Afonso Luz Fabio Maleronka Ferron José Luiz Herencia Rodrigo Savazoni Sergio Cohn Organização
Coordenação geral do projeto e entrevistas Fabio Maleronka Ferron | Beijo Técnico Coordenação editorial, entrevistas e edição final dos textos Sergio Cohn | Azougue Editorial Projeto gráfico e capa Carolina Noury | Azougue Editorial Preparação de texto Heyk Pimenta, Ismar Tirelli Neto, Larissa Pinho Alves e Luana Maria | Azougue Editorial Revisão Eduardo Coelho, Evelyn Rocha, Letícia Féres e Victor Heringer Fotografias Gabriela Barreto, Leo Caobelli, Paulo Fehlauer e Rodrigo Marcondes | Garapa Multimídia Pesquisa Georgia Nicolau, Fernanda Versolatto e Laura Godoy Participação especial em entrevistas Aline Rabelo, Aloísio Milani, Lia Rangel, Lucas Pretti e Rodrigo Savazoni -BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P956 v.3 Produção cultural, volume 3 / - Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2010. 5v. ISBN 978-85-7920-048-9 1. Arte - Brasil. 2. Recursos audiovisuais. 3. Artistas - Brasil - Entrevistas. I. Cohn, Sergio. II. Maleronka, Fábio. 10-5889. 11.11.10
CDD: 709.81 CDU: 7.036(81) 18.11.10
[ 2010 ] Beco do Azougue Editorial Ltda. Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 CEP 22461-000 - Rio de Janeiro - RJ Tel/fax 55_21_2259-7712 www.azougue.com.br azougue
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- mais que uma editora, um pacto com a cultura
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MINISTÉRIO DA CULTURA João Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Ministro de Estado da Cultura Alfredo Manevy Secretário Executivo José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Afonso Luz Diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais CINEMATECA Carlos Magalhães Diretor Executivo SAC | SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA Maria Dora Genis Mourão Presidente da Diretoria Executiva Leopold Nosek Vice-Presidente da Diretoria Executiva
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Os depoimentos reunidos nestes livros – bem como os materiais audiovisuais relativos, à disposição de todos, na internet – são esclarecedores e tocantes. São testemunhos de como se realiza a arte e a cultura no Brasil, não apenas nos anos mais recentes, mas ao longo das últimas décadas. A escolha dos entrevistados reflete esse interesse comparativo e reflete a disposição de ouvir diferentes gerações, profissionais de múltiplas procedências, com variada formação, variadas trajetórias e experiências complementares. Essa diversidade constitui a riqueza desta série, sobretudo quando considerada em seu conjunto, aliás, sem precedentes na vida cultural brasileira. Sabemos que o Brasil é um país multifacetado, com particularidades e disparidades regionais e locais. Um país cuja compreensão exige de nós um olhar aberto para essas variações. Num projeto como este, este olhar é fundamental. Se aquilo que está em questão é tentarmos compreender a complexidade de uma cultura e seus modos de elaboração, isso é impensável sem um cuidado especial, sem um olhar atento para essa diversidade. Nesses cinco volumes, todos temos a oportunidade de conhecer melhor figuras estruturais do sistema artístico e cultural brasileiro. Seus leitores terão também a opotunidade de reencontrar antigos conhecidos – além de poderem conhecer os “novos”, os que surgiram na cena da nossa produção cultural mais recente. Desses contrastes e dessas perspectivas faz-se a força da produção artística e cultural brasileira, de nossos artistas, produtores, técnicos, pesquisadores e gestores de instituições públicas e privadas. A política cultural brasileira atingiu um nível inédito de formulação, base para o surgimento de instrumentos de planejamento e marcos legais que fortaleçam as instituições culturais brasileiras e tornem os dispositivos de financiamento à arte e à cultura, bem como o sistema de propriedade intelectual, capazes de enfrentar os desafios do Século XXI. Nada disso seria possível, contudo, sem o intenso e extenso diálogo que a série Produção Cultural no Brasil representa, como conquista, sim, de todos os que estão presentes no projeto, mas também dos milhares de profissionais eventualmente ausentes desse recorte. Nossos aplausos para todos eles! José Luiz Herencia Secretário de Políticas Culturais Ministério da Cultura
AGITADOres culturais Albino Rubim Pesquisador de políticas culturais 13
Heloísa Buarque de Hollanda Diretora da Aeroplano Editora, crítica literária e pesquisadora 23
Ailton Krenak Fundador da ONG Núcleo de Cultura Indígena 33
Sérgio Rodrigues Designer de móveis 43
Kiko Farkas Designer e diretor do Máquina Estúdio 53
John Neschling Maestro e diretor da Cia. Brasileira de Ópera 63
Ivaldo Bertazzo Coreógrafo 73
Tindaro Silvano Coreógrafo 83
Zé Celso Martinez Correa Dramaturgo e fundador do Teatro Oficina 95
Ivam Cabral Fundador e diretor da Cia. Teatral Os Satyros 107
Eduardo Tolentino Fundador e diretor do Grupo Tapa 119
Sérgio de Carvalho Diretor e dramaturgo da Companhia do Latão 127
Cao Guimarães Artista plástico, cineasta e fotógrafo 137
Chacal Poeta e fundador do Centro de Experimentação Poética (CEP 20.000) 147
Marcelino Freire Escritor e organizador da Balada Literária 157
Sergio Vaz Poeta e articulador da Cooperifa 171
Rui do Carmo Poeta e articulador do Movimento Literário Extremo Norte 185 8
Aroldo Pedrosa Compositor, escritor e editor da Revista Vanguarda Cultural 195
Moraes Moreira MĂşsico e compositor 203
Inezita Barroso Cantora e apresentadora de TV 213
Manoel Salustiano Diretor do Maracatu Piaba de Ouro 221
GOG Rapper 231
Kim Marques Compositor e cantor de tecnobrega 241
MC Leonardo Compositor e cantor de funk carioca 255
Regina Barbosa Articuladora da ONG IdeĂĄrio 265
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Albino Rubim Heloísa Buarque de Hollanda Ailton Krenak Sérgio Rodrigues Kiko Farkas John Neschling Ivaldo Bertazzo Tindaro Silvano Zé Celso Martinez Correa Ivam Cabral Eduardo Tolentino Sérgio de Carvalho
AGITADORES CULTURAIS Cao Guimarães Chacal Marcelino Freire Sergio Vaz Rui do Carmo Aroldo Pedrosa Moraes Moreira Inezita Barroso Manoel Salustiano GOG Kim Marques MC Leonardo Regina Barbosa
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Albino Rubim Pesquisador de políticas culturais.
O que é produção cultural? “Produção cultural” é um termo muito ambíguo, que abarca vários sentidos. Na acepção mais clássica, produção cultural é tudo aquilo que se produz culturalmente. Posto melhor, tudo aquilo que a cultura produz. No caso particular do Brasil, produção cultural se tornou sinônimo de um determinado tipo de atividade dentro da cultura, uma atividade organizatória. A cultura precisa de elementos de organização tanto quanto de elementos de criação, de preservação, de fusão. Ela precisa ter um momento de organização. Dentro desses momentos de organização, há os gestores, os formuladores das políticas culturais e o pessoal de produção. Quantas profissões cabem nessa designação de “produtor”? Bom, a própria palavra já é carregada de ambiguidades, se você considerar cada área da cultura em separado. Por exemplo, o trabalho de um produtor de cinema é bastante diferente do trabalho de qualquer outro produtor. Tenho para mim que, sem querer dar muita precisão à palavra, o produtor é o momento de organização da cultura. No caso do Brasil, especificamente, o produtor não precisa ser um criador. Ele pode ser criativo em sua ocupação – por exemplo, bolando projetos inovadores. Mas ele não está vinculado ao 13
momento da criação, onde se situam os cientistas, os artistas, os intelectuais. Portanto, esse “produtor” é, basicamente, todo profissional que organiza ou viabiliza a criação. O papel do produtor mudou muito após a Lei de Incentivo? Na verdade, existe certa hegemonia da figura do produtor aqui no Brasil. Nisso, diferimos muito dos outros países, inclusive os latino-americanos. Vamos pensar historicamente: no Brasil, tivemos um período – dos anos 1930 até o governo Sarney, talvez – em que o estado se responsabilizava pelo financiamento da cultura. Nesse momento, não se criou a figura do gestor cultural, tão comum em outros países. Quem assumia a organização da cultura era, na verdade, o filho do político tal, que gostava de poesia, e coisas do tipo. A relação do Estado com a cultura era absolutamente amadora, no pior sentido da palavra. Donde temos esse déficit. Quando a Lei de Incentivo começa, durante o período Sarney, na década de 1980, a situação piora ainda mais. A ênfase recai sobre outra figura, que é o produtor cultural. Deslocou-se o eixo das instituições organizadoras da cultura, como os centros culturais, para o indivíduo que vai produzir um seminário ou um evento etc – ou seja, quem vai captar recursos. A relação começa a ser totalmente a partir disso. A lógica da Lei de Incentivo se fortalece tanto que o produtor cultural acaba ganhando uma predominância desmedida. Começam a surgir cursos de produção cultural nas universidades, mas não de gestão cultural, salvo raras exceções. Enfim, quando o governo Collor acaba com a Lei Sarney, não é a lógica do Estado como financiador da cultura que volta, por motivos óbvios. O que acontece é que a lógica da Lei de Incentivo acaba se expandindo para estados e municípios. Veja que coisa perversa – acaba-se com a lógica do incentivo nacional e cria-se a lei de incentivo nos estados e municípios. É impressionante ver como, naquele momento, até mesmo setores de esquerda recorreram à Lei de Incentivo. Quer dizer, se o Estado não está mais intervindo na cultura, o que predomina é a da Lei de Incentivo, e todos começam a pensar a partir dessa lógica. No Brasil, há uma imensa dificuldade em pensar essas relações Estado-cultura. Partese do princípio que seria uma relação dirigista por definição. Isso não é um problema na área das ciências, por exemplo, oitenta a noventa por cento das pesquisas universitárias brasileiras são financiadas pelo Estado – os cientistas não têm nenhuma dificuldade com isso, não acham que estão sendo dirigidos pelo Estado. Por outro lado, esse deslocamento de eixo do Estado para a 14
Lei de Incentivo mexeu tanto com a cabeça do pessoal da cultura que hoje eles têm uma dificuldade imensa para entender como as coisas funcionam. Protestam que as Leis de Incentivo precisam ser regularizadas, para que não sejam concentradoras, tanto em termos de projeto quanto de região. Mas a lei de incentivo não foi feita para bancar a diversidade da cultura brasileira. Não se pode exigir que a lei de incentivo obedeça à mesma lógica do Estado. Este sim, tem um compromisso com a diversidade cultural brasileira. A Lei de Incentivo é um mecanismo imediatista de produção, não oferece soluções em longo prazo. Como pensar esse processo, torná-lo menos efêmero? Será preciso mesmo valer-se de políticas de Estado? Creio que estamos navegando em dificuldades de nomenclatura. O próprio termo, “políticas de Estado”, precisa ser distinguido de “políticas estatais”. Políticas estatais são quaisquer políticas feitas pelo Estado – o que inclui tanto políticas de Estado como de governo. “Política de Estado” é uma política que transcende um determinado governo. O próximo governante não poderá desfazer. Na área de cultura, infelizmente, nunca conseguimos implementar uma política de Estado. Temos uma longa história de instabilidade política – no campo da cultura isso fica ainda mais pronunciado. O exemplo maior disso é o período da implementação do Ministério da Cultura, de 1985 até 1994 – tivemos onze responsáveis pela cultura num período de nove anos. Isso é uma loucura. Como superar essa instabilidade? Algumas propostas que estão sendo levadas agora parecem ter esse potencial. Por exemplo, os Pontos de Cultura. Apesar do entusiasmo com que o projeto foi recebido, ele não tem potencial para se tornar política de Estado. Essa não é uma preocupação intrínseca ao projeto. Ao passo que o Sistema Nacional de Cultura tem. Se for implantado – e bem implantado – ele tem capacidade de se tornar uma política de Estado no campo da cultura. O Plano Nacional de Cultura também tem essa capacidade, muito embora eu tenha críticas seríssimas à sua configuração atual. O Plano, que é uma iniciativa do Congresso, não do Ministério da Cultura, prevê que tenhamos um Plano Nacional de Cultura para dez anos, o que é ótimo – inclusive, isso já existe em outros países latino-americanos, como a Colômbia. A ideia de um Plano que transcenda governos é boa, desde que o plano seja algo exequível. Nosso Plano Nacional de Cultura foi construído de forma muito democrática – muitos setores da sociedade foram ouvidos. Portanto, juntou-se uma quantidade enorme de 15
demandas e reivindicações. É ótimo que a iniciativa seja democrática, mas falta o passo seguinte, o passo mais difícil: priorizar. Um plano com duzentas diretrizes não pode ser executado em dez anos apenas. Enfim, é um plano que julgo inexequível da forma que está – mas que é fundamental, no sentido de termos uma política de Estado. Quanto ao aspecto de mercado da Lei Rouanet, como vê as decorrências de uma cultura patrocinada a priori? Por exemplo, um diretor vai montar uma peça, mas não está preocupado com o público, porque a peça já está paga... Sou muito crítico às leis de incentivo. Não sou contra, absolutamente. Mas acho que tomaram dimensões descabidas, ocuparam lugares que não deveriam ocupar. Veja bem: o que é uma Lei de Incentivo, como se vê em qualquer outro país? É uma maneira de financiar a cultura que se insere num sistema de financiamento bem mais amplo. Neste caso, não vejo problemas. Já no Brasil, as leis de incentivo inibiram outras formas de financiamento. Nisso já reside uma deturpação imensa. Uma coisa é a Lei de Incentivo estar no bojo de um sistema de financiamento, outra é ela ser a única forma existente de financiamento cultural de um país. Em determinados governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, a Lei de Incentivo se tornou a política cultural. Veja que equivocado – é a parte que se torna todo. A versão brasileira da Lei de Incentivo é perniciosa em vários sentidos, na verdade. Qual é o sentido de fazer uma Lei de Incentivo que dá 100% de isenção? Qual é o sentido, se todo o dinheiro é público? Em muitos países, 50% já criaria um debate público. Aqui no Brasil é 100% mais despesas operacionais. A Lei de Incentivo, em vez de incentivar a iniciativa privada a investir na cultura, vicia a iniciativa privada, porque está dando dinheiro público. É muito problemático dar poder de decisão sobre o dinheiro público a empresas. Comparemos, por exemplo, o financiamento do cinema brasileiro com o do cinema argentino. O cinema brasileiro é totalmente preso à lógica da Lei de Incentivo, portanto, os produtores de cinema dependem do aval das empresas para que o filme seja feito. Como se faz na Argentina? Há um conjunto de taxas, cobradas a partir de produtos audiovisuais. Essas taxas são reunidas num fundo. Esse fundo é administrado pelo Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais, INCAA, e é esse o instituto que financia o cinema argentino. Aí argumentam: “Isso é dirigismo do Estado argentino.” Não, não é. O INCAA faz editais, seleções 16
e conta com pessoas do campo cinematográfico na avaliação dos projetos. Mais ou menos o que acontece com o CNPq aqui. Por exemplo, quem julga os projetos de sociologia que devem ser financiados? Pares da área de Sociologia. Seria um exagero, em minha opinião, dizer que o CNPq tem um papel de dirigismo na ciência brasileira. Mas voltando ao cinema – o resultado dessa política de financiamento acaba gerando um cinema muito melhor que o nosso. Claro, há exceções, mas no todo, é melhor. Há muito mais liberdade de criação e experimentação, porque os realizadores não estão presos a uma determinada lógica de produção que vem das empresas. Ou seja, é uma diferença substantiva, radical. E há outros problemas – a questão da concentração regional, por exemplo. A questão da diminuição do público, que é uma tragédia da Lei de Incentivo. Para ter uma boa política cultural, é preciso desenvolver uma economia da cultura na lógica da própria cultura, ou seja, que tenha públicos consumidores. Enfim, há inúmeros pontos fracos. Você pode falar um pouco sobre a Enecult? A Universidade da Bahia tem uma tradição cultural muito grande. Foi criada em 1946, e já na década de 1950 estava bem avançada em diversas áreas artísticas, sendo pioneira no ensino de dança, por exemplo, e no teatro. Essa é uma tradição que se manteve no longo dos anos – inclusive, fomos uma das primeiras universidades a implementar um curso de Produção Cultural. Nos últimos tempos, a universidade também se expandiu um bocado em relação aos cursos de pós-graduação. Temos pós-graduação em praticamente todos os campos da arte – e temos um programa multidisciplinar de pós-graduação, no qual trabalho, chamado Cultura e Sociedade. Isso só para firmar o quanto investimos no campo da cultura e no campo da pesquisa sobre cultura. Então criamos o Enecult ou Encontro Nacional de Estudos Multidisciplinares em Cultura. É um encontro muito singular, no sentido de que não é um encontro de pessoas de História que fazem História da Cultura, não é um encontro de pessoas de Sociologia que fazem Sociologia da Cultura, é um encontro que junta pessoas de todas as áreas. Este ano participaram 61 universidade ou instituições de ensino superior, do Brasil e do exterior. Ao todo, 330 trabalhos foram apresentados. A partir disso, temos tentado – com muita insistência – ressaltar a importância da universidade junto ao Ministério. A universidade foi deixada de lado. Quando o Ministério da Educação se separou do Ministério da Cultura, em 1985, a gente ficou no seguinte drama: o pessoal do Ministério 17
da Cultura dizia: “Não, vocês não tem nada a ver com a gente. Vocês são com a Educação.” O pessoal da Educação, quando a gente falava em cultura na universidade, respondia: “Não, isso é coisa do Ministério da Cultura, não é coisa do Ministério da Educação.” Enfim, as universidades – e toda a atividade cultural ligada a elas – ficaram no limbo. Como tem se dado esse diálogo com o Ministério da Cultura? Temos dialogado muito com o Ministério da Cultura. Tenho insistido muito junto ao Ministério quanto à formação de gestores culturais – figura que, como já disse, mal existe no Brasil. As instituições brasileiras de cultura já sofreram muito com essa falta. Muitos centros culturais caíram nas mãos de pessoas totalmente incompetentes, mas bem relacionadas. Outros tantos caíram nas mãos de intelectuais, que precisaram se virar. Desses intelectuais, muitos se tornaram bons gestores. Mas isso não ameniza a dívida do Ministério quanto à formação específica desse tipo de profissional. Chegamos a propor ao Ministério, há uns três anos, um projeto nesse sentido. O primeiro passo consistia num mapeamento abrangente dessa área, que denomino organização da cultura. A partir desse mapeamento, faríamos um levantamento das instituições mais interessantes, qualificadas e consistentes e proporíamos uma espécie de rede, a partir da qual se criasse um programa de formação unificado. O Ministério trabalharia junto a essas instituições, dialogando e negociando de modo a construir uma política de estado, algo que o governo sucessor não pudesse desmanchar. Nessa ocasião, o projeto não foi à frente. Mas, recentemente, o projeto foi retomado pelo Ministério e formaram-se dois grupos. Um para elaborar o curso-piloto de gestão cultural, outro para executar o mapeamento proposto. Coordenei o grupo de mapeamento, que, por questões de financiamento, realizou a maior parte da pesquisa online. Partimos do pressuposto de que qualquer curso na área cultural, mesmo um cursinho desses de extensão, teria um site, um blogue, alguma espécie de franquia eletrônica. Levantamos quase setecentos cursos de quase trezentas instituições, desde cursos de extensão até cursos de doutorado e pós-graduação; grande parte desses cursos eram cursinhos que pretendem ensinar produção cultural, captação de recursos e elaboração de projetos em dois ou três dias, no máximo uma semana. Nossa área está infestada desse tipo de curso – costumo chamar de “cursos Wallita” –, cuja única real finalidade é colocar dinheiro no bolso dos organizadores. Nós nos concentramos em cursos mais consistentes, de gra18
duação e pós-graduação, e complementávamos as informações pelo telefone, porque – como já disse – não tínhamos recursos suficientes para realizar uma pesquisa empírica. De qualquer maneira, creio que desenhamos um panorama muito bom. A ideia do mapeamento não é importante por si só, e sim porque viabiliza a detecção de instituições interessantes no Brasil inteiro, que depois tentaremos articular numa espécie de rede. O que queremos é criar uma rede efetivamente nacional junto ao Ministério, a partir da qual se formem profissionais que atuam especificamente na área de gestão cultural. Como o senhor acha que estão os cursos? Bom, desses setecentos, há em torno de trinta cursos realmente interessantes. Pouquíssima coisa, e todas as opções muito desiguais em termos de currículo. Uns mais focados na área artística, outros nas questões da comunicação. O próprio curso de Produção Cultural da Universidade Federal da Bahia é mais orientado para a comunicação – por exemplo, é um curso que tem Teoria da Comunicação, mas não Teoria da Cultura. Nesse caso, existe o risco do aluno acabar se tornando especialista em enquadrar projetos, não é? Sim. É um curso que corre o risco de se tornar técnico demais. O aluno aprende a fazer projetos e a captar recursos, mas não tem uma visão mais crítica da cultura, não tem um embasamento consistente. Um produtor não pode encarar a cultura de maneira tão instrumental. Um gestor cultural deve estar completamente imerso na cultura. Mas os cursos, às vezes, caminham em outra direção. E, entre os próprios alunos, vez por outra predomina uma visão mais instrumental. Essa é uma questão muito importante: a formação de um contingente crítico capaz de refletir sobre o momento atual da cultura. Como estimular? Esse tipo de pensamento é da alçada da universidade? Tenho para mim que a reflexão crítica sobre a cultura é dever da sociedade como um todo, não se restringe a um determinado setor. É fato que o Brasil está se desenvolvendo, colocando-se no mundo de outra maneira, mas o que é que a cultura está dizendo sobre essas mudanças? É aí que reside o descompasso. Nós, que estamos nessa área, não temos discutido isso. Mas, na verdade, esse silêncio é muito maior. Os intelectuais e os artistas têm 19
refletido muito pouco sobre a cultura. E há muito o que refletir hoje em dia. Existe toda uma dinâmica cultural nova, por exemplo, nas periferias das grandes cidades. Violência e circuitos alternativos de cultura convivem no mesmo espaço. O que isso significa, em termos de cultura brasileira? Qual o impacto disso? O que tem se refletido sobre isso? O que nós, intelectuais, pessoas inseridas no campo da cultura, temos dito sobre isso? O que as universidades têm dito sobre isso? Em determinados momentos de nossa história, grandes movimentos culturais e de reflexão sobre a cultura correram em paralelo. Nos anos 1930, por exemplo, a revista Boletim de Ariel – periódico de discussão cultural – tinha uma tiragem de dez mil exemplares e imensa repercussão cultural na sociedade. Nos anos 1960, a par de uma vida cultural riquíssima, havia também uma riqueza incomum em termos de debate. Hoje em dia, você tem um movimento considerável na sociedade, mas existe uma imensa dispersão cultural da reflexão. Há diferença entre o gestor e o produtor de cultura? Eu colocaria a coisa mais ou menos nos seguintes termos: o campo da organização da cultura se divide, grosseiramente, em três áreas. Uma abarca os formuladores de políticas culturais, que são os profissionais que pensam a cultura no sentido mais amplo, mais geral. Outra área abarca o pessoal que faz gestão de instituições culturais, que se dedica a projetos de longo prazo na área da cultura. A terceira área abarca o produtor cultural, figura mais vinculada à produção de eventos específicos e à captação de recursos. No que diz respeito à formação de técnicos na área de cultura, como câmeras, maquinistas, iluminadores – de que forma o senhor se posiciona? Aqui teremos de lidar, de passagem, com a perversidade da sociedade brasileira. Existe, em nosso meio, um ranço dos tempos da escravidão que faz com que as pessoas vejam trabalhos técnicos como trabalhos menores, o que é absurdo. Por exemplo, qual é a formação que um cinegrafista televisivo tem? Isso pode estar mudando agora, mas há pouco tempo eles se tornavam câmeras por acaso, não havia nenhuma formação específica para isso. Ou seja, delegava-se a captação da imagem – a parte mais importante de todo o processo – a pessoas que não tinham formação nenhuma. Ou seja, há um preconceito imenso e sem razão quanto à técnica e à tecnologia, o que é muito pouco produtivo para uma cultura. 20
Enquanto estávamos falando sobre estas questões de formulação, ocorreu-me algo relacionado ao pensamento em longo prazo. Quando se pensa em produção, é possível pensar em etapas? Bom, acho cansativo ficar batendo na política como se todos os corruptos e medíocres do mundo tivessem caído lá, e todos os outros campos fossem maravilhosos. Não é o caso. Mas mesmo assim não há como negar que algo bem nocivo aconteceu com a política brasileira – talvez com a política internacional – nos últimos tempos, que se traduz numa nítida incapacidade de pensamento estratégico. Não se pensa mais sobre o futuro da sociedade. Ficamos presos demais ao presente, às pequenas mudanças presentes. Esse excesso de realismo na política é tão nocivo quanto a utopia de antes, que só via o futuro radioso e se aniquilava para as demandas do presente. Para fechar, o senhor pode falar um pouco sobre o salvacionismo via cultura? É possível delegar um papel de reabilitação social à cultura? Veja bem... Existem certas palavras mágicas para o discurso da cultura contemporânea. Hoje em dia, em qualquer debate sobre a cultura contemporânea escuta-se o termo “centralidade da cultura” ou “transversalidade da cultura”. Por um lado, isso é muito positivo, porque se reconhece que a cultura não é um campo isolado, ela se articula com a economia, com a política, com várias outras áreas. Mas há um lado negativo. A cultura acaba se tornando dependente de vários outros fatores, começa a ser avaliada a partir de valores secundários. Um projeto não é culturalmente válido só porque faz inclusão social. Um projeto não é culturalmente válido só porque produz emprego e renda. Um projeto é culturalmente válido porque é cultura, compreende? A cultura institui valores, sociais ou estéticos. Isso é importante em si, não porque inclui ninguém, não porque salva ninguém do crime. Uma coisa é você encarar o fato de que há transversalidade. Outra é achar que a cultura precisa resolver o problema da humanidade. Esse tipo de atitude é mitificante, acaba jogando um peso sobre os ombros da cultura que ela não pode suportar. A cultura pode ser transversal, mas ela tem uma dinâmica própria, e não pode ser medida a partir critérios pertinentes a outras áreas. A cultura tem sua própria medida, e o problema da renda do brasileiro, o problema da violência na nossa sociedade são da sociedade como um todo, não de um segmento só.
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Heloísa Buarque de Hollanda Diretora da Aeroplano Editora, crítica literária e pesquisadora.
Como tirar a pesquisa do anteparo tese? É muito difícil! Eu até tento convencer os meus orientandos a não fazer tese. Porque é impossível trabalhar com esse formato hoje. Não tem liberdade nenhuma, para mudar alguma coisa é preciso fazer uma petição, uma explicação e todo mundo tem que concordar. É um formato rígido que ninguém consegue driblar. Por exemplo, na Escola de Comunicação, é preciso colocar a palavra “comunicação” não sei quantas vezes numa tese para ser reconhecida pela Capes. É quase impossível. Eu falo para os meus orientandos colocar logo no título “teatro alternativo e comunicação”, “produção de livro e comunicação”, senão não é reconhecida, porque é a palavra-chave que vale, não é conteúdo. É uma loucura. As regras acadêmicas são completamente paralisantes, não tem conversa. Tese é uma coisa do século XIX, do começo do século XX, e nunca foi revista, então tem que acabar com isso. E a defesa da tese é uma situação patética, existe uma banca que tem obrigação de te colocar numa posição de ré, e você tem que se defender. A palavra é “defesa”! Então você escreve uma tese para se defender, não para inventar, para ultrapassar fronteiras, para inovar. Porque a inovação é sempre uma área de risco, e se você tem que se defender, não vai se colocar em risco, vai ficar no saber já consolidado. A tese é uma fogueira que você tem que pular ritualmente, para 23
começar a trabalhar depois. E eu percebi que as pessoas fazem tese e depois entram em orfandade profunda. Até a tese tem-se o orientador, a banca, que é uma referência, já se escreve pensando no que a banca vai perguntar. Há todo um entorno que serve de suporte. Depois o pesquisador vira doutor e não tem mais interlocutor da universidade. Não tem espaço nenhum onde se possa discutir ideias. Não tem espaço para continuar dialogando. É possível dar aula, ser orientador, chefe de departamento, um monte de coisa em conselhos, mas não tem mais o espaço de invenção. É um horror ser doutor, porque se perde o poder de fala dentro do meio acadêmico, com os pares. Eu fiz o programa de pós-doutorado, que é uma delícia total. Criei um ambiente em que as pessoas se encontram uma vez por mês e falam o que quiserem. É só isso, um ambiente, você não precisa entregar nada. Aliás, precisa entregar um artigo para poder ter o certificado, que também não vale nada. Mas é um espaço informal, e eu descobri esse segredo, que para trabalhar na universidade, você tem que repetir que você não é ninguém, que não quer nada, só ficar quieto. Tem que ser anônimo, senão não dá. O que é a Universidade das Quebradas? O PACC tem três projetos, um deles é o pós-doutorado, que é relacionado aos estudos culturais, mistura meio ambiente, cultura digital, raça, gênero, cinema, televisão, qualquer coisa. É uma área nova, inventada nos anos 1950, na Inglaterra, mas que pegou fogo mesmo quando a geração de intelectuais dos anos 1960 ficou sem pai nem mãe, sem projeto, pelo menos acadêmico. Nos estudos culturais se faz uma produção de conhecimento comprometida com a sociedade, é preciso devolver o resultado, já faz pensando numa certa articulação entre a sociedade e a academia. E isso é uma coisa que a academia não acredita, é uma área muito desprestigiada, as pessoas acham que é um engodo, que não é sério, que a ciência não pode ter fim imediato. É uma política de resultado que não interessa para a criação acadêmica. Bem, se eu já tenho um programa não é nada e ele lida com uma área que também é nada, também é desprestigiada, então eu “tô feita”! Foquei em estudos culturais, num programa que não vale nada, e fiquei em paz para trabalhar. Fiz esse projeto e comecei, desde 1993, a trabalhar muito com a periferia. Porque o meu trabalho, desde o início da minha carreira, foi com microtendências. Sou fascinada por microtendências, quando vejo que tem uma coisinha acontecendo ali, pago para ver. E para me situar, porque também sou uma órfã dos anos 1960, vivi 24
essa época de cabo a rabo, e de repente você fica sem emprego e não tem onde botar o seu sonho. Então essa coisa de saber o “onde estou” para mim é muito importante. Eu peguei os poetas marginais dos anos 1970, depois mulher, depois negro, fui trabalhando essas vozes que começavam a aparecer e que não tinham espaço na academia. A universidade é um lugar fascinante, tem muita gente em busca do saber e querendo fazer. Muita gente competente. É um lugar dos sonhos para a pessoa trabalhar, mas ao mesmo tempo é uma situação difícil, não há espaço para inventar, não tem espaço livre. Depois da questão negra eu comecei a me interessar demais pela periferia, porque ela aparecia de uma forma muito desconhecida para mim. Nos anos 1960, eu ia com o CPC na favela para dizer para o pobre o que ele era, o que ele tinha que querer, quais as demandas ele tinha que encaminhar. Parece uma coisa louca, mas todo mundo achava bacana. A gente achava que estava fazendo coisas maravilhosas, e eles também, as associações de operários, todo mundo achava perfeito. Passa 40 anos e eu encontro um cara tipo Ferréz, que diz “eu não vou à universidade, eu não falo com ninguém, eu não repasso a minha miséria. A minha miséria é minha, o capital é meu, quem vai vender sou eu”. Isso aí é um pulo, é um sonho, não consegui desgrudar mais disso. Eu fiquei estudando isso compulsivamente e descobri várias coisas, inclusive que não dava para ensinar nada à favela, porque ela tinha seus intelectuais orgânicos, seu saber, e ela sabia que tinha esse saber, porque sempre teve. Quando comecei a trabalhar com a periferia, ela já tinha alguma visibilidade de saber, tinha capacidade empresarial, tinha capacidade de organização, era poliglota, falava a língua do mercado, a língua da favela, a língua do Ministério, todas as línguas que nós falamos, que os intelectuais falam. Então eu questionava o que ia fazer ali, e pensei que podia fazer uma troca, me situar como uma pessoa de fora mesmo. Para mim foi maravilhoso, porque nos anos 1960, na minha fantasia, eu era de dentro, falava o que era o pobre, quais os desejos deles. Era uma missão intelectual representar a pobreza, o pobre que não tem voz. E de repente eu me vi com essa voz cassada, desempregada, perdi meu emprego como missionária intelectual e fiquei felicíssima. Aí fui procurar essa posição, onde é que eu estava nessa conversa. E esse processo foi bastante longo, a primeira tentativa foi uma série chamada Tramas Urbanas, lançada pela minha editora e apoiada pela Petrobras. Percebia que existiam muitos intelectuais na periferia, mas que não apareciam em outros circuitos. Quer dizer, dentro das suas comunidades eles são intelectuais reconhecidos e agem 25
como tal, mas na academia e em outras instituições eles não são reconhecidos. E existem tantos antropólogos, sociólogos, pessoas de letras fazendo teses sobre a periferia, existem várias versões diferentes, só não existe a deles, a dos intelectuais da periferia. Então fiz uma série de livros muito bem cuidados e chamei todo mundo que me foi ocorrendo para escrever. O Sérgio Vaz, por exemplo, é um dos autores dessa coleção, o livro dele é sobre a história do Cooperifa, e não é nenhum antropólogo, nenhum crítico literário, é ele contando a versão dele. Eu não estou valorizando como verdade a versão dele, porque cada versão é uma versão, e ele deve ter também suas ficções, mas é uma voz e é um direito que ele tem de registrar a sua versão do seu projeto cultural de inclusão. Então eu percebi que essa coleção teve um efeito legal, foi muito bem aceita, porque era um deslocamento de lugar. A gente escrevia junto, era uma reunião de todos os autores, uma colaboração, e eu comecei a perceber que tinha o que dizer pra eles, saquei o que eu podia dizer, o que eles precisavam que eu dissesse, e saquei também o que eu precisava ouvir deles. Cada vez que eu chego mais perto da periferia tenho certeza de que nada sei sobre ela. É uma surpresa atrás da outra, a gente pensa que é isso, e é aquilo. Depois de algumas experiências dessas, voltei para a academia, porque realmente, apesar de fazer esse monte de coisa, sou apaixonada pela universidade, por aquele espaço branco cheio de garoto nervoso, cheio de gente que sabe. Aquilo é tudo pago, a luz é paga, o telefone é pago, você não se preocupa com isso. Você é paga para ficar ali investindo capital intelectual, é um lugar de sonho, uma Disneylândia. Então voltei para encarar a universidade e pensei nessa coisa que era a Universidade das Quebradas, que é um projeto absolutamente acadêmico, não é de capacitação, que não é assistencial, não vou ensinar nada para ninguém. Ninguém vai aprender a filmar, ninguém vai aprender a escrever, não tem oficina de criação, não tem coisa nenhuma, tem um espaço acadêmico aberto para a periferia. E não podia ser um projeto para a garotada, senão eu ia ter uma autoridade enorme, eu queria os intelectuais da periferia conversando com os intelectuais da universidade. Aí fizemos um edital duro, tinha que apresentar portfólio, currículo, uma carta de intenções, carta de recomendação, igualzinho ao pós-doutorado. A única diferença é que no pós-doutorado você tem que apresentar o certificado de doutor e, no caso, aqui, era um portfólio. Mas fora isso o edital é o mesmo para o pós-doutorado e a Universidade das Quebradas. E oitenta candidatos foram inscritos e 25 foram selecionados. Primeiro fizemos a análise de portfólio, depois a entrevista oral 26
e a leitura da carta de intenção. Escolhemos por excelência, só entrou quem tinha excelência profissional, e eu escolhi os melhores professores nas áreas para das essas aulas. E por exemplo, estávamos discutindo mitologia grecoromana, a questão da morte. Antígona se escaquerou toda porque tinha que enterrar o irmão, e o que tinha de gente, ali naquela miniplateia, com irmão para ser enterrado, não estava no gibi. Então a questão de enterrar o corpo ganhou um eco inacreditável. Estávamos falando de Antígona e todo mundo falando da polícia, do Bope, era uma coisa fantástica. Uma ação como essa está dentro do conceito de extensão para a universidade? A extensão para a universidade é tão importante quanto a pesquisa, porque a universidade, principalmente a universidade pública, é paga pelo cidadão, então ou ela devolve essa produção de conhecimento, ou está em déficit público, em dívida pública. E a extensão é o lugar disso acontecer, é a conexão com a sociedade, o efeito dessa produção de conhecimento. E ela é vista como uma atividade menor, como uma coisa que não é importante na universidade. Tanto que a verba da extensão é muito menor do que a verba da pesquisa. E isso é visto com uma naturalidade chocante, como se a extensão fosse um lugar não experimental, como se a universidade não lucrasse nada com isso. A extensão ainda é vista como um lugar assistencial. Por exemplo, o povo de Direito vai para a favela e ajuda as pessoas a resolverem os seus casos de divórcio, os problemas jurídicos. Extensão não é isso. Extensão é uma conexão, é, como o próprio nome diz, uma extensão da universidade, não é um serviço. E é visto como serviço. Então é pequenininho, é desprestigiado, não interessa muito, quando, na verdade, é um grande lugar de experiência da produção do conhecimento, é um grande espaço experimental, um grande laboratório que a universidade tem. Engraçado porque comecei minha carreira dando aula na graduação, como todo mundo, depois fui dar aula na pós-graduação, orgulhosíssima, subi de nível. Fiquei na pós um tempo e comecei a achar chatíssimo, porque realmente a pós é interessante, tem umas teses bacanas, mas parte de uma premissa que não faz muito sentido político. O pessoal está ali para ser doutor, cumprindo um ritual e, ao menos na área de humanas, não tem muita criação, não tem muita inovação. Aí comecei a achar chatíssimo e a sair lentamente da pós para voltar para a graduação. Dois anos antes de me aposentar, saí da graduação e fiquei só na extensão, onde 27
estou até agora. E eu acho que esse é um caminho correto. Quando você já acumulou conhecimento daquela instituição, já tem produção intelectual, já tem tudo, está na hora de entrar nesse laboratório, que é o mais importante, o laboratório com a sociedade. A Quebradas e o pós-doutorado são projetos de extensão, porque não dão grau. Não é de ensino, não é de pesquisa, então é extensão. Agora estou abrindo um terceiro projeto, o Polo de Cultura Digital, que não dá para não ter. É algo que está tendo um impacto muito grande na sociedade e precisa ser estudado. Considerando o papel da universidade, como pensar uma universidade aberta, uma universidade livre, uma universidade contemporânea? Olha, eu não sou muito de pensar, a vida toda eu trabalhei com tentativa e erro. Então meus projetos começam todos molengos, depois vão se configurando devagarzinho, eu não consigo fazer um projeto pensando no que a universidade deve ser. Todos os projetos que fiz assim não deram certo, quer dizer, todas as vezes que inventei de fazer alguma coisa com um modelo preestabelecido, deu errado. Então eu não sei o que pode ser a universidade, mas esse tipo de experiência deve ser estimulada. Tem um professor maravilhoso chamado Luiz Bevilacqua, que criou em São José dos Campos, se não me engano, uma universidade que não tem departamento nem disciplina. Ele é uma pessoa experimental e é da área de ciências exatas. Ele foi chamado agora na UFRJ, para dar uma consultoria na área de pesquisa de pós-graduação, e criou um projeto chamado Espaço Alexandria. Colocou esse nome porque “espaço” não é nada, não tem verba, não tem lugar, e tem que ser assim. Você tem que ter muito cuidado com as palavras na universidade. Se chamar de instituto, polo, terá um monte de compromissos que acabará o engessando. Então é preciso inventar um nome que não esteja naquele vocabulário das palavras-chave da administração acadêmica. A ideia do Espaço Alexandria é juntar ciências exatas e humanidades, criar esse diálogo. Porque o pessoal das ciências exatas desprezam humanidades, e o pessoal de humanas tem um ciúme louco, porque a verba vai toda para as exatas. O Bevilacqua está pensando nessa articulação, e tenho certeza de que ele também vai fazer muita tentativa e erro. Eu acho difícil responder essa pergunta, acho que a universidade está completamente sem projeto. Em 1960 a universidade perdeu seu projeto, esqueceu o que tinha vindo fazer e ficou confortavelmente esquecida. E agora, com a sociedade civil mais organizada, é muito melhor 28
trabalhar numa ONG do que numa universidade, porque lá se tem mais liberdade para pensar e pesquisar. Então os intelectuais fazem as suas próprias ONGs para poder trabalhar, tem muito espacinho alternativo funcionando, e a universidade está perdidaça. O impacto das ONGs, a chegada de outros saberes, está alertando algumas pessoas a abrir esse espaço para uma reformulação. Mas aonde isso vai dar eu não sei dizer. O circuito universitário a princípio é um circuito privilegiado de circulação de cultura... Não existem coisas emergentes sendo valorizadas na universidade. Vai ter pelos diretórios, vai ter como eventos, atividades, animação cultural. É isso, na universidade você tem animação cultural, não produção cultural, porque não tem esse espaço, não tem esse lugar. Devia ser na graduação, mas a pós é que é vista como importante. Depois, a graduação também está muito indefinida, não se sabe se ela se direciona para o mercado ou não. E acaba não preparando bem nem para o mercado nem criticamente. Fica no meio ali, nervosa. Com o papel econômico da cultura se reposicionado cada vez mais, não haverá um reflexo na universidade? Tem sim, mas não está formalizado, e na universidade tudo é formal. Está numa área neutra, que é o MBA. MBA é o mestrado que não é mestrado, não tem o peso do mestrado mas é mais eficaz, exatamente porque não tem esse peso. Se olharmos a história da universidade, da produtividade, veremos que sempre há um espaço alternativo, e é lá que as coisas começam. O MBA para mim é um espaço alternativo, coisa que o mestrado deveria ser, um espaço de eficácia, que serve no mercado. Mas o mestrado é puro, não aplicado. Então assim como você tem ONG para resolver a questão da pesquisa fora da universidade, tem o MBA dentro da universidade. Em Economia, Administração, Engenharia de Produção tem muita coisa de cultura, de produção cultural, de economia da cultura, de pensar essa coisa mais organizacional da cultura, não da criação, mas do processo. Só que isso só acontece nesse espaço também, que não é um espaço nobre, acadêmico. E a invenção e a inovação, que você estava falando, como incluir? Essa inovação tem muito espaço na área técnica, científica. Tem laboratórios, tem incubadora, realmente a inovação está protegidíssima nessa área. Na 29
área de humanas não tem. Hoje, para se inovar, tem que ter alguma articulação com a tecnologia e com outros segmentos sociais, e isso, essa flexibilidade, a universidade não permite. É tudo departamental, separado. Tem decania que separa em grandes blocos, lá dentro tem as unidades, que são pequenos blocos dentro da decania, e depois tem o departamento dentro da unidade. Então, se você é de Teoria da Comunicação, você está num isolamento profundo, porque está numa unidade chamada Comunicação, dentro de uma decania chamada Centro de Filosofia e Ciências Humanas, e para chegar na universidade você tem que passar por quatro paredes, por quatro processos administrativos, por quatro petições, por quatro memorandos, só para poder falar com o outro lado. Essa organização engessa. No momento em que estamos, que é obviamente transdisciplinar, no qual as fronteiras entre os saberes não são mais visíveis, não se pode ter essa organização, assim não vai ter inovação nunca! Uma das grandes questões que tem aparecido é esse pensar políticas culturais de estado, e não de governo. Quer dizer, políticas de longo prazo. Como pensar isso no meio de tantas mudanças, como fazer para que a coisa não engesse se não sabemos como tudo vai ser daqui a dez anos? Eu não sei, eu tenho paixão por erro. Tudo que deu certo para mim começou errado. Eu acho que tem que arriscar e errar, não pode ter medo de errar. A gente não pode saber como é que vai ser daqui a dez anos, mas o impulso tem que ser num modelo de fluxo, você tem que poder transitar, tem que poder fazer conexões, articulações, porque a criação hoje se dá no pontinho em que se faz uma articulação. Na hora que você articula A com B, criou-se uma coisa. Então é preciso dar espaço para as articulações entre estado e município, estado e universidade, articulações municipais e federais. Tem que se fazer um mapa articulado, não pode seccionar. Disso eu tenho certeza. Sobre criação cultural, no caso, pensando também na universidade, como criar um ambiente de inspiração? O ambiente de inspiração tem que ser preguiçoso. Se não for preguiçoso, não vai funcionar. É preciso não querer nada, não ter metas, não ter padrões e ficar ali aberto para trocas. Articular com muita gente legal, ouvir muito. Tem que ter um orelhão deste tamanho, falar pouco e ouvir muito. Aí vai acontecer. Eu tenho certeza que aí acontece. Não se pode criar condições para a inspiração, tem que desfazer as condições e ouvir. Eu acho que a brincadeira é ouvir. 30
Como pensar o fomento de cultura na universidade? Quais políticas você acha que deveriam ser exercidas nesse sentido? Eu tenho uma revista do pós doutorado, chama-se Revista Z. É uma revista digital, e eu não quero que ela seja impressa. Será impressa por demanda quando eu puder, mas não vou me preocupar em arranjar dinheiro para imprimir e distribuir. Ela é digital e se utiliza muito disso, tem vídeo, tem música, e quando tem um artigo que fala de uma tribo, a tribo está lá falando, comentando. Então ela usa de todos os recursos disponíveis que não teria no papel. Ela é multiplataforma mesmo. Fazemos a revista sem ganhar nada, não temos nada, são os alunos que fazem a revisão, e dá erro “pra burro”. Não tem nada profissional, então precisamos de um mínimo de pagamento. Agora saiu o edital da Faperj para revistas acadêmicas, e pensei em inscrever a Z. Para concorrer ao edital a revista tem que ter Qualis, então eu fui ver o que era isso, e tem que ter abstract no começo, em inglês e em português, as notas de pé de página tem que ter no máximo não sei quantas linhas e estarem situadas não sei onde, os artigos não devem exceder tantos toques. Como é que eu vou usar várias plataformas, chamar gente que não é do meio acadêmico, que não está ali para fazer currículo, mas para divulgar um saber interessante, se os artigos tem que ter abstract, nota de pé de página? Como você pode ter revista se os editais das agências de fomento acadêmicas pensam em revistas impressas de 1960? Realmente não dá. Eu perdi um dinheirão com a minha Z para garantir a produtividade dela. Não se pode pensar nesses termos, a divulgação científica tem que ser rápida, ela não pode esperar ser impressa e fazer esse ritual todo da revista acadêmica. Uma inovação tem que ir ao ar imediatamente. Eu não quis o financiamento, porque imagina se eles me pedem um abstract do Ferréz. E depois eu não vou trocar minha multiplataforma por um pé de página, não dá. Ou o CNPq, a Capes e esses órgãos todos se reúnem e sacam que a revista mudou, que ela está em outro estágio tecnológico ou esquece. Tem que mudar a compreensão da coisa, não adianta eles aumentarem a verba, porque não vai ter inovação. Aparecerá muita coisa tradicional, mas não vai ter inovação! Então, é preciso que a universidade e as agências de fomento percebam que precisam se renovar para estimular o diálogo da cultura com a universidade e da universidade com a sociedade.
