E na sua geração você reconhecia alguns parceiros, gente que estava na mesma busca, em um caminho parecido com o seu? Tinha uns caras que eu admirava muito, fui trombando em festival e fui admirando. O Jayme Compri, que morreu já. Uma pena, porque era muito bom, tem uma peça chamada Felicidades para todos. Ele tinha uma companhia chamada Ivamba, isso porque grupos de teatro amador têm mania de fazer siglas, e Ivamba era “Influência dos ventos alísios na menstrução da borboleta azul”. E cada grupo tinha essa mania. O Armazém, que era de Londrina também e depois foi para o Rio de Janeiro, hoje é um grupo consagrado, o nome do grupo, para você ter uma ideia, era “Bombom para que se Pirulito tem Pauzinho para Chupar?”. Esse era o nome. Todos os nomes eram assim pomposos. Mas havia alguns contemporâneos que eram bacanas. Jayme, Paulo de Moraes, que começou a dirigir na mesma época que eu. O Paulo era do grupo que o José Antônio Teodoro dirigia, fez uma montagem arrebatadora de Toda nudez será castigada, que foi para Nova York representar o Brasil. Um grupo de Londrina, quando todos os grupos do Brasil queriam ir para lá. Londrina tinha essa força teatral. Tinha a Nitis Jacon que

fez peças geniais como ZY Drina, Arrigo chegou a fazer trilhas para a Nitis, outras como Bodas de café, Salto Alto do, Mário Prata, peças fodonas de Londrina que circularam o Brasil todo na época. Eu admirava muito e gostava de dialogar com eles, embora brigasse muito com todos eles. Eu era um moleque muito briguento, estava sempre quebrando o pau, era muito chato. Moleque sempre acha que sabe tudo, sempre quer ser do contra. E a poesia? Eu escrevia uns poemas já, arriscava algumas coisas, mas comecei a escrever poesia com o Maurício Arruda Mendonça, Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção, porque eles escreviam na Folha 2, tinham um caderno de leitura, escreviam poesias deles lá. Eles estavam começando a publicar os poemas deles, eram referências para mim. Aí eu entrava nos murais de poesia que tinha na época. Eu ganhei um mural de poesia de Londrina da época. Ganhei uma grana, foi legal. Aí por isso entrei na Bienal de Literatura de Londrina. Lembro do Pedro Bial lá com os Camaleões. Eles tinham nomes, o Pedro Bial era o Peter Pane, o Claufe Rodrigues acho que era o Baby the Billy, e tinha outro que era o Patrick Jack. A Bienal era forte, mas acabou faz uns anos. Agora tem o Londrix que quem faz é a Cris, minha ex-mulher. Ela se esforça, faz o que pode para conseguir fazer o festival literário, e a prefeitura não dá a menor força. Londrina está foda. São Paulo está foda, mas Londrina está pior, querem que os eventos de literatura desapareçam de lá. Esse misto de ser músico e poeta, ajudou na dramaturgia? Uma coisa ajuda a outra, enriquece a outra. Estava conversando com um amigo esses dias, às vezes um cara acha que a letra de música não é poética, mas ela na verdade é mais difícil que escrever poesia, porque você tem que conseguir colocar aquilo na partitura, no tempo exato. É muito complicado. Às vezes pego um poema que não tem nada a ver com letra de música e tento colocar numa música,


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é muito difícil, tento fazer umas versões também, mas é difícil. Valorizo muito os letristas, tem uns fodidos que deveriam lançar livro. O Aldir Blanc, por exemplo, é muito fodido. Tem muito letrista bom. Bernardo Vilhena, que começou como poeta marginal e fez muita letra genial depois, o Chacal mesmo. Essa história de a poesia marginal ter migrado para o rock passa pela atração pelo pop, que também está no seu trabalho. Você trabalha muito com isso na sua obra, pegar o quadrinho, o cinema, o Pulp fiction. Acho que tem tudo a ver. A raiz é essa. Você é um pouco mais novo. Mas você já pegou isso aí. Esses caras eram um pouco mais velhos do que eu, o Caio Fernando Abreu hoje teria, igual ao Reinaldo Moraes, uns 65 anos. Hoje em dia é que a molecada está perdida, sem querer desmerecer, é uma época muito opressora e estou dizendo isso porque é uma época em que as igrejas evangélicas mandam no Brasil. Escrevi no meu Facebook que “eu não vou sair para protesto por causa de centavos de ônibus não, vocês estão perdendo tempo, mas vamos sair em protesto para as igrejas pagarem impostos”. Para mim é o único jeito de acabar com essa nossa situação no país, a situação está negra pois quem manda no país são as igrejas. E a igreja vai parar de ser um bom negócio quando pagar imposto, aí essas pessoas todas vão sair das igrejas e baixar a bola, e o Brasil vai voltar a ser um país livre. Caralho, voltar a falar abertamente sobre as coisas. Não se pode falar nada hoje em dia, tudo é cerceado, e é porque quem manda no país é a igreja, e ficam discutindo bobagem. A igreja não mandava nada, então a gente era livre, fazia o que quisesse. Londrina tinha muita cultura, e hoje? O discurso oficial é: o que causou tudo foi a Aids. Não é bem assim. A Aids estava no auge e a liberdade continuava rolando nos anos 1980... Até o finalzinho dos anos 1980 era muito foda. Eu saí de Londrina em 1996, porque eu

não aguentava mais ficar lá. Londrina ficou insuportável. Mas de 1980 até 1990 foi uma época muito rica, não queria sair de lá, era tão gostoso quanto São Paulo. Eu vinha para São Paulo, ficava uma semana. Vinha na Mostra de Cinema, comprava aquele convite permanente e assistia a todos os filmes. Eu adorava São Paulo. Mas para que sairia de Londrina? Eu tinha interlocução com todo mundo, a rapaziada era bacana, conseguia publicar as coisas, fazer música, tinha banda de rock, tinha muita liberdade lá. Quando começou a ficar ruim decidi ir para São Paulo, pensando que deveria ser um pouco melhor. E era, lógico. São Paulo ou Rio. Mas acho que não conseguiria trabalhar no Rio, o teatro não é levado a sério lá, e eu faço teatro. Com exceção do Armazém, não lembro de nenhum grupo que faça teatro sério. É muita televisão, os atores não têm culpa, mas acabam fazendo uma coisa mais comercial para ir para a novela. Quando a gente foi para o Rio, fizemos umas mostras no Teatro Sérgio Porto sempre lotado, cara. Todo dia lotado. A gente deu oficina, lotou; fez leitura, lotou. Tem um interesse grande da rapaziada, do público. Mas as peças da cidade, é difícil, não é que tudo seja ruim, tem o Aderbal Freire, que procura fazer umas coisas boas, uns diretores interessantes, mas é tudo mais difícil. Adoro ir trabalhar lá, pegar uma peça daqui, levar para lá, mas morar mesmo não sei se conseguiria. Como você conseguiu ficar em São Paulo? Chegou quando não tinha nenhum dinheiro para a cultura, pós-Collor. Eu não consegui manter, até hoje não tem como manter. Eu cheguei aqui, não tinha onde dormir, onde comer, como fazer porra nenhuma. Foi o Fauzi Arap que me convidou para vir para cá para fazer uma peça sobre a Frida Kahlo, pois ele tinha interesse em mim para trabalhar como ator na peça Santidade, do Zé Vicente, que ele faria na sequência. Então ele queria muito me ter aqui em São Paulo. Ele disse: “Mario, tenho uma peça chamada Frida Kahlo, o personagem é pequeno, quero que vá fazer para depois fazer Santidade, que vai ser

um personagem grande e principal da peça, mas quero que você faça Frida”. Foi o Fauzi que me apadrinhou aqui em São Paulo, não tinha onde morar, fiquei quatro meses dormindo em hotel vagabundo, quando tinha uma graninha, dez reais, eu pagava, se não pedia para dormir da casa dos amigos. Aí para me ajudar o Fauzi comprava 40 livros meus para distribuir para os amigos dele, para me ajudar mesmo, para ter alguma grana fora a que ganhava como ator contratado. Depois fui dar aula em Santo André, de teatro para criança, consegui alugar um quartinho perto da rua Brigadeiro Luís Antônio, um quarto que só tinha um vitrô, só tinha puta, porque não precisava de fiador para alugar. Dava um aluguel adiantado e ficava até acabar o mês. Era uma pensão, parecia uma prisão. As prisões americanas são maiores do que aquele quarto. Só cabia minha cama e uma mesinha com o computador, o banheiro era dentro do quarto, praticamente um box com uma privada dentro. Então fiquei um tempo lá até o Flavinho e o Wagner me chamarem para dividir apartamento na General Jardim. Aí fui melhorando de vida, tinha um quarto dentro de um apartamento. Não tinha nada. Em 1996, fiz Santidade, e no ano seguinte fiz Medusa de Ray Ban, e fui indicado para o Shell para autor e ator no mesmo ano. Ator pelo Santidade do Fauzi e autor pelo Medusa de Ray Ban. Não ganhei nada, mas perguntavam: “Quem é esse Bortolotto que foi indicado para dois prêmios diferentes?” Começaram a falar no meu nome, mas não me ajudava em nada para ganhar grana, porque continuava fodido. As coisas só começaram a melhorar para mim em 2000. Eu estava endividado pra cacete. Fiquei quatro anos me fodendo em São Paulo. Tive a ideia louca de fazer aquela mostra maluca do Centro Cultural São Paulo, eram 14 peças. Sebastião Milaré falou que ia me dar por três meses o porão do CCSP. Ele gostava de mim, era jurado de festivais, me conhecia daquela época, gostava do meu trabalho, aí me falou: “Pega o porão por três meses e faz o que quiser”. O Centro Cultural não tinha nada, tinha que alugar a luz. Falei para ele que iria fazer três peças, ele me


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disse para ficar à vontade. “Quer saber”, falei, “vou fazer seis”. Aí fui atrás dele e falei: “Posso fazer 14?”, e ele liberou. Uma mostra grande, nunca ninguém tinha visto 14 peças minhas, e começou a lotar de molecada para assistir, e a molecada tinha uma sintonia com as peças. Medusa de Ray Ban, Fábula Podre, Postcards de Atacama, Singapura Slings, veio todo mundo de São Paulo assistir, eu ganhei o Prêmio Shell

veio depois. Esses caras faziam uma coisa muito sofisticada como um fanzine de xerox mesmo, visualmente e de poesia. Eu tenho alguns até hoje em casa. Eu comecei a fazer também, meu primeiro livrinho é de xerox, Heavy Madruga. Um livrinho com capinha que mandei rodar na gráfica e o resto era tudo xerox com grampo. Como sempre fui tímido para rodar minhas coisas, então tinha um