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Ailton Krenak Fundador da ONG Núcleo de Cultura Indígena.
Hoje nós já temos mais de trinta anos de lideranças indígenas muito atuantes no Brasil. Como começou o seu trabalho como agitador cultural? Eu penso que o poder da cultura é como uma onda, a onda do mar, como a maré; ela tem momentos de grandeza, assim, visível para todo mundo, e depois ela tem momentos em que parece que mergulha em si mesma. Quando eu era pequeno, minha curiosidade sobre essas coisas foi sempre olhando de dentro da cultura de uma tribo, de dentro de uma coisa que já sofre certa segregação no arranjo das culturas em geral. Eu olhava com uma curiosidade muito grande tudo quanto era artefato, artesanato, tudo quanto era mágica que eu via. Os camaradas que passavam, fazendo aquelas danças de caboclo, que são umas coreografias meio afro-indígenas. Um grupo de dezoito, vinte camaradas dançando, batendo uns porretes, dando uns gritos. E criam um som, e tem o mestre desse ritual que dá umas chamadas. Isso aí era uma coreografia muito comum quando eu tinha oito, dez anos. Para fazer isso não precisa de nenhum suporte, não precisa de palco, não precisa de nada. Pode-se fazer isso no meio da rua. Na zona rural ainda existe um pouco disso, mas eu acho que o Brasil está rapidamente sumindo com esses espaços de autonomia. Nós estamos passando por uma coisa curiosa: ao mesmo tempo em que a gente ganha novos espaços de expressão da cul33
tura, a gente faz desaparecer alguns lugares da cultura, que eram lugares naturais dela. Eles eram tão públicos que eram no meio da rua, na frente do armazém, nos pátios dos sítios, das fazendas. Então, eu tive oportunidade de assistir a cenas assim, que fizeram a minha cabeça, vendo gente tipo tropeiros, andando de um lugar pro outro. A gente conversou com o Manoel Salustiano, mestre do maracatu, e ele falou: “Olha, quer fomentar o maracatu, fomenta os terreiros, que são os espaços de autonomia; não fomenta o espetáculo”. Mas é difícil preservar esses espaços, porque eles são muito livres. A dinâmica tem que ser mantida. Inclusive, porque esses espaços são um pouco aquela imagem da onda que sobe, das marés que aparecem vultosas, depois somem. Porque esses são lugares com uma potência, no sentido político. Mais do que o sentido de autonomia, têm um sentido de surpreender e de inventar. E a surpresa e a invenção, nesse caso, podem se conflitar com outros movimentos que acontecem ao mesmo tempo, como a acomodação dos povos nos lugares, dos sítios. O que é um quilombo? O que é uma vila, um patrimônio, uma cidade, uma praça, uma terra indígena? Isso tem a ver com a economia, com a ocupação territorial. Alguns desses lugares a que estamos nos referindo, esses sítios, esses terreiros, não foram disputados por uma ação da cultura, foram tomados pela especulação imobiliária. Nasceu um prédio naquele lugar, uma torre, nasceu uma onda qualquer, um shopping, uma igreja. É uma coisa política. Tem uma realidade potente de política acontecendo ao mesmo tempo, no qual a expressão da cultura, o ato da criação, da tradução da cultura, é “bala com bala”, é “o pau comendo”. É um processo de resistência, de recriação, de reinvenção, para as pessoas se tocarem que cultura não é um fenômeno pacífico. A cultura não é alguma coisa como cagar ou mijar, entendeu? Eu cago e mijo; todo mundo caga e mija, mas não é todo mundo que cria cultura, não é todo mundo que inventa, não é todo mundo que resiste, não é todo mundo que resiste e reage. Muitos simplesmente engolem a baboseira toda, que é mandada pela religião, pela política, pela dominação. E com o planeta Terra compartilhar cada vez mais as experiências de todos os cantos do mundo, se a gente não ficar alerta, passamos batido por muita coisa, jogamos fora muita riqueza, muito diamante, muito ouro verdadeiro, para pegar coisas virtuais, palhaçadas virtuais, que vão acenar na nossa cara, 34
solapando a nossa raiz profunda, e fazendo um jogo de ilusão com a gente. E a gente não vai mais perceber quando é que nós estamos de verdade comprometidos com uma herança profunda, que nós podemos identificar como raízes, que nos dão identidade, nos dão alteridade, força para olhar o mundo, e a gente vira uma espécie de plateia. A gente vira uma espécie de grande plateia do planeta. Nada contra as plateias. Nós podemos estar no palco e na plateia, numa boa, a qualquer momento, desde que a gente saiba onde a gente está a cada momento. Porque, se você “embolar o meio de campo”, não souber quando é que você está no palco, quando você estiver na plateia pode começar a consumir qualquer coisa e a reproduzir também qualquer processo que não tem mais sentido para si mesmo, que não tem sentido para o coletivo, que não tem sentido para o lugar onde você vive, ou pelo menos para aquele lugar com o qual você se identifica. Isso é uma questão interessante. Vou usar aquela expressão que o Gil adora, o “glocal”, a mistura do global e local. Você falou da raiz profunda, mas ao mesmo tempo a sua trajetória o levou pelo mundo afora e para uma visão extremamente rica e cosmopolita de várias manifestações culturais. Raiz profunda não significa isolamento. Como lidar com isso? É. Podemos exemplificar isso com as árvores. As árvores têm raízes profundas e lançam os seus galhos e olham o mundo de uma altura especial. Observam o horizonte de um ponto especial, mas com raízes profundas. Podem também dar voos, digamos assim, pretensiosos. Podem voar mais alto. A raiz profunda não tem nada a ver com ficar ensimesmado na sua cultura local, achando que o mundo não existe. Mas também não pode trair essa origem de raízes profundas só pirando com a metáfora da parabólica. Não se pode ficar só zapeando o tempo inteiro. É preciso ter alguma capacidade de fazer o movimento das ondas, ser capaz de fazer uma “ondona” que tumultua o ambiente e ser capaz também de retomar um mergulho na sua identidade. Talvez essa percepção de identidade tenha muito a ver com aquilo que você provocou no começo da nossa conversa. Nós estamos aí há duas, três gerações de indivíduos, de sujeitos que saem de um contexto de comunidade tribal, de uma comunidade indígena e começam a interagir nessa coisa do Brasil, da cultura, da política. Passa a ter certa autonomia, uma certa liberdade de transitar no meio das outras pessoas e dos outros espaços, trocando, interagindo, sem medo de ficar perdido no tumulto. E 35
talvez as gerações anteriores à nossa não tenham permitido que sujeitos de dentro de casa saíssem pelo mundo afora, com medo de que eles não tivessem estrutura para circular no meio das outras culturas, e voltar para casa íntegros, voltar em si mesmo. Havia até uma ideia, que as pessoas diziam muito: “Ah, esse cara não é mais índio, porque ele já saiu da tribo.” E os nossos vizinhos, os caras que viviam no entorno dessas terras de índio, sugeriam que os índios deviam ficar dentro das suas reservas e que os sujeitos dessas tribos que transitavam, que andavam fora, não eram mais índios, já estavam misturado com a cultura do mundo inteiro. E esse preconceito, essa coisa que parece simples, ainda para a minha geração era uma coisa muito ofensiva. As pessoas ficavam supermagoadas, ficavam chateadas de serem tratadas assim, de maneira totalmente controlada, desrespeitosa, de sugerir que o cara não podia sair da tribo dele, senão ele virava outra coisa. Mas os antigos, as gerações que viveram antes da minha geração, antes da geração do Marcos Terena ou do Juruna, aceitavam. O Juruna, por exemplo, eu me lembro que quando ele saiu a primeira vez para circular pelo Brasil, indo para o Rio, segurando um gravador, ele irritou tanto os brancos, os caras que mandavam no Brasil na época, que teve um general que ficou muito possesso com o Juruna, e disse que ele era um aculturado exótico. Aí eu fiquei pensando: “Pô, que papo é esse de aculturado exótico? Os outros não eram? Os brasileiros, em geral, não são aculturados exóticos? Só o Juruna que era?” Isso foi no final da década de 1970. Esse general refletia o pensamento dos brasileiros: não era só dos milicos, era o pensamento dos brasileiros, pensamento também de outros intelectuais, de outros pensadores. Era a consciência média dos brasileiros. Já que os índios não tinham acabado, deveriam ficar algumas amostras deles nas reservas, e alguma coisa da cultura desses povos podia ser catalogada. Mas essas pessoas não tinham muito que interagir na cena da cultura. E eu acho que nos últimos trinta, quarenta anos, esses espaços foram sendo cada vez mais conquistados, foram cada vez mais se alargando, e as pessoas com diferentes experiências de vida de comunidade, de vida de aldeia, passaram a se sentir à vontade para desenhar, pintar, escrever, aprontar, fotografar, filmar. Tem uma geração aí hoje concorrendo em festivais e mostras de cinema, no mundo inteiro, com narrativas, com documentários, com clipes, com filmes que eles fazem na aldeia. Colocam na web e espalham para o mundo inteiro. Existem pessoas que estão sendo homenageados na Feira do Livro, em Barcelona, que ganhou o prêmio de literatura, na Itália. 36
E tem gente que está sendo publicado na Alemanha, publicado em outras línguas. E isso em trinta, quarenta anos. Para os índios esse tempo é uma pílula concentrada, do doutor Ross. Foi rapidinho. Eles saíram do cerco doméstico, para em pouco tempo fazer contato com diferentes linguagens, sem nenhuma intenção de se arregimentar, de se organizar como grupos. Porque a referência que eles têm de grupo acaba sendo doméstica mesmo, da família, da aldeia, da tribo. E muito recentemente começaram a surgir coisas do tipo escritores indígenas. Essa é uma questão muito interessante, porque cria novos desafios. Por que indígenas escritores? Como você mesmo falou, há exóticos aculturados em todo canto. Por que o indígena? E o que cria o indígena? Que certificado é esse? Eu estava lendo um escritor egípcio e estava curioso, olhando a literatura dele e perguntando: “Por que é que esse cara é um escritor egípcio? Por que ele não é só um escritor?” Ele é um cara que passou a vida inteira refletindo sobre aquela identidade e criando uma narrativa que quer expressar um retrato, um autorretrato para o outro. E aquilo me chamou a atenção, porque uma das coisas que para mim é interessante na vida de alguém é ele ser capaz de saber onde está. Isso é um movimento fundamental. E reconhece que existe o outro. Se na sua criação, sabendo quem você é, onde você está, e admitindo que existe o outro, você decidir que vai passar a vida inteira contando a mesma história para você e para os seus parentes, fazendo um retrato para o outro ver você, fico achando que fica uma coisa redonda, fica legal. Acho que não é uma ambição descabida. Não acho que seja exótico, no sentido pejorativo. Não é um exótico, no sentido que o general estava falando do Juruna. Acho que deixa de ser um aculturado exótico e passa a ser alguma coisa que tem a ver com a história da raiz profunda, que permite que uma árvore, que lança copas às alturas, tenha uma visão parabólica do mundo, mas sem se ensimesmar, sem ficar apatetada com a paisagem. E lendo esse escritor egípcio, eu concordo que aquele cara passou a vida inteira observando a cena, contando a história da tribo dele, do clã dele, do bairro dele, ensinando para as gerações coisas que podiam ser desde a arquitetura, a filosofia, a religião. E ele está o tempo inteiro citando frases inteiras do Alcorão. Então, um egípcio que o leu ou que o lerá, estará se alimentando o tempo inteiro de um contínuo, da tradição. E quem sabe esse papo de escritores indígenas não possa provocar? Pode 37
sair também muita besteira dessa cena toda, mas pode provocar também que alguns camaradas queiram refletir, em particular, sobre alguma fresta, sobre algum detalhe, sobre algum lance assim, dessas memórias de tradição oral. Tem um acervo muito grande, independente de a gente achar que ele é importante ou não, mas ele é grande, porque ficou muita gente com tradição oral, que tem o prazer de contar histórias, que gosta de contar histórias. Essa grande colmeia de gente falando em diferentes tons e vozes ainda vai zoar na cabeça dessas gerações de índios, que poderão traduzir isso, passar para a escrita, criar uma escrita que pode ser, de alguma maneira, interessante. Em diferentes momentos da nossa história, tanto da história escrita como de outras intervenções, tem movimentos que conseguem deixar uma marca na parede, de alguma maneira interessante. Eu acho a sua resposta maravilhosa. Mas penso o desafio no sentido de ser uma possibilidade, não uma obrigação. Existem estímulos hoje que vão desde a vaidade ao financeiro, que vão desde o apoio público até o estar na feira de livros com destaque, para o escritor que aceitar o termo “indígena”. Não se pode engessar as soluções e as trocas a partir disso? Não tenho dúvida da quantidade de atrações que fica em torno dessa coisa. Você mencionou bem, a ideia de o cara ser motivado porque agora isso vale alguma coisa. Outra observação também curiosa é a seguinte: existe um conjunto de situações que faz com que a gente experimente um momento como este que estamos vivendo no Brasil. Eu não sei se os nossos vizinhos aqui da América Latina estão experimentando, em algum sentido, essa valorização de si mesmo, essa provocação para se acharem. Imagino que a cena dos países vizinhos, dos Andes, da América do Sul, é uma constante luta pela sobrevivência no cotidiano. Então, muito daquilo que aparece como produção local, como expressão da cultura local, é uma produção necessária no cotidiano, para fazer o cusma, o poncho, o chapéu, o balaio, a cesta, as tramas todas. Aquilo está ali, é uma mercadoria do cotidiano, que tem que trocar rápido, todo dia, igual a fazer pão na padaria. E ninguém olha o pão como um artefato, o pão como uma criação. Pão é pão. Você tem que fazer pão porque senão, você morre de fome. Eu não imagino, nos Estados Unidos, por exemplo, agências públicas, programas de incentivos, como tem aqui no Brasil para estimular identidades e culturas locais. Nós estamos vivendo uma experiência diversa aqui no Brasil. Isso é um sintoma interessante des38
se nosso organismo plural, no qual há negros, índios, russos, portugueses, japoneses, árabes, libaneses, todo mundo. No qual tem essa diversidade de culturas, essa coisa de diferentes tempos, desse grande arranjo, e que me faz até rever um pouco uma definição de Brasil, que havia um tempo eu insistia nela, de que a gente era um acampamento no escuro. De vez em quando dava um raio, no meio da tempestade, e na hora que aquele raio partia a escuridão, o breu, todo mundo se olhava. Lógico, havia o susto! Aí todo mundo olhava um para o outro, e via um a cara do outro, mas era só um breve instante, porque depois voltava à escuridão de novo. Essa visão crítica do nosso arranjo, que eu insisti por muito tempo, da década de 1980 até 1990, precisa ser revista. Considerarmos que hoje nós já estamos sendo capazes de ter uma visão mais prolongada um dos outros, e a duração dessa visão já permite que a gente reposicione algumas questões importantes para a nossa autopercepção. Somos uma sociedade plural, complexa, que não se resolve facilmente, mas que tem uma capacidade criativa, tem uma capacidade de invenção que pode prolongar por muito mais tempo essa convivência, essa experiência da gente, de culturas, de sociedades plurais. E mirando sempre um lema, para mim fundamental, que é a liberdade, que a gente precisa ser livre. Há um outro fenômeno crescente, que é a quebra da necessidade de mediação, não se precisar mais de um intermediário que autorize as vozes... É. Eu tenho “sacado” um pouco essa coisa também como fenômeno. Culturas, expressões de cultura, que eram reconhecidas no século XIX, virando o século XX, e que foram depois banidas da cena, são admitidas de novo como ressurgentes. É o exemplo dos quilombolas, ou de uma outra dezena de grupos, de comunidades socioculturais assim, identidades formadas em cima de práticas culturais, e de certa unidade social. São categorias, não dá nem para dizer que são povos. Eu chamo de comunidades tradicionais. Já existem políticas dirigidas para diferentes grupamentos dentro desse nosso grande painel identitário, que inclui os ciganos, os fachinalenses, os babaçueiros, os seringueiros. Isso cria, de certa maneira, ou reconhece especificidades, características de coletivos, de grupos. E dentro desses coletivos e desses grupos, você potencializa também a expressão de indivíduos. A gente está num momento muito próspero de oportunidade, de provocação, de reconhecimento e de admissão dessas novas identidades, com uma tendência 39
muito forte a suprimir de vez essa coisa do cara que autoriza. Ninguém tem que autorizar ninguém a falar, cantar, dançar, escrever, criar, produzir, se expressar. Eu sinto que as vozes da cultura estão cada vez mais gritando isso, berrando isso, essa atitude franca de liberdade, esse sinal de vontade de autonomia, de uma maneira espontânea. Em alguns momentos de uma maneira despretensiosa, e em outros de maneira mais ostensiva, mais agressiva, tipo militante. Mas tem lugar para todo mundo. Tem o pessoal que está fazendo a criação da resistência, porque estão em setores da nossa realidade em que ainda sofrem muito, estão levando muita porrada, ainda são alvo de muita segregação, de muita sacanagem econômica, de muita pressão em cima dessas expressões. E quando isso acontece, é lógico que essas pessoas acabam mostrando a sua capacidade também de sabotar, de detonar e de explodir com essas rolhas. Mas não vejo nenhuma expressão das nossas diferenças que não seja legítima. O Eduardo Viveiros de Castro diz que se preocupa com um movimento duplo que está acontecendo, porque os índios sempre foram, naturalmente, creative commons, e agora que estamos virando creative commons, há uma radicalização da questão de autoria entre os índios. Eu também percebo alguns sinais e fico grilado com a pobreza, porque para mim liberdade tem a ver com prosperidade. Liberdade e prosperidade não é só rima, são faces da mesma moeda. Eu não imagino o exercício da liberdade sendo feito num ambiente de privação, de miséria, de falta, de carência. Eu imagino sempre a liberdade como uma perna puxando a outra: a perna da liberdade puxa a perna da prosperidade, no sentido de fartura, de ter de sobra. E fico imaginando uma coisa: os acervos de cultura, os espaços de exercício da cultura em que você pode chegar e escutar uma história e pode repetir aquela história em outro lugar, sem precisar dar explicação, sem precisar de carimbo. Para mim, esse foi o exercício mais permanente que eu experimentei nos últimos anos. E o que eu percebo agora é que em todos os lugares está rolando uma tendência, em qualquer lugar que você chega hoje, em qualquer terreiro, já tem uma espécie de contrafração dessa coisa, daqui de fora. Antes, quem pedia o cartório era o lado de fora. Eu sinto agora uma coisa e não me reconheço nela, que é a tendência desses lugares, onde a criação espontânea, comum, sempre foi compartilhada, começarem a criar uma relação com o mercado, elegendo essa relação quase 40
como a única. O modelo de relação que a gente passa a ter com o mundo é o modelo de relação do mercado. Você vira prisioneiro disso. E aí, como você disse antes, o autêntico passa a ser uma obrigação. E ao mesmo tempo em que passa a ser uma obrigação ser autêntico, esse autêntico também vira um produto. A autenticidade disso vira um produto para vender para televisão inglesa, para sei lá o quê. E não sei como que a gente pode evitar que essas coisas aconteçam, nem sei se tem como. De repente, essas coisas acontecem mesmo...
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Sérgio Rodrigues Designer de móveis.