Eu sempre optei por não ter dinheiro e viver uma vida que me interesse mais. Perder oito horas numa coisa que não tem nada a ver comigo só porque eu tenho dinheiro? Por quê? Eu sempre bebi de graça, comer eu como qualquer coisa. Não tem problema. de autor por Nossa vida não vale um Chevrolet, e ganhei o prêmio APCA de melhor autor pelo conjunto da obra. Aí sim, ganhei grana com o Shell, e paguei as dívidas todas. E começou a pintar Sesc me convidando para fazer peça, comecei a ser aprovado nos editais. Até então não era aprovado em nada. Ganhei o Shell e me abriu portas. Não tem como falar que não abre: “Esse cara ganhou prêmio vou prestar mais atenção nele”. Por isso que a gente vive atrás de prêmio. Não acho importante ele na estante, o meu Shell está numas caixa enfiado, não consegui tirar a mudança ainda, estou cagando, mas é legal para abrir portas. Eu conheci seu trabalho pelo Ruptura, do Marcelo Montenegro, o fanzine, era uma entrevista sua e tinha a reprodução daquele poema seu, o “Raiva”. E era muito interessante a circulação desses materiais, a grande mídia bloqueava, mas tinha a margem pelos fanzines. Eles eram riquíssimos. Tinha um fanzine em Londrina chamava An verde, que era do Marquinho e do Rodrigo, tinha o K’an, que

amigo que vendia para mim e a gente rachava a grana meio a meio, ele pela venda e eu por ter feito. A gente bebeu muito à custa desses fanzines. Aliás muitos amigos meus vieram de Londrina para cá e moraram por anos em pensão barata, Everton Bertotti, Leonardo Leon, Reinaldo Henrique, à custa de livrinho de poesia, tudo xerocado. São clássicos, Notas de Balcão, vocês podem até não conhecer, mas a galera que ficava ali no MASP com certeza conhece. Vendiam livro ali o dia inteiro e depois iam torrar em conhaque vagabundo na Vila Madalena. Tinha uns picaretas lá, mas esses caras eram bons. Eles têm livros inteiros sobre essas histórias. E tinha caras sofisticadíssimos como o Marcos Losnak, o Rodrigo Garcia Lopes, que faziam xerox de maneira que eu invejava. E só tinha xerox, não tinha computador, recurso. Fazia na máquina de escrever, recortava, colava, tudo torto. O computador salvou a gente das linhas tortas. O Cemitério acabou sendo uma trupe variante. Por causa dessa carência. Todo mundo duro, veio todo mundo para cá. Quando eu

fui morar com o Flavinho, veio uma porrada de amigos meus de Londrina para cá trabalhar comigo, e todo mundo dormia na sala. Lá era uma favela. Aí a gente bancando, fazia a parada, todo mundo passando fome, fazia cachorro-quente, comprava macarrão. Quando eu morei com a Fernanda D’Umbra, em Higienópolis, imagina, todo mundo duro e a Fernanda tinha uma apartamento fodão que alugou para um trabalho, que quando acabou ela ficou dura. Não podia pagar nem a conta de luz. Aí ligou para mim e chamou: “Mário, vocês não querem morar aqui? Rachar o aluguel comigo?”, “mas a gente é um bando de duro!”, “Eu também tô dura!”, “A gente racha a dureza nossa junto!”. O síndico deve ter adorado... Aí chegou eu, Pedrão, Joeli e Robocop na casa dela, eu no quarto de empregada, a Fernanda na suíte, Robocop e Joeli no outro quarto, Pedrão na sala. Era favela. A gente comprava macarrão e ficava no macarrão a semana inteira. Só macarrão, sem molho. Comia isso. Era uma época... Só que morava em Higienópolis, apartamentão chique. Só que a gente ficava ali, discutindo literatura, lendo, bebendo, discutindo teatro, era rico pra cacete. Muito melhor do que ter um puta dinheiro, não fazer nada que preste porque precisa que trabalhar o dia inteiro. Eu sempre optei por não ter dinheiro e viver uma vida que me interessasse mais. Perder oito horas numa coisa que não tem nada a ver comigo só porque eu tenho dinheiro? Por quê? Eu sempre bebi de graça, comer eu como qualquer coisa. Não tem problema. Na verdade eu vivi em Londrina igual em São Paulo, passando fome, me fodendo, mas me divertia. Se não tinha dinheiro para beber, a gente ia no bar da Amaral Gurgel tomar Dreher a 50 centavos na época, com quatro ou cinco reais eu enchia a cara. Dreher, com os travecos lá, não tinha dinheiro para ir para a Vila Madalena. Muito melhor do que emprego de oito horas. Não que eu não goste de cerveja importada, mas prefiro a vida que eu levo.


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Em algum momento, depois do Prêmio da APCA, você pensou que mexendo uns pauzinhos você poderia ter outro status? O tempo inteiro rola, até hoje. É só facilitar. Tem uma história do Fausto Fawcett, quem me contou foi o Chacal – sabe o grande lance que fez o Fausto não dar certo até hoje, não que não tenha dado certo, faz lá os

me importa. Não que eu não queira voltar a fazer, quero. Se eu fizer monólogo do Kerouac aqui, loto de novo. Toda vez que faço lota. É uma peça que eu gosto de fazer, não estou facilitando, me interessa e eu sei que lota. Quer dizer, eu poderia unir o útil ao agradável, mas só isso é pouco. Eu quero fazer aquelas coisas que ninguém gosta, ninguém se interessa,

Meu trabalho é esse, se eu conseguir sofisticar ele mais, eu vou. Se eu conseguir complicar mais, vou fazer. Mas facilitar nunca. Fazer algo mais simples, uma comédia mais leve para o pessoal gostar... Se eu fizer uma comédia leve é porque estarei nessa praia, afim de brincar, de me divertir um pouco, mas não para atingir o público. trampos dele e dão muito certo, só que ele é genial e podia estar em outro patamar também? Só que o Fausto não facilita! Eu acho que isso é bacana, eu nunca facilitei. Meu trabalho é esse, se eu conseguir sofisticar ele mais, eu vou. Se eu conseguir complicar mais, vou fazer. Mas facilitar nunca. Fazer algo mais simples, uma comédia mais leve para o pessoal gostar... Se eu fizer uma comédia leve é porque estarei nessa praia, afim de brincar, de me divertir um pouco, mas não para atingir o público. Por exemplo, se eu quisesse fazer Mulheres, do Bukowski, durante mais um ano, estava lotando todo dia. Todo mundo queria ver, era o Bukowski, vinha gente do Rio, de Belo Horizonte assistir a montagem de Mulheres, do Bukowski. O Bukowski hoje é consagrado, todo mundo quer ver no teatro, lotava todo dia, gente para fora. Dava para ficar mais seis meses fazendo Mulheres. Mas isso seria facilitar. Eu tenho outras coisas para fazer, que eu sei que vai dar três pessoas, não

mas eu me interesso. E dois ou três amigos falarem: “pô, gostei de ver, quero ver de novo”. Esse canto de sereia aparece, televisão, todos os meus amigos querem ir para a televisão, os autores, o Bonassi, o Marçal, todo mundo. Eu não quero escrever para lá. Não tenho nada contra o veículo. Não quero é ser obrigado a fazer coisas que não me interessam, pode ser na TV ou no teatro. Se eu for e falarem “o tema é esse, o mote é esse, você vai escrever sobre isso”, não vou fazer. Quero escrever o que quiser. Fui chamado para ser ator e não me interessou. Não tenho nada contra dinheiro, gosto. O que não gosto é fazer coisa que eu não esteja afim. Dinheiro me possibilita comprar disco importado, comprar livro, beber uísque bom. Adoro. Agora para fazer merda, prefiro tomar Dreher de novo. Isso deve ter pesado muitas vezes para o grupo. Tanto é que só eu estou até hoje. O grupo já mudou, ninguém aguenta, o pessoal vem, de

boa vontade, eu admiro, mas passam dois três meses, não ganha nada, vai acabar desistindo. Está certo. Aí ligam para fazer Meu marido traído com a estrela tal, e vão! Ganhar dois mil reais por mês, o cara quer pagar hotel, comer arroz com feijão. Eu não vou fazer isso jamais, mas não tenho nada contra isso. Quem faz isso continua meu amigo, vem beber comigo, não tenho bronca de quem faz assim. Vem uma molecada aí. Por exemplo, o Guilherme Junqueira que vem aqui todo dia, abre o teatro, assiste a todos os ensaios, me ajuda na assistência de direção, arruma o cenário, não ganha porra nenhuma. A gente não tem dinheiro para pagá-lo. Mas o que ele aprende aqui em seis meses, vai aprender em quatro anos de escola de teatro, porque está vendo o dia a dia de fazer uma peça, levantar um espetáculo, a dureza que é discutir com o ator, montar uma luz, um som. Ele é dramaturgo também, quer ser diretor, tem uma troca aí. E a hora que sai um edital, dinheiro, o cacete, eu chamo justamente essa rapaziada. Se sair, sei lá, Petrobrás, o que vou fazer? Chamar ator famoso pra trabalhar já que vou ter dinheiro para pagar? Não, vou chamar quem está comigo. Isso mexe na linguagem também, entre outras coisas, porque você está lidando sempre com uma turma muito jovem que está aprendendo. Mas também tem um monte de contemporâneo meu trabalhando comigo. O Nelsinho Peres é mais velho que eu, é um ator que trabalha com o maior prazer comigo há mais de dez anos, a gente sempre se fodendo junto, quando sai a gente ganha uma graninha, mas quando não sai, trabalhamos igual e não ganhamos nada. E o Nelson, para mim, é um dos grandes atores do Brasil. Não é reconhecido porque nunca fez nada relevante em televisão, que é onde se destacam os atores. Mas ele é um ator que começou com o Marco Ricca nos anos 1980, no Teatro Bixiga, com o Necas de Pitibiriba, que eu assisti em 1986 em Presidente Prudente. Fiquei fã, amigo desse cara, e ele trabalha comigo até hoje.