Sérgio Augusto descreve a Poltrona Mole nos seguintes termos: “Um dos emblemas do fastígio cultural que o Brasil viveu nos anos JK – quando vencemos duas copas do Mundo e inventamos um samba diferente, a revista Senhor e o Cinema Novo –, a Poltrona Mole foi a resposta que tínhamos para dar à tirania de Bauhaus. Uma Garrincha de quatro pernas driblando o racionalismo teutônico.” Gostaria que o senhor comentasse essa passagem. Acho a colocação maravilhosa. Sérgio Augusto escreve muito bem. Outra pessoa que definiu a Poltrona Mole de modo muito lisonjeiro foi o grande sociólogo Odilon Ribeiro, chamando-a “uma síntese admirável do espírito brasileiro”. Embora me acusem de falsa modéstia, não me iludo. Sei o valor de meu trabalho, tanto em relação a designers brasileiros como estrangeiros, e tendo a achar que falam de mim com certo exagero. Quando criei a Poltrona Mole, em 1957, não previa absolutamente seu sucesso. Em 1958, ela foi apresentada numa exposição e algumas pessoas acharam interessante. Mas a maioria das dondocas lamentava o destino da firma, que começara tão bem e agora entrava no esculacho, fazendo “essas porcarias de camas de cachorro”. Parece brincadeira, mas a poltrona ficou um ano na loja sem obter sucesso algum. Meus sócios chegaram a tirar da vitrine, contra minha 43
vontade. Deixaram no fundo da loja por algum tempo. Mas então algumas pessoas interessantes começaram a aparecer na loja e gostar. Por exemplo, Niomar Muniz Sodré, diretora do Museu de Arte Moderna do Rio, comprou dois sofás nesse mesmo esquema. Contrariando as expectativas dos meus sócios, os sofás não foram parar no quarto de empregada. Estavam no living, em posição de destaque, entre suas obras de arte. Fiquei muito emocionado com isso. Logo em seguida, o decorador de Roberto Marinho comprou duas poltronas para seu iate. Depois vieram Carlos Lacerda e Adolpho Bloch, tudo isso numa certa sequência. Meus sócios começaram a pensar que havia algo de especial ali, afinal, aqueles compradores não eram brincadeira. Darcy Ribeiro também comprou uma poltrona e gostou tanto da peça que me convidou para trabalhar na Universidade de Brasília, onde era reitor. Passei momentos interessantíssimos ali. Ia às lágrimas palestrando para os alunos. Você poderia falar um pouco sobre a Bienal de Cantu? Quando Carlos Lacerda, então governador do estado, recebeu convite de Milão para representar o Brasil na Bienal de Cantu, ele fez uma visita a meu estúdio. Com toda a imponência que lhe era característica, disse que gostava muito da minha poltrona e queria que eu a mandasse, pois achava que iria ganhar. Fiquei incrédulo. Afinal, havia mais de quatrocentos designers do mundo inteiro na competição, trabalhando com materiais de primeira, fundição de alumínio etc. A Mole era apenas quatro pés de madeira e um almofadão de couro. Mas Lacerda, com sua rigidez costumeira, disse que eu tinha que mandar de qualquer jeito. Concordei e mandamos as plantas. Uma semana depois, recebi um telegrama de lá, dizendo que lamentavam muito, mas a peça já era conhecida na Itália. Lembrando sempre, isso foi em 1961. De qualquer maneira, Lacerda não se conformou e me mandou criar uma poltrona de qualquer jeito e mandar. Estava certo de que eu venceria. Mas uma poltrona não se cria assim, em dez minutos. Acabei pegando a primeira poltrona – a denominada Mole – e fiz pequenas alterações na estrutura, mantendo o mesmo almofadão. Lacerda não percebeu, porque ele não entendia muito dessas coisas. Mandamos. Um mês depois, recebemos o diploma de primeiro lugar. Não entendi por que estavam bajulando o Brasil dessa maneira. Afinal, por que dar o primeiro lugar a uma peça construída sem a menor intenção de concorrer com o mundo inteiro? No ano seguinte, visitei a fábrica que comprou os direitos de fabricação da poltrona na Itália, e eles 44
disseram algo como: “Você não está sabendo? Essa foi a primeira manifestação pós-moderna”. O que me traz de volta à colocação de Sérgio Augusto sobre a tirania Bauhaus. A Bauhaus é criada em 1919, e todos os seus produtores, designers e arquitetos começaram a usar materiais novos da época, como os tubos de aço. Esses móveis não foram aceitos no princípio, mas depois dos anos 1940 obtiveram inserção maciça no mercado. A Poltrona Mole veio assinalar, em certa medida, um novo momento de criatividade no campo do design. O móvel passou a incorporar peças gordas de madeira, por exemplo. Nos anos 1950, quando aparece a Mole, surgem os primeiros grandes nomes do design brasileiros, o Alex Wollner, o Aloísio Magalhães. Você estava dialogando com eles de alguma forma? Em São Paulo, apareceu o Lemos, o Michel Arnoult, o Zanine. Lina Bo Bardi, a quem considero a única estrangeira que realmente vestiu a camisa do Brasil. Seu trabalho era brasileiro e de altíssimo nível. Conheci Tenreiro estudante – aliás, escrevi a introdução do livro dele. Apaixonei-me pela maneira como ele trabalhava e pela maneira como seu trabalho era diferente do que estava sendo feito na mesma época. Mais tarde, vim a entender que o Tenreiro – muito embora um criador – ainda retinha alguma coisa de Europa, de Estados Unidos, aquele tipo de madeira pé de palito. Mas fez grandes criações. Zanine fez muitas coisas semelhantes à Lina Bo Bardi. O material era o mesmo, mas as interpretações já eram bem diferentes. Havia também o Giancarlo Palanti, italiano que veio logo depois da guerra com Bo Bardi, mas não vestiu tanto a camisa. Você poderia falar sobre o SR-2 e a Estética da Grossura? Bom, a vida inteira quis fazer uma casinhola no terreno do meu sogro. A princípio, idealizara uma estrutura metálica, uma casa com tubos de água. Mas depois me ocorreu a madeira. Sempre gostei de madeira, e havia muita por aí. Resolvi fazer estudos de casa de madeira. Isso foi em 1948, quando eu ainda era estudante de Arquitetura, e fazer casas de madeira era uma operação complicadíssima. Dez anos depois falei com meu sócio sobre meus planos de estudar casas de madeira. Queria estudar os elementos modulados de madeira, que permitem fazer qualquer tipo de casa. Não deixava de ser uma casa pré-fabricada, já que todos os elementos eram feitos na fábrica e transportados em seguida para o local de montagem. Certa feita, Niomar 45
Muniz Sodré visitou a Oca, minha loja na época, e entusiasmou-se ao ver as maquetes. Quando perguntou do que se tratavam, expliquei que eram casas que pretendia fazer. Então, ela comentou que estava prestes a inaugurar o grande pavilhão do Museu de Arte Moderna do Rio, e me ofereceu o terreno para fazer uma casa. Mas eu não tinha preço e pensava a casa como algo industrializado. Ela insistiu, dizendo que queria inaugurar o pavilhão junto à casa, no intuito de prestar homenagem a certo tipo de arquitetura que também era design. Fiz a casa, então. Originalmente, ela devia ficar apenas quinze dias exposta, mas esse tempo se estendeu para seis meses. Lúcio Costa, durante uma visita a casa, sentou-se a uma mesinha e escreveu a Israel Pinheiro (político responsável pela construção de Brasília), recomendando-lhe estudar a construção dessas casas no Plano Piloto. Nesse mesmo período, Darcy Ribeiro convidou-me a fazer dois pavilhões na Universidade de Brasília. Construí dois pavilhões lá, que serviam como uma espécie de pousada para os professores que não tinham onde morar. Foi um começo bastante bom. Tomando uma visão mais geral, os países latino-americanos se opunham à madeira. O povo latino é descendente dos romanos, que não admitiam madeira. O mote era “casa de pedra e cal, para durar a vida inteira”. As firmas que apostaram em pré-fabricação de casas no Brasil não foram adiante ou andaram muito devagar por conta da obsessão latina com a construção duradoura, que deve ser passada à geração seguinte. Ademais, as construções lembravam sempre casinhas de cachorro ou passarinho. Não eram criadas por arquitetos. Portanto, desenvolvi como pré-fabricadas – além de elementos naturais, como paredes e portas – os pilares e toda a superestrutura da casa. Como vinham em tamanhos diferentes, era permitido fazer o que bem se entendesse. Tenho casas maravilhosas, de quatro pavimentos, totalmente feitas com madeira. Fiz muitas casas nesse primeiro momento. O lamentável, no entanto, é que nunca houve encomendas o suficiente para construirmos essas casas em grande escala. Nesse caso, os preços seriam mais populares, porque seria uma empreitada de cunho verdadeiramente industrial. Porém, a demanda que tive foi tão pequena que as casas nunca deixaram de ser artesanais. Logo, caras. Mas tinham seu charme. Eram construções elevadas. A instalação hidráulica e elétrica ficava embaixo da casa, como num automóvel. Há uma diversidade muito maior de madeiras no Brasil do que no hemisfério norte. Havia um estudo do uso delas? 46
Como o Brasil tem a maior floresta tropical do mundo, havia realmente coisas excepcionais. Por exemplo, as qualidades daquilo que costumamos chamar exigências da madeira. No entanto, me considero um pouco assassino. Tenho a impressão de ter sido um dos causadores do extermínio do jacarandá. Esse espírito ecológico que se vê hoje em dia não existia naquela época. Encomendava-se jacarandá como se fosse numa quitanda, porque havia em qualquer parte. Fiz todos os meus móveis, em princípio, com madeiras de lei. Mas depois começaram a escassear. Passamos a considerar as madeiras maravilhosas do Norte, de onde sempre recebíamos mostruários incríveis. Porém, havia a questão logística. Como trazer essa madeira para cá? Se é para construir um violino, uma cadeira, poderia vir até de avião. Mas, para fazer uma indústria, seria preciso uma extensa série de metros cúbicos de madeira. Como isso chegaria aqui? Por navio demoraria demais. Começavam a surgir as estradas, então: Rio-Brasília, Belém, Transamazônica. Mas não funcionavam. Quando chovia, era uma catástrofe. Esses problemas se traduziam em preços exorbitantes. Agora, já estão criando situações para que possamos utilizar essas madeiras. De modo que, atualmente, compramos madeira até do Paraguai. Afinal, a mata é mais barata e tudo sai mais em conta. Estudamse também propostas para a utilização de madeiras apreendidas que agora estão em depósitos em Santarém. E, como substituição, começam agora a produzir teca, roxinho, e outras madeiras interessantes. Como é sua relação com os marceneiros e toda a equipe? Fui um dos primeiros brasileiros a trabalhar na Forma, como arquiteto de interiores. Lá tive contato com arquitetos e designers estrangeiros, como Warchavchik e a própria Lina Bo Bardi. Voltei para o Rio de Janeiro por conselho de Carlo Hauner, fundador da Forma. Ele disse que eu devia voltar para a minha terra, porque teria sucesso lá. Não sucesso popular, porque os projetos não eram exatamente vendáveis, mas algum reconhecimento. Então fui para o Rio, onde fiz a Oca, um misto de galeria e loja de móveis. Nesse primeiro momento eu quase não fazia móveis, excetuando-se uma ou outra peça. De resto, comprava tudo da Forma. Só aos poucos criei meus modelos. Em certa ocasião, desenhei um banquinho e entrei em contato com uma fabriqueta. Eles toparam produzir, mas uma semana depois, todas as lojas “boas” da Barata Ribeiro estavam com o banquinho. Tive que criar caso. Mas logo compreendi que havia uma maneira eficaz de proteger minhas peças – fazer minha 47
própria fábrica. Comecei a trabalhar com dois artesãos italianos – um vindo de galeria, outro de marcenaria – na feitura dos móveis. Primeiro alugamos um galpão, e eles contrataram seus próprios auxiliares. Infelizmente, o custo era um pouco proibitivo. Mas as pessoas se esqueciam que o material era de primeira e os operários eram caríssimos. Fiquei muito preocupado com isso, no entanto, e aumentamos a loja para tentar resolver esse problema do preço, mas não conseguimos. Então resolvi fazer uma outra loja, chamada Meia Pataca, com móveis de série e desenhos mais simplificados. Os móveis da Universidade de Brasília, por exemplo, foram baseados nesses móveis da Meia Pataca. Eu tinha muita vontade de fazer móveis para todos. Ficava constrangido de muito ouvir de amigos que minhas peças eram tão caras que eles, e que por mais que gostassem, não podiam comprar. Isso me arrasava. Como esses mestres da Itália aprenderam seu ofício? De pai para filho. Esses italianos educavam o pessoal que chegava, e muitos deles acabavam fazendo suas próprias fabriquinhas. Havia uma série de fábricas fazendo o que eu fazia. Não uma cópia exata, mas realizando pequenas variações daquilo com o mesmo acabamento. Os primeiros vieram formados de lá. Não por universidade, mas por determinadas firmas e escolas, algumas apoiadas pelo governo, outras particulares. Tenreiro trabalhou na Laubitsch & Hirth, por exemplo. Conforme essas firmas iam acabando, vários mestres eram dispensados e começavam seus próprios negócios. E quanto à formação de desenhistas de móveis? Isso já é um pouco mais complicado. Lina Bo Bardi, quando veio para cá em 1945, já era mestrada. Houve muitos outros, mas suas ideias tinham sempre qualquer coisa de estrangeiras. Eram apenas ligeiramente abrasileiradas. Os designers que surgiram, portanto, chegaram onde estão sem escola alguma. Minha formação não é Design, é Arquitetura. Mas sempre fui apaixonado por desenho de móveis. Eu tinha um tio-bisavô que vivia de renda, mas tinha uma oficina de marcenaria nos fundos da casa. Com o auxílio de dois operários, ele fazia pequenos móveis. E eu, menino ainda, me entusiasmava muito ao acompanhar o processo. Queria mexer com aquilo tudo. Gostava até do cheiro dos vernizes. Achava maravilhosa a maneira como aqueles operários traduziam os esquemas malfeitos de meu tio-bisavô em peças bonitas. Comecei a prestar tanta atenção naquilo tudo que principiei a fazer meus próprios 48
brinquedos. O que redundou, mais tarde, no meu interesse em arquitetura e design – o desenho e a produção da coisa criada. Tive grandes colaboradores, realmente vocacionados para a criação de mobiliário. Mas o design não está ligado especificamente a móveis. Há, como se sabe, milhares de vertentes. Quais são os empecilhos da exportação de móveis? No meu caso específico, a exportação até tem sido bem-sucedida, porque foi feita de maneira muito particular. No princípio desse século, uma firma em Nova York comprou diversos móveis meus em jacarandá e passou a vender em brechós ou pequenas galerias. Em determinada ocasião, representantes de uma dessas galerias em Nova York – uma chamada Twentieth Century – vieram visitar meu estúdio. Ficaram surpresos porque eu ainda era vivo. Zanine já havia falecido, Tenreiro idem. Além disso, uma pessoa de Curitiba também resolveu produzir meus móveis. Não entendo nada de comercialização, mas fizemos um acerto, um contrato, e hoje recebo royalties sobre essas peças antigas que estão fabricando. Em Munique, a firma ClassiCon, que vende móveis antigos e contemporâneos, começou a vender minhas peças lá. A Ucrânia está interessada em vendê-los também. Ou seja, pareço estar com sorte nesse sentido. Ao mesmo tempo, não me aborreço com fábricas. Sérgio, você está sentado neste momento numa cadeira Oscar, de sua autoria. Você poderia falar um pouco mais sobre essa peça? Esta cadeira foi criada em 1956. Nessa época, eu já havia tido meus primeiros contatos com o Oscar Niemeyer. Mas eu era realmente muito tímido naquela época – agora não, sou descarado –, de modo que eu mantinha uma distância respeitosa. Para mim, tratava-se de um ícone, uma espécie de Deus. Quanto à cadeira propriamente dita, ela me foi originalmente encomendada pelo Jockey Club Brasileiro. Mas eles não aceitaram o resultado final, pois lhes pareceu moderno demais. Alegaram que era a cópia de Brasília, muito embora eu não tenha localizado até hoje um palácio sequer que semelhe essa cadeira. De qualquer forma, tirei a peça de lá, e deixei na loja. Nessa época, Oscar Niemeyer ia muito à loja, procurando móveis para o Catetinho. Um dia, ele foi à loja e viu essa cadeira. Logo em seguida, disse para embrulhar duas, porque queria mandar para a filha como presentes de casamento. Achei aquilo maravilhoso. Tanto que a cadeira passou a se chamar Cadeira Oscar. Eventualmente, cheguei a desenvolver uma amizade mais íntima com Oscar. Nosso 49
relacionamento ainda é muito bom, não envolve nenhuma adulação. Volta e meia telefono para ele e pergunto se posso fazer uma visitinha. Se ele disser que pode, vou e levo uma garrafa de vinho, para ficarmos batendo papo. Ele é sempre muito simpático. Seco, mas simpático. Encomendou-me, certa vez, lá da Itália, o interior do palácio do vice-presidente. Ele fez o Cine Brasília com Milton Ramos, mas me pediu as poltronas e a recepção do cinema. Para o Teatro Nacional de Brasília, pediu-me as poltronas também. Essas eu fiz em veludo, que absorve o som muito bem. Eventualmente estragaram, mas agora estamos estudando para reestofá-las (são três auditórios, um tipo de poltrona para cada). Em algum momento, chegamos a negociar o Congresso. Fui para Nova York e estudei as Nações Unidas. Porém, quando estávamos prestes a acertar o acordo, Israel Pinheiro barrou as negociações, porque queria que Brasília fosse construída por moradores, e eu não tinha a menor intenção de me mudar do Rio. Como nasce o desenho de uma cadeira? Bom, em primeiro lugar, tenho que dizer uma coisa: sou superegoísta. Cliente de mim mesmo. Faço o que bem entendo e não dou satisfação a ninguém. Não aceito modismos nem tendências. Por isso meus móveis sempre têm cara de 1950, 1970. É minha caligrafia, meu modo de fazer móveis. E me demoro muito sobre aquelas peças, pensando em possibilidades e variações. Acredito que seja um modo de trabalhar parecido com o de uma verdadeira costureira. Tenho uma preocupação com retoques, detalhes, coisas mínimas como a altura de bainhas. Em Brasília, o próprio Itamaraty ficou muito entusiasmado com meus trabalhos. Encomendou-me uma mesa para os ministros, argumentando que precisava de algo mais representativo que as mesas Luís XV que havia nos ministérios logo depois da inauguração. Desenhei uma mesa e foi aceita. No dia em que foi exposta, Hugo Gutierrez – embaixador do Brasil na Itália – disse que queria me levar para a Itália, o que foi ótimo. Daí surgiu o convite para fazer a embaixada toda. Instalei-me na Itália, na casa de Carlo Hauner, que estava com uma fábrica em Trieste, no norte. Foi assim que em conjunto mobiliamos a Embaixada. Muito embora tenha sido idealizada lá fora, era uma obra totalmente brasileira. Por várias vezes, Gutierrez falou para Juscelino da importância de decorar as embaixadas brasileiras com móveis de designers brasileiros.
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O senhor acha que a Poltrona Mole já entra no Palácio, ou ainda não? Acredito que sim. Inclusive, já dei a dica para eles. Afinal, o Palácio tem diversos cantos, não? O grande salão de estar do Palácio, por exemplo, poderia se servir de uma peça dessas. O presidente pode bater papo e fumar um charuto com outros dirigentes de estado em móveis bem mais interessantes que aqueles durinhos de lá.
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Kiko Farkas Designer e diretor do Máquina Estúdio.
É importante falarmos um pouco sobre alguns nomes do design gráfico brasileiro, para nortear essa trajetória, esse processo, que é bastante vigoroso e pouco conhecido. O que você pensa sobre o Aloísio Magalhães, o Alex Wollner e os anos 1950, quando começa a aparecer uma linguagem mais formatada, mais pensada de design brasileiro? O Aloísio está muito mais ligado ao Brasil do que o Wollner. O design do Wollner é muito mais internacionalista, europeu, e mais ideológico. E o Aloísio era um cara cuja origem estava nos valores brasileiros, porque ele evoluiu das artes plásticas. Ele era um artista, e o design pra ele é uma das facetas. Ele era muito ligado à cultura popular lá de Pernambuco, onde fez o Gráfico Amador. Quer dizer, um experimental. E o Wollner é um dogmático. São duas vertentes que até hoje se interseccionam: algumas pessoas são designers mais intuitivos, e outras são designers mais racionalistas. É importante termos essas duas raízes, a escola formalista, que depois acabou gerando a Escola Superior de Desenho Industrial, a ESDI, e essa outra escola, que no fundo é a que engendrou mais para a produção editorial, que é o Aloísio, o Carlos Scliar na revista Senhor. Você acha que a Senhor ainda é um paradigma para o design brasileiro? 53
É definitivamente um marco, porque ela traduziu um momento de pouca possibilidade industrial, nos anos 1960, com muita erudição. O design tinha um caráter muito elitista. Apesar de ter uma tiragem grande, a revista era muito sofisticada graficamente. Não só graficamente, era editorialmente sofisticada. Os editores eram dois judeus e, coincidentemente, um era primo meu. Ele foi dono da editora Delta, e eles que estavam por trás da revista. A Senhor veio de uma tradição dos anos 1940, 1950, de uma coisa muito feita à mão, muito ligada à vertente artística, que veio com o Aloísio Magalhães. Era um olhar artístico. E nessa época, talvez um pouquinho depois, o Lubalin, lá em Nova York, fazia os experimentos tipográficos muito mais sofisticados e muito mais design puro. A Senhor tinha um caráter muito do design a serviço da edição, que depois a Realidade foi buscar, e que, de uma certa maneira, a edição gráfica acaba retornando através da edição fotográfica. A Realidade realimenta essa postura editorial, porque você começa a ter um deslocamento do eixo editorial para o eixo gráfico, visual, e um acaba transformando o outro. Você não pode dizer que a Realidade fez só uma revolução editorial, do ponto de vista da reportagem, da matéria e da postura política. Ela também fez uma revolução no ponto de vista gráfico, mas se ela não tivesse essa âncora editorial, se fosse só gráfica, seria totalmente vazia. Essa geração que sai da Realidade segue para outras experimentações na década de 1970. Vão fazer a revista Bondinho, o jornal Ex-, e acabam na Caros Amigos. Estão lá a Cláudia Andujar , Mylton Severiano, Sergio de Souza, Roberto Freire. É uma turma que vai se libertando também. Sai da Realidade, que tem ainda uma coisa dura, para a Bondinho, que tem uma liberdade gráfica que vem do underground, da linguagem tropicalista, e para o alternativo da Ex-. Como você vê essa trajetória? Eu não saberia lhe dizer se isso é uma evolução, se é uma involução. É um retrato da vida. As pessoas foram passando de uma posição, sei lá, festiva, de Bondinho, de desbunde, e foram caminhando para uma realidade muito mais dura. Eu acho que no Ex- eles tiveram que fazer saídas estratégicas, botar o Hitler nu, o Nixon vestido de presidiário, para não falar do que tinha que ser falado. Mas o Ex-, por exemplo, é um jornal sem muito interesse gráfico. O interessante justamente é a maneira como eles colocavam o conteúdo. Não vejo como uma evolução. A Realidade foi uma evolução.
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O Rogério Duarte vira uma liderança tropicalista a partir do design, do discurso do design, e do discurso do uso da arte. Ele tinha uma posição muito radical em defesa do design gráfico, e estabeleceu um diálogo primordial com as outras áreas. Como você vê essa história no Brasil, se criou uma escola ou ainda se mantém um design à margem do debate? Enquanto designer, o Rogério Duarte foi um cara totalmente inovador. O que ele fez não se via, e não se vê ainda, nada parecido. E não estou falando das coisas mais conhecidas dele, que são os cartazes, mas das capas de discos. Por exemplo, o Cantar, da Gal, é de uma delicadeza, não é aquela coisa psicodélica a que a gente está acostumado e que são geniais também! Mas as coisas dele mais contidas são de uma inspiração! O Cantar é uma das minhas peças preferidas do design brasileiro, o jeito que ele coloca a tipografia é uma tradução visual da música que está lá dentro, é uma maneira de ver a música, a maneira da Gal cantar, das transparências e do suingue, que é fenomenal. O Rogério é um designer top, sensacional, e ele é também um ativista. Ele era um dos grandes eixos do tropicalismo, um dos caras mais importantes. Acho maravilhoso esse romper de barreiras, mas me identifico muito mais com esse outro lado dele, mais tradicional, digamos assim. Existem dois tipos de expansão de limites, falando de cultura. Existe o cara que arrebenta as estruturas, joga lá para frente, e que ninguém consegue acompanhar. E existe uma coisa que vai pressionando lentamente os limites, que está sempre tangenciando o limite, mas sempre ampliando. E eu sinto que o Rogério Duarte talvez tenha atuado nos dois campos. Existe uma maneira de se renovar naquilo que é conhecido, de introduzir elementos surpreendentes dentro de uma forma conhecida, que é um pouco a estrutura do jazz. Você tem os standards, que são músicas que todo mundo conhece, são populares, então você apresenta essas músicas e depois cria a partir dos seus elementos básicos, começa a propor novidades, improvisa, muda andamento, uma série de coisas, e isso faz com que a percepção do ouvinte se amplie. Você pensa que está ouvindo o conhecido, mas na verdade está ouvindo um pouco do conhecido e um pouco do desconhecido. Você usa a memória e fica o tempo todo comparando com aquilo que não conhece. Esse é o campo onde eu procuro atuar. Eu não sou um cara de romper, de quebrar, de chutar, de ficar introduzindo coisas novas, mas eu acho que, consistentemente, se a gente fizer isso a gente eleva um pouco o padrão, a gente altera a percepção.
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É importante colocar isso para a sua trajetória. Como você começou a atuar como designer? Como foi a sua educação para designer? A minha educação para designer não existiu. Eu sou arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Todos os meus colegas, da minha geração, também são, fora os cariocas, porque no Rio de Janeiro já tinha a ESDI, que foi a primeira faculdade de design industrial. Desde o colegial eu sabia que queria fazer design, e às vezes eu me pergunto de onde foi que eu tirei isso. Meu pai tinha em casa uma coleção completa da revista Graphics, e eu curtia muito, folheava, tinha muitos livros, talvez tenha vindo daí minha vontade. E a minha introdução no design se deu pelo desenho. Desenho à mão livre é uma das minhas ferramentas preferenciais. Tem gente que trabalha muito com tipo, hoje está muito em voga isso. A tipografia deixou de ser um veículo e passou a ser um assunto. Tem gente que trabalha muito com fotografia também. Quando eu penso um trabalho, é o desenho que me vem. Então eu acho que foi isso que me fascinou, o desenho, a imagem, mas eu estou me distanciando cada vez mais disso, porque eu acho que fazer design é contar uma história. Os grandes diretores de cinema são excelentes contadores de história, o cara simplesmente transfere essa verve, essa habilidade, essa teatralidade pessoal, para o filme. É muito raro você ver um cara que é um mala fazer um filme bom. Um cara desinteressante, cuja conversa é desinteressante. O importante é como você apreende a realidade. Às vezes, a história pode ser muito complexa, pode ser um livro de quinhentas páginas, às vezes pode ser um logotipo, que é uma história curtíssima, mas que também é uma história, um assunto. Agora estou cada vez curtindo mais essa coisa de organizar e tentar extrair de um assunto aquilo que ele tem de melhor, e isso é um conceito mais parecido com a maneira norte-americana de definir design. Nos filmes tem lá production design, costume design, light design, sound design. Quer dizer, design é um projeto. Como é que o cara desenhou aquela luz, como vai desenhar aquele som... É um conceito diferente de você ser um autor de uma imagem, o autor de uma determinada história. Você busca a síntese? Não sei se é síntese. Às vezes, é o contrário da síntese, é como estender aquelas informações. O principal é o design introduzir um elemento de diálogo. As pessoas ficam me perguntando que fonte eu uso, mas para mim não faz 56
muita diferença, isso fica com os meus assistentes. Tudo bem, eu gosto mais de uma, mais de outra, mas eu não estou preocupado com isso. Fascinante é encontrar num problema aquilo que é importante, tentar pegar aquilo que é importante e mostrar, tentar encontrar uma maneira legal de mostrar. O grande assunto hoje é a edição, a nossa tarefa enquanto organizadores e hierarquizadores, porque o design é isso. Design é hierarquia! Um bom projeto de jornal é isto: como você hierarquiza os assuntos, as informações, o que é mais importante, como vai ser lido, como vai ser entendido. Começa com os aspectos mais abstratos e acaba sendo efetivado pelos aspectos técnicos. Você precisa ter conhecimento técnico de como é a legibilidade, como é o ritmo, quem são os seus leitores. Enfim, uma série de questões técnicas, mas elas sozinhas não são importantes. Essa é uma questão interessante porque você tem que conhecer a obrigatoriedade da funcionalidade do design, o que obriga o design a sair de um casulo de criação em relação a outras áreas. O design não pode ser uma expressão íntima e pessoal, ele precisa de uma comunicabilidade efetiva, não é? Engraçado você falar isso. O meu escritório se chama Máquina Estúdio e foi fundado em 1987 por mim e pelo meu sócio, Paulo Labriola. Escolhemos esse nome porque eu gostava de me ver como um técnico. Existe toda essa coisa do design, de você ser um cara que soluciona problemas. E eu gostava disso em oposição à visão que existia do cara ser um autor, um artista. Eu sempre brincava que eu via uma diferença muito grande entre o Folon e o Milton Glaser. O Jean-Michel Folon era um aquarelista belga, e todos os cartazes dele, capas de livro, tinham uma aquarela. Não era o mesmo desenho, mas eram sempre muito parecidos, e muito bons. Ele sempre fazia uma coisa meio minimalista, muito delicado, e com soluções interessantes. O Milton Glaser, a cada trabalho, parecia que tirava um coelho diferente da cartola. Num ele era tipográfico, no outro ele fazia pastel, no outro era fotográfico, um cara dos 1001 estilos. Eu sempre me identifiquei muito mais com o Milton Glaser. O Rogério Duarte cita isso em relação ao cartaz de Deus e o diabo na Terra do Sol. Ele fala que o Ziraldo também fez um cartaz, mas que o do Rogério ganhou, porque não era um cartaz Rogério Duarte, era um cartaz que estava pensando o filme, enquanto o do Ziraldo era somente Ziraldo. 57
Exatamente essa dicotomia. Eu me via muito mais como o Rogério Duarte do que como Ziraldo. E durante toda a minha vida eu tive essa certeza, eu sempre me vi assim. Mas já tem um tempo que estou revendo minhas coisas, e aí, fazendo um condensado, reparei que todas as coisas que eu tinha selecionado, que são as coisas mais importantes para mim, eram absolutamente autorais. E eu fiquei completamente em crise. Não sei muito bem o que fazer com isso ainda, porque não sei se é bom, não sei se é ruim, não sei se de fato é verdade. Mas o que me parece que as pessoas gostam, o que ficou, o que foi importante, são coisas muito pessoais. Como é o feedback que você recebe dos trabalhos? Os designers gráficos brasileiros estão ganhando espaço junto a um público leigo, mas o espaço de reflexão sobre o design não ganhou essa mesma visibilidade, não existem grandes veículos de reflexão sobre o designer. Como poderia ser feito isso? A coisa que nós menos temos é feedback. Dos clientes, nunca. E os pares parecem estar mais competindo do que compartilhando. Isso é muito empobrecedor, fica cada um no seu canto, e existe uma pseudocrítica. O design se tornou a bola da vez, então tudo tem que ter design. E o design se tornou uma palavra vazia, que todo mundo usa. Tem revistas de design, exposições de design, apartamentos, carros, tudo. É uma panaceia para todos os problemas comerciais. Então fala-se muito. Mas o design é uma coisa muito complexa, muito difícil para ser discutida, e faltam espaços sérios de reflexão. Você acha que tem uma linguagem brasileira no design? Muitas vezes eu entro em crise por causa disso. Quando eu viajo, por exemplo, eu olho para mim e penso que sou brasileiro por acaso. Eu não sei o que é ser brasileiro. Eu sei que eu sou brasileiro e vivo no Brasil e como pimenta, gosto de feijão, mas eu não sei o que é design brasileiro. Pega o design escandinavo: é hipercolorido! Porque lá é tudo branco, tudo frio. Aí pega o design brasileiro: é colorido também, porque aqui é tudo quente! Não tem muita lógica. Eu não sei muito bem o que é ser brasileiro, o que eu sei é que nós somos muito improvisadores. Aqui a gente tem que fazer de tudo. Todos os tipos, tem que atender, tem que administrar, criar, pagar imposto, buscar filho na escola. Isso dá um traquejo para a gente que em muitos lugares não existe. E também a questão da abertura. Um cara que foi educado no Royal 58
College of Arts tem uma necessidade de destruir a tipografia, porque há uma tradição do trabalho tipográfico de trezentos, quatrocentos anos que faz um peso em cima dele. Os europeus têm um peso da tradição que não acontece aqui. Eu diria que essa característica é importante não só no design brasileiro, mas no design norte-americano também. Fora isso, não acho que exista uma cultura, porque a cultura do design é muito internacionalizada, está todo mundo ligado em tudo o tempo todo. É difícil você ter uma coisa que seja ligada à expressão popular. No Brasil, o design é uma expressão totalmente elitista. Eu sei que o trabalho que eu faço só pode ser absorvido por uma elite. Se eu quisesse ser um cara mais popular, eu ia fazer música! Porque música é uma coisa popular, então é brasileira. Você tem a influência externa, mas você tem uma raiz brasileira, que tem a ver com muitas tradições, com misturas e tudo mais. É plenamente plausível você falar de uma música brasileira. Essas matrizes brasileiras, não de design, mas de motivos, de gráficos, de artesanato, de artefatos indígenas, criam uma influência, um diálogo com a produção atual? Para mim, não. Acho que, por exemplo, o México, a América Central, é muito visual, tem muita artesania. Tem tecidos maravilhosos. O México tem o barato das calaveras, as molas, tem uma identidade visual muito forte, mas você pega a música e é ridícula! Que ligação que eu tenho com os marajoaras, por exemplo? Eu moro em São Paulo, sou filho de húngaro com russo. Não que eu despreze, de jeito nenhum, eu acho sensacional, mas não é meu. Ando muito preocupado com a questão da identidade, com o processo criativo, é uma coisa que eu estou curtindo, estou pensando muito. É muito importante para o designer saber se conhecer, saber quais são as matrizes determinantes na sua própria produção. Para saber quais são os seus pontos fortes, como trabalhar, o que é importante para você, enfim, para formar uma identidade, porque eu acho que o designer que não tem identidade vai ser trocado por uma máquina, e não vai demorar muito. Fui para Recife numa bienal fazer uma exposição dos cartazes e dar uma palestra sobre identidade. Eu comecei a andar pela cidade e não acreditei. Em Recife, você escuta Alceu Valença no elevador. Não tem música estrangeira em nenhum lugar, a cidade é de uma personalidade absurda! Então eu comecei a pensar que não fazia o menor sentido fazer essa palestra lá, porque eles não precisam. Eles já têm identidade demais, sobrando. E aí comecei a sacar que o problema deles é justamente 59
o contrário. Como não produzir para um gueto? Porque eles são um gueto. Quer dizer, eles têm uma linguagem tão própria, são tão pernambucanos que correm o risco de produzir uma cultura muito ensimesmada. A tônica da minha fala era: “Vocês têm que se cuidar para não virarem um gueto.” Os caras ficaram bravos comigo! Engraçado, então como se fala de Brasil? Curitiba é uma coisa, e Recife é outra coisa. Acho que não existe essa coisa brasileira, existe cada um. E a questão dos materiais? Não só em relação ao advento do digital, que trouxe instrumentos e ferramentas novas, mas você tem sentido uma mudança na questão da qualificação do material para design no Brasil? O Brasil evoluiu muito. Desde o custo do equipamento, que hoje é muito mais baixo do que antes, até as possibilidades de tipos de impressão. A gente ainda peca muito com papel e acabamento na área de livros, mas hoje existe um parque industrial incrível aqui no Brasil, pelo menos em São Paulo, que não fica a dever muito a nenhum outro lugar. Claro que o grande gargalo é justamente a disposição dos clientes a fazer algo mais fora do normal. Aqui as pessoas estão muito preocupadas em não errar. Eu acho que isso tem a ver com a questão da burocratização das empresas. Quer dizer, cada vez mais você vê molecada de 22, 23, 24 anos assumindo posições de gerente de marketing, diretor de marketing. E você pensa como eles conseguem decidir, porque não têm vivência pra isso. Então as pessoas ficam pegando alguns modelos de fora e tentando aplicar aqui. O grande problema é a falta de cultura, a falta de vontade de fazer alguma coisa realmente que fuja um pouco dos padrões. A questão é a cultura, educação. A nossa maior dificuldade, o nosso maior desafio, é educar os clientes para que possamos fazer trabalhos mais interessantes, ter maior liberdade, fazer mais experiências, porque talvez a alma do Brasil, no momento, seja essa coisa meio híbrida. A cultura brasileira é um caleidoscópio, uma sobreposição de culturas que foram se influenciando, imiscuindo-se umas nas outras. Essa possibilidade que a gente tem de mistura e essa coisa de não ter tradição são duas características importantes. Temos que juntar a essas caracterísitcas o empreendedorismo de primeiro mundo. O design é uma parte estratégica da cultura hoje? Acho que não. O design é uma parte estratégica do comércio. Na China, a preocupação é como vender mais com o design. Uma empresa chinesa foi 60
vender um aparelho da área médica na Alemanha, e os alemães não quiseram, disseram que era antigo, ruim. Então a empresa investiu em design, contratou não sei quantos designers, voltou lá e vendeu cem mil máquinas. É isso. E quando se cria uma indústria cultural? A própria China colocou a indústria criativa como uma prioridade para eles. Não sei. O que é indústria criativa? A publicidade é indústria criativa, o design de produto é indústria criativa, editoras são indústria criativa. Criação artística tenho lá minhas dúvidas se é indústria criativa, porque a criação artística não é comercial. A estratégia é comercial. Eu não tenho a menor dúvida que ninguém está querendo transformar o design e dar incentivos para o design ser uma indústria criativa. Não vejo iniciativas de longo prazo para isso. Agora estou com uma estagiária portuguesa no estúdio. Ela está dentro de um programa do governo português: eles pagam o salário para ela vir fazer estágio no Brasil por seis meses, eu não pago nada para ela. E ela já trabalhou na Croácia, em Madrid, absorvendo lá linguagens e experiências. O governo brasileiro não faz isso, que eu saiba. Qualificar mão de obra nossa para ir para fora, para aprender. Isso para mim é uma política de fortalecimento do design que precisaria ser incentivada.
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John Neschling Maestro e diretor da Cia. Brasileira de Ópera.