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Tem um monte de ator que trabalha comigo, por exemplo o Paulo de Tarso, botei ele no teatro com quase 50 anos, todos meus contemporâneos. Tem uma rapaziada que eu acho que é fodida, mas tem uma coisa de radicalismo neles. O Nelson, por exemplo, só faz coisas que interessam a ele. Ele prefere fazer O Capote do Gogól o resto da vida dele, um monólogo difícil, complicado, para três pessoas, do que fazer uma peça Trair e coçar é só começar. É a linguagem dele, é o que interessa a ele. Por isso a gente se dá bem. Depois da mostra de 2000, você fez outra grande, não? Sim, em 2002. Foi mais importante. Na primeira eu ganhei uma pá de prêmios, mas em 2002 foram 26 peças, 79 atores. Então tinha um moleque recém-saído do Macunaíma ou do Célia Helena, 18 anos, trabalhando com o José Carlos Machado, com cinquenta e poucos. Esses caras da velha guarda podiam ensinar muito para os moleques, tinha uma troca de interesses entre eles que me chamava muita atenção. Tinha o José Carlos que é consagrado do grupo Tapa, tinha acabado de fazer uma cena comigo, terminou e me perguntou: “e agora o que eu faço?”, ele queria trabalhar, montar uma luz... Sabia que esse era o jogo também. Aí a molecada olha para um cara daquele e pensa: “Por que eu vou ficar sentado aqui? Vou subir na escada também!” Isso é do cacete. Isso que é rico do trabalho. Essa molecada que vem aqui me deixa muito feliz por ter contato com atores mais velhos, eles entram aqui e tomam um uísque comigo no balcão, mas não só atores. Quando me dizem que fui um dos que revitalizou a Praça Roosevelt, eu acho besteira no sentido teatral. Minha grande contribuição para a Praça foi trazer para ela não atores, mas escritores, músicos de rock, que são meus amigos também. Quando fazia teatro em Londrina também era assim, não era público teatral. Vinham grafiteiros, poetas, músicos de rock, pessoas que não

gostam de teatro também. O Paulão do Velhas Virgens fala um negócio bacana: “Não gosto de teatro, gosto das peças do Mario”. A Clarah Averbuck fala a mesma coisa. Tem essa coisa porque falo numa linguagem mais próxima da deles, não fica aquele teatrão. Como eu faço rock, poesia, literatura, trago um público diferente. Se tenho uma contribuição é trazer gente que não é ator para beber, guitarrista, Angeli, Laerte. Esses dias estavam os dois bebendo aqui com a gente. Isso é bacana. Aí vem o João Pirolla, o Pedro de Rosa, filho do Frank de Rosa, fez a última exposição aqui, desenha para caralho, e ele conversar com o Angeli, para ele é muito bacana. O Angeli nunca sai de casa, veio aqui porque estava no Parlapatões, estava de saco cheio, queria um lugar para beber. Aí a Jack falou assim: “o Mario tem um bar ali em cima”, e vieram. Aí vem todo mundo. Tem essa troca. Esses dias o João Pirolla esteve aqui, desenha para caralho, vai ser um dos grandes desenhistas. Quando chegou o Kitagawa aí ele ficou impressionado. Me sussurrou: “Esse cara é o Kitagawa?” Eu não tinha noção de como o Kitagawa é um ídolo para eles, como o Carlos Machado era um ídolo para mim, como o Roberto Piva era um ídolo para mim, Reinaldo Moraes era um ídolo para mim. O Kitagawa não tinha essa noção. O olhinho dele brilhou. Por enquanto a gente não ganha nada com o teatro, tem que pagar aluguel, funcionário... Mas não é comprado? O ponto é. Mas o aluguel pagamos todo mês. Imagina, não tenho dinheiro para comprar isso aqui. Compramos só o ponto, e mesmo assim, sou eu e mais três sócios. O Carcarah, o Bazza e a Dani. Somos quatro. O que mantêm aqui é o bar e aluguel de sala de ensaio, porque o teatro não dá dinheiro. Bilheteria é pouca, dividida entre os atores. Não vou pegar o dinheiro dos atores. Mas o espaço de convivência é cada vez mais central na vida urbana.