Fale sobre o seu trabalho como maestro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Quando eu comecei a trabalhar lá, a OSESP estava numa situação desesperadora. Ela já vinha há muito tempo decaindo, tanto financeiramente quanto em termos de prestígio, público, programação, qualidade. Era necessário fazer alguma coisa para reerguer a orquestra. Ou deixá-la morrer de uma vez, porque daquele jeito não valia a pena mantê-la viva. Então, houve realmente essa reflexão por parte do governo do estado de São Paulo no sentido de reerguer a orquestra. Pela minha experiência prévia de 35 anos como regente e administrador de teatros e orquestras, fui chamado para assumir esse projeto de reestruturação de uma orquestra sinfônica. Tenho a impressão de que o governo não tinha a menor ideia de como fazê-lo, naquela altura, e levaram um susto quando coloquei as condições que julguei necessárias para transformar a OSESP numa orquestra de nível internacional, que era a única coisa que me interessava. Eu não queria fazer da OSESP uma orquestra melhorzinha. Ou a gente fazia uma orquestra de verdade, ou eu não faria o trabalho. Não sei nem se entenderam as minhas condições, mas, para o meu espanto, aceitaram. À medida que o tempo foi passando, eles acabaram entendendo que o caminho era aquele. No princípio, não tinham ideia da profundidade da coisa, 63
nem das consequências que aquilo teria em termos econômicos e sociais. Por exemplo, a orquestra não tinha uma sede fixa, estava há muito tempo viajando por São Paulo, tocando em cinemas e teatros. A ideia de construir uma sede como a Sala São Paulo só surgiu a partir do momento em que eu disse que precisava de uma sede, e especifiquei como ela deveria ser. Eu diria que foi um processo de construção, na verdade, não de reconstrução. A orquestra estava em pedaços. Como foi o processo de construção da Sala São Paulo? É muito importante que as pessoas saibam que uma orquestra precisa de uma sede, como no futebol. Se alguém pensa em construir uma orquestra, precisa pensar primeiro no lugar em que essa orquestra vai tocar. A orquestra precisa construir uma sonoridade e conhecer-se como tal. Precisa acostumarse a uma acústica tanto quanto a acústica precisa se acostumar a ela. É uma coisa complicada. Fazer uma orquestra sem sala é completamente impossível. A experiência internacional comprova isso. Todas as grandes orquestras da história têm as suas salas, que foram ou construídas para elas, ou adaptadas para elas. Então essa foi a minha primeira preocupação. Minha segunda preocupação foi dar aos músicos condições dignas de sobrevivência. Eles ganhavam muito pouco. No Brasil, havia – e ainda há – uma tradição perversa de que o músico tem que se virar. O músico toca em casamento, em solenidade, é contratado por cachê para conseguir sobreviver. Assim a orquestra passa a ser algo como o bico principal. Eles tocam duas, duas horas e meia por dia numa orquestra, ganham o mínimo para sua sobrevivência e se viram com aulas, bicos, gravações. Quase todas as orquestras brasileiras, com exceção da OSESP, ensaiam só uma vez por dia, justamente para que o músico tenha a oportunidade de dar aulas. Isso não é bom em termos de custo/benefício. Uma orquestra de ópera que só ensaia uma vez por dia leva vinte ou trinta dias para montar uma ópera, sendo que uma orquestra que ensaia duas vezes leva no máximo dez dias e pode fazer concomitantes espetáculos e ensaios. Dependendo da disponibilidade de tempo dos músicos, um espetáculo pode ser montado em pouquíssimo tempo. Era preciso oferecer ao músico a possibilidade de sobreviver dignamente só com a orquestra. A terceira condição que coloquei – igualmente fundamental – foi uma avaliação qualitativa da orquestra. Era preciso reavaliar o estado artístico da orquestra, como os músicos estavam tocando. Imagine pagar três, quatro vezes mais ao músico, e 64
ele continuar tocando mal. Você pode construir sala, dar dinheiro, mas se o músico toca mal, ele toca mal. Ademais, tocar bem e ter qualidade são a única “desculpa” que você tem para pedir dinheiro do estado. Como os músicos reagiram a isso? Houve problemas gravíssimos. Você tem uma orquestra com quarenta, cinquenta anos de existência. O que fazer com os músicos que estão tocando mal? Mandar embora de um dia para outro, botar na rua? Como reavaliar um sujeito de setenta anos que está com orquestra há cinquenta e que passou vinte anos sem poder estudar? Esse foi um problema muito grave que se pôs na OSESP, talvez o mais grave de todos. Um problema social mesmo. Só encontramos um meio de resolvê-lo: não obrigar ninguém a fazer os exames, ou seja, você propunha aos músicos uma reavaliação e, caso o resultado fosse positivo, eles ganhavam três vezes mais. Os que não quisessem fazer o exame, independente do motivo, continuariam numa “orquestra B”, ganhando exatamente o mesmo que estavam ganhando e trabalhando do mesmo jeito, com a mesma carga horária. Ninguém ia para a rua. Quem estivesse contente continuava como estava, mas quem quisesse melhorar, estudar, esses músicos poderiam participar da reavaliação. Se não passassem, se manteriam na mesma condição. Não houve demissão naquela primeira fase, apenas uma reavaliação. Houve uma melhora salarial e social para aqueles que passaram pelo crivo. Quantos passaram pelo crivo? Na altura em que cheguei, a OSESP tinha em torno de noventa músicos. Passaram mais ou menos quarenta. Evidentemente, criou-se ali um outro problema de ordem artística: eu tinha uma orquestra desmembrada. Por exemplo, sete contrabaixos e nenhum fagote. Cinco violinos, uma viola... Não dava para tocar nada. Então, tive que realmente pensar na construção de uma orquestra, com um número de músicos adequados, e precisei sair do país para buscar músicos. Abri um concurso brasileiro, um concurso latinoamericano. Fui, aos poucos, preenchendo as vagas músico a músico. Foi uma coisa a longo prazo. No decorrer de dois, três anos, criei uma orquestra que era efetivamente muito boa, e que já podia começar a gravar e viajar. Você pode falar um pouco sobre a disciplina de uma orquestra? Como conciliar os egos? 65
Isso é um problema para todas as orquestras do mundo, não só para as daqui. A disciplina, na música, é fundamental. Se cada um dos noventa músicos de uma orquestra achar que deve tocar certa peça à sua maneira, nunca tocarão aquela peça. É preciso ter disciplina, é preciso aceitar, estudar, respeitar o próximo. Não é muito lisonjeiro o que vou dizer, mas a disciplina de uma orquestra é quase disciplina de exército. Há hierarquias: primeiro oboé, segundo oboé, terceiro oboé. É preciso que seja assim: caso contrário, não funciona. A instituição rui. Não é uma questão de centralização, é uma questão de manter a democracia. Democracia, no sentido efetivo de você dar um mandato a alguém. Esse mandato algum dia acaba. Você vota, e acaba, tira o mandato da pessoa, mas, enquanto a pessoa tem o mandato, ela tem autoridade. Ela não é autoritária; ela tem autoridade, porque foi mandatada para aquilo. É preciso respeitar esse mandato. Existe a hierarquia do estado, existe hierarquia no teatro... Você pode falar um pouco sobre o projeto acústico da Sala São Paulo? Eu chamei a ARTEC, firma americana especializada em acústica, para examinar alguns espaços e dizer quais eram os mais apropriados para a construção de uma sala de concertos. Já havíamos chegado à conclusão de que nenhum espaço existente em São Paulo se prestava à adaptação. O Teatro São Pedro era pequeno, o Teatro Sérgio Cardoso não tinha condições. Então chegamos ao espaço onde agora está a Sala São Paulo, que antes era um pátio no meio da estação de trens. Eu tive que chamar um grande engenheiro acústico para conferir se ali era possível construir uma sala de concertos, e ele, evidentemente, com o conhecimento que tinha das grandes salas de concerto do mundo, fez sua análise e concluiu que, se construíssemos ali uma sala de concerto com as medidas certas, usando os materiais certos, conseguiríamos criar uma acústica muito especial. Então a empresa projetou acusticamente a sala. Não arquitetonicamente, mas acusticamente. Cada detalhe foi pensado, os materiais, os ângulos da madeira, a altura do palco, o material de revestimento das cadeiras, o teto móvel (que era uma experiência relativamente nova naquele momento). Tudo foi pensado para que tivéssemos uma acústica adequada à música sinfônica. Tinha que haver uma espécie de colchão de ar entre o chão e a sala, para que a vibração dos trens e do trânsito não interferisse. Foi um trabalho de altíssima tecnologia. Hoje em dia, a sala é conhecida no mundo inteiro pela qualidade de sua acústica, mas isso custou muito dinheiro e 66
muita burocracia. Cada espaço desses foi realizado dentro de um esquema governamental, que é tremendamente perverso. O Estado tem os meios para oferecer, mas, por outro lado, não tem os meios para oferecer os meios... Você fica completamente engessado dentro da burocracia e das limitações que ele impõe. A questão é que só ele tem esses meios a oferecer, mais ninguém. Por vezes, o trabalho que você despende para conseguir esse dinheiro é maior do que o trabalho necessário para construir a sala. Como colocar uma orquestra na agenda de uma cidade? Uma orquestra faz tanto parte da agenda de uma cidade quanto um time de futebol. Ela dignifica a vida de uma cidade. Você tem orgulho da capacidade que o Estado tem – que a sociedade tem – de produzir uma coisa com aquela qualidade e que signifique algo importante para a sociedade. O produto em si é importante para seus consumidores, mas também como forma de dignificar a sociedade como um todo. Então, se você tem uma orquestra importante, em São Paulo, não importa que a sociedade toda de São Paulo vá assistir aquela orquestra. É importante que a sociedade de São Paulo tenha orgulho daquela orquestra, saiba que é importante, é uma coisa positiva que o estado de São Paulo, que a sociedade paulistana, paulista, ou brasileira, tenha a capacidade de produzir uma orquestra daquelas. É isso que dignifica o ser humano. Eu não fazia questão de que o chofer de táxi assistisse aos concertos, mas eu fazia questão de que o chofer de táxi soubesse que ali havia concertos e que ele se sentisse dignificado de fazer parte de uma sociedade onde aquilo existia. O lema que nós criamos, “Pode aplaudir, que a orquestra é sua”, é uma coisa muito importante. Eu queria dar a entender à sociedade que a orquestra era de qualquer um. Houve uma campanha publicitária, logo no início da OSESP, que era assim: tinha uma foto de um nadador, e a legenda: “Joana Maranhão, nadadora e dona de orquestra.” Aí você colocava outra foto com a legenda: “Francisco da Silva, sorveteiro e dono de orquestra.” Era para dizer que essas pessoas todas eram donas da OSESP, que ela fazia parte também de todas elas, mesmo que não fossem até a OSESP. E isso é fundamental. Fale um pouco sobre os cartazes musicais do Kiko Farkas. Eu chamei o Kiko e disse: “Kiko, nós estamos aqui numa sala liberty com colunas neoclássicas, e tocamos uma música careta que – na verdade – merecia estar no museu. Mas eu não posso vender essa orquestra como uma 67
coisa museal. Se eu for vender um museu, vou vender uma ideia careta dessa orquestra, que só os velhos, os ricos e os ‘cultos’ podem assistir. Eu quero fazer uma coisa moderna.” Nós tínhamos na própria orquestra esses dois lados. Quando nós tocamos música de Beethoven, de Mozart, de Schubert, nós estamos fazendo museu, mas, ao mesmo tempo, estamos tocando com a Banda Mantiqueira, estamos trazendo músicos jovens para tocar, fazendo outro tipo de música dentro da Sala. Dei a ele toda a liberdade. Durante os anos em que trabalhamos juntos, Kiko criou uma linha de cartazes que marcou as artes gráficas e os cartazes de concerto no mundo. Os cartazes são expostos hoje em dia no mundo inteiro, porque são especiais. Eram cartazes de música clássica, feitos com grande preocupação estética e, ao mesmo tempo, modernos e instigantes. Não era museal, era mais dinâmico, como eu queria. Como foi a chegada dos músicos estrangeiros? Não sou tão favorável assim a uma orquestra com quinhentas nacionalidades. Você precisa criar uma sonoridade única, e muitas escolas diferentes acabam dificultando isso. Evidentemente, no caso de uma orquestra como a OSESP, que não tinha músicos em algumas posições chaves, tive que chamar gente de onde fosse, gente boa. Minha primeira preocupação foi pagar a essas pessoas um preço internacional, para que o projeto atraísse músicos bons, não músicos de segunda. Consegui alguns músicos de primeira linha, mas tive alguns confrontos tentando fazer com que entendessem a mentalidade da OSESP. Eles vinham para cá certos de que iriam tocar numa orquestra viciada, antiga, museal, como as orquestras europeias. Eu queria que eles entendessem que o meu projeto era diferente. Nossa orquestra estava fazendo uma coisa viva, algo que participava da vida da cidade. Queria que eles entendessem que havia uma preocupação com a beleza não só auditiva, mas também com a beleza visual. Eu queria fazer com que a orquestra fosse uma coisa desejada, não só auditiva mas também visualmente. Eu queria que as pessoas tivessem certa postura física, diferente daquela postura dos músicos velhos, que sentam ali e tocam qualquer coisa. Eu queria uma disciplina rígida, rígida mesmo, em termos de horário, de ensaios, de trabalho, em termos musicais, em termos intelectuais. Isso era novo para os que vinham de fora. Eles chegavam achando que era um bico qualquer, e eu queria que eles tivessem um comprometimento com a cidade, um comprometimento com a orquestra. Essa foi a maior dificuldade. Dos inúmeros estrangeiros que vieram, ficaram 68
alguns. Outros que não conseguiram se enquadrar nessa mentalidade foram embora com o tempo. Os que ficaram, no entanto, transformaram-se em exemplos para os músicos brasileiros. Como é excursionar fora do Brasil com uma orquestra brasileira? Antes de qualquer coisa, é preciso entender que as excursões fazem parte de uma grande ordem. As excursões fazem parte do projeto de estabelecer, no Brasil, um projeto musical de valor internacional. Então, tinha que levar a música brasileira para o exterior. Para divulgar a música brasileira, é preciso primeiro descobri-la. A própria música brasileira é muito relegada no Brasil. Tive que fazer pesquisa, descobrir músicas, composições novas, composições antigas, fazer reedições, fazer edições críticas, gravar, para poder sair com essa orquestra para o exterior. Levei, pela primeira vez ao exterior, composições de Edino Krieger, Guerra-Peixe, Camargo Guarnieri, Villa-Lobos. Viajei quase sempre com música brasileira, mas também não podia viajar só com música brasileira, senão tipificávamos a orquestra. Eu tive que tocar Brahms também, porque era preciso mostrar que nós éramos capazes de tocar Villa-Lobos e Brahms. Foi assim que conseguimos esse espanto na Europa e nos Estados Unidos; foi por conta disso que as pessoas se espantaram não só com a qualidade dessa orquestra, mas também com sua beleza estética. Como é realizar uma excursão, em termos de infraestrutura? Uma excursão é uma operação de guerra. Levar uma orquestra como a nossa, que tinha cento e poucos músicos, mais todos os administrativos que iam junto – produtores, marqueteiros, o que fosse – é muito complicado, em termos logísticos. Digamos que viajássemos com 130 pessoas. É preciso tratar de voos, carga, hotéis, transporte. Isso, numa companhia de turismo, já é complicado para pessoas que vão passear. Imagina como é com uma orquestra, com instrumentos que custam uma fortuna. Enfim, é preciso uma estrutura organizada, bem montada, profissional ao extremo, para organizar e levar as viagens a efeito. Agora, viajar pelo Brasil é muito mais difícil do que viajar pela Europa, embora não tenha a questão do passaporte. A logística, no Brasil, é muito mais complicada. Os voos, a hospedagem, a alimentação, tudo é muito mais complicado no Brasil. Quando você sai do eixo Rio–São Paulo, as distâncias se tornam imensas, maiores do que na Europa. Por exemplo, na Suíça, a gente faz seis concertos com seis viagens; basta alugar quatro ônibus 69
de viagem. Aqui, de São Luís para Belém, é preciso pegar um avião, e não tem avião de São Luís para Belém que leve uma orquestra de 120 pessoas, mais os contrabaixos, violoncelos e o diabo. É muito difícil. Existem companhias especializadas que fazem isso no mundo inteiro. Aqui, no Brasil, tudo que nós fizemos na OSESP foi jurisprudência. Não havia pessoas especializadas em nada, em nenhuma dessas áreas, nem em marketing de orquestra, nem em nada. Então, a gente teve que, na verdade, criar toda uma estrutura humana ligada à orquestra para que ela funcionasse especificamente naquele setor. Você pode falar um pouco dessa outra jurisprudência na qual você está trabalhando agora, a Companhia de Ópera? Em primeiro lugar, todas as minhas “invenções” aqui, no Brasil, não são bem invenções. Não estou inventando nada de novo para cá. Tudo que fiz aqui na OSESP, e hoje estou fazendo na Companhia de Ópera, já foi realizado – com sucesso – em outros países. Basta adaptar para as nossas realidades, tanto geográficas quanto sociais. A ideia de uma companhia de ópera estável não é coisa nova. A Alemanha tem setenta delas, e teatros. Nós não temos teatro ainda, mas acho que teremos com o tempo, se o projeto der certo. O plano é criar uma companhia estável de cantores, com orquestra, com teatro, um grupo de profissionais que possa viver dignamente da sua arte, como foi o caso com os músicos de orquestra da OSESP. Os cantores brasileiros são obrigados a pular de galho em galho, cantar de tudo. Grande parte dos músicos da companhia participa dos musicais, porque não dá para viver de ópera somente. Os cantores têm que ter a possibilidade de sobreviver da sua voz, de cantar direito, de escolher o repertório certo. Ter tempo para descansar seu “instrumento”, porque a voz vai embora muito mais rápido que um violino. Evidentemente, o grande desafio foi criar uma produção que fosse esteticamente sofisticada, tecnologicamente avançada e de alta qualidade; sendo, ao mesmo tempo, fácil de transportar. Se nós vamos viajar pelo Brasil inteiro, não podemos viajar com um trambolho de cenário, levar duas semanas para montá-lo, mais duas para desmontá-lo etc. Esse aspecto tem que ser muito bem organizado. A logística é muito difícil. São setenta pessoas viajando, entre cantores, orquestrais, técnicos, camareiras, maquiadores, projetores, eletricistas, iluminadores. Custa bastante dinheiro, mas, em termos de custo/ benefício, a companhia é baratíssima. Esse ano, utilizaremos R$ 10 milhões pra 75 récitas. Feitas as contas, o custo é ridículo. Muito mais barato que fazer 70
cinema, por exemplo. E o alcance é muito grande: segundo nossos cálculos, atingiremos em torno de cem mil espectadores em lugares tão diversos quanto João Pessoa, Belém, Aracaju. Quanto à questão do público: como formar um público qualitativo? Essa é outra discussão longa. Não acredito que a música clássica vá atrair grandes multidões nunca. Assim como a literatura clássica também não atinge multidões. A música clássica só atingirá um número maior de pessoas à medida que a educação do país se desenvolver, à medida que as pessoas se interessem pela leitura e pela introspecção, à medida que as pessoas comecem a valorizar tanto o silêncio como a música. Isso não é coisa que acontece de um dia para o outro. A obrigatoriedade de ensino de música na escola é uma bobagem, não adianta. O que deve se tornar obrigatório é a apreciação musical. Não se deve obrigar uma criança a tocar, mas é preciso ensiná-la a ouvir boa música. Fazê-la compreender que se trata de algo que pode ser uma fonte de prazer para a vida inteira. E, mais além, a apreciação das artes nas escolas. Isso que é importante: trabalhar a sensibilidade da criança, sobretudo para o silêncio. Tentar uma sociedade menos barulhenta, menos agressiva, que compreenda o poder da introspecção, da solidão, de poder lidar consigo mesmo. Hoje em dia, paga-se caríssimo pelo silêncio. Você precisa ir para uma ilha do Atol, ou então para Keeling Island, na Austrália, para poder encontrar um lugar onde não se toca axé o tempo todo. Saber ler e executar música não pode ser causa, mas consequência... Exatamente. Mandar alguém estudar música não vai levar a nada. Além do mais, não temos nem professores para isso. Não adianta você fazer uma lei e não ter professores para ensinar direito. Leva gerações para conseguir juntar professores ideologicamente bem formados. Afinal, o que significa ouvir música clássica? O que é música clássica? O que é o teatro clássico? O que é a grande literatura? Quantas pessoas leem Shakespeare no original? Ninguém. Cada vez menos gente lê Shakespeare, cada vez menos gente lê Machado de Assis. Quem sabe quem é Monteiro Lobato, no Brasil? E isso é muito mais importante do que ensinar música nas escolas.
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Ivaldo Bertazzo Coreógrafo.
Quando começou o interesse pela dança, pela coreografia? O processo pessoal de dançar vem dos ímpetos adolescentes, porque havia modelos muito preciosos, únicos, naquela época: Baryshnikov, Nureyev. Assim como um jovem via o Bruce Lee, e desejava ser um grande lutador de kung fu. Esses modelos ajudam muito a vocação de um jovem, seja um pianista, um cantor. Isso vai trabalhando o instinto vocacional. Onde você cresceu? Eu sou de São Paulo, de uma família da Mooca, mas que, felizmente, escutava muita música erudita, cantores de ópera. Era uma doença familiar, e a gente era obrigado a escutar. Nessa obrigação, criou-se um exercício de escuta. Tudo começa aí. Na juventude, precisa-se de modelos, senão você não chega lá, ou de professores que trabalhem vocacionalmente. Isso é muito frágil hoje em dia. Na minha adolescência, a gente ficava na porta do teatro até que o porteiro nos deixasse entrar, porque não tínhamos nem o dinheiro para pagar. Mas mesmo assim víamos tudo, Zé Celso, Antunes Filho, Teatro de Arena, víamos o balé do Béjart, que chegava da Europa, via isso, via aquilo, via o Vianinha, via tudo, até o Chico Barrigudo. E isso era muito importante para nós. Não queríamos ser atores só pela fama, mas pela arte. E esses exemplos precisam ser valorizados. 73
Quais foram as suas influências no trabalho como coreógrafo? Eu presenciei etapas muito importantes, porque surge a dança moderna americana: Martha Graham, José Limón, Merce Cunningham, que são tendências da dança moderna que viraram grandes escolas e produziram espetáculos muito fortes nesse período dos anos 1960, início de 1970, que nos ajudavam a ver não só tendências coreográficas mas uma meta de linguagem, que é isso que um coreógrafo precisa – um estilo, uma tendência. Chega depois Béjart, que são coisas mais antigas. E vão surgindo no Brasil muitos exemplos, inclusive um exemplo máximo de dança e teatro contemporâneo, que é Pina Bausch. Qual é a trajetória hoje, olhando Béjart, Pina Bausch? Como que esses coreógrafos desenharam sua carreira? Tem coerência, não é cada dia uma coisa. Eu aprendi muito com isso, e muito mais aqui, como coreógrafo, com o teatro do que com a dança. Eu tenho meus mestres: Vianinha, que era do Teatro Opinião, Teatro de Arena, José Celso Martinez Corrêa, Antunes Filho. A gente passou por períodos catárticos da ditadura, do teatro brasileiro, que nos ensinava. Eu queria ser um coreógrafo, um dançarino, mas isso tudo fazia parte da minha escola. E creio que eles também veem assim as tendências da dança e das coreografias. A dança moderna americana chega ao Brasil em espetáculos ou informações? Ela vinha junto com pessoas como Ruth Rachou e Clarisse Abujamra, artistas que tiveram condição de estudar lá fora. Elas nos traziam esses conhecimentos técnicos. Mesmo através de embaixadas, sem grandes patrocinadores, vinha para o Brasil espetáculos de Paul Taylor, Alvin Ailey, Merce Cunningham. Martha Graham também veio. O Carlton Dance ajudou muito também, mas isso é mais recente. Os espetáculos, de uma forma ou de outra, chegavam. Tínhamos que vê-los avidamente para aprender. Porque quando viaja-se ao exterior é difícil achar um ingresso. Eu assisti a espetáculos da Pina Bausch aqui, em São Paulo, seis dias seguidos. Isso ajuda a gente, como estudante da coreografia. Quando você começou a trabalhar, como conseguia viabilizar os seus projetos? Como os transformava em espetáculo? Eu sobrevivia dando aula. Até hoje, isso acontece. Em 1974, decidi fazer o meu primeiro espetáculo com dinheiro da escola onde eu trabalhava. A 74
produção cultural não tinha ainda esse custo, o que, aliás, eu acho muito coerente. Afinal, desenvolveu-se tecnologia, abriu-se mercado. Têm-se muitos técnicos de palco, de iluminação, de cenografia e principalmente de mídia. Antes, pouca mídia, um repórter do jornal que o entrevistasse, já trazia resultados importantes. Agora você compete, principalmente em São Paulo, com a maior produção cultural da América Latina. Eu não dou conta de ver o que tem em São Paulo. Porém, as coisas foram ficando mais caras. Eu tenho uma lembrança da minha amiga Fernanda Montenegro, que dizia: “Ai, que saudades, eu subia com o Fernando Torres pelo litoral brasileiro, parando de navio nas capitais e nas cidades e fazendo o meu espetáculo. Como era bom viver de bilheteria!” Mas não existe mais volta para isso. Como cobrar o valor atual da produção artística? Um ingresso a R$ 200,00 ou R$ 300,00? É insensato. Aliás, nós, que somos patrocinados, estamos pouco a pouco sendo obrigados a fazer preços populares. Cabe a nós deixarmos o elitismo e conseguir trazer todas as classes sociais para sentar numa plateia juntas, assistindo ao nosso espetáculo. É assim que se desenvolveu a cultura em outros países. Nós não devemos mais fazer um espetáculo para um tipo de público específico. A bilheteria, por um outro lado, também obriga o sujeito a fazer uma coisa para encher a casa. Muitas vezes, nesse processo de Lei Rouanet, a produção já está paga, e a busca por público é menor. O que você acha disso? Alguns espetáculos que fiz não tiveram grande sucesso, não foram muito bem-vistos pelo patrocinador. Coisas mais comerciais são para agradar o patrocinador. Hoje você tem público para ver besteirol, para ver uma coisa mais pornochanchada, para ver teatro mais de vanguarda na praça Roosevelt ou grandes produções de musicais. É um público eclético, há espaço para todos. Mas como fazer alguma coisa sem dinheiro voltado para a mídia? Essa ainda é uma questão que inflacionou demais os orçamentos. Você acha que os patrocinadores influem na estética dos espetáculos ou há liberdade? Eu não vejo nenhuma restrição. O artista que reclama que a arte vai ficando mais popular e vã é porque não tem recurso de estudo para conseguir seduzir públicos variados. O teatro é mágico. Se chacoalhar um pano com uma luz 75
específica e alguém disser: “Eu vou morrer afogado! Eu vou morrer afogado!” naquele rio e morrer, você chora na plateia. É a qualidade artística. Artista não pode dormir tarde; tem que trabalhar, tem que fazer outras coisas. O artista boêmio não sobrevive mais; se ele não lê, se ele não estuda, não consegue. Você pode seduzir e ter liberdade? Claro! Recentemente, fiz o Noé, Noé!, que é um musical que eu criei, brasileiro, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O que me diziam da região, dos guetos? “Não vai lá, hein? Eles só gostam de funk. Não faça isso!” Ou então: “Põe um funkeiro, que aí você traz público.” Fizemos um sucesso, tanto sucesso, que vinham garotos de dez anos com papel na mão: “O que é que o senhor quis dizer com aquela frase?” Vinha a dona Alda, que assistiu ao espetáculo oito vezes. Choravam, batiam palma e gostavam. Eles só gostam de funk, na periferia? Não é verdade. Você criou o conceito “cidadão corpo”. Que ideia é essa? Isso foi uma tendência, mais ou menos em 1975, 1976, que eu percebia em manifestações muito precisas de fotógrafos amadores, corais amadores, artistas plásticos amadores. Eram pessoas que realizavam trabalhos artísticos não sendo profissionais especializados. Eu percebia um terrorismo na dança. Lógico, todo mundo deseja ver aquele corpo de bailarino precioso da mesma forma que de um bom jogador de futebol. Mas eu quis fazer algo mais teatral com a dança, mais rico, quebrar barreiras. Eu falava: “Vai quem quer, mas para ir quem quer, invista quatro, cinco meses, ensaiando diariamente”, e o cidadão dançante era dona de casa, advogado, todo mundo junto. Então, sociabilizava, aproximava-os da encrenca do que é uma produção cultural, artística, ajudando em cenário, em tudo. E o nível expressivo era muito elaborado. Havia uma senhora de 76 anos que cantava músicas de Schubert, tomando chá numa cadeira, e você pum!, caía no chão de admiração. Se tratava de ex-professora de Matemática de um colégio do estado. Essas pequenas preciosidades abrem a visão dos profissionais. Era muito incompreendido: “Como cobrar ingresso?” Só que o Cidadão dançante recrutava o melhor cenógrafo, o melhor figurinista, o melhor artista gráfico para esses dançarinos. E fez muito sucesso, muito. Foi aí que eu fiquei famoso. Isso mobilizou meu modo de pensar a dança, porque o corpo é uma ferramenta de comunicação que aprende a falar, cantar, mexer, trabalhar em equipe. 76
E o projeto acabou por quê? Ele não acabou. Esse corpo, que fazia o Cidadão dançante, era a mãe libanesa, o pai italiano ou o tio espanhol com a mãe cabocla. Esse brasileiro que está aqui há quinhentos anos, que é um corpo misto. É muito complexo trabalhar com esse corpo que conheci anos e anos, dando aula. E ele não acabou. Eu fui trabalhar com jovens da periferia, porque começou uma tendência de nós trabalharmos com a sociedade carente, porque eu não conhecia esse outro corpo, do brasileiro filho da raça negra, filho de índio, caboclo. Uma raça menos mista. É outra musculatura. Isso modificou todos os meus conceitos. Cada corpo exige um trabalho. As companhias de dança contratam tipologias e corpos que não vão se machucar: é aquele que a perna vem na orelha desde que nasceu, que aguenta o tranco, pula e não cansa. Eu trabalhei com corpo de periferia, que é curto, é rígido, mas é um metal que você bate e vibra; é muito interessante. Por isso que eu parei um pouco com o Cidadão dançante. Fale mais sobre esse corpo biológico. Quais são as diferenças? O que é lidar com isso, num país, como o Brasil, com esses diversos corpos? A classe média tem carro e se apropria pouco da cidade. Isso limita o seu corpo no uso de espaço, de níveis. Já na sala de aula eu percebo o aluno que veio de metrô e o que veio no seu carro. O corpo é resultado de várias coisas: genética, por exemplo, que você recebe de herança. Se o meu pai era um negro da Namíbia, seguramente isso está inscrito na minha tipologia. Se o meu era um espanhol operário, revela-se de outro jeito. O corpo é resultado também do que eu vivi, como eu estudei, como eu fui educado, que profissão eu adquiri. Uma bibliotecária, que passa o dia classificando algo e uma pessoa que vende sapato e que sobe, desce, atende, agacha, são corpos diferentes. E o corpo também é a história das suas adaptações psíquicas, emocionais. Então, é genético, funcional e psíquico. O bailarino de companhia é um corpo que não tem essas marcas. Você vai dizer: “Mas não é gente?” É, mas ele adquiriu poucas marcas, é um veículo fácil de trabalhar. Ele é um instrumento do coreógrafo, faz tudo. O corpo do Cidadão dançante traz características da sua genética e do seu trabalho. E o corpo da periferia mostra uma raça mais pura. É perigoso falar em raça pura, mas eu quero dizer que tem poucas mestiçagens. É muito uniforme, é interessante de ver.
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Você montou um espetáculo, recentemente, com elementos da cultura indiana, com crianças de periferia. Logo depois, apareceu uma novela da Rede Globo com muitas características daquele espetáculo, e aquelas crianças estão vendo aquela novela. Como você vê o olhar que as crianças têm sobre isso? Porque elas fizeram a base intelectual e conceitual daquilo. Esse é um trabalho social que utiliza a arte para o desenvolvimento de um jovem, que chama-se “arte-educação” – entre aspas porque é muito vasto. Esse trabalho acelera processos de aprendizado, amplia processos, torna-os mais acessíveis para diferentes classes sociais. Na periferia, o jovem é fechado num único campo de visão artística. Resolvi fazer dança indiana porque, hoje em dia, quando você fala para os jovens de periferia: “Ah, conta um pouco da história da sua família” você descobre que o bisavô era um grande mestre em maracatu. Aí você fala: “E aí, você faz maracatu?” “Ah, eu não faço essa coisa ‘xarope’, não!” Então eu trouxe essa estranheza cultural de uma cultura distante, e abriu-se um campo perceptivo, a ponto de hoje quando eu pego o walkman desses jovens não tem só funk, mas outras coisas. É fruto de um esforço extremo para aprender a mover os dedos, a expressão facial, acompanhar as subdivisões rítmicas, que é uma encrenca na dança indiana, o uso do corpo como uma mandala, cor de signos, de gestos. Não estou trabalhando a história espiritual da dança indiana, isso nem interessava, mas o trabalho de corpo deles. Sou contra fechar esses jovens na sucata do bate-lata ou somente ouvir o funk. Essa é uma barreira cultural tenebrosa: “Quem é da periferia, fica lá, e lá a gente faz as produções, e, de vez em quando, nós, os nossos burgueses, vamos ver um pouco isso.” Não pode ser dessa forma. Quebramos as paredes, trazê-los para cá é ampliar a cultura do mundo. Foi muito forte o resultado da dança indiana. Na Índia tem seis danças clássicas – para se ter uma ideia, no Ocidente só existe uma –, e elas não têm nada a ver umas com as outras. O que é dança clássica? É dança já formada desde 1700, tem livros, até maquiagem. A Índia tem escolas de dança clássica. E o indiano aprende maquiagem, instrumentação daquela dança, se vestir, tocar o instrumento e dançar. Aqui nem temos conservatórios. Às vezes você pede a bailarinos, que acabaram a universidade, para ler música, e eles não sabem. Quando os meninos que dançaram comigo viram a dança indiana na novela, era um Bollywood, que é divertido, mas era um Bollywood malfeito. 78
Eles riam, achavam gozado, porque não tinha signo, não tinha musculatura trabalhada. Era uma farra, servia para o contexto da novela, mas não era nada. Foi muito interessante esse choque. Depois teve África do Sul, no Milágrimas. Por quê? Porque é uma tendência, uma etnia que usa cantos atonais que nós não temos experiência. Aprenderam a cantar em zulu, usar o figurativo, contar uma história enquanto dançam: “Naquele dia chovia, e eu vi a menina atrás do bambuá, e fui lá para tentar seduzi-la.” Pois é, a história é a mesma, continua num plano divertidamente erótico, mas ele conta isso com o seu corpo. Esse figurativo, na dança, acabou, ela ficou muito excessivamente contemporânea, só gestos. E aí entra seu trabalho com produção, que é juntar a trilha, a dança, o cenário, numa composição bastante complexa. Como se dá isso? Como você estabelece a relação entre essas áreas? Primeiro a gente pega as linguagens e as culturas que vão entrar em conflito. Se era indiana, quais músicos daqui podem trabalhar? No caso, a gente decidiu por percussionistas populares de escola de samba, maravilhosos. Como fazer o confronto? Estuda-se esse grupo de lá e o daqui, e aí você faz a pororoca, mas já se tem um estudo musical do que será trabalhado, de como será exposto esse confronto. Todo encontro de culturas dá certo, depende da abertura. Nós tínhamos tanto o Madhavi Mudgal, na Índia, como Benjamim Taubkin, dois feras, que trariam coesão entre os músicos. Os meninos fizeram dança indiana, mas o corpo deles continuou brasileiro, eles não perderam sua identidade cultural. Ao contrário. Hoje, quando chegam numa entrevista de trabalho em uma empresa, não dizem, mentindo, que é da Barra Funda, porque têm uma tia que mora lá. Sentam e falam: “Estou querendo esse emprego. Eu moro na Cidade Tiradentes.” Em bom português, com uma expressão adequada, e mostra o seu desejo de entrar nessa empresa. Ele é imediatamente empregado, porque o diretor do RH diz: “Eu quero esse. Esse é capaz.” Ele não esconde mais de onde é, como os da Maré também faziam, porque ele sabe se comunicar até melhor que um filho de uma classe privilegiada. O que é coreografar? Coreografar é construir diferentes estruturas, diferentes formas de locomoção, abrir leques, gavetas que se possa puxar e tirar delas ferramentas diferentes para atender a sua coreografia. Isso não é soltar um corpo; o soltar 79
prevê uma hierarquia, prevê uma função. Você dá subsídios e informações de música, de uso de espaço, de diferentes formas de impulso, de um trabalho também fisioterápico, para evitar lesões. Por exemplo, os meninos da periferia fazem street dance. Eles fazem aquecimento para começar o seu street? Cinquenta por cento já têm lesão no joelho aos 22 anos, não dançam mais. Se a gente puder levar essas informações a esses grupos, para que eles se preservem, vão sobreviver e se desenvolver. Que nem jogador de futebol: você não quer vê-lo lesado aos 23 anos, porque não teve um bom trabalho de construção para aquele tipo de gesto que ele faz diariamente. Como você trabalha o movimento físico e o universo psicológico do ator, do bailarino? Arte não é terapia, mas ela pode resultar muito bem na construção de uma personalidade. O que a arte faz é passar o processo quase neurastênico de a pessoa enfrentar o seu não saber. Um violinista trabalha, no seu sistema nervoso, exercícios de humildade, de confronto com as suas dificuldades, com a sua agressividade. Sem dúvida, tudo isso entra em foco no trabalho, mas é um trabalho coletivo. Antes de trabalharmos psiquicamente, aprendemos a escutar um ao outro, a se colocar verbalmente de uma forma própria – tudo o que a gente quer de alguém numa empresa. Não deixar a privada suja, chegar no horário e ter um entendimento das metas a serem alcançadas, trabalhar em grupo. Conquistar isso é quase impossível nas nossas equipes profissionais de trabalho. Esse outro trabalho, mais interior, do psicológico, isso seria um trabalho mais elaborado, que demanda tempo maior. O jovem de periferia é hierárquico, você tem que trabalhar a organização, respeito, respiração, interiorização. Ele está o dia inteiro com o maxilar retraído, todo desorganizado, e quando ele se reorganiza num instrumento fino, já modifica o jeito de ele perceber o mundo. Você se vê como um produtor cultural criativo? Aquele que também concebe, capta, bota o espetáculo em pé? Eu sempre inicio um trabalho desejando que captadores de recurso surjam. Não tive muito essa oportunidade na minha vida. Fui fazendo um nome reconhecido, bato à porta do patrocinador, não sou sempre recebido. Mas surgem questões. Por exemplo, um espetáculo meu fala sobre saúde, preservação do locomotor e tudo: para uma empresa de seguros fica bonito 80
patrocinar um espetáculo desses. Você vê quais referências pode ter. Ou às vezes um nome famoso também ajuda. Agora, eu não tenho tempo. O que eu sei fazer é escrever livro, fazer coreografia, dar aulas, preparar professores. Mas eu não sou um bom administrador, e esse é o meu conflito. Cadê a escola de produtores culturais? Porque os que você emprega custam muito caro e nem sempre são bons profissionais. É uma deficiência para o mercado cultural, que gera muito dinheiro, mobiliza, mas não tem um produtor com grandes capacidades. Eu acho que isso é delicado. Quem é que você emprega num espetáculo? Um diretor de produção, dois assistentes de produção, mais dois contrarregras, dois maquinistas, três camareiras, mais assistentes, maquiador, cenógrafo, costureira. Mas essa equipe ainda é muito deficiente. Esse é o problema central. A outra questão é que as leis de incentivo nessa área são extremamente burocratizadas. Então, por exemplo, se você foi aprovado em lei permitindo gastar R$ 5 mil em táxi, tem que dar essa nota referente ao gasto em táxi. Isso gera, inclusive, alguma coisa às vezes ilícita – ouso dizer. Deveria simplificar. Cadê o futuro? Daqui a vinte anos quem serão os produtores culturais? Eu não, já vou estar de bengala, sentado numa cadeira de rodas. Porém, cadê? Eles precisam começar. Nesse sistema extremamente “burrocratizado” ele não consegue entrar. Ele vai trabalhar legalmente, vai cumprir as rubricas, mas o processo é muito antigo. Qual a solução para isso? Se a comprovação fosse um produto, e não um processo, ajudaria? Eu acho o seguinte: eu tenho que comprovar nas rubricas se eu gastei aquilo ou não gastei, mas o processo, a gente começa, hoje em dia, a terceirizar. Pergunto ao meu figurinista quanto custam doze roupas, e depois, se for auditado, é com ele. Mas ele me dá uma nota do quanto eu paguei para ele. Assim não preciso administrar tanta gente. É uma solução temporária, mas o certo seria mudar as leis, desburocratizar o incentivo.
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Tindaro Silvano Coreógrafo.
Tindaro, você com dezoito anos deixou de ser ator e foi fazer uma primeira experiência com dança. Como foi? Exatamente. Eu comecei com teatro amador e ganhei um prêmio com teatro infantil em Belo Horizonte, trabalhava e estudava também. Mais tarde, já na Universidade Federal, na Faculdade de Letras, numa peça que ia fazer, tive que aprender um pouco de dança. E fui aconselhado, pelo diretor, Ronaldo Brandão, grande referência no teatro mineiro e brasileiro, crítico na revista Veja – coisa que tinha validade na época –, a fazer dança, e me indicou quem procurar. Então fui à procura do professor Carlos Leite, no Palácio das Artes. Na primeira aula pensei: “Ah, que coisa interessante. Que mundo bonito, que coisa organizada. Que homem culto este que deu esta aula. Que músicas lindas. Quanta moça bonita no mesmo ambiente.” Tudo me motivou, fiquei entusiasmado e fiz um tempo de balé escondido da família. Isso foi em 1974, vivíamos em plena ditadura, tudo era muito careta. A resistência estava mais dentro de mim, vejo hoje. Mas tive a sorte de ser contratado muito rápido, porque eram poucos os rapazes que faziam dança. Com seis meses de balé eu já era bailarino da companhia, com um salário equivalente a US$ 1 mil. Então larguei o teatro e comecei a dançar. Eu achava o mundo do teatro muito desorganizado. Ensaiava-se até às três horas da manhã e a peça não 83
ia para frente. Já a organização da dança e o primeiro contato com a música, as grandes obras criadas para o balé me marcaram muito. Era balé clássico! As meninas nas pontas dos pés, e a gente de malha inteiriça. Fiquei alguns anos trabalhando e estudando com esse professor Carlos Leite. Foi quando eu fiz as primeiras viagens pelo Brasil e comecei a conhecer bailarinos de outros estados. Por fazer parte da companhia do Palácio das Artes, tínhamos o privilégio de receber as companhias convidadas. Iam até Belo Horizonte regularmente o Balé Stagium e o Balé da Cidade, que na época foi totalmente reestruturado pelo Antonio Carlos Cardoso. Eles também tinham aulas de balé clássico, mas faziam uma dança moderna, uma dança que exprimia o tempo e os problemas daquela época. O Stagium fazia um balé de resistência política. Elas me impressionaram muito. Eu as considero companhias fundamentais. Logo a seguir eu senti a necessidade de expandir meus horizontes e fui para o Teatro Guaíra, dirigido na época pelo Hugo Delavalle, um bailarino argentino que fez carreira em Stuttgart e estava dirigindo uma versão de Gisele, em que estrearia a bailarina Ana Botafogo com seu primeiro papel importante no Brasil. Tive a honra de participar dessa montagem. Logo a seguir o Hugo Delavalle tornou-se diretor da Companhia de Belo Horizonte, e eu que fiquei fascinado com o que ele podia me ensinar. Todos aqueles nomes começaram a aparecer para mim. John Cranko, Kenneth MacMillan, a nossa grande Marcia Idê, que tinha sido par de Hugo Delavalle, Eric Brun e outros grandes bailarinos. Passei a ser o primeiro bailarino, tive possibilidade de dançar bons papéis e fui visto por um coreógrafo português – Carlos Trincheras – que era, na época, diretor e maître do Ballet Gulbenkian. Ele me ofereceu um estágio em Portugal. Trabalhei no balé da Fundação Calouste Gulbenkian durante uma temporada. Eles trabalhavam com os maiores coreógrafos contemporâneos do mundo. O Calouste Gulbenkian era um armênio que passava as férias em Portugal e que foi convidado pelo Salazar a se instalar lá quando houve a revolução na Romênia. Ele era dono de poços de petróleo, riquíssimo e criou essa fundação. É um prédio enorme, maravilhoso, tem um museu, uma orquestra muito respeitada na Europa inteira e um coro, considerado o melhor coro da europa. O Ballet Gulbenkian era uma companhia de nível avançado. Nessa época, era preciso pagar para sair do Brasil, havia um depósito compulsório e, através de uma carta, que apresentei ao Ministério da Cultura, tive a possibilidade de ir estudar na Europa com as minhas próprias economias. Eu era um rapaz de 21 anos que já conseguia economizar através da minha 84
dança, e desde que eu comecei a dançar nunca parei. Vivo exclusivamente do meu fazer artístico, e isso me orgulha muito. Fui para Paris, depois, fazer aulas com o Ramon Franquetier, o maître da Ópera de Paris. E nessa mesma época passei um tempo em Londres, com o mestre John O’Brian, que já era velhinho naquela época, mas ainda vive e dá aulas. Fale dos bailarinos e coreógrafos que te impressionaram. A década de 1970 foi um período áureo de alguns grandes bailarinos, como Rudolf Nureyev, Jorge Donn, Maurice Béjart, Roland Petit, o próprio Balanchine. O mundo foi se descortinando para mim e, através desses grandes coreógrafos, fui conhecendo as grandes companhias. Antigamente muitas companhias vinham ao Brasil. No meu segundo ano no Palácio das Artes, vimos o Balé Nacional da Holanda! Tinha coreógrafos fenomenais, como Hans van Manen, um gênio da coreografia que ainda coreografa com os seus mais de oitenta anos. O mundo descortinou para mim uma série de artistas e ao mesmo tempo aprendi a dançar, a apreciar os grandes mestres de pintura, de música e, com as viagens que comecei a fazer, li muito sobre a música, a dança, a história da arte. Isso é muito importante na formação de qualquer artista: uma cultura abrangente, não somente na sua área específica, mas em todas as áreas. Até na arquitetura. Tive a chance de ler em outras línguas, porque eu já fazia faculdade de Letras, fazia Inglês na faculdade e as outras línguas eu pude aprender na prática. Isso foi importante, porque nós temos carência de publicações sobre dança em português até hoje. Algumas coisas chegavam às minhas mãos através de livros escritos em Portugal, mas essa lacuna ainda existe no Brasil. Eu ia para a biblioteca pública e mergulhava e tentava achar dicionários e livros com bailarinos. Na época existia uma estética russa muito forte na dança clássica, tínhamos grandes companhias russas; eu procurava aprender a história do balé russo, do balé francês e depois a história do balé desde a Renascença. Quem financiava a vinda das companhias para o Brasil? As coisas aconteciam no plano governamental. O Estado bancava a cultura. Quando comecei a dançar, abriram várias companhias nos Estados. Eles abriram a Companhia do Palácio das Artes, o Balé Guaíra, em Curitiba, o próprio Balé da Cidade, que antes era clássico, na direção de Joane Franklin, passou depois a ser contemporâneo e moderno posteriormente. O Teatro Castro Alves, na Bahia, também foi importante. Tudo isso financiado pelos Estados. Eu acredito 85
que as companhias estrangeiras vieram na época nos mesmos moldes em que houve o Ano da França no Brasil. Em 1976 houve o bicentenário da Independência americana, por isso várias companhias norte-americanas vieram para o Brasil. Vi coisas lindas. Em São Paulo, tinha Ruth Escobar fazendo um trabalho muito importante, por usar bailarinos no teatro. Depois dividiu. Cada um foi para o seu lado. E a dança se organizou de uma maneira diferente do teatro. Como você voltou para o Brasil? Em 1979, o ano da abertura, eu tive todas as possibilidades de fazer carreira na Europa, mas todo o mundo estava pensando em voltar. Acabei voltando também. Era quase um renascimento político, e houve um boom nas artes cênicas e no balé. Voltei para o Palácio das Artes e tive a oportunidade de fazer uma turnê com Barishnikov e com a Sandra Rodrigues. Nós ficamos cinquenta dias viajando o Brasil inteiro, dançando nos mais importantes teatros. Nós fomos bombardeados, obviamente, porque que existia uma discrepância enorme de qualidade! Ele era um mito e estava no auge da carreira. Tivemos muitas críticas, negativas em sua maioria, mas para nós estava sendo maravilhoso, porque ele era uma pessoa extremamente simpática e entendeu toda a situação. Ele foi para a televisão e deu várias entrevistas. Inclusive esteve no Jornal da Globo, uma edição inteira com ele, onde defendeu a companhia e a dança brasileira: “Eu estou passando por aqui e vou embora daqui a um mês, mas estes artistas ficam e vocês estão querendo destruir uma geração de artistas brasileiros.” Você saiu do clássico e foi para o contemporâneo sem abandonar o clássico. O que são estes dois mundos? Quando eu saí do balé clássico de repertório, depois de ter passado pelo Gulbenkian, fiz uma audição para entrar para o Balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que é uma companhia clássica, e consegui entrar. Eu tive a possibilidade de dançar, nesta companhia, com verdadeiros grandes bailarinos! Alguns brasileiros que dançam até hoje e alguns internacionais, como Natalia Makarova, Fernando Bujones, Yoko Morishita. Eu pude ver o que é trabalhar com clássico. Pessoalmente, tive muitos limites. Eu era esforçado, mas os bailarinos brasileiros, principalmente o homem brasileiro, começa muito tarde. Nós não temos a tradição da Ópera de Paris, do Balé da América ou outros países europeus, nos quais começa-se criança e vai-se moldando seu corpo para as necessidades do balé clássico. 86
Tanto rapazes quanto moças. É muito difícil tecnicamente. Trabalha-se a vida inteira para atingir uma formação sólida. Teoricamente, demoram-se seis ou sete anos de trabalho árduo. Você trabalha seus pés, suas pernas, sua coluna, sua força, as moças precisam trabalhar as pontas dos pés. Isso tudo machuca muito. Inclusive isso deixa sequelas. No final da carreira o bailarino está todo machucado. É muito comum ver bailarinos tendo que operar a bacia, o Barishnikov operou sete vezes o joelho. Os pés são sempre muito maltratados, as colunas dos homens terminam com muitas hérnias. Os grandes saltos machucam muito, comprometem a parte óssea e cartilaginosa do corpo. O bailarino é um artista, mas ele também é um atleta, seu corpo tem um tempo de uso. Nós não temos uma política de aposentadoria especial, como há nos países mais civilizados, onde o bailarino, quando chega aos quarenta e poucos anos, pode se aposentar. Porque é como um jogador de futebol, é um atleta, enfim, com uma carreira curta. Aos meus 28 anos, vendo que eu teria muitas dificuldades na minha carreira como bailarino clássico, me desliguei do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e fui beber em outras fontes. A primeira coisa que eu fiz foi voltar para a Europa. Fiquei nove meses viajando, indo para países importantes na dança contemporânea, como a Holanda, a Dinamarca, a Suécia. Eu sofri um choque imenso quando fui ver o Netherlands Dance Theatre, que na época tinha direção do Jirí Kylián, no auge da sua criatividade. Fiquei apaixonado, quis mergulhar naquele universo. Eu sempre tive muita facilidade para me mexer. Aí eu conheci o outro lado. E com a dança contemporânea não é preciso o mesmo sofrimento. Por exemplo, se um bailarino clássico fizer trezentos espetáculos na vida, em apenas um espetáculo ele sairá satisfeito. Talvez seja essa a média. O bailarino clássico nunca está satisfeito com o que faz. Ele quer mais, ele precisa de mais. Não digo que o bailarino contemporâneo não queira mais, mas ele consegue alcançar uma plenitude artística se tiver a sorte de encontrar um coreógrafo que explore as suas possibilidades e que até mesmo esconda suas deficiências. Ele tem possibilidades como bailarino de se realizar como artista. Foi o que eu busquei e o que eu tenho visto também. Um bailarino com potencialidade clássica muito forte passa a dançar contemporâneo – o que foi o que as grandes companhias contemporâneas fizeram. Existem companhias contemporâneas que fundem, como Ópera de Paris, o Balé Nacional da Holanda, o American Ballet Theatre, o New York City Ballet, a técnica clássica com a moderna. A Pina Bausch, que fez um trabalho de dança-teatro, pergunta-se 87
que tipo de aula eles faziam. Faziam aula de balé clássico. Eu defendo muito que bailarino tem que fazer aula, porque o balé clássico, especialmente, é uma tecnologia muito bem desenvolvida para aprimorar a movimentação artística. Depois, com essa movimentação, pode-se acrescentar os movimentos de dança moderna e então ter um corpo com um vocabulário de movimentos muito amplo, para poder servir a várias linguagens. O que eu busquei foi isso. Também quis observar coreógrafos e senti vontade de trabalhar na criação de coreografia. Por meio disso comecei a fazer meus esboços coreográficos aqui na cidade de São Paulo, porque a primeira companhia que me ofereceu um posto de maître foi o Cisne Negro, numa época muito boa, em que viajavam muito ao redor do mundo e trabalhavam com grandes coreógrafos. Tive a sorte de trabalhar como professor e coreógrafo e foi assim que comecei a minha vida “do outro lado”. Embora relativamente jovem, comecei a me dedicar à coreografia a ponto de não ter mais tempo para me dedicar à dança no palco. E saí de cena aos 28 anos. Tíndaro, o que é ser um coreógrafo? Coreógrafo é a pessoa que está no topo da pirâmide, no mundo da dança. É aquele que tem de enxergar, com antecedência, um produto que é completamente abstrato. Existem coreógrafos extremamente autorais, mas eu diria que 50% dos coreógrafos precisam de parceiros. Não só bailarinos, mas bons cenógrafos, bons figurinistas, uma boa estrutura, com a capacidade de trabalhar até a hora de botar o seu produto em cena. A cortina tem que abrir e aquela coisa que ele imaginou sozinho numa noite ou na mesa de um bar ou dentro de uma biblioteca ou no chuveiro ou por uma encomenda tem que virar um produto final concreto e que, de preferência, seja um sucesso. O coreógrafo é essa pessoa responsável por isso tudo. Desde selecionar o elenco até escolher os bailarinos que melhor se adaptem àquelas necessidades, seja ela clássica, contemporânea, moderna, vanguarda, dança de teatro, pesquisa, o que for, qualquer uma das vertentes da dança. Já existe produção suficiente no Brasil para que o coreógrafo viva do seu trabalho ou ele precisa se desdobrar, assumindo as funções de produtor da companhia, captador, administrador? Existem várias maneiras de se produzir no Brasil. Existem, por exemplo, alguns grupos que estão bastante adiantados na captação de recursos, com seus próprios relações-públicas, administradores e produtores, e os coreó88
grafos podem se dedicar somente à criação. Mas não são muitos. São pessoas que resistiram bravamente, especialmente as companhias privadas. As companhias dos Estados, as companhias institucionais, que viveram sempre com verbas dos governos estaduais, estão em um momento um pouco difícil, porque houve uma mudança no Brasil na década de 1980. A sociedade brasileira mudou. Temos este modelo alemão de gestão do Estado, mas uma sociedade totalmente americanizada. Na Europa – agora está mudando também lá – o Estado paga tudo, desde o cartaz até o breu para o bailarino usar em cima do linóleo. Tudo é com o dinheiro do Estado. Na américa, não. Quem entra no Lincoln Center, ou no Metropolitan Opera House escuta o guia falar: “Vocês estão entrando em um lugar onde 100% é donativo, 100% é patrocinado.” Eles têm um fundo nacional de artes e fazem a arte privada. No Brasil alguns grupos sobrevivem graças a esse mecenato, que, na verdade, é do Estado. É através da renúncia fiscal, de empresas até estatais que investem em cultura. O que aconteceu no Brasil é que nós desenvolvemos a figura do diretor da companhia. Há o papel do diretor artístico, do diretor administrativo e do coreógrafo. Os bailarinos, os assistentes, o pianista. É um time. E o coreógrafo precisa estar no topo da pirâmide porque organiza essa turma, é quem vai fazer a companhia desenvolver um trabalho, uma linguagem e estar presente no mercado brasileiro, e muitas vezes internacional, de alguma forma. No momento nós estamos em uma fase boa, eu diria. É um pouco ups and downs, mas temos exportado várias companhias com tremendo sucesso no exterior. Mesmo com a crise mundial, que serve de desculpa em todos os lugares do mundo e que, por causa dela, houve grande retração de investimentos na cultura. No Brasil, o presidente disse que é só uma marolinha, mas houve sim uma retração e até os grandes grupos que dependiam de investimento privado correram o risco de desaparecer. Mas, de alguma maneira, diretores, coreógrafos e produtores deram um jeito e continuam presentes no cenário, dentro e fora do país. Várias companhias brasileiras vivem mais fora do Brasil que aqui. O Grupo Corpo faz uma temporada no Brasil, na qual faz cinco espetáculos nas principais cidades. E o restante de sua agenda é extremamente internacional. Viajam durante seis ou oito meses. Ano passado eles tiveram – eu sei porque eu os conheço, são da minha cidade – cortes de turnês internacionais. Foi bom para eles porque puderam ficar em Belo Horizonte e criar um pouco mais na cidade. Mas existe por exemplo a Deborah Colker, a Quasar, o Cena 11, a Cisne Negro, o Balé Teatro Castro Alves, que quando 89
viajam fazem um sucesso tremendo. Existem grupos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, menos conhecidos no Brasil, que saem regularmente para fazer temporadas internacionais. Existe, por exemplo, o grupo Mimulus, em Belo Horizonte, originário de dança de salão, que vem fazendo um trabalho de dança contemporânea. Periodicamente, esse grupo vai para a Jacob’s Pillow, uma importante mostra de dança criada por Ruth St. Denis e Ted Shawn, dois ícones da dança moderna norte-americana, contemporâneos da Isadora Duncan. Várias companhias brasileiras já estiveram lá, inclusive o Grupo Corpo, a Deborah Colker, e agora a Mimulus tem ido. Estão indo também para a Bienal de Lion – para onde vai a dança de rua, de Uberlândia. O Balé de Rua de Uberlândia se faz presente na Europa com temporadas que duram três meses em Paris. É um fenômeno. O sustento do que já existe e o fomento do novo são dois caminhos necessários. O fomento de novos grupos, novos coreógrafos. Que política você acredita ser necessária para isso? Residências, bolsas? Os próprios captadores de recursos deveriam ter uma visão abrangente, porque existe uma tendência, na dança, de formação de guetos. Eu acho que é importante haver uma troca maior. Existem festivais, existem mostras, existem bienais em que as companhias e mesmo os grupos semiprofissionais já transitam. Existem festivais competitivos que começam a oferecer bolsas de estudos para bailarinos, que os permitem trocar de país e de escola. Essa é uma saída. Por exemplo, há um festival em Nova York, que é como se fosse um grand prix da juventude. E tem muitos brasileiros que estão indo para esse festival e, através dele, conseguindo bolsa de estudos para estudar fora e criar uma carreira. Existe uma gama enorme de bailarinos brasileiros no exterior. Eu tenho a oportunidade de viajar bastante e dou aulas em companhias na Alemanha, na Finlândia, em Portugal, na França, na Holanda. Em todas elas há três ou quatro brasileiros. E o mais interessante: todos só falam em voltar para o Brasil. Temos um país de duzentos milhões de pessoas e ainda há pouquíssimas orquestras sinfônicas, museus, teatros que possibilitem uma circulação maior. O Brasil é um país imenso, São Paulo é uma cidade com o tamanho de um país. Poderíamos comportar cinco grandes orquestras ou mais. O mesmo número de companhias de dança, com diversos perfis, clássico, contemporâneo, de pesquisa. Belo Horizonte está indo por este caminho. 90
Fale de experiências brasileiras que possibilitam trocas criativas e que possibilitam intercâmbio de pessoas. Nós tivemos um festival muito importante no Brasil chamado Carlton Dance. Ele era patrocinado pela Souza Cruz e trazia, anualmente, diversas companhias do exterior com a preocupação de sempre incluir companhias brasileiras. As companhias brasileiras puderam mostrar seu trabalho para um público que pagava para ver uma companhia famosa do exterior – e às vezes não tão famosa assim. Esse público acabava vendo o espetáculo de uma companhia brasileira e falava: “Ué, então há boas companhias no Brasil?” Muitas companhias tiraram partido desse festival. Temos o Panorama da Dança, no Rio de Janeiro, temos um festival muito grande, que é o Festival de Joinville, para companhias mais amadoras. Ele tem uma mostra paralela de dança contemporânea que acontece em um teatro pequeno e que leva, de tempos em tempos, coisas interessantes. Depende sempre dos curadores. O mais indicado é ter curadores em todo o Brasil, porque há um movimento peculiar em cada lugar. De Manaus a Porto Alegre, indo para Belém, indo para Mato Grosso, é possível encontrar coisa de qualidade. O que falta é trazer visibilidade para elas, porque transitar de Manaus para o restante do Brasil é difícil. É mais fácil ir para Miami, mais fácil ir para a Europa. Você percebe uma identidade na dança brasileira? Sim. Isso foi uma das coisas que firmou o Brasil lá fora, a possibilidade de usar música brasileira, o ritmo brasileiro. As companhias procuraram até usar músicas originais. Alguns grupos só trabalham com composições originais, outros grupos usam a produção de música brasileira, seja clássica, seja até música sertaneja. Isso cria uma identidade. Eu tenho um pouco de medo porque isso pode ficar muito atrelado a um patrulhamento. De repente se você resolve coreografar um Beethoven, não consegue escoar seu produto: é quase obrigatório produzir um compositor brasileiro e fazer uma coisa de temática nordestina para poder agradar gringo. Eu não estou condenando as companhias que optaram por este caminho. E há outras companhias que fazem um trabalho de cunho mais universal, que falam do problema do homem moderno, que usam world music. Mas sucesso mesmo fazem as companhias que levam a alegria do brasileiro, da coisa da negritude, que fundem linguagens. A gente faz isso muito bem aqui no Brasil, essa fusão de linguagens. Ao mesmo tempo que não temos ainda uma escola de dança 91
clássica refinada nem criamos um padrão de bailarinos, um padrão de música clássica brasileira, como conseguiram os cubanos, os norte-americanos e outros países, temos muita gente talentosa que sabe dançar em casa, faz umas aulas de balé clássico, funde com contemporâneo, com a capoeira e pronto! Vira bailarino. Eu tive oportunidade de trabalhar com o Bahia Ballet, que cria balés com temática bastante brasileira e às vezes até africana. As mulheres vêm de escolas particulares, em sua maioria, têm uma formação forte. Os rapazes vêm mais de companhias ou grupos experimentais que fundem a capoeira com dança contemporânea e um pouco de clássico. A crítica que se faz a esta companhia gravita em torno de: “Uma companhia de dança contemporânea com sotaque brasileiro.” Então esse sotaque brasileiro é apreciado, sim. Mas pode ser perigoso? Pode ser. Na dança tem que haver multiplicidade. O coreógrafo tem de tentar falar das várias facetas de seu país, do seu povo, das suas artes, das possibilidades rítmicas de seus compositores e dos compositores universais. O americano fez isso muito bem, foi bem-sucedido ao importar a escola russa com George Balanchine, que criou um modelo americano de dança e agora tem imensos seguidores. Aqui no Brasil nós não criamos a nossa escola clássica, mas criamos essa escola da fusão. Como você vê a relação entre a dança e a música contemporânea brasileira? Há uma evolução em todos os sentidos. Temos que nos ligar cada vez mais à música popular brasileira. Nós temos grandes compositores que criaram para a dança e ajudaram muito. Uma coisa que foi um boom da dança contemporânea brasileira foi “Maria, Maria” – criada há 35 anos – de Milton Nascimento com Fernando Brant. Foi a explosão, por exemplo, do Grupo Corpo. Outros compositores, como Chico Buarque e Edu Lobo, fizeram O Grande Circo Místico, que foi outro boom na música contemporânea, quando o Teatro Guaíra montou a primeira versão, com o Carlos Trincheiras. E também quando revisaram a música e a coreografia e fizeram a versão do Luis Arrieta em 2005. Vejo com bons olhos. Caetano já compôs para a dança, Lenine e Arnaldo Antunes também. Todos estes grandes compositores vêm trazendo um pensamento, e os coreógrafos se apropriaram dele. Eu mesmo tive a oportunidade de trabalhar com Carlinhos Brown. Eu trabalhei na criação, dentro do estúdio, com ele. É claro que o produto final veio cheio de borracha, cheio de produtos recicláveis. 92
Era uma coisa que tinha a ver com o mundo dele. Essa ligação é uma coisa muito saudável. É uma coisa que está dando perfil para a dança brasileira. Fale um pouco sobre o brasileiro que dança nas ruas e da formação acadêmica. A dança, no Brasil, não se faz na universidade. Diferentemente de outros países, principalmente nos EUA. O bailarino brasileiro se forma assim: vai para uma academia particular e, tendo talento, vai haver investimento, muitas vezes dos próprios diretores dessa companhia, ou dos pais, que se sacrificam muito, pagando particularmente os estudos dessa criança e desse adolescente. Futuramente ele vai para festivais e vai se formando, faz aula com vários professores, tenta ir para os grandes centros. Alguns conseguem ir para fora, fazer aulas e se aprimorar, e aí ele voltam para o Brasil, para uma dessas várias companhias brasileiras de expressão. Os cargos de bailarinos são ocupados, 90%, por bailarinos brasileiros. Temos muita gente talentosa. Temos companhias como a São Paulo Companhia de Dança, com um repertório universal e também coreógrafos brasileiros, e estão aptos a fazer tudo isso porque tem bailarinos que se formaram em várias escolas. É claro que eles têm todo cuidado na seleção desses bailarinos. As faculdades de dança, as faculdades de arte, não formam artistas, mas espero que, no futuro, nós tenhamos essa possibilidade. Como está a questão da crítica sobre a dança brasileira? A gente vive um momento muito peculiar. Há uma espécie de jogo. Eu aqui falo com muita abertura, com muito conhecimento, porque eu vi várias etapas dessa relação crítica/produto artístico. Tive a oportunidade de conhecer pessoalmente vários críticos, alguns deles até faleceram, mas eu vejo que há neste momento uma espécie de tabelinha, meio cruel, dos críticos com os captadores de recursos. É na verdade uma espécie de promiscuidade, que me perdoem aqueles que forem colocar a carapuça. Mas eu acho que falta abertura. A crítica e o produto final ainda não são uma coisa bem-resolvida. Faltam bons livros. Tem muita gente nas universidades de dança vendo semiótica, teoria, teoria, teoria, mas eles não teorizam nada. Estão buscando um cantinho para se acomodar como programador de algum lugar. Eu não vejo crítica competente. O que eu sinto é que há muita política e pouca crítica.
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Zé Celso Martinez Correa
Dramaturgo e fundador do Teatro Oficina.
Walt Whitman dizia: “Eu não encontro gordura mais doce do que a que está contida dentro dos ossos.” Um artista tem que se conhecer dessa forma para poder se expressar? Walt Whitman tem toda razão. Para fazer essa afirmação, parte de seu próprio corpo, de seu país e do mundo todo. E, realmente, se o artista não está envolvido com sua obra, é um artista que não existe. Várias pessoas se dizem artistas, mas não se sabe nada a seu respeito, e isso é porque sua obra não passa pelo corpo – o corpo subjetivo e o físico, além do corpo sem órgãos, que se liga pelos sentidos a todo o cosmos. Como disse Oswald de Andrade: “Eu no cosmos, o cosmos em mim.” O que é condizente a uma afirmação de Einstein, de que estudar um fenômeno é já interferir e fazer parte desse fenômeno. Não existe a objetividade ou artista objetivo, esse está envolvido totalmente na criação, e sua função é envolver todos ao cosmos, que é a criação permanente. Todos os seres criam e desejam, e temos que entrar nesse circuito de desejos, nessa música do cosmos, que vem inclusive de nós. Em 1974 eu estava exilado em Portugal, muito envolvido com astrologia e com Galileu Galilei em cartaz. Foi aí que percebi que nós temos todo o cosmos dentro de nós e milhares de outros dentro de nós. Como dizia Rimbaud: “Eu é o outro.” Esse outro é o artista. 95
Zé Celso, o imbróglio contra Silvio Santos é um paralelo de O santo guerreiro contra o dragão da maldade? Contra, não. Não há fetiche, nem existe Zé Celso. Zé Celso é um outro. Eu sou o Zé, e o Zé é um outro. Zé Celso é um personagem que me é muito estranho. Nem tenho absolutamente nada a ver com ele. Nem sou contra Silvio Santos, sou a favor. E nem sou contracultura. A própria ideia de contracultura foi um equívoco enorme. O que é contracultura foi o sistema que se estabeleceu e que a cultura teve que reagir contra ele para sobreviver. Aliás, houve uma revolução muito grande para mim, pois compreendi que no capitalismo, realmente, a infraestrutura é a economia. Mas na vida a infraestrutura não é a economia, é a própria vida. E na vida fazemos a economia que quisermos, os sistemas que quisermos. Mas a infraestrutura é a vida, e a cultura é o cuidado da vida. Para mim, a cultura passou a ser a coisa mais importante que existe na vida. É o cultivo do corpo, da saúde, da vida do seu semelhante, seja ele bicho, planta, paisagem – tudo o que existe, inclusive aquilo que criamos. Isso é cultura, a coisa mais produtiva que existe. Porque a vida é desejo, tesão. É com tesão que se cria, procria; produz-se sem ser escravo, na condição de liberdade. Porque o grande problema é que a verdadeira cultura, chamada erradamente de contracultura, bate de frente com o monoteísmo, seja ele judaico, cristão, maometano. Esse monoteísmo organiza um Estado patriarcal, que organiza uma economia fundamentalista, capitalista, especulativa, e ela impõe essa ideia que o próprio Marx denuncia n’O capital. Eu acho mais importante denunciar que a infraestrutura não é economia. Se só mexermos na economia, não mexemos em nada. Mas se usarmos o poder humano, o poder da cultura, aí mexemos na economia, viramos do avesso a economia, fazemos o que quisermos. Isso depende de assumirmos nosso poder. Porque uma coisa é o poder das armas, do sistema, do direito romano, da propriedade, da pater familiae. Essa coisa toda, que é uma máquina, que é imposta no corpo da humanidade. Tudo isso foi vencedor num determinado período da história, e quis dominar a humanidade. Mas a humanidade é indomável e não se prende a isso. Ela corrompe, devora esse sistema. Eu compreendo mais que nunca o que Mao Tsé-Tung dizia, diante da grandeza da vida humana: “O imperialismo é um tigre de papel”. Por isso, basta a possibilidade de se libertar dessa escravidão, que é ser classificado pelos sistemas todos como o pederasta inato, como diz o Antonin 96
Artaud. Saia desse sistema, desses rótulos, e, de repente, descobrirá seu corpo, sua subjetividade, beberá a vida e começará a adquirir poder. Esse poder se chama carisma, carisma é poder de presença. E esse poder de presença atua na máquina no sentido de substituir essa máquina da castração por uma máquina de desejo, progressivamente. Porque desde que a minha geração, em 1967, resgatou o elo perdido com Oswald de Andrade, com a antropofagia, que é por onde começa a história do Brasil, voltamo-nos àquela cultura primitiva, devoradora, à cultura afro-brasileira, à cultura de todos os erros e acertos da cultura pop e ao mundo inteiro. Isso, realmente, superou uma visão colonialista que existiu até então: o teatro de Anchieta, a cultura que vinha de cima para baixo, que tudo vinha de um palco italiano, de uma cátedra, de uma ciência. Essa geração que criou a Tropicália se identificou através da antena do Oswald de Andrade, esse que tinha participado do modernismo, mas que, em 1928, declarou: “Eu não sou mais moderno; eu sou o primeiro pós-moderno do mundo”, e falou isso textualmente. “Eu sou antropófago.” Além da modernidade, outra questão se coloca para ser superada: o herói romântico, que, num confronto com a sociedade opressora, se destrói. Segundo o que disse, devemos criar em vez de nos destruir? A violência, quando é muito grande, faz com que as pessoas pensem em sacrificar sua vida e se submeter. Como é o fato das mulheres e homens-bombas. A situação é tão insustentável que eles preferem morrer. Eu não sou fundamentalista, jamais faria isso. Eu jamais faria o papel de Sócrates n’O Banquete. Não tomaria cicuta de jeito nenhum. Quer dizer, só se eu quiser, eu mesmo, sozinho. Mas se me impuserem cicuta, direi: “Afasta de mim esse cálice.” Mas você fez Antônio Conselheiro. Fiz Antônio Conselheiro. Fiz todos esses papéis, que são muito bons. O teatro, aliás, é o rito da cultura, é o rito da tribo humana. Isso, se retornarmos aos índios, aos africanos, aos gregos – os gregos da Antiguidade, não os de agora, porque os de agora são ignorantes da cultura deles. Eles estão nessa crise desgraçada, os jovens estão putos, quebrando tudo, não têm noção da cultura, esse é o tempo em que os jovens não têm a sorte que nós tivemos, de nos ligarmos à cultura dos ancestrais. A cultura dos ancestrais dá um valor enorme ao que não é positivista, ao não enquadrado, ao que não está classificado. Por exemplo, o Vinicius de 97
Moraes fez esse retorno em Orfeu do carnaval, a conexão com o carnaval, o candomblé e a Grécia. O Vinicius de Moraes nos fez descobrir o valor que tem a cultura africana, o poder que tem o Exu, a Pombagira, o poder dos orixás, que é o mesmo poder que tem Apolo, que tem Dionísio, que tem Hera, que tem Eros. E os gregos não sabem disso. Nós sabemos porque nós herdamos essa cultura através dos africanos, dos índios. Daí a cultura brasileira. Se não tivéssemos herdado, não teria rebolada, não teria ditirambo, não teria samba, não teria Dionísio, não teria cultura brasileira. A cultura brasileira é uma cultura de Babel que deu certo no suingue, no balanço do quadril, que é muito importante. O grego não tem a menor ideia do poder que tem. Por exemplo, eu fui expulso do Epidauro no ano passado. Rejeitaram Bacantes porque era muito provocativo. E nós, realmente, queríamos replantar Dionísio na Grécia. Cheguei à conclusão de que o teatro de Epidauro, a Grécia Antiga não é dos gregos, é do mundo. Não é o Estado grego, fundamentalista, ortodoxo, autoritário, que tem o direito àquelas pedras. Eu estou disposto a fazer uma discussão internacional. Eles não sabem do que se trata, não sabem o valor daquilo. Para eles, é um monte de pedras que utilizam como turismo. Claro que tem alguns poetas, alguns artistas que sabem, mas o grosso da população, inclusive o popular, e o próprio Estado grego, não têm a menor ideia. Tem que ser do mundo. Qual o poder do seu teatro? O teatro é o trabalho do apoderamento da espécie humana, do seu poder de carisma, do seu poder de presença, do seu poder de intervenção na vida. Agora nós estamos partindo para as Dionisíacas, para o teatro estádio, das multidões. Porque nós temos uma tradição maravilhosa, que é o carnaval; no carnaval, inverte-se tudo, põe-se tudo de ponta-cabeça. O poder não está só nas pedras, no concreto do teatro. Mas o concreto do teatro é muito importante. A Lina Bo Bardi, quem fez o Teatro Oficina, é uma escultora do concreto. O que ela fez com as janelas do Oficina, aquela coisa enorme, aquela janela aberta, foi exatamente para abrir o teatro para a cidade, para abrir para o cosmos – de lá vemos o Sol, a Lua, a chuva. Nós trabalhamos com esses elementos todos e com a tecnologia. A revolução digital é uma cúmplice maravilhosa que temos, permitiu fazermos cada vez mais com mais sofisticação. Lançaremos Os sertões em DVD, em HD, a tecnologia mais avançada que existe. É uma coisa espantosa! 98
Então você concorda com Walt Whitman, é preciso cantar o corpo elétrico? Claro. Eu estou fazendo Cacilda Becker; inclusive, escrevi quatro peças sobre ela, porque é uma atriz que tinha o corpo elétrico, que é o corpo que está na acupuntura, é o corpo que a cultura chinesa conhece, que está no sistema nervoso, que se comunica eletricamente com as energias cósmicas. É muito poderoso. A Cacilda Becker entrava em cena, no meio daqueles atores dirigidos por diretores italianos, impostavam a voz, naquelas peças em que se tomava uísque, mas era chá, na verdade, com smoking. Mas ela chegava, e mudava realmente a ambiência elétrica do lugar. E a revolução digital prolonga essa eletricidade. Existe o conceito do “do-in antropológico”, que o Gilberto Gil e o Antonio Risério criaram, quando começou o Ministério da Cultura do governo Lula. Quais são as ações necessárias para que esse corpo elétrico seja difundido na cultura brasileira? Tem que penetrar em todos, porque é a única coisa revolucionária que existe. A grande revolução não foi a luta armada, foi o desbunde. O desbunde foi fundamental para desmontar totalmente o corpo careta, pequeno burguês, patriarcal, formado com a cabeça, e essa decapitada do resto do corpo. Foi com o desbunde, com as viagens de ácido, as viagens de mescalina maravilhosas daquele tempo, através das orgias, da liberdade, daquele paganismo que retornou ao mundo todo que percebemos que ali houve uma revolução. Essa revolução trouxe a revolução da mulher, a revolução do homem, num certo sentido, que é a revolução gay, a revolução dos alimentos, da comida, a revolução do corpo, a percepção do corpo, a percepção de que a cultura dominante é o beat da batida africana. As transformações verdadeiras vieram do desbunde. O corpo foi elemento principal na minha geração de uma forma ou de outra. Quem não jogou o corpo ao desbunde foi para a luta armada, muita gente arriscou o corpo. Mas quando aconteceu o reencontro dessa geração no exílio, foi um choque, porque eles estavam completamente caretas, e nós estávamos transloucados. Hoje isso tudo está superado. Como difundir o corpo elétrico? A mudança faz parte da natureza. Mesmo que não queira se transformar, se transformará. Por exemplo, o capitalismo ganhou uma religião explícita 99