Acho que o jeito de conseguir isso hoje em dia é fazer igual nos anos 1980. Se quer fazer um teatro de 300 lugares, a peça vai ter que ser comercial para mantê-lo, tem que ser uma peça que lote todo dia com ingresso a cinquenta reais, sessenta. Senão não dá para manter o espaço, pagar funcionário, é muito caro. A não ser que tenha subsídio do governo, como tem às vezes. Mas um teatro particular não tem como, é igual cinema, não dá para passar um filme bacana mais. Vem o Beto Brant, lança o filme dele, fica uma semana e tem que tirar de cartaz. Cineasta sabe disso. A saída é ter espaços pequenininhos como esse aqui. Para passar seu filme durante uns dois meses, nem que seja em um horário só, às duas horas da tarde. Tem que ter esse espaço, senão não consegue, não tem mais cineclube, não tem mais as salinhas do Biju, Oscarito, cineclube Bixiga. Não existe mais. Então você passa seu filme no cinemão e vai ficar uma semana no máximo em cartaz. O “Augustas” que eu fiz não foi nem lançado no cinema. A saída são os espacinhos pequenos, faz um programa, duas horas um filme, quatro outro, fica um mês em cartaz pelo menos, para ter tempo de fazer a propaganda no boca a boca. Senão não dá. “Tem um filme legal da Marcela sobre o Cildo Meireles passando lá duas horas da tarde”. Aí você fica sabendo e vai. Eu consigo manter uma peça três, quatro meses em cartaz por causa disso, e eu preciso manter, não dá para fazer a peça e um mês depois tirar de cartaz, não dá tempo de as pessoas verem. Sofremos muito com isso. Se o Centro Cultural me der uma temporada, vai dar um mês no máximo. Quando a peça começa a pegar, as pessoas começam a gostar, você tem que tirar de cartaz. Geralmente tem quatro semanas, a primeira é legal por causa dos amigos, dá uma bombadinha. A segunda semana cai violentamente, terceira semana cai; na quarta, começa a subir porque as pessoas começam a descobrir a peça. Aí na quinta semana, quando você pode começar a dar certo, a peça sai de cartaz. Por isso acho que é necessário se criar outros espaços mais livres para circulação da cultura.


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<Agenor Custódio, índio Terena (MS), mediando uma mesa.

I ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES INDÍGENAS O

Universidade Federal de São Carlos, setembro de 2013: cerca de 400 pessoas, entre profissionais e lideranças indígenas de 51 povos de todas as regiões do Brasil se reúnem para realizar o I Encontro Nacional de Estudantes Indígenas. Fruto de iniciativa dos próprios estudantes indígenas da UFSCar, o encontro visa discutir as “metas e desafios no caminho do ensino superior”, debatendo durante toda uma semana temas como as ações afirmativas e os povos indígenas, educação escolar indígena, pesquisa e extensão em territórios indígenas, saúde indígena e a formação de indígenas na área da saúde, e o movimento indígena no Brasil e suas contribuições para a formação de indígenas. O fato do primeiro ENEI ter sido concebido e acontecido em São Carlos não é mero acaso. Desde 2007 a UFSCar recebe alunos indígenas em vagas complementares abertas em todos os cursos nos seus três campi, por meio de vestibular indígena. E em 2013 foi inaugurado o Centro de Culturas Indígenas (CCI), onde os estudantes passaram a se reunir, com o apoio da universidade. Foi no CCI que ocorreram as nove reuniões semanais onde se formulou e organizou o evento, com participação dos estudantes indígenas e da professora de antropologia Clarice Cohn, que ajudou na articulação institucional do evento. A proposta do ENEI é a criação de um evento em que todas as mesas sejam compostas por indígenas – lideranças, estudantes, formadores, profissionais atuantes em diversas áreas – para debater os principais temas referentes ao acesso, à permanência e a formação de profissionais indígenas. A ideia foi a de, ao invés de fazer mais um evento acadêmico em que a fala é dos não indígenas, chamar “nossas lideranças, que são nossa inspiração”, como formulou Mayara Suny na apresentação do projeto para a reitoria da universidade. O evento foi um importante espaço de trocas de ideias, experiências, e também de manifestações culturais. Para além das mesas de debate, foram ainda realizadas as exposições PANKARARU: O POVO DOS ENCANTADOS, com fotos tratadas por Paulo Henrique Pankararu, no saguão da Reitoria, que mostra o orgulho de ser Pankararu, e QUINTAIS DO XINGU, do Projeto Infância, que retrata a infância indígena e ribeirinha dos povos do Xingu que têm seus rios condenados pela UHE Belo Monte, no Pará; os espaços em frente aos auditórios receberam arte e artesanato para venda; durante o evento, foi

ainda redigida e assinada pelos palestrantes uma carta de apoio aos Munduruku, levada pelos representantes Munduruku para protocolar no Ministério Público. As mesas de debates foram todas precedidas por cantos e danças dos povos presentes. Devemos ressaltar a importância desse encontro como forma de dar maior visibilidade aos estudantes indígenas dentro das instituições de ensino. Isso possibilita não apenas que os estudantes e professores não indígenas conheçam e reconheçam a existência e a presença desses alunos no espaço acadêmico, mas também possibilita um incremento nas frentes de apoio às demandas dos povos indígenas. Se um dos pontos acertados ao final do encontro foi a necessidade de descolonização, a ocupação do espaço acadêmico (não apenas com a presença dos alunos indígenas nos seus cursos, mas também com a ocupação dos espaços físicos da universidade proporcionada por esse encontro) é um passo