nos evangélicos. Para eles, para subir na vida tem que haver repressão, tem de deixar de beber, deixar de se divertir. Já o corpo elétrico faz parte da natureza. Por isso que há um retorno ao homem primitivo. Oswald de Andrade, com a antropofagia, percebe o corpo primitivo, o corpo indígena, no qual tudo é sagrado. Porque tudo fala, tudo tem uma alma. O animismo é uma coisa maravilhosa, está à frente. Mas as pessoas, por medo da morte, começam a construir para se proteger: a propriedade, a família, o dinheiro. E criam uma escravidão para si. Abdicam de muita coisa. Qual relação é possível entre o corpo elétrico e o Centro de Pesquisa Teatral, o CPT do Antunes Filho? Antunes é um artista que não se coloca. Acho interessante a sua obra, mas eu não o conheço. Mesmo tendo visto trinta peças dele, não tenho a menor ideia de quem é essa pessoa. Sei que ele é muito importante, que ele transforma os atores, dá disciplina e sabedoria a eles, mas a mim não me fixa nada, porque nós somos opostos. Respeito-o, mas eu não tenho adoração de artista por ele. Eu acho que a noção de cultura que ele usa está fora dele, como uma transcendência, não como uma imanência. E se assumir isso em vida será maravilhoso, ele terá uma revolução. Ele deve até saber, mas nos espetáculos, na obra dele, a impressão que me dá é que a ideia de cultura que ele concebe é a cultura que vem de fora, que tem que ser adquirida. Eu não devia dizer isso, mas eu digo com o maior amor, com a maior franqueza, porque é o que eu penso realmente. Eu acho que a gente, nessa vida, deve, antes de desaparecer, dizer tudo que acha com o maior carinho, com o maior amor. Eu tenho o maior amor pelo trabalho dele. Ele forma mesmo os atores, ele tem uma disciplina. Só que ele não deixa os atores namorar, não deixa os atores tomar droga, não deixa os atores ser amigos íntimos. E eu faço tudo ao contrário: eu quero que os atores tomem drogas, eu quero que os atores se amem entre si, que os atores vivam a vida e sofram experiências da vida, porque só assim vão se autocoroar. Eu tento que sejam divas e divos e craques, jogadores, pessoas que saibam de si. Eu sou pelo teatro-poesia, como tem o futebol-arte. O Paulo Borges diz que é perigoso o Brasil só vender alegria. Como você vê esse tema? A produção da alegria é uma ciência. Para mim é a prova dos nove. Só está funcionando se você está alegre; se não está alegre, tem alguma coisa errada. 100
Saber enlouquecer é uma grande sabedoria. E é preciso ter essa sabedoria para trabalhar com cultura. Quem tem medo de trabalhar em cultura tem medo de si mesmo, da própria potência. A cultura é uma potência. Quando você descobre a potência que você tem, é assustador. O que você acha do Augusto Boal e do Teatro do Oprimido? Detesto o Teatro do Oprimido. Detesto. Eu adoro o Boal, mas o Teatro do Oprimido cerceou o artista dele. Teatro do Oprimido não existe, cara. Todo mundo é oprimido. Precisamos é do teatro da libertação. A encenação que ele fez com o Gianfrancesco Guarnieri é memorável, ele é um gênio. Mas aí ele foi para psicanálise e para o Teatro do Oprimido. Eu acho o Teatro do Oprimido um equívoco, não ensina as pessoas a se libertarem. Você dá arte para elas e dá mágica! Isso é mágico no palco. Eu adoro o Boal, eu aprendi muito com ele, foi meu mestre. Fui assistente dele, senti muito a morte dele, ele faz muita falta, mas o Teatro do Oprimido não. Com toda a sinceridade, eu detesto essa visão que a esquerda tem do oprimido, do coitado etc. Tenho horror disso. Eu acho que isso é antipopulismo. Eu sou populista, mas eu sou pelo populismo carnavalesco. Essa história do povo sofrido demais não, não, não, não! Fale um pouco de Grotowski e Stanislavski. O Stanislavski foi a primeira pessoa que pensou a atuação. E Meyerhold foi mais longe. Graças a uma tradução dele, que saiu em 1966, eu fiz o Rei da Vela. Me iluminou demais. E agora estou lendo uma tradução nova, muito boa, extremamente bem-feita pela Maria Thaís, um livro que ela editou com uma tese dela, em que reescreveu Meyerhold. Eu estou apaixonado de novo por ele. Mas a cada geração que chega no Oficina eu faço Stanislavski. Porque é como Freud: você pode superar várias coisas, mas tem que ler Stanislavski. Porque ele valoriza exatamente a interiorização, o estado de alma. No fundo, Stanislavski trabalha o lado animista, trabalha a percepção que você tem do inconsciente. Trabalha tudo o que o ator precisa, para, em cena, despertar o inconsciente. Aquilo se espalha pelo espaço todo e supera a quarta parede do palco italiano. Grotowski é outra coisa muito boa. Em Roda viva eu o trabalhei de uma forma que ele iria odiar se visse. Eu o interpretei à minha maneira, com o Chico Buarque. A geração de 1968 fez a peça. Grotowski fala da autopenetração, que 101
é preciso autopenetrar-se. Mas ele é muito cristão. Eu me lembro que quando eu saí da prisão, da tortura, fiquei puto com ele. Eu o conheci na casa da Ruth Escobar, e ele parecia um monge. Ele pensou que eu tivesse sido preso por tomar drogas, o que tanto faz, e para mim tomar drogas era uma virtude política também. Se eu fosse preso por drogas, eu estaria muito orgulhoso também, não tinha problema nenhum. Mas ele falou assim: “Tomar drogas não pode!” E me olhou com um olhar de inquisidor. Fiquei com horror dele. Porque ele tem livros muito interessantes, mas se fechou numa seita. E meu caminho é o oposto, eu gosto muito de multidão. Então, apliquei as teorias dele, mas apliquei no paganismo, que surgiu em 1968 com aqueles jovens que invadiram o palco, a plateia, o espectador, que tocaram o público, fizeram essa revolução de se tocar fisicamente. E o teatro da experiência do Flávio de Carvalho? Ah, também tem muita importância. Ele, infelizmente, não pôde realizar completamente, porque foi muito censurado. Eu sou muito parecido com ele fisicamente. E talvez eu faça esse ano, na bienal, O bailado do deus morto, dele, que gosto muito. Bom, ele a fez introduzindo uma macumba em cena, uma espécie de boi-bumbá macumbico. Tinha a morte do touro, e ao mesmo tempo a diversão do touro, um culto ao Dionísio. Flávio de Carvalho é fantástico. Construiu sua casa, um templo, e dedicou ao Nietzsche. Foi amante de Cacilda Becker, que recebeu dele toda sua cultura de artes plásticas. Era um homem muito rico, muito viajado. Quando ele a viu fazendo a dança do fogo, disse: “Eu vou fazer um templo para você, que pareceu a deusa do deus que dança. Vou fazer um templo para Nietzsche.” E fez a casa, e fazia grandes orgias, e levantava sempre a bandeira gay, do arco-íris. Aliás, a gente pretende primeiro fazer na casa dele o projeto da bienal. E quero fazer dentro de um intestino, o público entrando em um corpo, passando dentro das entranhas. Porque ele trabalhou muito essa questão da antropofagia ligada à fome, à comida. É um gênio. Vamos voltar para as Bacantes. Foram treze anos para montar Bacantes. O Oficina foi tombado, mas até hoje não está resolvido, até hoje está num impasse. Mas, praticamente, na semana passada, a gente fez a Bacantes num teatro superlotado, onde foi replantada a orgia. É diferente o público de hoje, porque em Bacantes, quando 102
iniciou, foi maravilhosamente bem. Estreou no Teatro de Ribeirão Preto, que é um teatro grego lindo. Quando chegou o Dionísio, sem o público nem saber quem era, quando entrou o Marcelo Drummond em cena, houve uma ovação. Ele só falou: “Cheguei!”, aí foi uma ovação, parecia que esse deus é brasileiro, parecia que todo mundo conhecia esse deus. Aí veio para São Paulo, um sucesso. Fomos para o Rio, o Caetano Veloso foi estraçalhado, e houve uma difusão enorme disso, o que afastou o público da classe média e da classe alta, que passou a não ir mais. E até hoje, no teatro, tem meninos que dizem assim: “Eu prefiro que tirem o meu sangue do que a minha roupa.” Aí, no domingo passado, você teve uma orgia doce, delicada, maravilhosa, e foi replantada a orgia. Não é como antigamente, aquela agressão. Ao contrário. O público está aceitando totalmente Dionísio. Claro que tem um público que nem aparece, morre de medo. Minha geração não vai, não sabe o que está perdendo. Na Alemanha todos ficam pelados, tiram a roupa, fazem tudo... Quais os seus projetos atuais? Atualmente, eu procuro criar uma companhia que não é compreendida ainda, inclusive pela ordem jurídica. É a associação Teatro Oficina Uzyna Uzona, que trabalha com todas as mídias, com música, transmissão direta pela Internet, uma série de coisas. Trabalha com coro, principalmente. E é um coro que instiga o público a atuar também junto. Então está se formando uma outra geração de atores. O que é difícil, porque o teatro instituído é o teatro do monólogo, uma espécie de cartório que faz a terceira idade pagar caríssimo pra ver de perto atores de televisão. Nosso teatro a mídia ignora completamente. Qual a importância do teatro? O teatro e a poesia são as duas coisas mais importantes do mundo... Foram as artes mais descartadas, menosprezadas nesse período todo do neoliberalismo. No entanto, o poder está na poesia e no teatro poético. O teatro sempre necessitou do atual, da presença. Ao mesmo tempo, aparecem as novas mídias. Charles Olson dizia que a poesia é a energia colocada num papel para ser desprendida pelo leitor. É possível que essa presença e essa atualidade reinventem novos caminhos pelo virtual e pelas novas tecnologias? 103
Eu não sabia que eu era poeta, fui saber que era poeta quando eu remontei aos setenta anos Vento forte para papagaio subir, que foi considerada, na época, uma peça psicológica, uma peça pequeno-burguesa, uma peça simbolista. Eu tinha vergonha dela. Ficou só três dias, mas ela inaugurou o Oficina. Fui encontrar a peça depois, quando fui escrever Cacilda, num artigo. Quando eu fui remontar a peça, eu falei: “Pô! Eu sou poeta!” Isso me deu uma força, cara. Isso me deu uma força humana. Eu percebi que, hoje em dia, o poeta é uma coisa importantérrima. Poeta quer dizer poder, porque me radicalizou, inclusive, no caminho do teatro poético, quer dizer, o teatro do poder. Eu acho que o teatro tem um potencial extraordinário de Walt Whitman. Rimbaud, por exemplo, Rimbaud, Mário Faustino. O Roberto Piva. Eu acho que não apareceu ainda à tona, mas eu sinto que a poesia é a coisa mais forte que existe porque ela é tudo que não foi dito esses anos todos de dominação, está nela, e isso tudo explode nos não ditos. A poesia é exatamente o que não está escrito, é o que está por trás do que está escrito; é aquela possibilidade da palavra ser a palavra-chave, mântrica, que o coloca num universo louco. Eu tenho relido muito Rimbaud, estou apaixonado de novo por ele. As traduções são péssimas, todas, todas péssimas, péssimas, péssimas, percebo isso quando lançam edições bilíngues. O “Soneto do olho do cu”, que Marcelo e eu traduzimos com o Zé Miguel Wisnik, é uma tradução maravilhosa. É a tradução sem música a que se faz geralmente. É pudico, sem respiração, sem interjeição, sem ar. É cerebral. O que são os Brics, Zé? Os Brics, realmente, são o fim do império americano, que já acabou, mas ainda domina, porque tem o poder armamentista, o dólar, a especulação. E mesmo Obama, para fazer o que faz, tem que fazer concessões homéricas, como teve que tirar a lei do aborto para fazer passar a lei da saúde, manter a guerra no Afeganistão. Mas ele foi eleito por essa vontade, esse desejo de mudança mundial. O Bush teve um papel importantíssimo na história, expôs o programa do Partido Republicano, e o mundo inteiro rejeitou. Lula foi eleito também por essa vontade de mudança. O mundo está em evolução. Eu gosto do que o presidente do Equador fala: “Não é época de mudança, é mudança de era”. A gente já está numa outra era, quer a gente queira ou não. 104
Mas tem ainda uma coisa velha que domina: o armamento. A especulação e o armamento. Por isso que tem que fazer cultura no meio dos armamentistas, com a beleza da cultura, fazer olharem para si mesmos, menos deslumbrados com os armamentos, mais deslumbrados com as armas que o ser humano tem para construir a paz. Eu adoraria fazer peças em quartéis, em bolsa de valores, nos lugares onde a cultura não vai. Porque a única maneira de transformar é por meio da cultura, não tem outra. Ideologia, eu não acredito. Religião, eu não acredito. Agora, a vida, os ensinamentos trágicos que a vida tem, os ensinamentos cósmicos que a vida tem, e com tesão, corroem essas defesas. Eu tinha muita vontade de atuar nessas áreas, nos agronegócios. No princípio, eu pensei em levar a cultura para o operário ou para o morro. Mas o Cartola, Dona Ivone Lara, o samba veio. Mas essas castas, castelos, apartheids precisam ser invadidos por bacantes e por sátiros poderosos para cobrar. Mas com o pleno sentido de fazer essas pessoas se descobrirem, não ficarem atrás das armas, como diz o Artaud. Os americanos são muito fortes, e têm atrás deles aqueles milhões de armas. E o cara que está lá atrás é um coitado, não sabe nada vezes nada de si. Artaud, entre os índios que tomavam peiote, viu um ritual e a potência que existia naqueles corpos. Comparou com aquela Europa e ficou envergonhado. Em Cuba, deram uma espada de Ogum a ele, então rumou à Islândia para tentar levantar o povo irlandês. Ele acreditava que aquele povo tinha uma energia, mas se enganou. Eles o capturaram e o botaram num hospício, onde ele ficou durante toda a II Guerra Mundial. Como o corpo pode ser reinventado pelas novas mídias? A presença pode ser reinventada por elas? Acredito que pode. Porque não há nada que propicie mais encontros do que a Internet, inclusive sexuais. O encontro humano. Todos querem encontrar o humano. Claro que tem pessoas que ficam no virtual e não querem sair dele, que é uma espécie de doença, uma espécie de fundamentalismo. E qualquer “ismo” não está com nada.
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Ivam Cabral Fundador e diretor da Cia. Teatral Os Satyros.
Ivam, se atiram no dramaturgo, atiram também no diretor? Ah, atiram em produtores, atiram em idealizadores, atiram o tempo inteiro. Conte um pouco do começo da Companhia de Teatro Os Satyros. O Satyros é um projeto que surgiu para não dar certo. Começamos em 1989, aqui em São Paulo, mas todo mundo pensa que é de Curitiba. O grupo tem 21 anos de idade e foi um projeto de sonhadores. Eu lembro que quando eu vim de Curitiba para São Paulo, recém-saído da universidade de teatro, queria mudar o mundo. Enquanto todos os meus amigos iam para a Globo fazer teste, eu queria criar um grupo fundamental na história do teatro brasileiro. Então o Satyros foi criado e fundado com muita pretensão. Era um grupo que queria fazer a diferença, ser um divisor de águas, existir um antes e um depois d’Os Satyros. Claro que quando você começa a trabalhar percebe que não é bem assim. Foi muito difícil, era um momento político brasileiro complicadíssimo. Surgimos e logo depois veio o Fernando Collor. Esses primeiros anos aqui em São Paulo, de 1989 a 1992, foram difíceis. A crítica aceitou bem nosso trabalho, conseguimos ter naquele momento um bom público, mas não conseguimos viver de teatro. Então, fomos embora em 1992, a convite do Festival Interna107
cional de Teatro de Expressão Ibérica, o FITEI, de Portugal, e de alguns outros festivais da Espanha. Fizemos um exílio voluntário. O Satyros só recebeu o primeiro patrocínio, o primeiro subsídio, o primeiro apoio, em 1997. Portanto trabalhamos oito anos sem nenhum incentivo. Quando fomos para a Europa, vivemos exclusivamente de teatro, mas trabalhando de segunda a segunda, fazendo tudo o que você imagina e que o teatro supõe. Por que Os Satyros? Os Satyros abrem o cortejo de Dionísio, nas Dionisíacas. Eu sou Ogum no candomblé, e Ogum também é esse cara que vai na frente, desbravando a mata e abrindo caminho. Só consegui fazer essa reflexão agora, obviamente lá atrás eu não pensei em chamar Satyros porque eu sou Ogum. Mas acho que as coisas têm similaridades simbólicas e eu gosto de imaginar que a gente abre o cortejo de Dionísio. E como foi o choque ao ver a diferença entre a produção da Europa e a do Brasil? Uma coisa me marcou muito. Em 1992, quando a Comunidade Europeia era um projeto ainda, para você ir para a França, sendo brasileiro, tinha que passar por um processo rigoroso para a liberação do visto. Lembro que antes de sair do Brasil e ir para o festival em Portugal, eu tentei o visto para conhecer a França e não consegui. Eu tinha na época uns 25 anos, era moleque, e a nossa autoestima é tão complicada que até entendia porque estavam negando o visto. Mas a minha primeira surpresa foi que depois de um tempo em Portugal, fomos trabalhar no Festival de Avignon. Então eu fui lá no Consulado Francês pedir o visto, e como brasileiro eu era malvisto, mas como artista eu era bem-visto. Eu comecei a perceber essa diferença, e foi uma experiência incrível, porque eles têm uma forma de produção muito diferente da nossa. Eles estão muito à frente da gente. Foi um período muito bacana para eu me reconhecer, para me formar, foi muito legal. Fala um pouco sobre a trilogia libertina baseada em obras do Marquês de Sade. A primeira vez que montamos o Marquês de Sade foi em 1990. Ainda não existia o Teatro da Vertigem, o Zé Celso estava afastado da produção, o Teatro Oficina, que a gente conhece hoje, estava sendo inaugurado, era um 108
momento muito complicado do teatro brasileiro. Tinha o Gerald Thomas trabalhando com um teatro absolutamente formal, apolíneo, sem nenhuma outra possibilidade a não ser a das formas, das luzes, e o Antunes Filho, que nesse momento atravessava a mesma fase formalista, com o mesmo pensamento. Esses grandes diretores começaram a falar que o texto no teatro estava morrendo. Surgia a dramaturgia do diretor, o diretor era o senhor absoluto do espetáculo. Não tinha mais a figura do ator nesse momento da cena brasileira. A Fernanda Montenegro foi trabalhar com o Gerald Thomas em um espetáculo absolutamente formal, em que quase não tinha texto. Era uma experiência incrível, acho o Gerald Thomas incrível, mas dizer que o teatro brasileiro é só ele e o Antunes Filho e que o modo de se pensar teatro é só esse, causa um desconforto, porque eles trabalham em grandes palcos brasileiros, em grandes teatros, com grandes produções. Então grupos que surgiam sem essa possibilidade de produção não significavam nada naquele momento. Os Satyros surgem como uma resposta a tudo isso, a essa insatisfação. Nós trabalhamos em teatros pequenos, com quinhentos, setecentos lugares. Nosso teatro na rua Major Diogo era um teatro abandonado. O Satyros sempre foi um grupo com muitos elementos, muitos atores, muita gente em volta, então lembro que quando o Nelson de Sá, da Folha de S. Paulo, foi assistir ao Marquês de Sade, nós tivemos que organizar os atores de outros espetáculos, que estavam ali com a gente, para que sentassem nos pontos de goteira do teatro, para que o Nelson de Sá nunca pudesse se molhar ali. Lembro de alguns atores saírem da sessão supermolhados. Só para vocês entenderem em que momento a gente começa a trabalhar e como a gente encara o teatro. Você já fez uma relação entre o teatro d’Os Satyros e a era Collor. Como é isso? Talvez tenha sido sobre o 120 dias de Sodoma, espetáculo que estava em cartaz na praça Roosvelt. Acho que é o que mais se aproxima. É a história de sete libertinos que no inverno vão passar 120 dias num castelo, em um local totalmente inacessível. Eles levam sete mulheres e sete homens virgens, muita comida e passam os dias lá, fechados, isolados onde ninguém mais consegue chegar. Então eles se aproveitam desses jovens virgens como querem, e no final acabam os matando. Quando fizemos essa peça era época do mensalão, e a aproximação desses personagens com o que acontecia no Brasil naquele momento era muito grande. Em 1990, quando a gente resolve fazer A filosofia 109
na alcova, lembro de escrever no cartaz, que também era um programa, sobre a dificuldade de produção, a falta de leis. Não lembro exatamente do texto, mas tinha relação direta com aquele momento que a gente vivia no país. Era impossível, era completamente impossível produzir, e foi por isso que fomos embora em 1992, naquele exílio voluntário. Pensar qualquer coisa, produzir qualquer coisa, para quem estava começando, para quem estava chegando ao mercado de trabalho com ideias que não eram do senso comum, era muito complicado. Foram momentos muito difíceis. Quando você percebeu que tinha pares geracionais? É legal pensar nisso também, pensar que o que a gente viveu ali, que eu sou fruto da geração dos anos 1980, que foram muito complicados. Na música, na literatura, por exemplo, existiam poucas coisas bacanas acontecendo, ou pelo menos era assim que a gente se sentia. A gente via as gerações anteriores, era final da ditadura, parece que a gente não tinha mais motivos para lutar. Naquele momento havia um esvaziamento de possibilidades. Embora houvesse a Max Limonad publicando Sade no Brasil, e a Brasiliense publicando uma série de autores marginais. Essas edições chegavam para a gente de forma clandestina. O Rodrigo Santiago, que é um ator muito interessante aqui de São Paulo, produziu A filosofia na alcova nos anos 1970, junto com a Iara Amaral, e na época eles encenavam nas casas das pessoas. Para a gente, no fim dos anos 1980, quando estruturamos o Satyros e começamos a pensar n’A filosofia na alcova, era incrível imaginar que essa geração anterior para falar de Sade, para ler Sade, tinha que ser escondido, na privacidade. Mas em 1980, naquele nosso momento, parecia que poder fazer isso já era um esvaziamento de uma atitude, e era mais ou menos assim que viam a gente. Demorou para as pessoas perceberem que era um gesto político. Demora até hoje, eu acho. O teatro brasileiro está muito ligado ao teatro dos anos 1960 e 1970, fazer teatro político é seguir uma cartilha. Nós não fazemos teatro político sob essa perspectiva. Ter Phedra de Córdoba, uma transexual cubana de setenta anos, no nosso elenco, é um ato político. Quando ela traz seu corpo de travesti, de cubana, para o espetáculo do Satyros, ela vem com toda uma história… O que é o Teatro Veloz? 110
A gente queria pensar um pouco sobre essa velocidade do tempo. O Teatro Veloz surge em um momento em que a Internet começa a existir, as novas mídias começam a ficar acessíveis ao teatro, aparecem todas essas possibilidades de som, de imagem. O Teatro Veloz é o teatro expandido, é um teatro documental, um teatro em que ficção e realidade vão se confundir, em que a gente pode e deve falar de nós, do nosso entorno… O que são os aterramentos, groundings? Bioenergética. Ela é importante para a gente, para o nosso exercício diário de operário no teatro. É o nosso treinamento, na verdade. É olhar para você, olhar para o seu zero. Ou então não olhar para nada. Sou eu comigo, sou eu do zero, tentando o zero das coisas, para a partir dali esquecer os meus preconceitos, esquecer as minhas dores, esquecer minhas angústias. É começar zerado um processo. Você olha para Portugal ainda? Como foi o tempo que vocês passaram lá? Não, acho que não. Foram sete anos vivendo em Portugal. Anos de muitas descobertas. Eu fiz trinta anos em Portugal, é um período muito importante na vida de um cidadão. Portugal me deu muitas possibilidades. O Brasil estava longe, a Folha de S. Paulo demorava dois dias para chegar. Não tinha essa velocidade que a gente tem hoje. Sem contar também que era muito mais difícil viajar, o povo brasileiro era mais pobre. Morar em outro país era uma coisa muito distante. Então eu acabei deixando de viver um momento importante aqui no Brasil. Mas foi muito legal, eu voltaria e viveria tudo de novo. Como era o teatro lá? O teatro era ainda muito fincado nos anos 1970, era um teatro da Revolução dos Cravos. Ainda é, eu acho. Tenho um pouco de medo que aconteça com a gente também, que congele. No início dos anos 1970, quando Portugal sai da ditadura do Salazar, eles encontram um momento importante para contar uma história, na literatura, na arte, no cinema e especialmente no teatro. Tudo é muito novo, e esses grupos se formam com muito tesão, com muita garra. Surgem naquele momento propostas estéticas de possibilidades incríveis. Então se forma um movimento teatral bem legal. Mas em 2010 continua exatamente como era, nada mudou. A barraca, o teatro aberto, todos os teatros importantes de Por111
tugal têm mais de trinta anos. São do início dos anos 1970, que é o momento em que eles colocam para o Estado a responsabilidade. A partir daquele momento é o Estado que vai cuidar da cultura teatral nesse país. Eles recebem subsídio anual, ganham dinheiro para trabalhar durante um ano. Acho que é um pouco o que está acontecendo em São Paulo. Quando a Lei de Fomento se cria, parece que nós, grupos, estamos querendo muito mais a garantia de que vamos ser apoiados ad eternum do que verdadeiramente pensando numa produção cultural. Pensando muito mais na garantia do meu grupo do que realmente pensando em produzir, ou pensando numa sociedade teatral ideal. Tem uma coisa interessante na praça Roosevelt,vocês conseguiram fazer com que o teatro voltasse a abarcar outras artes, agora é uma área que é frequentada por artistas plásticos, escritores. Esse diálogo entre as artes, como fomentá-lo? Por que uma coisa é fomentar uma arte, outra coisa é fomentar um diálogo mais amplo. Como vocês pensam isso? Isso que você está falando só acontece em São Paulo na praça Roosevelt. Esse diálogo com a música, com a literatura, com o cinema, é uma conquista dos artistas que têm se reunido em volta desse projeto, que eu acho que já é divisor de águas. A gente pode falar do teatro em São Paulo antes e depois do que a gente está vivendo lá – que na verdade não é nada novo, você pode encontrar isso na história, em vários lugares do mundo. E em São Paulo isso aconteceu outras vezes em outros lugares. Eu acho que nesse momento acontece ali na praça Roosevelt porque tem muitos teatros, nós trabalhamos bastante, e os teatros estão abertos de segunda a segunda, então você acaba tendo várias tribos em volta desses trabalhos. Forma-se uma produção e em volta dela uma discussão e uma reflexão. Mas eu acho que não podia ser diferente, vivemos um momento muito especial da dramaturgia em São Paulo. Temos um evento de 78 horas que acontece anualmente lá na praça, chamado Satyrianas. É a comemoração de aniversário do Satyros. Esse ano chegamos à maioridade, completamos 21 primaveras e dez anos na praça Roosevelt. Durante as 78 horas temos atividades o tempo inteiro. Criamos um projeto, o Drama Mix, que é uma tenda onde reunimos 78 dramaturgos que escrevem 78 textos para 78 diretores e para centenas de atores interpretarem durante essas 78 horas. E temos dificuldade em selecionar esses dramaturgos, porque tem mais de 78 pessoas escrevendo. Às vezes acabamos sendo injustos, deixando um ou outro de fora, porque tem muita gente escrevendo coisas bacanas. Isso acontece porque há 112
uma demanda muito grande. Acho que nós na praça Roosevelt ensinamos um novo jeito de produção. Se no início dos anos 1990 era aquele teatro que só acontecia no palco italiano, com uma produção muito grande, com grandes atores, com grandes nomes que precisavam de equipamentos caríssimos, hoje aprendemos ali na praça Roosevelt que podemos fazer teatro em qualquer lugar. Em diversas entrevistas suas aparece a imagem da mesa na calçada. O que essa mesa tem a ver com produção cultural? Eu adoro essa imagem. Tem tudo a ver. Aprendemos com a ditadura que não podíamos caminhar pelas ruas de uma grande cidade, especialmente São Paulo. Que elas não nos pertenciam, que a gente seria assaltado, assassinado. São Paulo convive com isso ainda hoje. Então achamos que é preciso tomar essas calçadas. A ficha caiu quando alugamos o prédio na praça Roosevelt e contratamos um engenheiro elétrico. Às três horas da tarde ele parou o carro em frente ao Satyros e entrou pra ver as coisas. Depois de meia hora, quando a gente voltou, o carro tinha sido assaltado. Quebraram, levaram tudo, às três horas da tarde! Ficamos assustados pensando o que poderia acontecer ali. Passamos a observar e percebemos que quando tinha uma luz acesa, enquanto estávamos ali, nada acontecia. Os nossos carros podiam ficar ali, as pessoas podiam ficar naquela calçada. Então a mesa na calçada, na verdade, surgiu como o nosso projeto zero, antes de pensar em qualquer peça de teatro. Nosso trabalho era muito fechado, então um dia abrimos a porta, tiramos essa porta. O que é uma maneira de convidar o entorno, a comunidade, a participar da nossa vida. Durante muito tempo deixamos nossos espaços abertos, quem quisesse ver nossos ensaios, participar e compartilhar do nosso trabalho era bem-vindo. Estava pensando sobre os teatros institucionais limitarem cada vez mais o cigarro e a bebida nos espaços culturais. Quando você vai para uma instituição, seja do governo ou privada, que tem um tom mais oficial, você percebe uma tendência a tirar a convivência para deixar só o espetáculo. E esquecem o quanto é importante na política cultural permitir que os espaços sejam realmente livres… É que é higiênico você não ter isso, não é? Eu gosto da bagunça, eu gosto do encontro, eu gosto de gente. E Os Satyros têm essa característica. Agora temos até um restaurante na praça Roosevelt, chamado Rose Velt. Se você 113
for olhar o espaço do Rose Velt e o do Satyros, parece que você não está no mesmo lugar. O Rose Velt é todo bonitinho, todo moderninho, limpo, cheiroso. O Satyros é sujo. O Satyros é desconfortável. No Rose Velt eu posso fazer de conta. Ali é a minha fantasia, ali é o meu delírio. O Satyros é a minha verdade. Eu gosto de contar verdades. Fale da escola de teatro. A São Paulo Escola de Teatro é um projeto de sonhos. Acho que é o meu grande projeto, o projeto da minha vida. É uma escola técnica de teatro que atende mais de mil alunos por ano. A gente trabalha com oito coordenações: atuação, humor, dramaturgia, direção, cenografia, figurino, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco. Estamos organizando essas áreas, porque a DRT [Delegacia Regional do Trabalho] não reconhece a dramaturgia, não reconhece o humor, não reconhece técnicas de palco, porque é uma área que foi crescendo da mesma forma que as casas nas encostas do Rio de Janeiro, sabe? Você vai construindo e depois vê a besteira. Na área técnica de teatro isso aconteceu. Ninguém formou iluminador, ninguém formou sonoplasta. As pessoas que estão trabalhando nas coxias não têm formação, aprenderam isso na prática. Tem áreas que a gente precisa muito, como operação de som e operação de luz. Não é o criador, não é o cara que estudou na universidade e conhece som ou luz, é o cara que vai operar. A nossa escola surge meio que para organizar isso. E tem sido um projeto muito legal. Algumas de nossas conquistas foram alcançadas graças ao dinheiro público. Temos dinheiro do estado na nossa associação, então desenvolvemos algumas ações. Por exemplo, parte desses alunos que estudam na nossa instituição recebem uma bolsa. Eu acho legal ter conseguido isso no momento em que a educação e a cultura são tão renegadas. Quais são os grupos que participam desse projeto? Satyros, Parlapatões, Vertigem, Macunaíma – do Antunes Filho, as Dramáticas em Cena e o Espaço Cenográfico – do José Carlos Serroni. São esses coletivos que se juntaram para pensar o projeto. Vamos inaugurar agora a escola de teatro e circo. Então a escola dobra, vamos ter um equipamento no parque Belém, onde era a Febem, de mil e duzentos lugares, um circo incrível. Vamos transformar aquele lugar terrível, supercomplicado, em arte, em circo para jovens. Nosso projeto é de uma escola técnica, em que 70% 114
dos alunos vêm da periferia. Tinha tudo pra ser uma coisa mais higiênica e atrair pessoas que não precisam estar ali, mas a escola tem gente de toda aquela comunidade. Conte um pouco do seu dia a dia como produtor cultural. Eu tenho uma vida meio maluca, trabalho muito. A escola nesse momento tem me consumido demais, porque é um projeto que está surgindo agora e temos que cuidar muito dele nesse momento, é um filho. Eu tenho passado basicamente dez horas por dia na escola e o resto do tempo passo no Satyros, porque tenho que fazer um monte de coisas lá. Eu faço rádio, produzo os espetáculos, faço muita coisa. E como trazer o público da periferia ao teatro? Levar o teatro para fora e não só trazer esse pessoal para dentro da escola? Como você faz isso? É tão fácil… Esse pessoal está tão interessado em ver teatro, em se aproximar! Acho que a periferia está dando várias lições bacanas que daqui a pouco vão aparecer. Acho essa coisa de inserção social estranha. Inserir o quê? Onde? Nós que temos que aprender com esse povo, eles tão muito à frente da gente. Quando abrimos a escola ficamos com medo, não sabíamos como atrair os caras. Até criamos um programa chamado Kairós. O tempo de deus ou o deus da oportunidade, mitologia grega. O Kairós é o programa dentro da escola, o que garante bolsas de estudo, então começamos a criar critérios para essas bolsas. Não podíamos ser só assistencialistas, queríamos que o dinheiro da bolsa fosse usado para comprar livros, ir ao cinema, ao teatro, e era preciso pensar uma forma de garantir isso. Pensamos em fazer através da comprovação de renda. A princípio pensamos em R$ 500,00, mas quem ganha só R$ 500,00 por mês não sabe que teatro existe. Então chegamos a um valor: para se candidatar é preciso comprovar renda menor ou igual a R$1.090,00. Um outro ponto é estudar em escola pública. Setenta por cento dos nossos alunos vêm da rede pública. Tivemos um processo seletivo supercomplicado, concorreram quase dois mil candidatos para duzentas vagas. Quem corrigiu as nossas provas foi a Fuvest e a nota de corte foi 7. Ou seja, temos duzentos geniozinhos na nossa escola. Eles podiam estar fazendo medicina na Fuvest, por essa nota de corte. Isso dá um orgulho tremendo e faz a gente acreditar que há muita inteligência na periferia.
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Como foi o dia seguinte ao assalto em que o Mário Bortolotto foi baleado? O que vocês, os grupos da praça, pensaram sobre isso? Por todo o histórico que você está contando, não é de uma pessoa ou de um incidente que estamos falando, é de uma questão maior e mais ampla. Eu acho que é algo que poderia ter acontecido em qualquer lugar do mundo. O incidente do Bortolotto não tem a ver com o que a praça enfrenta. É importante a gente tentar pensar isso. Naquele dia a gente achava que era um projeto que tinha sido enterrado. Acabou com a nossa vida. Porque se o Bortolotto tivesse morrido, teria acabado. Toda essa história bacana que eu estou contando com entusiasmo iria embora. O Bortolotto é uma figura muito emblemática, muito importante na praça. É bacana falar nisso, porque muito do que a gente conquistou na praça foi coletivo. Foram muitas pessoas e muitos grupos. Mas a gente temeu que esse projeto fosse embora e a gente não conseguisse retomar. Em sua reflexão você toca várias vezes na discussão sobre a Lei de Fomento em São Paulo, todo esse debate que é público, aberto à Cooperativa Paulista de Teatro. Então o que você acha que precisa ser feito? A lei é boa ou não? Ela precisa existir, não é? Eu acho que mudou muita coisa desde que o programa de fomento foi instituído. Ele é do ano 2000. Quando a gente chegou na praça Roosevelt, em dezembro de 2000, São Paulo tinha cerca de setenta espaços teatrais. A temporada teatral naquele momento era de sexta a domingo, não tinha teatro nos outros dias. Hoje nós temos trezentos espaços teatrais na cidade, com espetáculos de segunda a segunda. Foi esse programa que fez com que essa produção se tornasse tão significativa. Mas acho que teríamos que criar nichos aí. O Zé Celso, por exemplo, não poderia ser olhado em igualdade comigo. O trabalho do Zé Celso é muito essencial, muito importante, ele tem que ser avaliado de forma diferente. Eu não tenho muitas críticas à Lei de Fomento. Acho importante que ela exista. Primeiro vamos garantir que ela exista, depois a gente pensa em critérios. Uma lei de fomento como essa do teatro é uma conquista de uma classe artística que se uniu. Como fazer para que artistas de outras classes se unam? Não só na sua área específica, mas que criem diálogos? Isso é uma preocupação sua? 116
O tempo inteiro. Eu acho que a função do artista, não só de teatro, é criar esses espaços de discussão. Se você for olhar para o trabalho d’Os Satyros vai ver que estamos o tempo inteiro tentando propor conversas, diálogo. Até paramos de fazer debates, encontros, seminários, porque chegava a ser chato em alguns momentos. As Satirianas sempre foi muito reflexivo, muito crítico. Nos últimos anos a gente está festejando mais do que criticando e refletindo, porque eu acho que chega um momento que você tem que festejar para queimar o excesso. É como o carnaval, você sua, transpira, bota para fora, fuma um monte de maconha, bebe muito, vomita para caramba e então renasce para outras coisas. Mas você não fuma sozinho, você não trepa sozinho, você não bebe sozinho. O tempo inteiro você está falando com o outro, e isso me interessa para caramba. O que foi o movimento Arte Contra a Barbárie para geração de vocês? Foi fundamental. Eu acho que a gente ainda bebe dessa discussão. A Lei de Fomento surge por causa do Arte Contra a Barbárie. É fundamental e norteia até hoje esses encontros. Dificilmente acabariam com a Lei de Fomento, porque estamos articulados. Isso é o que o artista de teatro tem de bacana, a mobilização. Quando aconteceu o incidente do Bortolotto, organizamos uma manifestação em algumas horas. Começamos a ligar um para o outro de manhã e à noite a gente tinha reunido centenas de pessoas. É aquela frase do Brizola: “o artista não dá voto mas tira voto”. Exatamente. O seguimento teatral só perdeu para o seguimento de artes integradas como maior captação da Lei Rouanet. Então, ainda falta dinheiro? O que falta? Eu acho que não falta dinheiro não. O que falta é projeto, ideia, atrevimento. Faltam muitas outras coisas. E a crítica teatral, a reflexão sobre o teatro? Como estimular isso? Não existe. É triste demais. A crítica do jornal não funciona. A crítica que tem na universidade não vê teatro, Silvinha Fernandes que me perdoe. Então o que a editora Perspectiva está lançando de reflexão crítica que é produzida pela universidade, pela academia, não tem correspondência com o que está acontecendo. 117
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Eduardo Tolentino Fundador e diretor do Grupo Tapa.
Eduardo, como começou o grupo Tapa? O grupo Tapa começou na PUC do Rio de Janeiro, nas Ciências Sociais, em 1974. Começou como uma brincadeira, ensaiávamos três, quatro vezes por semana, duas horas por dia – tudo era um pretexto para tomarmos um chope depois. Isso durou até 1979, quando o Tapa realizou o primeiro espetáculo no circuito. Até então nos apresentávamos em um clube, na faculdade, seis meses de ensaios para quatro dias de apresentação. Era brincadeira mesmo. Para entender o nosso espírito, temos que pensar no Brasil daquele momento. No Brasil de 1973, quando entrei na faculdade, quem não assistisse a dois ou a três filmes por semana, uma peça de teatro, um show de MPB, não conseguia conversar. O campus da PUC era muito ativo, assistimos no ginástico da PUC o Chico Buarque, a Nara Leão, o MPB4 e o Quarteto em Cy cercados pelo exército. Se eles cantassem “Apesar de você”, o exército invadia. Existia efervescência na vida cultural, fazia parte da nossa vida, fazia parte da pólis – do sentido político da vida. Então não era uma coisa tão estranha essa mudança de área. Nós estávamos fazendo uma coisa que já vivíamos como espectadores. Por exemplo, quando houve no Teatro João Caetano um ensaio geral da peça Calabar, escrita pelo Chico Buarque e o Paulo Pontes, um ensaio para censura, antes de ser proibida, a faculdade inteira foi assistir. Foi uma 119
passagem quase natural, nós não pensávamos, num primeiro momento, em ser profissionais de teatro. Nós só estávamos participando de uma coisa que fazia parte da vida. E por que o teatro? Foi por acaso. Estávamos combinando de fazer alguma coisa de brincadeira de final de ano, sugeriram uma peça de teatro e aconteceu. Mas a partir de 1971 eu comecei a ser um assíduo frequentador de teatros. Eu e uma leva de gente com quem convivia, gente que não ficou na área artística, mas ia ao teatro toda semana, ia aos festivais de MPB. E o teatro foi acontecendo como poderia ter acontecido outra coisa. Eu tinha uma filmadora super-oito, alguma coisa poderia acontecer no audiovisual também. Quando foi que vocês perceberam que haviam se tornando um grupo profissional? Quando montamos a Viúva, porém honesta, peça que mudou um pouco a nossa vida e a nossa trajetória. Nós estávamos com quatro anos de grupo profissional, era a nossa terceira peça adulta. Nesse tempo, alternávamos uma montagem adulta com uma infantil. E começamos um estudo sobre a obra do Nelson Rodrigues. Eu sempre fui muito apaixonado pelo Nelson – grande parte do grupo era. Nós começamos a estudá-lo. Até que a gente pegou a Viúva, uma peça desconhecida do Nelson que havia sido montada em 1957 e se tornado um grande fracasso de público e de crítica. A nossa identificação com a peça foi imediata. É uma peça mais iconoclasta do Nelson Rodrigues, e ao mesmo tempo mais frágil como dramaturgia. Essa iconoclastia convergia conosco no momento. Uma peça que termina com um personagem falando “nem a solteirona escapou”, dizendo que ninguém tem moral, que o diretor do jornal vende o país, que o editor-chefe vende a família, o psicanalista cobra pelo taxímetro etc. A peça falava de uma descrença institucional, e daí dá para entender por que a peça não foi aceita em 1957: vivia-se a esperança de um país jucelinista, progressista, o país do amanhã. Na nossa geração o amanhã tinha chegado e se apresentava bastante doloroso, então a montagem fazia sentido. Era uma peça menor do Nelson, montada por um grupo desconhecido, mas conseguimos uma boa repercussão com ela. Isso nos tirou dos horários alternativos e nos colocou nos horários “oficiais”, ganhamos os nossos primeiros prêmios importantes no teatro adulto, já tínhamos ganhado prêmios 120
no teatro infantil. Proporcionou uma viagem internacional, mudou muito a nossa vida. Nelson Rodrigues sempre mudou a vida do Tapa. E o nome Tapa? Uma sigla: Teatro Amador Produções Artísticas. Fala bem da origem, da ausência de pretensão profissional que a gente tinha no período da faculdade. A gente demorou muito para pensar em viver de teatro. Nós ficamos um ano e meio em cartaz com Apenas um conto de fadas, com um grande público, mas não dava para viver. Eram dezesseis pessoas em cena e a peça foi produzida com o dinheiro que eu tinha ganhado fazendo assistência de produção de um filme do Davi Neves, Muito prazer, que foi premiado no festival de Brasília em 1979. Juntei esse dinheirinho e produzi a peça. Com muita coisa emprestada, muita coisa arranjada. Só em 1988 passamos a viver de teatro, até entrar o governo Collor. Quando a gente começou a viver de teatro, isso se tornou impossível novamente. Como foi a vinda para São Paulo? Fomos para São Paulo em 1986. Lá foi a primeira vez que trabalhamos com uma atriz de nome nacional. Eu perdi um apartamento nessa brincadeira. Meu pai tinha morrido e me deixou um apartamento e o coloquei numa peça. Consegui pagar as pessoas, os atores todos, mas perdi o apartamento. Viemos fazer uma temporada em São Paulo e acabou sendo um sucesso enorme, no Teatro da Aliança Francesa, que tinha sido ocupado pelo Antunes Filho nos anos 1960, mas quando montamos já estava em decadência, devido à degradação da região. Achamos o teatro uma graça, propusemos para a Aliança que ficássemos por um ano com um repertório e se, desse certo, renovaríamos o acordo. Nisso foram dezessete anos dentro da Aliança. Como vocês pensam o repertório do grupo? O pensamento sobre o repertório se dá ao longo da formação. Sempre nos voltamos para o que gostaríamos de falar, no que seria desafiante para aqueles atores fazerem naquele momento. Não para um ou outro ator, mas para o conjunto. Um grupo vai se dinamizando. Nós fomos equilibrando forças, o que queríamos dizer, e o que tínhamos capacidade para dizer. Nem sempre acertando, claro. Mas tem um ponto de partida. E, ampliando, sobretudo, o nosso repertório pessoal. Temos interesses que vão dos gregos aos marcianos 121
[risos]. Fizemos muitos ciclos de leitura de autores, traduzimos muita coisa, porque pouquíssima coisa chega ao Brasil. Temos um bando de traduções inéditas, que não montamos por falta de oportunidade. Como lidar com a cobrança de uma identidade do público em relação ao grupo? O grupo Tapa sobreviveu trinta anos por dois motivos fundamentais. O primeiro é que, quando saímos do Rio de Janeiro, éramos um grupo mais ou menos da mesma faixa etária, mais ou menos da mesma condição sociocultural, que frequentava os mesmos bares e até a mesma zona de praia. A vinda para São Paulo ampliou esse espectro, conhecemos gente que fazia teatro e que tinha outras trajetórias. Também nos misturamos etariamente, sempre trabalhamos com atores de várias gerações. Isso se perdeu no Brasil. O teatro é um pouco como o circo, aprende-se pela troca de gerações: um trapezista excepcional ensina um jovem contorcionista, entre os dois há uma troca e o circo se desenvolve. No Brasil houve uma ruptura geracional, porque a partir do Marcos Valle se disseminou a ideia de que não se confia em ninguém com mais de trinta anos. Então há uma desconfiança grande dos dois lados, das duas gerações. Da antiga geração, que não aceita as mudanças das gerações mais novas, e das novas gerações, que consideram as gerações mais velhas ultrapassadas. A gente rompeu um pouco com esse modelo. Isso foi um dos motivos da longevidade do grupo. O segundo motivo foi que a gente traiu o público muitas vezes. Não fomos em busca do sucesso. Estávamos fazendo comédias clássicas e de repente montamos Melanie Klein, que era uma peça de gabinete, psicológica. O público conquistado às vezes levava um susto. Ao mesmo tempo em que a gente não se fechou a uma questão estilística, criamos um público residual, mas fiel. Como você vê as novas tecnologias no teatro? A cada vez que uma tecnologia é incorporada na história do teatro, há um corte epistemológico, e isso vira uma outra arte, que libera o teatro para voltar ao contato entre pessoas. Eu não sou nem um pouco contra que aconteçam desenvolvimentos multimídias, só que isso acaba gerando uma outra arte, que está usando o teatro para descobrir a sua identidade. E quando essa outra coisa se fortalece e vira uma arte independente, o teatro se liberta outra vez para esse contato humano. 122
Eu nasci com a TV no Brasil, em 1954. No início da televisão, a impostação era radiofônica, tinha um pouco de cinema, um pouco de teatro. A televisão achou os seus caminhos e não é mais a televisão que se fazia na década de 1950, o que vai liberando as outras áreas nas suas especificidades. Nesse sentido, eu acho que o teatro é o que mais acaba ganhando, porque o contato entre as pessoa nunca vai acontecer sem o presencial. O fato teatral é diferente de tudo, porque é você e uma pessoa na sua frente. O que eu vi hoje, você não vê amanhã. Não existe tecnologia que faça se ver amanhã o que presenciamos hoje. Amanhã a atriz está menstruada, o espectador bateu com o carro antes de chegar ao teatro. Essa é a especificidade do teatro. Podem existir megashows, transmissão via Internet que sempre será possível reunir vinte, trinta pessoas e conseguir uma relação com elas a partir do espetáculo. E o teatro do futuro não precisa das novas tecnologias, é possível envolver os espectadores com coisas muito simples. Você está falando de uma experiência que é a do encontro, a pessoa tem que ir até lá. Como lidar com isso em relação à cidade? Aí você tocou em um ponto fundamental que enfrentamos. Nossa cidade está parando. Um espectador não chega a um teatro na zona sul se mora na zona leste. Temos que pensar na pólis. Nós não temos uma pólis pensada. Em Paris quase todos os terminais de metrô, que estão em regiões periféricas, têm grandes centros culturais, nos quais são subvencionadas coisas fantásticas, coisas que o espectador não vê no circuito central. Com isso se cria um fluxo de metrô fora dos horários de pico. Então você tem um pensamento sobre as regiões onde as coisas são feitas. Aí sim começa a englobar uma política de produção cultural, de pensamento em longo prazo, apartidário, supragovernamental. O que é a Lei de Fomento para você? Esse é um assunto supercomplicado, porque a Lei de Fomento começou na Aliança Francesa, por meio da reunião de grupos, com Arte Contra a Barbárie. Eu acho assustadora a Lei de Fomento. Quando a gente começou a se reunir e a falar disso, o nosso foco não era verba, era pensamento de política cultural. De repente, quando o Arte Contra a Barbárie foi crescendo, começou a surgir uma disputa de balcão; paramos de pensar em política cultural e passamos a pensar em política financeira 123
para cultura. Eu acho que a gente perdeu completamente o foco, o fomento é ilusório, é tutelar, ele satisfaz o terreno da expressão – porque nós vivemos numa época em que todos querem se expressar e todos temos que ser financiados para a nossa expressão. E ele perde todos os focos de contato com o público. As leis de incentivo na produção comercial já haviam feito isso. Um nome da televisão consegue um dinheiro para fazer uma peça, isso dá prestígio a ele, e o público que se dane. Ele mora no Rio, vem a São Paulo e faz teatro sexta, sábado e domingo, porque tem que fazer televisão de segunda a quinta-feira. Esse tipo não tem nenhum compromisso com o teatro como ofício. Qualquer sapateiro trabalha cinco, seis vezes por semana. Um ator, no Brasil, passou a trabalhar duas, três vezes por semana. Então ele faz um Shakespeare no final de semana, que lhe dá prestígio. Esse caso é o das leis que envolvem a iniciativa privada. Hoje, nós temos duzentos e tantos espetáculos de teatro em carta, 90% deles (e eu posso dizer isso sem culpa) não têm a menor qualidade profissional. Espetáculos que são feitos uma ou duas vezes por semana, que atendem muito mais as necessidades de quem faz expressão do que de quem recebe expressão. Então o que precisa ser feito? Quais são as perspectivas? Eu não vejo nenhuma solução. Essa tutela é muito confortável, ela cala a boca de todo mundo porque a gente tem uma socialização da miséria. Na socialização você tem uma pequena divisão de dinheiro vinculada ao terreno da expressão. Porque todo mundo se exprime hoje, qualquer blog sem pontos e sem vírgulas. É fundamental que ele chegue ao público. O Brasil está na retaguarda em relação ao mundo. Nós estamos fora do que é o mundo contemporâneo, onde a questão artística passa por outras áreas. Basta olhar o teatro argentino, não é preciso nem ir para o primeiro mundo. Eles têm uns reis momos de presidente e conseguem ter uma vida cultural que a gente não tem. Há um pensamento de quem faz teatro. Há dez anos o teatro argentino fazia de sexta a domingo. Voltaram a fazer de quarta a domingo, estabelecendo preços populares, tentando atingir outras camadas de público. Aqui a gente tem uma questão que está vinculada até ao nosso nível educacional. Recentemente veio um dos gestores da cultura na Inglaterra, em um seminário, e ele ficou muito chocado como aqui a cultura é separada da educação. A verba da cultura, em qualquer lugar, pressupõe uma atividade vinculada ao sistema de ensino. 124
Quando se recebe verba para fazer qualquer projeto de viagem, é dinheiro jogado fora, porque não tem continuidade, não tem planejamento. O que adianta uma cidade como Ourinhos receber um espetáculo este ano e um daqui a três anos? Se você não tem um planejamento de circuito, só joga dinheiro fora. Esquecem da formação de público. É difícil de administrar, mas nós temos que começar de algum ponto. Sempre querem fazer uma coisa do tamanho do Brasil. E é impossível fazer isso. Começar com coisas menores, que vão crescendo, com planejamento em longo prazo, como os CEUS, é uma ótima ideia. Não existe um projeto em longo prazo, suprapartidário, que pense a cultura como alguma coisa além de eleição. As ideias ótimas se perdem. Levando ao extremo o raciocínio, por que então continuar fazendo teatro? Tenho sérias dúvidas sobre isso. Em 2010 eu não sei se eu continuo por muito tempo. Por enquanto eu faço porque não sei fazer outra coisa. Mas olho com bastante perplexidade o que a gente está vivendo. Antes era o artista tutelado, agora é o espectador tutelado? Agora é o espectador tutelado. O Brasil está tutelado hoje. Dominar um ofício é feio. Nós estamos num serviço de péssima qualidade no Brasil hoje. É uma vergonha você saber fazer alguma coisa no Brasil hoje. Um excelente estudante não é estimulado a estudar no Brasil. O poeta norte-americano Gary Snyder falava isso dos EUA, nos anos 1960, que a permanência é malvista. É um estímulo ao movimento e não à permanência... Como o Pirandello: “Para que haja vida, é preciso ter movimento e fixação.” Se você só se move e não acontece nada, se você só se fixa, não acontece nada. É o equilíbrio dessas duas coisas que faz alguma coisa andar. Você tocou no ponto exato, nós adotamos o modelo norte-americano. A gente tem um país movido à indústria automobilística e aos sindicatos da indústria automobilística. Esse é um modelo que nasceu nos anos 1950 e que perdura. E isso se vê na perda da mão de obra. Mão de obra que está sumindo cada vez mais. As escolas técnicas estão sendo desqualificadas, enquanto a universidade é inflada de maneira doentia. Eu vejo a nossa situação com muito pessimismo. 125
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Sérgio de Carvalho Diretor e dramaturgo da Companhia do Latão.
O que é o teatro dialético? É uma ideia que vem do Brecht, nos anos 1920, 1930, sobre a possibilidade de superar o drama convencional no teatro. Como o teatro pode tratar de questões que não sejam privadas, e que a forma desse tratamento também não seja privatista, sentimental? E aí ele e outros artistas inauguram uma espécie de crítica do drama, que gera uma teatralidade mais narrativa, mais aberta, interessada em temática mais pública, com uma forma mais explodida. Brecht imprime nessa tradição narrativa, e portanto épica, uma marca da contradição nos assuntos e na forma. Na medida em que ele procura trabalhar sobre processos contraditórios, no fim da vida ele já está chamando esse teatro de dialético. É uma aplicação que faz do marxismo na arte. O nosso grupo de teatro, a Companhia do Latão, tenta pensar isso num contexto atual, nas nossas coordenadas históricas e geográficas também. Trata-se de uma tradição do teatro narrativo e crítico. E o fundamento dessa crítica é a forma do drama convencional. Que é a forma que está aí, hegemônica ainda, na indústria cultural, do conflito subjetivo, psicológico. E como nasceu a Companhia do Latão? Algumas pessoas que se encontraram na universidade se juntaram para fazer teatro – o que é uma possibilidade que a universidade dá, de fazer o 127
teatro de pesquisa, em liberdade. Mas que acabava fazendo você lidar com a realidade. A gente começou montando um espetáculo e viu que não adiantava ser só um espetáculo. Interessava um processo de aprendizado. Aí surge a forma do grupo de teatro. No grupo tenta-se desenvolver um trabalho que não se resolve num espetáculo, mas vai se desdobrar no seguinte. O grupo é um plano de futuro em condições adversas, sem grandes recursos. O Latão se organizou como um grupo de pesquisa em linguagem artística que pouco a pouco, em 1996-1997, vai descobrindo um caminho próprio. Assumimos o nome nessa época, porque a gente estava estudando um texto do Brecht que se chama Compra do latão, uma espécie de defesa da materialidade do teatro, uma crítica ao idealismo. Um dos temas fundamentais dessa peça é a possibilidade de ter um trânsito ativador entre o palco e a plateia, que o público também se sinta ativado. Só que, na perspectiva do Brecht, para se ter essa ativação é preciso desmontar as ideias convencionais, é preciso olhar a base material. E ele lança a seguinte metáfora: o filósofo, que é um dos personagem, é criticado por ser demasiado materialista. Ele diz: “É, pois é. Talvez eu seja tipo um negociante de ferro velho que vai assistir a uma banda de música e lá pelas tantas, em lugar de só ouvir a música, começa a pensar no quanto custaria o quilo do bronze, do ferro que está nos instrumentos. Talvez seja uma redução, mas talvez seja um outro ângulo de olhar a coisa.” Então essa imagem da compra do latão é uma espécie de defesa do mundo concreto. Como era a produção teatral brasileira na época? Os anos 1980 foram uma virada teatral. Houve uma espécie de decreto do fim de uma certa tradição nacional, popular, politizada, que existia até meados dos anos 1970. Nos anos 1980 entrou uma “onda internacionalizante” no teatro. A figura do encenador plástico ficou muito forte, era praticamente um artista plástico no palco. E foi uma época em que surgiram vários encenadores conhecidos e marcadamente internacionalizantes, e se diminuiu o vínculo com a temática local. Então, no começo dos anos 1990, começa a surgir uma espécie de reação a esse universalismo genérico dos encenadores. Ao mesmo tempo, essa reação já não se dava mais nas bases do teatro nacional, popular, politizado dos anos 1970, que foi cortado pela ditadura e pela conjuntura mundial – o que começa a surgir são grupos tentando trabalhar, sobreviver. E pouco a pouco, pelo menos em São Paulo, alguns desses grupos ganham espaço, se politizando, aprendendo coisas. A década de 1990 marca a retomada 128
do teatro de grupo em São Paulo. Ao menos do lado daquele teatro que eu acho mais interessante e vivo de cidade. Sobre o repertório, como pensar a adaptação dos textos? A encenação tem que ter liberdade e radicalidade em relação ao material. O texto é um material, mas um material que cobra o seu lugar. Quando se mexe em qualquer grande texto, ele continua ali ecoando como assunto e pode puxar o tapete se não for bem trabalhado. Temos que entender a força do texto. O que significa ser um grupo de teatro? O trabalho é realizado coletivamente? Desde o início do Latão tínhamos esse processo de coletivização do trabalho. O nosso primeiro passo como artistas foi procurar relações bem coletivizadas, em que as pessoas não sejam especialistas em uma só função. Eu sempre achei muito medíocre essa simulação da industrialização, essa especialização radical do teatro. O teatro convencional é parecido com a TV convencional: o ator decora o papel, o diretor marca a cena e cria movimentações artificiais, o cenógrafo cria um ambiente externo e o músico reforça o que ele acha que é importante. Eu acho isso uma “patacada”. Qual é a finalidade de trabalhar de acordo com uma lógica preestabelecida, na qual quem rege o todo é o diretor? O ator passa todo o processo tentando entender a ideia do diretor. Dessa forma não se considera o acaso, a novidade, a contribuição do outro. Outro problema dessa especialização é que ela acelera o processo e os envolvidos tendem a trabalhar com os clichês que já têm. Sempre procuramos trabalhar de forma diferente, e decorar o texto é uma fase posterior ao trabalho. Improvisamos e recriamos a história juntos. Cada um só entende seu papel depois que entender o conjunto da história. Essa coletivização foi um processo fundamental. Mesmo quando fazemos cinema, me recuso a trabalhar daquele jeito convencional, em que já há um plano estabelecido. É o império do produtor sobre o trabalho. É mediocrizante para um artista da invenção. A coletivização não é só simbólica do ponto de vista de uma certa crítica à dinâmica capitalista das relações de trabalho. Ela é também libertadora na criação. E o Arte Contra a Barbárie, como foi essa história? Isso coincide até um pouco com o começo do Latão, quando percebemos que o nosso tipo de trabalho, que não pode nem ser chamado de marginal, 129
porque não está à margem, mas de contramão, porque é avesso ao convencional, com relações de produção muito contrárias às convencionais, precisava de algum jeito descobrir o seu lugar de existência econômica e material. Para descobrir esse lugar de existência produtiva, precisávamos entrar num debate sobre política pública. Então começaram umas reuniões no Teatro de Arena, em 1998. Vários grupos de teatro e alguns artistas independentes resolveram pensar a produção de um jeito diferente, em fazer a crítica ao sistema convencional das políticas públicas. Fomos ao centro do problema. Notava-se que todas as políticas públicas para cultura, naquele momento, destinavam verba para evento e produto. E não tinha política pública para processo. Era uma concepção mercantil, não estava se instalando um processo cultural de longo prazo, um processo pedagógico, crítico. Refletimos sobre isso e lançamos um manifesto, o Arte Contra a Barbárie. O ponto central do manifesto era uma proposta de desmercantilização da cultura a partir da instalação de processos culturais. Isso teve um barulho, uma repercussão surpreendente. E ao ganhar repercussão passou até uma imagem de que a gente era um grupo muito organizado, forte, enquanto se tratava de meia dúzia de pessoas. Essa repercussão teve tal força que possibilitou que a gente convencesse alguns vereadores a encampar um projeto de uma lei nova, a chamada Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, que mudou o panorama da produção teatral. Criou um ar novo para pesquisa e processo de trabalho. Foi uma coisa transformadora, no início pelo menos. Qual foi o impacto inicial da Lei de Fomento? No começo, quando saiu a Lei de Fomento, a prefeitura propôs a ocupação dos teatros públicos da cidade por grupos, coisa que caiu com o passar do tempo. Mas o fomento possibilitou aos grupos alugar uma sede para ensaios. O orçamento da Lei de Fomento contempla de vinte a trinta grupos por ano em São Paulo. Esse orçamento é a metade do que recebe um único teatro público em Berlim. Se dividirmos isso por trinta grupos e por pessoa, veremos que é muito pouco dinheiro. Só que para quem trabalha em situação precária esse pouco é muito e é transformador. Por isso surgiram pela cidade de São Paulo vários grupos que atuam na periferia ou em regiões onde não havia teatros. São salas pequenas, mas com produção viva. A Lei de Fomento criou uma capilaridade, um enraizamento de várias produções onde antes não havia. E é uma produção interessante. Claro que isso precisaria de maior força para 130
avançar mais, porque é uma lei isolada, que não tem amparo de outras. E ela vive hoje uma certa dificuldade, porque precisaria crescer, dar um passo a mais para continuar existindo, porque está sempre muito ameaçada de extinção. Mas eu não tenho dúvidas de que ela mudou o panorama da produção teatral em São Paulo. A produção cresceu. E a reflexão sobre a produção, o diálogo crítico, como estão? Cresceu também, comparativamente. O teatro de um modo geral é uma área precária em termos de produção crítica. Nos extremos você tem uma produção crítica muito vinculada ao mercado, que são esses artiguetes de jornal, que chamam de críticas mas que no fundo são indicações de consumo. Com raríssimas exceções, a crítica perdeu qualquer vínculo com argumento concreto. Decreta-se valor sem estar baseado em um pensamento de fato. E a produção alternativa está acontecendo em partes dentro dos grupos e em parte em universidades, mas ela ainda não conseguiu gerar um material que permita dar um salto reflexivo. É uma área com muitos déficits anteriores. Não temos um bom mapeamento da história do teatro brasileiro – recente ou antigo. A produção nova universitária sobre a história do teatro brasileiro, essa nova reflexão crítica não tem acumulação suficiente para produzir novas referências. É uma área fraca. As pessoas ficam bravas comigo quando eu falo isso, mas é uma realidade. As novidades estão vindo dos grupos, vindo de fora da universidade. Qual seria um caminho de amadurecimento das políticas públicas de fomento ao teatro? Eu acho que a Lei de Fomento é um exemplo de atenção pública. O dinheiro público fortalecendo e possibilitando processos já é uma diferença. Assim paramos com essa lógica de ficar inventando mercadoria cultural. Não é mercadoria cultural que interessa. Interessa um aprendizado que será avaliado e medido por outras coisas. É claro que de algum jeito processos também vão se refletir em produtos, em realizações, mas isso não é mais o fim. O fomento precisaria ser amparado por criação de condições de trabalho artístico-cultural diferentes. Porque é muito comum, no meio cultural, não se pensar como trabalhador. Acharem que somos eleitos do Espírito Santo e que não fazemos parte do mundo do trabalho. Agora, a situação real é que a 131
maioria dos grupos renovadores e inventivos não têm nenhum lugar de trabalho no mundo da mercadoria convencional. Não têm condições mínimas! É um disparate! Não tem comparação o dinheiro captado para as grandes produções comerciais e o dinheiro que chega para quem está inventando coisas diferentes, em quem está agindo em espaços comunitários diferentes. É preciso pensar condições de trabalho diferentes, espaço físico, condições de aprendizado, produção crítica, vincular isso a processos pedagógicos, se relacionar com a educação também. É muita coisa que precisa ser feita. O teatro foi o maior captador da Lei Rouanet em 2009, captou R$ 122.500 milhões. Só perde para as artes integradas. Precisa ver que teatro captou isso. É uma coisa que precisa ser verificada, mas eu aposto todas as minhas fichas que quem captou esse montante foram grandes produções comerciais. Porque a maioria das produções nacionais hoje são para ganhar o dinheiro da Lei Rouanet, para ter patrocínio. Havia quarenta anos, uma artista de renome nacional produzia um espetáculo para viver de bilheteria. Hoje não compensa ficar muito tempo em cartaz, vale mais a pena correr atrás de outro patrocínio. São produções cuja maior fatia dos orçamentos é destinada à mídia e aos cachês para os protagonistas. Eu acho uma excrescência. Sou um ferrenho opositor da Lei Rouanet. Ela criou uma cultura de capitalismo cultural forte a ponto de a cultura se tornar um grande negócio e desvirtuou todas as perspectivas. Ela não tinha de ser reformada ou melhorada, mas extinta! Ela teria de ser zerada para fazer uma coisa nova, de fato capaz de corrigir isso. Porque muito pouco desse dinheiro chegou para coisas realmente importantes e para processos culturais de longo prazo. É possível atingir, fomentar e criar diálogos com o público? Essas coisas são trabalhos em longo prazo. Eu conheço Berlim um pouco melhor, onde um só teatro tem um orçamento de € 14 milhões por ano para fazer uma programação intensa. Esse teatro tem grande quantidade de produção, mas muita atividade pedagógica, formativa, portas abertas. Ele cria um vínculo com a comunidade. Estão sempre cheios, porque os caras não trabalham só para manter a máquina cênica funcionando. Eles trabalham também para a formação de público, espetáculos pedagógicos, cursos, troca de outro tipo, debates. E isso acontece porque estão enraizados ali. Ao longo dos anos, isso se desdobra. Aqui não há continuidade. Então, um adolescente 132
que descobre o teatro, o que pode ser uma descoberta fascinante, fica louco para desdobrar isso por algum tempo. Naquele intervalo antiburguês da vida, a faculdade, onde não se está enquadrado num sistema convencional de emprego e dependência, é comum que esse jovem esteja muito aberto para coisas diferentes. Se isso é desenvolvido, cria-se uma geração diferente, interessada em trabalho cultural. A Lei de Fomento criou público em São Paulo? Eu não sei dados objetivos, mas certamente sim. Ela aumentou muito a quantidade de produção e diversificou o público. Gerou produções que atingiam um público que não ia ao teatro antes. Eu nem sei se ela aumentou quantitativamente, mas qualitativamente sim. Disso eu tenho certeza. O que é o produtor cultural? Ele pode ser muito especializado se você tem um mercado muito constituído, em termos de compra e venda. Mas sobre esse tipo, honestamente, nem me interessa falar. Quase sempre está pautado por uma coisa que vai contra a coisa interessante da cultura. O trabalho cultural é o trabalho do supérfluo, do desnecessário. Uma possibilidade de liberdade, ainda que do ponto de vista simbólico, que se for revertida para eficácia, lucro, acerto, público-alvo, perde o sentido. Eu sinto que muitas vezes o produtor cultural vai contra a lógica da diferença, do novo, do livre. E muita gente começa a raciocinar assim. Outro dia algum ator falou na TV: “No passado, o sujeito via uma cena e falava se ela era bonita. Hoje ele fala se ela funciona.” É a lógica do funcional, tem um padrão de eficácia sobreposto à cena. Não é mais um critério da beleza. E como é a produção cultural da Companhia do Latão? É colaborativa? Como vocês fazem? Tem pessoas que trabalham especificamente nisso, nesse trabalho de administração da companhia? Falar isso não quer dizer que eu não saiba em que mundo a gente vive. Não estamos em Marte e nem em um país socialista. Qualquer produção do mundo atual, nas condições atuais, está resistindo no mundo da mercadoria de algum jeito. Essa relação pode ser mais ou menos vinculada à lógica mercantil. Nosso grupo é crítico em relação a isso, procuramos atuar não nas duas frentes, mas criar espaços menos mercantilizados de atuação, sem deixar de atuar nos espaços institucionais da cultura. Então a gente procura 133
criar vínculos com o movimento social, com o teatro amador, com gente cuja relação não é mediada pelo dinheiro. Trabalho voluntário, isso a gente faz de um lado. Ao mesmo tempo a gente atua nos espaços institucionais porque só têm eles. Porque você precisa de dinheiro para existir. E ao mesmo tempo é nesse espaço que a gente consegue influenciar os outros também. Influenciar o pensamento comum, dominante, sobre a arte. Sem ocupar esses espaços não teríamos repercussão crítica. E não ia oferecer modelos para quem está começando. É um trabalho que vai em várias frentes, tentando criar frentes possíveis de ação. É preciso dizer também que o nosso grupo não vive de teatro. Do ponto de vista produtivo, ele está numa fronteira aí. E esta fronteira nos permite assumir isso criticamente. Usamos a Lei Rouanet, e tem patrocínio. Se isso acabar, como eu queria que acabasse, continuamos produzindo, como antes. Porque a gente não trabalha para conseguir este patrocínio, a gente trabalha pelo gosto de trabalhar. Fale um pouco sobre o trabalho com o Movimento dos Sem-Terra (MST)? Até 1998 o Latão era um grupo muito pequeno. Quem assistia a nossos espetáculos eram os amigos, a classe teatral. Com a peça Santa Joana dos Matadouros, passamos a ter um público universitário no teatro e também um público de movimento social. E teve uma apresentação em Brasília, coincidentemente com a marcha do MST. Teve uma reserva de quarenta entradas de bispos da CNBB que foram com integrantes do MST ao teatro. Nessa ocasião conhecemos algumas lideranças do MST. Desde então a gente percebeu que interessava para a gente dialogar com outros públicos, não era só o cara que vai por indicação do jornal porque tem um valor cultural. Interessava o público que vai ao teatro porque aquela peça fala de um assunto vibrante para ele. A gente manteve algum contato com o MST em situações em que foi possível, porque foi um trabalho de colaboração voluntária. Aprendemos mais que qualquer outra coisa, conhecendo de fato a realidade de um movimento que é muito mais complexa e interessante que a imagem que está difundida na grande mídia. Então a gente dentro do MST viu lugares de convívio humano, invenção livre, produção de coisas que vão totalmente contra os estereótipos que estão no imaginário comum sobre o MST. Qual a sua impressão sobre os festivais de teatro no Brasil? 134
Talvez dê para dividir os festivais em dois grandes grupos. Aqueles que perceberam que isso pode ser um grande negócio e administram como um grande negócio, baixando custos, pagando menos os atores, investindo o grosso do recurso em parceria com os jornais. Em suma, fazem como todos os negociantes, investem em circulação e baixam o custo de mão de obra. E tem outros festivais, dos amadores. Daqueles que amam realmente isso e fazem a duras penas, precariamente, através de um esforço quase sobre-humano. E que às vezes conseguem fazer bem, às vezes não, porque depende muito de um certo voluntarismo. Esses são dois extremos simbólicos. O fringe de um festival de negócio se confunde com o voluntarismo do outro festival? São dois tipos de voluntarismo. As pessoas que fazem esses festivais pequenos, heroicamente, fazem aquilo porque elas gostam. Aquilo está fadado ao fracasso e elas continuam tentando. O fringe de um grande festival é perceber que tem centenas, milhares de jovens artistas de teatro que querem um lugarzinho ao sol. E então eles precisam de um espacinho para circular, querem ser vistos por um crítico, precisam conseguir uma foto para o bookzinho deles, para conseguir gerar dinheiro, nem que seja na sua própria cidade. Eles pagam para ir lá e criam uma imensa programação que não vai ser vista, mas entra na contabilidade do festival como espaço. E no acordo espúrio com a crítica, ele pinça um ou outro desse fringe para manter a mítica de que os melhores trabalhos vão pôr a cabeça ao sol. Isso é mentira. Ninguém vê essa produção. No fundo é redução de custo. Como você vê a dramaturgia atual? Essa dramaturgia que está sendo produzida dentro dos espaços coletivos, em circunstâncias produtivas como a do Latão, por exemplo, e por esses novos grupos, ainda não foi nomeada e qualificada. Então parte das conquistas dela ainda não são transmissíveis também. Não tem ainda um olhar sobre essa produção. Não é à toa que grupos como o nosso tendem a querer produzir também uma reflexão crítica sobre o próprio trabalho, para torná-lo uma referência objetiva. De modo geral, penso que a dramaturgia ainda não está no mesmo grau de avanço que a cena e os atores estão no teatro contemporâneo. Em São Paulo pelo menos. Ela ainda não está no mesmo pé de radicalidade que a encenação e que a atuação. 135
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Cao Guimarães Artista plástico, cineasta e fotógrafo.