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Antes das mesas, danças: cada dia uma etnia chama as demais para dançarem e cantarem juntos

bastante importante de descolonização de um ambiente que é fundamentalmente elitizado e marcado por um saber pretensamente superior e excludente. As universidades precisam começar a conhecer a realidade dos povos indígenas do Brasil e se abrir para os conhecimentos e saberes indígenas, não entendidos apenas como “saberes populares”, mas reconhecendo os fundamentos desse conhecimento e sua validade, mesmo que não comprovada pela ciência acadêmica. O I ENEI permitiu também que se pautasse algo que ainda deverá ser melhor definido e debatido, que é a responsabilidade do estudante indígena com a sua formação e o retorno à sua comunidade. Fica clara a ligação do estudante indígena com sua comunidade, desde o seu ingresso na universidade, que se faz tendo em vista seu pertencimento a uma comunidade indígena, até sua formação e retorno à comunidade. No entanto, deve-se sempre ter em pauta a autonomia do estudante, que não pode ter seu destino acadêmico pautado pela universidade, mas sim por seu povo e por ele mesmo. Deste modo, a oferta de vagas diversificadas – balanceando a atual tendência em que a maior parte das formações oferecidas para indígenas são as Licenciaturas Interculturais – é fundamental, seja pela criação de outros cursos específicos, seja pela ampliação de oferta de vagas nos cursos regulares das universidades, o que já se garantiu pela chamada Lei de Cotas, e agora deve ser consolidado com um preparo das diversas universidades para acolher os estudantes indígenas, suas práticas de ensino e aprendizagem, seus conhecimentos, seus hábitos. Deve-se ainda incentivar a inserção dos estudantes em grupos de pesquisa, não o condenando a realizar apenas uma formação utilitária de retorno imediato a seu povo, mas uma formação ampla que o habilite ao diálogo intercultural e à atuação profissional com competitividade. Por fim, deve-se rever e debater os mecanismos de

controle das pesquisas realizadas em terras indígenas e com comunidades e pessoas indígenas, de modo a incentivar, e não limitar ou constranger, a atuação de formandos indígenas com seus povos e comunidades em ensino, pesquisa e extensão. É importante que se pontue que o retorno que o estudante dará a sua comunidade deve ser definido por estes, estudante e comunidade, e não pressuposto pela universidade, muito menos pelos docentes e colegas, como é comum. Deve ser, isso sim, uma construção conjunta do povo e aquele que saiu para se formar, e o retorno periódico à comunidade de origem, com apoio da universidade, do MEC e/ou da FUNAI é importante mecanismo para a participação da comunidade na formação do estudante indígena em nível superior. Deve-se respeitar, ainda, as condições de ensino e difusão dos conhecimentos indígenas, de modo a que aquilo que deve ser restrito (como, por exemplo, aspectos importantes da formação e atuação xamânica, ou conhecimentos que são familiares ou clânicos) possa continuar o sendo, o que só pode ser feito em debate com as próprias comunidades. Por fim, as universidades devem criar mecanismos de proteção aos estudantes indígenas para que eles não se tornem, a não ser quando o consintam, objetos de estudo. O I ENEI é a consolidação do encontro que tem ocorrido na UFSCar desde o primeiro vestibular indígena, que prima pela diversidade étnica, regional, e de cursos sendo realizados; assim, a UFSCar foi, neste momento, lugar privilegiado para se pensar um encontro nacional de estudantes indígenas, vivenciando a diversidade indígena e os desafios da formação em diversas áreas e da permanência na universidade, num encontro inédito que todos os presentes esperam que possa ter continuidade em uma periodicidade anual, e com rotatividade das universidades sedes em todo o Brasil.


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Vozes&Visões

Pelo colorido, para além do cinzento (remix)

por Alberto Pucheu

Jamais ouvi alguém dizer que sentiu as palavras de um crítico literário brasileiro lhe tocarem a alma, o coração ou os nervos. E não me digam que isto nunca foi requerido do teórico, porque o nascimento de um pensamento explícito acerca da poesia se deu sob esta medida: Suas palavras tocam-me a alma, diz Íon a Sócrates, no diálogo instaurador da poética. Há meses, um amigo me telefonou no meio de uma tarde para me dizer que Casa grande & senzala o levava diariamente às lágrimas, sendo, sobretudo, um livro de poeta. Quantas vezes, durante dias, eu mesmo me comovi inteiramente lendo Os sertões, livro, indubitavelmente, de poeta, que, exigindo a maior firmeza de quem o lê, treme dia após dia em nossas mãos. Nestes dois últimos exemplos, o que sobressai é a força poética da maneira como seus assuntos se acomodam, intensificando o sentido de tais escritos que, a princípio, não tinham a exigência de ser literários ou poéticos, já que seus temas se caracterizam, antes, por sociológicos, históricos ou antropológicos. Fazendo uso, ainda que deslocadamente, de um conceito do próprio Freyre, os livros citados avançam por zonas de confraternização, nas quais, através de uma aventura da sensibilidade proporcionada pela intimidade maior com a vida do assunto pesquisado, buscando não sufocar metade de nossa vida emotiva e das nossas necessidades sentimentais e até de inteligência, se estuda tocando em nervos. Tocar a alma ou tocar em nervos é o que exige um ensaísmo poético, uma teoria literária e uma crítica poética contemporânea, que, pela acomodação do tema em sua escrita enquan-

to obra, tem o impacto do assunto turbinado, levando a plena força do sentido, provinda da potência vital, a atravessar, desde uma primeira instância, a alma, o coração ou os nervos do leitor. A necessidade da poética como um pensamento da encruzilhada ou da permeabilidade que, tendo por tema a poesia, é, em sua modalidade, poético, retoma seu caminho com toda a potência do que atravessou a história ocidental, chegando até hoje. Com raríssimas exceções, entretanto, a crítica literária brasileira aborda seu objeto sem deixar a intensidade do modo poético emergir em seu próprio fazer. Se tal crítica tem alguma preocupação com a modalidade de sua feitura, é apenas, quando comparada com a literatura, num nível demasiadamente raso, exageradamente lento. Seu exercício de linguagem tem baixa carga de poeticidade, ínfima ficcionalidade assumida e descaso pela busca de uma narrativa teórica desconhecida. A importância de suas palavras talvez seja a de, nos melhores casos, tocarem o cérebro, ajudarem a fabricar, de fora, uma consciência acerca do poético, uma mediação – demasiada – para ele. Entre nós, este vínculo entre crítica e criação ganhou sua explicitação em um de nossos críticos literários mais atuantes e de maior relevância, não à toa vinculado à filosofia: Eduardo Portella. Nele, encontra-se um ponto de reviravolta possível na reflexão acerca da literatura. Vindo da hermenêutica, da valorização de uma ontologia da linguagem em detrimento de uma epistemologia, ele sabe que a interpretação, para se dar na mais alta colocação, tem de ser inventiva, ou seja, tem de assumir para si toda a liberdade e flexibilidade do fazer poético. Entrando, de fato, no campo de forças no qual se realiza a criação artística, a crítica passa a trazer para si esta mesma intensidade, requisitante de seu próprio obrar enquanto arte. Mergulhados integralmente no movimento de criação da linguagem que os absorve, crítico e poeta se misturam, confundindo-se, até o momento em que o mesmo vigor que se presencia em um determina também o outro. Isto é válido, pelo menos, para aqueles que se querem criadores, honrando os nomes de suas atividades. Descobrindo-se congêneres, conaturais, uma escrita nasce com a outra; ao invés de falar sobre a outra, abolindo a cansada dicotomia entre sujeito e objeto, fala-se com a outra, do mesmo não lugar criativo de onde a outra emerge: é


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o chamado entre texto, conceito que, de uma ponta a outra, atravessa muitos dos livros do crítico baiano. Já não cabe a diferença, portanto, muitas vezes colocada, entre o crítico, que fala sobre as obras, e o teórico ou o filósofo, que, delas, pode explicitamente prescindir; nem é, aqui, o crítico ou o teórico o legislador normativo da arte. Acatando o poético do pensamento através de um investimento maciço no sentido em sua comodidade e fazendo com que filosofia e literatura, crítica e poesia, teoria e criação, tenham suas fronteiras desguarnecidas, esta escrita indiscernível, na modalidade de sua feitura, é tão intensa quanto a poesia – é poesia. Do

[...] uma crítica não criativa não pode ver a criação. A crítica literária consiste, portanto, em apreender o movimento livre da criação. Por isso a leitura hermenêutica ou poética confunde-se com a própria obra . Por isso também, a importância da hermenêutica, num certo momento, para a crítica literária brasileira, não pode ser minimizada, ainda que, ao invés de seguida com antolhos, ela deva ser desdobrada, transformada em no-

Tocar a alma ou tocar em nervos é o que exige um ensaísmo poético, uma teoria literária e uma crítica poética contemporânea, que, pela acomodação do tema em sua escrita enquanto obra, tem o impacto do assunto turbinado, levando a plena força do sentido, provinda da potência vital, a atravessar, desde uma primeira instância, a alma, o coração ou os nervos do leitor. pensamento. Poesia filosófica. Filosofia poética. Poesia teórica. Teoria poética... No lugar do carrapato, mesmo no lugar do cão farejador treinado, o rinoceronte – aqui, é um selvagem a falar de outro selvagem. E a poesia a falar de poesia. Torna-se fácil flagrar o critério utilizado para determinar a permanência do discurso teórico ou crítico: E o ensaio é tanto mais perdurável quanto mais aceso pela poesia. No Brasil, não se escuta uma formulação como esta a qualquer instante, e acredito que ela só pode ter surgido em decorrência de uma frequentação tanto da poesia (da literatura como um todo) quanto da filosofia, como do ensaísmo brasileiro anteriormente mencionado. A requisição por uma crítica poética, entretanto, já havia se dado muito anteriormente, sendo um dos polos que motiva um livro imprescindível que é o Fundamento da Investigação Literária. Nele, num capítulo primoroso já em seu título, No Jogo da Verdade A Crítica É Criação, podem ser lidas exigências como: Ao contrário da linguagem sobre, a linguagem com procura ser, ela mesma, uma criação; mas uma criação peculiar, alimentada pela ideia de que não se fala sobre literatura de fora da literatura; ou, então:

vas possibilidades, receber influxos imprevisíveis, ganhar variações que animem ainda mais a conjunção do teórico ou crítico com o poético. Importante observar que, se, no século XX, no Brasil, poetas assimilaram o discurso teórico aos seus poemas e o poético a seus textos teóricos, o mesmo não ocorreu com os críticos, cuja quase totalidade não trouxe o poético para dentro de suas linguagens. Reciclando Antonio Candido, diria que o que está em jogo, portanto, para o novo pensamento teórico ou crítico brasileiro, para que esteja à altura da poesia, da literatura, hoje e sempre praticada neste país, é a necessidade de um pensamento poético-teórico a partir da literatura não ser cinzento, mas tão verdejante e áureo, tão colorido, quanto a obra que ele aborda.


Rafael Campos Rocha




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