Conte um pouco da história do seu encontro com o audiovisual. Eu nasci quase dentro de um laboratório de fotografia. Meu avô trabalhava com medicina, mas tinha uma paixão imensa por fotografia e cinema. Eu morei com ele durante os primeiros anos da minha vida, e convivia com aquele universo mágico do laboratório de fotografia: a imagem sendo revelada, aquela luz vermelha e a imagem aparecendo. Daí até as imagens de crianças com problemas, que ele fazia nos hospitais, que era o arquivo proibido do meu avô, o que me marcou profundamente. Ele não deixava a gente ver de jeito nenhum o seu arquivo proibido. E tudo que é proibido causa um fascínio imediato, não é? Os meus primeiros trabalhos foram feitos com esse equipamento herdado do meu avô, e essas imagens proibidas ou perturbantes influenciaram os meus primeiros trabalhos fotográficos, que eram muito barrocos. Eu tenho essa coisa naturalmente barroca, como qualquer mineiro. Eram sobreposições e sobreposições de imagens, camadas e camadas, uma coisa um pouco excessiva. Aí você vai ficando mais velho e começa a limpar esse excesso, entra em contato com a história da arte, com o minimalismo, e vê que uma imagem simples já tem uma força imensa, não é preciso de tantas. E comecei a fazer exposições de fotografia. 137
Teve um período em que eu morei fora do país, o que me marcou muito. Antes disso, eu me envolvi muito com o cinema, na época dos cineclubes – em Belo Horizonte tinha muito cineclube. Eu era um rato de cineclube. Via todos os novos cinemas do mundo, cinema novo alemão, cinema novo brasileiro, a Nouvelle Vague, o italiano, toda a história do cinema. Tinha mostras, ciclos de autores. Eu via todos os dias dois, três filmes. Foi um período de formação maravilhoso. O cinema, enquanto arte, me revolucionou profundamente. E nessa época nasceu o desejo de virar cineasta. Mas, obviamente, virar cineasta numa cidade igual a Belo Horizonte, na década de 1980, era complicadíssimo, porque devia ter apenas uma câmera 35 mm na cidade, de uns padres da PUC, da Universidade Católica, e era dificílimo de pegar. Então, eu comecei a trabalhar muito com fotografia. Depois eu passei um período morando em Londres, onde eu tive acesso a câmeras de super-8, equipamento barato, que era fácil de comprar, comprava-se na esquina. Eu tinha uma profissão maravilhosa, era casado com a artista plástica Rivane Neuenschwander, eu era cônjuge bolsista, foi a melhor profissão que eu tive na vida: tinha que cuidar da minha esposa. O governo me pagava para ficar lá, lavando a calcinha dela, fazendo comida para ela, essas coisas. E nesse período, eu fiquei experimentando uma espécie de ócio criativo, em casa, com aquele frio, com o sentimento de exílio e filmando o cotidiano, a trivialidade cotidiana. Aí começaram a pintar os primeiros filminhos. Era muito divertido, porque eu comprava a super-8, que vinha com uns cartuchos de três minutos, e vinha um envelopinho para mandar para Kodak, pelo correio, e eles mandavam os filmes revelados uma semana depois. Era como se eu fizesse uma carta para mim mesmo toda semana. Filmava ali, sei lá, uma luz que passava de manhã, até de tarde, no azulejo, uma semente que caía dentro da privada, coisas da ordem do trivial, do minimal. E aí comecei a fazer uns trabalhos, que eu chamava de “cinema de cozinha”, porque era literalmente cozinha. Comprei um projetor de super-8, eu mesmo telecinava os meus filmes para vídeo. Na cozinha da minha casa, às vezes fazia projeções para os amigos. E esse processo de feitura influenciou muito o meu trabalho e influencia até hoje. Até hoje, os meus longas são feitos de uma forma muito “cozinha”, na cozinha da casa, de forma autônoma, artesanal. O que é ser vídeo-artista? 138
Não sei. Essa palavra é muito estranha, porque o vídeo é uma das ferramentas que eu tenho para fazer arte. Eu posso usar a câmera fotográfica, a câmera de vídeo, a câmera de cinema, ou uma caneta para escrever. O vídeo é apenas uma das ferramentas. Óbvio que é uma ferramenta importantíssima, porque facilita cada vez mais o processo de produção para quem quer produzir de forma autônoma e independente. De certa forma, ele democratizou o acesso ao audiovisual, à produção de imagem. Então, você encontra desde artistas plásticos trabalhando com vídeo, nas décadas de 1970 e 1980 – quando o vídeo começou a surgir –, até cineastas mais experimentais, como Godard, que assume o vídeo como uma questão importante. O vídeo entrou na minha vida como uma possibilidade de fazer cinema, de trabalhar coisas, num momento em que eu tive muito contato com o universo das artes plásticas, em Londres: acesso a museus, a grandes exposições etc. E o vídeo foi assimilado pelas artes plásticas. Hoje, você vai a um museu e vê várias vídeo-instalações. A minha formação foi mais cinematográfica, e a história do cinema é bastante peculiar nesse sentido, porque o cinema começou com uma noção de espacialidade muito presente. Um evento cinematográfico, nos primórdios do cinema, era onde existia essa ideia do espaço muito marcante. Existia a sala de cinema, onde o projetor ficava no meio, aquele estranho objeto emitindo luzes, formando aquela imagem. O público muitas vezes observava mais o estranho objeto do que o que estava acontecendo na tela. A ideia de tempo no cinema não existia muito bem porque quem montava os filmes era o próprio exibidor. Vinha um filme de atualidades da baía de Guanabara, ou da torre Eiffel, de não sei onde, e era o próprio exibidor que fazia a edição, que fazia a montagem para exibir. A narrativa cinematográfica nasce quando D.W. Griffith e o cinema norteamericano, e também o cinema russo, começam a pensar na temporalidade fílmica, ou narrativa. O projetor foi escondido, e a sala, escurecida, levando o espectador a um processo de imersão numa outra realidade: a que estava na tela. E o que acontece hoje com as vídeo-instalações? O audiovisual volta a pensar a questão espacial e não só a temporal. Atualmente existem milhões de possibilidades de trabalhar com imagens. Elas estão em todos os lugares: no celular, no projetor. Você pode colocar uma imagem no rodapé, ou no teto de um museu, pode projetar em pessoas. Aí, você tem que calcular o tamanho da sala, como vai fazer o seu espaço, onde vai colocar aquela imagem. E isso 139
é muito interessante porque ganha uma dimensão quase tátil, que vai além dos sentidos de audição e visão. Você quase pode tocar a imagem. Isso é o QuasiCinema do Hélio Oiticica e do Neville d’Almeida, e o Kinobrás, do Glauber? Essas propostas, e os filmes de artistas da década de 1970, o influenciaram? Não. Isso quase nunca aparecia em Belo Horizonte. Eram coisas muito pontuais, que não eram tão divulgadas. Eu fui formado por uma escola de cineastas autorais, da manifestação cinematográfica clássica. Eu só vim ter contato com os filmes de artistas da década de 1970 depois, já trabalhando com artes plásticas, e me impressionou bastante. Gente no mundo inteiro, experimentando. Um tipo de cinema de guerrilha, uma câmera como caneta. Eu sempre gostei dessa autonomia, dessa independência. Como um escritor que pega uma caneta e sai por aí sentindo o mundo, a realidade, transformando aquilo em um poema, em um conto, ou romance. Eu acho que o cinema também tem essa possibilidade. A câmera se torna cada vez mais uma caneta, uma coisa com a qual você anda, e vai construindo histórias, ou não-histórias, mas manifestações que são completamente independentes de uma estrutura industrial de produção. A estrutura do cinema é muito rígida, é muito cara e muito industrializada. Principalmente depois do filme feito, como passar isso para o público? Os exibidores estão mais interessados em ter lucro do que em formação de público. Então é muito difícil. Hoje em dia tem muita produção audiovisual que não encontra espaço no circuito de exibição; só o encontra em festivais. Mas o interessante é que o movimento das artes plásticas sacou isso e colocou esses filmes nos museus e nas galerias. Como é fazer um longa fora da lei de incentivo? Eu fiz seis longas. Estou terminando o sexto agora, que é uma adaptação do Catatau, do Paulo Leminski. Eu acho que não existe um orçamento barato para um longa no Brasil. Outro dia, o meu produtor fez as contas do que já gastamos, em seis longas, e deu por volta de R$ 1,5 milhão. Esses filmes foram feitos da forma “cinema de cozinha”, que começou na cozinha da minha casa, em Londres. O que me deu uma noção do processo inteiro de fazer um filme. Então, no meu caso específico, eu filmo, edito os meus filmes, fotografo, dirijo o carro da produção, trabalho com uma equipe reduzida de quatro ou cinco 140
pessoas. Porque a essência do cinema é audiovisual. O cinema, desde o início, tem uma forte impregnação do teatro e da literatura. Cinema é uma arte que ainda está engatinhando, ainda está de fraldas. É uma arte muito nova, tem cento e poucos anos. No início os produtores cinematográficos eram pessoas da literatura e do teatro, e isso impregnou demais a arte do cinema de palavra, de aspectos dramático e de atuação. Então, durante a história do cinema, existiram várias tentativas de buscar a essência elementar da arte cinematográfica, que é a imagem e o som. Como eu sou uma pessoa da imagem, que me formei nesse laboratório do meu avô, fascinado pela imagem, precisava encontrar alguém do som e encontrei a dupla O Grivo há vinte anos. Fizemos seis longas, mais de vinte vídeos e curta-metragens. E os dois, que são o Canarinho e o Nelsinho, foram muito importantes para mim, porque é um complemento para o meu trabalho. Essa colaboração foi fundamental para eu me sentir livre para poder criar. E eu precisava de parceiros com uma identificação realmente artística. Eles me ensinaram muita coisa. A questão do audiovisual: como a imagem dialoga com o som? Qual é o valor do silêncio em uma obra? Eles têm uma formação cageana (de John Cage), toda uma teoria musical da ideia do som, da música enquanto qualquer tipo de som, inclusive o silêncio. Isso, em meus filmes, é algo muito presente. Essa ideia de um diálogo mais forte entre imagem e som. Para o meu último filme, Andarilho, por exemplo, comecei a fazer planos muito longos para que o som fosse realmente uma camada às vezes mais importante do que a imagem, para que os sons entrassem como uma camada mais narrativa do que a imagem. A valorização da relação imagem e som é fundamental para mim. E a filmagem, como acontece? O processo é o que me interessa no cinema. Geralmente, meus filmes não têm uma forma preconcebida. Nunca têm roteiro. O processo de filmagem é muito importante para mim, porque a narrativa, a minha narrativa, ou a escritura do filme, nasce no processo de filmagem, e ela se completa – e isso é essencial – na montagem. A montagem é, realmente, quando eu escrevo o filme. Eu tenho uma certa dificuldade de lidar com roteiros, justamente porque é palavra. Eu não consigo imaginar um filme. Eu gosto de me embrenhar na realidade do processo fílmico. A ideia do roteiro para mim é estranha – eu começo a escrever um roteiro e vai virando literatura. E não é literatura. O roteiro é um “guia”, digamos assim. O processo realmente acontece é nesse 141
embate, nesse encontro ao qual você se propõe com uma realidade qualquer. Desde A alma do osso, em que eu vivo a realidade de um eremita numa caverna durante alguns dias, passando pelo Andarilho, que é um trabalho sobre o andarilho de estrada, até esse filme de agora, que se chama Existo, em que um filósofo – um personagem filósofo – vive uma determinada realidade. Esse processo me interessa muito enquanto forma narrativa. É um processo muito relacionado ao acaso, à contingência, em equipes pequenas, onde há interação e você não precisa explicar tanto as coisas, ou seja, produção pequena, que não tenha muito dinheiro, em que você tenha realmente uma independência e não tenha que prestar satisfação para ninguém. Como fomentar uma produção desse tipo? Ah, cada filme foi feito de forma completamente diferente. Houve filmes que não me custaram quase nada, como Rua de mão dupla, que foi feito a convite da bienal. Na época da bienal de 2002, foram R$ 20 mil, R$ 30 mil. Foi um filme muito barato, que eu não filmei, quem filmou foram os próprios personagens. O Andarilho foi o filme mais caro, custou R$ 500 mil ou R$ 600 mil, mas aí já com um dinheiro para finalização e distribuição em sala de cinema, que custa caro. Hoje em dia, você não precisa mais passar para 35 mm, mas na época ainda não tinha esse sistema de exibição digital. E é importante mostrar. O artista quer mostrar da melhor forma possível para o espectador. Eu acho que é fundamental pensar em como exibir o seu filme. E isso custa caro. Existem exigências de uma boa sala, de um som Dolby Surround 5.1. Ainda mais trabalhando com o Grivo, que faz um excelente som, e o som é muito importante no filme. Então, esse acabamento custa caro, mais caro do que o próprio fazer. Eu vejo que a única possibilidade viria de um apoio público para esse tipo de cinema, porque é muito difícil você convencer empresários ou diretores de marketing, que estão pensando no ator global, ou num tipo de filme que vai dar um retorno. Por outro lado, eu tenho alguns trabalhos pequenos, como o Quarta-feira de cinzas, que foi comprado pela Tate Modern, e ficou um ano exposto lá, uma galeria que tem um público de oito milhões de visitantes por ano. Qual filme meu eu imaginaria sendo visto por oito milhões de pessoas? Vendo a questão por outro ângulo, de quem trabalha com cinema de processo, cinema de vivência, cinema de construção do processo artístico, 142
durante, e não a priori. Como escrever um projeto? Como você desenha uma ideia? Uma ficção. As pessoas falavam que eu fazia documentário, apesar de eu questionar isso. Tudo bem, é documentário, mas é um documentário onde existe muita ficção. Como escrever um projeto de documentário? O momento da ficção é justamente ao escrever o projeto, porque eu nunca escrevi um projeto que não tenha quase nada de um filme. Eu exerço a ficção no projeto. Tem, por exemplo, o projeto do Andarilho, que eu tive que escrever para o Filme em Minas, que é um fomento de cinema em Minas Gerais. Eu criei três personagens fictícios. Eu fiz três contos, essas três historinhas onde na verdade essas pessoas não existem e você nunca vai filmar com elas, mas você faz para convencer o diabo da banca. Você tem que criar, tem que escrever alguma coisa. É uma elucubração conceitual e ficcional, que é um exercício interessante, mas é chato, porque tem um formato onde você tem que ser claro. Não é literatura, mas é quase literatura. Como criar um público para esse tipo de filme? Como educar não a ver o cinema, mas a estar disponível a ver o estranho? É educar a desaprender. A escola tem que estar aí para você desaprender. Essa coisa de escola de cinema, de escola de arte, é muito perigosa. Quantos cineastas se tornaram cineastas porque foram para uma escola de cinema? Pouquíssimos. Hoje o curso de cinema, talvez, seja um dos cursos que mais cresce. Todo mundo quer ser cineasta. É tanta imagem que embota a gente. Por isso que, em meus filmes, eu tendo a ir na contramão disso. São filmes lentos, quase feitos para dormir. Porque arte também é isso, é canção de ninar. Não tem problema você fazer um filme para as pessoas dormirem. Eu gosto de artista que não abre concessão. Arte não é uma coisa para ser usada, não é para fazer política, ou para comunicar uma ideologia ou outra. Tem que ser uma coisa sem concessão. Michael McClure diz que qualquer concessão ao entendimento é prepotência. Justamente. É prepotência, porque você de antemão já tem uma verdade. Só que a verdade é a entidade que dá, é o bicho que quer descer. Você só vai deixar ela passar. Mas como você vai saber que bicho vai descer? Você não sabe de antemão. 143
E a crítica? A crítica é importantíssima, porque a crítica é da esfera da interlocução do artista. Quando a crítica é boa, o crítico é um interlocutor fundamental do artista. Porque, quando o artista faz uma obra, ele não faz para ele, faz para o outro. Ele quer que essa obra se multiplique em várias obras. Quando o crítico é bom, ele disseca a obra como quem disseca um corpo – coisas de medicina, de aula de anatomia. Disseca um corpo de uma forma interessante, criando um outro. Tem um filme meu em que eu descobri coisas que jamais pensei, e foram os críticos que falaram. Isso é muito interessante, é muito importante. E esses críticos não precisam ser críticos oficiais, de carteirinha, mas também o público comum de uma sala de cinema. Essa interação do autor da obra com o público é muito importante, porque aí, realmente, você vê que o que você faz não é seu. Você nem imaginava que era daquele jeito. É muito misterioso. Essa é a graça da coisa. Essa entidade se apresenta de forma múltipla, em cada uma das pessoas. E é muito importante que tanto o artista quanto o crítico e o público não fechem a obra. É muito ruim quando alguém quer dizer verdades sobre tal coisa. O importante é que a obra fique cada vez mais aberta, e que ela tenha milhões de leituras diferentes. E a leitura do crítico é uma leitura especial, porque ele é especializado. Porque o cinema – ou qualquer arte – não está solto no mundo, está dentro de uma história, da história da arte, da história do cinema. E o crítico tem essa noção. Ele vai colocar a obra para dialogar com uma história, com uma tradição, e esse diálogo é importantíssimo. É perigoso quando a realidade se mistura demais com a arte, ou quando a arte tenta se fundamentar na realidade? Não. Eu acho que a arte boa é a que mistura, que se mescla com a realidade. A Nouvelle Vague é isso. Eles foram contra o cinema na França, que estava muito distante da realidade. Eles queriam aproximar a arte cinematográfica da realidade, queriam mesclar. E especificamente no documentário é fundamental, porque a essência, o substrato do documentário é a realidade. Agora, o problema é o como, é esse approach, é como lidar com a realidade. Exige respeito, exige-se um olhar. No meu caso, por exemplo, de tanto falar sobre os meus trabalhos, sobre essa ideia da realidade como substrato do meu trabalho, acabei criando uma metáfora sobre isso, que é a seguinte: se eu imaginar a realidade como um lago, eu tenho três formas de lidar com 144
essa realidade. Uma é sentar num barranco e ficar contemplando esse lago. Aí eu assumo uma postura contemplativa com relação à realidade, filtrando os estímulos que vêm da realidade, através dos meus sentidos, basicamente da visão, porque eu estou filmando. Outra forma é pegar uma pedra e atirar no lago, essa pedra como um conceito, como uma proposição, ou uma ideia que vai fazer com que a água reverbere, desorganizando a realidade. No filme Rua de mão dupla, eu peço para dois casais que não se conhecem trocarem de casa durante 24 horas, e disso sai uma experiência, um filme. E a terceira forma é se jogar no lago, se lançar no lago, que são os trabalhos mais imersivos, de ir morar como um eremita durante um tempo, de passar por um processo de imersão em determinada realidade, que foi o que aconteceu no Andarilho. Então, você tem várias formas de se relacionar com a realidade. Isso que é importante. É como escolher a forma, como achar a forma, e, principalmente, como encontrar o respeito pelo outro. Mas isso é da ordem do mistério. Essa coisa do documentário, da realidade, é muito delicada, porque você está lidando com gente, ou até com pedra, às vezes, não é? É como uma cachoeira. As entidades estão todas ali, e tudo exige respeito na forma de aproximação. Talvez um olhar de ternura. Por que alguém vai se abrir com você, ou não? Por que alguém resolve doar sua vida, sua experiência, aquele momento da sua vida para a sua câmera? É uma coisa do mistério, não existe fórmula. Esse é um exercício que você adquire com a experiência.
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Chacal Poeta e fundador do Centro de Experimentação Poética (CEP 20.000).
Chacal, “a vida é curta pra ser pequena”? Eu acho, continua sendo. Tem muita coisa para fazer e parece que não vamos dar conta do tempo, de fazer as coisas que a gente quer. A vida é uma só, a gente vai embora na hora em que tiver que ir, também não temos domínio sobre o tempo. Mas a frase é bonita. E qual é o preço da passagem? É ser feliz aqui neste planeta. O meu desejo é esse. E esse é o preço que a gente vai estar sempre pagando. Essa busca de estar bem no mundo, com as pessoas. Não existe uma felicidade quimérica e utópica, existe esse contato que a gente tem, um estar feliz aqui. Mas isso tudo é o preço que a gente paga, ter atenção nisso, para não derrapar muito. É um preço que às vezes é caro. Você faz parte de uma geração que precisou chutar a porta para produzir por conta própria, que não teve suporte externo. Embora a poesia brasileira historicamente nunca tenha tido suporte de grandes editoras ou de grandes empresas, você é um caso muito exemplar disso. Conte-nos um pouco sobre isso. 147
Eu tive sorte de viver em um período, em um contexto histórico que era muito propício ao do it yourself. O movimento hippie, o movimento de contracultura, a negação de uma série de valores, o movimento do rock permitiam viver isso no final dos anos 1960. Como eu estava imerso nesse caldo cultural, não foi uma coisa tão difícil. Tinha os modelos alternativos da contracultura, então eu segui mais ou menos esse caminho. Com 16, 17 anos, eu estava vivendo os Beatles, Stones, Jimi Hendrix, todo aquele estouro pop, Godard, novas experiências, novas experimentações. Fora isso toda a poesia beat, os manifestos contra a ditadura política no Brasil, do movimento estudantil, era muita informação que eu tinha diariamente. Tinham os ácidos lisérgicos e tudo mais. Para o lado bom e para o lado ruim também. E eu tinha uma necessidade quase física e vital de dialogar com o mundo naquele período, senão eu ia literalmente implodir diante daquela avassaladora quantidade de informações. Diferente de hoje, quando somos invadidos toda hora por uma série de informações desnecessárias, sem critérios. Naquele período não, a informação estética era muito forte. Você via um filme de Godard, do Glauber e não saía o mesmo, saía diferente. Isso tudo não podia ser absorvido sem dialogar com a informação. A poesia veio para a minha vida por meio de Oswald de Andrade, que foi para mim um grande facilitador da expressão poética. Veio também com o tropicalismo, onde se mistura com o Oswald através do Rei da Vela, através das letras de música. Eu percebi que aquela era a forma com a qual eu podia dialogar criativamente e artisticamente com o mundo. Eu já gostava muito de ler Monteiro Lobato, contos de fada, aquela literatura junkie de Carlos Castañeda, Hermann Hesse, um pouco depois o Guimarães Rosa. Então já tinha esse prazer da leitura. E aí para escrever poesia foi um passo. E como eu estava imerso nesse caldo da cultura, de do it yourself, não foi difícil fazer o livro em mimeógrafo. Naquele momento a poesia era uma coisa que se podia fazer de forma mais barata, mais independente. Agora, como você se vê quarenta anos depois, produzindo eventos de poesia que o obrigam a ter uma estrutura maior? Como você vê essa diferença entre a agilidade da independência e a necessidade de uma estrutura? Como você consegue sobreviver com essas duas coisas e como elas se encontram? O problema é que antigamente eu morava com os meus pais e atualmente preciso pagar o aluguel. Sabe por que a tartaruga anda devagar? Porque ela 148
não tem que correr atrás do aluguel, ela já vem com a casinha dela nas costas. Isso é que torna difícil a produção cultural, porque você vai assumindo o compromisso de ter que pagar uma estrutura. Eu não tenho uma casinha nas costas, mas também não sei se é preciso viver na Gávea. Mas é isso, a gente vai pagando contador, é sempre uma coisinha a mais que aparece no orçamento mensal e aí você vai ter que crescer para pagar. E não é que eu não goste de trabalhar, muito embora alguns achem isso, e eu de vez em quando ache também. Detesto trabalhar! Mas o que acontece é que o trabalho passa a ser uma coisa desagradável. Por mais que vá fazer oficina no Sesc, que vá fazer palestra, não é uma coisa que me dá tesão como era fazer um livrinho em mimeógrafo, chegar distribuindo, chegar no palco e falar um poema. Tudo isso me dava mais tesão porque era uma coisa mais vital. Fale do ambiente poético, das pessoas, dos anos 1970. Naquele período teve meu grupo formador, com quem eu comecei, que foi o Charles Peixoto, o Guilherme Mandaro. Era uma turma da Escola de Comunicação que vivia se drogando, escrevendo poesia, ouvindo rock e consumindo essa contracultura. A poesia era nesse período, pelo menos para o nosso entendimento, uma coisa que estava ligada à música. Ou seja, era tropicalismo, um pouco a bossa nova e principalmente o rock. O ambiente poético daquele período estava dividido entre a poesia concreta e a poesia engajada do CPC, da Une, não era uma coisa muito atrativa para a gente. Fomos muito por esse lado mais intuitivo. Não tinha ninguém de letras, eram todos de comunicação, história e filosofia. Queríamos ser cantores de rock, ou pelo menos de iêiêiê, porque eram nossos grandes mitos: o palco, aquela aparelhagem, milhares de pessoas na plateia. Até hoje eu acho isso muito interessante. As armas de guerra, a nossa guerra. Eram os nossos modelos, porque modelo de poeta a gente não tinha. Isso que foi uma dificuldade, como fazer aquela poesia do jeito que a gente queria fazer e como afirmar aquilo como poesia mesmo, de livro, de texto. Não tinha um modelo, as referências do modernismo eram vagas. Nós éramos classe média de Copacabana, não tinha essa coisa de letras e nem de uma intelectualidade, era sexo, drogas e rock’n’roll. Era o que a gente vivia naquele momento. O início de fato, concreto, foi quando no meio disso tudo, dessa contracultura, caiu nas minhas mãos, através do Charles Peixoto, companheiro 149
desse início de poesia, um livrinho do Oswald de Andrade, da editora Agir. Uma coletânea feita pelo Haroldo de Campos. Aquilo foi uma aparição, foi uma epifania. Eu falei: “Cara, isso pode ser poesia? Essa coisa sintética, bem humorada?” Totalmente diferente da concepção de poesia que você aprende na escola, dos parnasianos, dos clássicos. Então eu juntei a fome com a vontade de comer. Juntei o meu desejo e prazer em escrever com uma forma que me interessava, sintética, experimental, cinematográfica. Aí eu comecei a escrever muito próximo do Oswald. Ia anotando em cadernos, manuscritos, às vezes com um desenhozinho. Caneta Pilot colorida fazia parte do universo psicodélico da época. Colagem e desenhos a Pilot. Aí fui mostrando para os amigos que frequentavam minha casa. Eu morava com Guilherme Mandaro, que na época era professor de história em curso pré-vestibular. E os amigos liam aquilo e achavam bacana, perguntavam por que eu não publicava. Mas eu achava um bicho de sete cabeças esse negócio de publicar, não sabia como era, se tinha que procurar uma editora. Lembrando que a gente estava numa ditadura, isso foi em 1970, não havia estímulo para você sair daquele mundo de sexo, drogas e rock’n’roll, da psicodelia. Ou era doido ou era careta. Aí o Guilherme Mandaro sugeriu que a gente fizesse um livro em mimeógrafo. Ele já tinha a manha de rodar prova e de rodar panfleto em mimeógrafo para o movimento estudantil. Fizemos uma tiragem de cem cópias e distribuímos. Tem uma mudança aí que eu acho que é radical, de paradigma: não havia um interesse nosso em uma literatura perene e nem em um livro perene. Não tínhamos necessidade disso, para a gente era curtição. Escrever, ler, a vida era uma grande curtição. Isso nos ajudou a ousar e a experimentar as coisas. Até hoje eu acho essa coisa da posteridade uma invenção. Não tem a ver com arte, isso. Você virou produtor pela necessidade, por faltar produtor? Porque o trabalho que te dar prazer é o de ser poeta, não é? Eu acho que na verdade é uma mistura. Eu adoro fazer o CEP 20.000, eu adorava fazer as Artimanhas. O CEP é o Centro de Experimentação Cultural, que eu faço há vinte anos no Rio de Janeiro, e que é um encontro mensal num espaço da prefeitura, com o apoio da prefeitura. É um grande sarau: tem poesia, música, dança, vídeo. Pela forma sempre informal que a gente encaminhou o CEP, ele virou um grande sucesso, principalmente entre os jovens. 150
Porque, além das bandas que eles gostam, tem poesia, poetas, coisas estranhas pra eles, duos de violão, música flamenca. Esse é mais ou menos o CEP. Eu não vejo tanta diferença entre poesia e produção. Da mesma forma que você trabalha um poema, escolhe uma palavra, corta um verso e faz um poema ficar em pé, você precisa trabalhar uma produção, pensar em um elenco, pensar as formas de produzir, de divulgar. Tudo isso são articulações, são estratégias que eu acho que fazem parte do mesmo processo criativo, racional. Eu tenho essa impressão. Eu falo isso porque da mesma forma que me dá prazer botar um poema em pé, me dá prazer botar um CEP em pé, um espetáculo em pé. Eu trabalhei numa época, que foi meu highlife em produção, com uma companhia de cigarros. Fiz um evento chamado Free Zone, que rodou um pouco pelo sul do país, Rio, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. Eu lembro que eu montava o elenco e achava aquela composição de nomes e de pessoas pensando já como seria aquele encontro no palco e aquelas linguagens diferentes. Era a minha função de curador. Quando a Souza Cruz bancava, a gente podia escolher os nomes. É uma forma de arte, acho que o curador é um artista. Produtor tem aquele lado executivo, mas tem também o idealizador, que é na verdade o meu papel. Eu não sou um bom produtor, sou péssimo. Eu não consigo direito ligar para as pessoas, fazer passagem de som. Com o dinheiro que o CEP dá não tem nem como montar uma equipe. Mas respondendo a sua questão, eu acho que a produção poética se aproxima muito da produção em si. Lembrando do Artimanhas, que também era um evento de leitura de poesia que acontecia nos anos 1970, existia lá o trabalho e a festa. Vocês distribuíam bebidas, a festa estava junto. Tenho a impressão que você sempre trabalhou nessa junção da cultura com a festa. O CEP 20.000 nos últimos anos sofreu restrições de espaço, perdeu um pouco desse espaço celebratório. Como você vê isso? Como corrigir isso? Qual é o espaço interessante? Isso aí é o lado político da coisa, você precisa atender desejos contraditórios. A instituição quer aquela coisa burocrática, quer um espetáculo de uma hora e meia, que fique entre o happy hour e o jantar. Não vê a cultura como uma coisa mais ampla. O CEP desde o inicio foi isso; começava às 21h e ia até 1h da manhã, todo mundo fumava, bebia, beijava, namorava, e era uma coisa cultural mesmo, da rapaziada. Eles iam ali para se divertir, viver, conviver, sofrer, chorar, se apresentar, se expressar, tudo. A instituição não pode com 151
tamanha felicidade, com tamanha vitalidade. Ainda conseguimos manter isso por oito anos em um espaço da prefeitura e com o dinheiro da prefeitura. Mas aí tem essa tensão, tem o lado político. Exige um jogo de cintura terrível, você tem que lidar com uma instituição que te breca e com uma galera que quer chutar o balde. O Guilherme Zarvos, que começou o CEP comigo, chutou o balde. Não aceitava determinadas injunções. Eu, falando a verdade, vivia do CEP, era o meu ganha pão, eu tinha que pagar as minhas contas, então não podia fazer isso. Por outro lado eu achava que era importante manter o CEP funcionando. Mesmo que ele funcionasse apenas por uma hora, era o espaço que tinha para a galera se encontrar, falar de poesia, tocar. É preferível manter o CEP funcionando assim do que não fazer. Agora, é inegável que eu tinha a questão financeira. Eu tenho que viver de algum jeito. E, de uma certa forma, era uma maneira honesta e confortável. O poder público tem obrigações institucionais, e o privado, que poderia oferecer mais liberdade, não se interessa pela poesia. Como pensar uma política que pudesse permitir isso, que não fosse cerceadora do convívio e da criação? Eu vejo que na poesia é difícil. Você tem que mexer na educação, você tem que criar uma base no aluno, um interesse pela palavra sem o tantã por trás, sem ter a batucada ou a guitarra. Mas isso você tem que trabalhar na base. Não adianta, hoje em dia a coisa é muito imediatista. E música mexe com outros instintos, mas não é uma coisa de reflexão, talvez. A palavra permite mais a reflexão. Isso não é também interessante ao sistema. Então, nessa área da poesia, o trabalho é muito mais embaixo. Você teria que ter uma educação artística na escola que permitisse gerar um público. Porque as empresas privadas respondem muito ao público, à demanda do público que vai comprar o produto dela. Se não há essa demanda, as empresas privadas não se interessam por poesia. E os órgãos públicos permitem mais na medida em que tem público. O poder público, isso já é de muito tempo, não é muito afeito a experimentações. A própria Lei Rouanet apoia quem não precisa de apoio. Basicamente os artistas famosos, porque tem o retorninho da marquinha das empresas ali. O CEP não é um palco aberto.Você acabou de falar de curadoria.Você como produtor tem que colocar uma tensão necessária para que aquele sarau aconteça. Qual é a tensão correta,que trabalho é esse de balizar um sarau? 152
É difícil explicar com palavras isso. Tem uma coisa de energia, de não ir contra, você tem que ir a favor da fluência do espetáculo. Se um cara se levanta, diz que aquilo é uma panelinha e recita um poema quilométrico, você não vai mandar o cara embora. É preciso saber lidar com isso. O CEP era muito fio desencapado, só que a gente tinha um cordão de proteção ali, que eu chamo de energia. E, na verdade, eu acho que é a curadoria. Eu não acredito muito nessa coisa de democracia, que tem que ser aberto. Tudo tem um recorte, não é? Você gosta mais de umas coisas, menos de outras. Só não dá pra ser radical e virar uma panelinha. Mas as pessoas que vão ao CEP já sabem mais ou menos o que elas vão encontrar. Um poetastro sonetista não vai lá, porque sabe que não é a minha onda, já sabe que o CEP não é isso. Não é uma coisa fechada, mas também não é um sarau aberto. Porque hoje em dia as pessoas acham que se chamar de sarau tem que ser aberto. Mas isso é um perigo, porque as pessoas só vão ao sarau para poder falar, porque elas têm necessidade de falar, mas não vão para escutar os poemas e menos ainda para se relacionar, coisa que no CEP é primordial. Sempre foi um lugar de relacionamento, de encontro. A poesia é quase como uma consequência disso, e eu vejo pouco disso hoje. Você dispersa a energia se põe vários tipos de discurso. Eu não acho que isso seja interessante, embora não queira ser fechado. Você tocou em um ponto importante, a necessidade do artista de se expressar. Lembro de uma experiência que tive com você no Off-Flip e acho interessante colocar. Era o lançamento do livro da Cláudia RoquettePinto, e fomos usar um palco aberto para celebrar, cada um leria um poema do livro. Ao fazer a leitura fomos molestados pela turma. Eles diziam que já éramos poetas consagrados e que aquele era o espaço deles. Ficamos assustados e saímos. Fiquei pensando que eles estavam mais preocupados em falar do que em ouvir, e então você apontou para a plateia e mostrou que a maioria das pessoas estava ensaiando enquanto outras estavam no palco, ninguém estava ouvindo quem estava no palco. Então muitas vezes as pessoas estão mais preocupadas em falar do que em serem ouvidas. Quer dizer, é um problema que temos na poesia hoje, as pessoas estão mais preocupadas em se expressar, não estão tão preocupados com o público. Como você vê esse diálogo, essa comunicação? Eu acho que hoje as pessoas têm uma necessidade de aparecer. Que é uma coisa que a mídia coloca na cabeça de todo mundo, tem que aparecer, tem 153
que ter seus 15 minutos, 15 segundos de fama. Então eu acho que as pessoas escrevem qualquer coisinha para ser, por um minuto, o centro das atenções. Eu acho que é a condição humana, precária, frágil. É o que a gente tem hoje em dia, o ter que aparecer, o querer aparecer. Fale um pouco sobre eventos poéticos mundo afora. Coisas interessantes que você já viu, participou. Assim como a leitura do Oswald foi fundamental, eu vi um festival internacional de poesia em Londres, em 1973, que tinha poetas do mundo inteiro falando poesia. O Allen Ginsberg era um dos poetas convidados. Cheguei lá e era um teatro imenso, quase dois mil lugares, lotado. Eu já achei aquilo incrível, o público para poesia. Comecei a pensar que podia ser uma fonte de renda fazer um espetáculo de poesia, não só vender os livros. (Só fazendo um adendo: o que me deu muito gás para ser poeta esse tempo todo foi que eu sempre achei que tinha que viver de poesia.) Desde o início era fazer o livro para vender o livro, fazer performance para vender a performance. Mas, voltando desse festival, como eu falava muito mal inglês, ainda mais poesia, que é muito difícil de entender quando é falada, fiquei sobretudo prestando atenção na performance. Aí vinha o poeta africano, negão, e declamava; vinha um poeta russo, um loiro, e declamava. Mas era tudo igual, aquela coisa formal, como se a poesia exigisse aquele tipo de formalidade, como se fosse uma linguagem planetária. É uma coisa que me incomoda muito na poesia, essa formalidade, essa coisa superior, da elite. Temos que brigar com isso a cada verso que a gente faz. Tem um trechinho do Manoel de Barros que eu adoro: “encoste um cago no solene e no sublime, um pênis sujo”. Mas o Ginsberg quebrou isso? Sim. Entraram os poetas de países de primeiro a terceiro mundo, todos com a mesma formalidade, e então chamaram o Allen Ginsberg. Entra o cara de macacão jeans, uma barba desgrenhada, perna engessada, muletas, e começou a vociferar. Acho que devia ser um trecho do “Uivo”, que era mais ou menos próximo. Ele dava gargalhadas. Depois tirou uma sanfona da bolsa e começou a marcar, leu um blues, entoou cânticos. E eu pensei: “É isso aí que eu quero, se um dia eu tiver que falar poesia vai ser com essa dicção”, que eu acho mais próxima do rock’n’roll. Isso me marcou muito porque foi a minha epifania na área de poesia falada, na área da performance poética. 154
Dois anos depois começou as Artimanhas da Nuvem Cigana, no Rio. A Nuvem Cigana era um grupo muito presente da poesia marginal nos anos 1970. Era um grupo de jovens cariocas, basicamente da zona Sul, que jogavam futebol, pulavam carnaval, faziam poesia e publicavam uns livros, uns almanaques. Para cada publicação, a gente fazia uma Artimanha de lançamento, que terminava em carnaval. Artimanha era o happening da época, e graças a Deus a gente deu esse nome; não se misturou com happening, com performance, nada disso. Fale um pouco sobre as perspectivas e caminhos do mercado cultural. Das bienais, do mercado editorial. Infelizmente está quase tudo atrelado ao mercado. A cultura no Brasil ficou atrelada ao mercado. As bienais são as feiras das editoras, ligadas à mídia. Eles colocam aquilo como sendo o máximo, e enchem as bienais com um monte de gente que não sabe o que está fazendo. Você faz um lançamento, mas ninguém vê nada. Eu acho uma coisa até meio nociva, porque a literatura passa a valer diante do que ela vende, como o cinema. Hoje em dia um filme bom é o que tem duzentos mil espectadores e vende não sei quantas mil cópias. Pararam de pensar na linguagem. Eu acho que o Estado, hoje em dia, tem ajudado nessa área literária. Eu, por exemplo, ganhei uma bolsa para publicar um livro de memórias, Uma história à margem. É uma dificuldade você fazer um livro de poesia. As editoras dizem que não vende, então não estimulam o poeta a publicar. Para escrever um livro hoje o poeta tem que inventar, tem que tirar da manga um estímulo. O meu último livro, antes das obras completas lançadas em 2007, foi A vida é curta pra ser pequena. Eu lancei porque estava fazendo cinquenta anos, e pensei: “Pô, estou fazendo cinquenta anos, isso é motivo para fazer um livro, Bandeira fez um livro.” Então é isso, você tem que inventar um estímulo, porque senão só vai lançar livro de cinquenta em cinquenta anos.
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Marcelino Freire Escritor e organizador da Balada Literária.
Como a literatura chegou até você? Eu nasci em Sertânia, que fica no sertão de Pernambuco. Sou o caçula de uma família de nove filhos, mas uma família que não tinha biblioteca em casa, não tinha livro, não tinha água. Então como é que eu me interessei por literatura? Como eu tive vontade de ser escritor numa casa que não estava cercada disso, não era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira num livro da escola do meu irmão mais velho. Eu estava com nove para dez anos de idade, li um poema chamado “O bicho”, e aí pensei que queria fazer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambucano também, falava de ruas que eu conhecia, rua da União, rua da Aurora, falava do Capibaribe. Ele não queria ser engenheiro, pedia desculpas ao pai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha família era sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro, médico, advogado. Nunca vi uma mãe dizer que quer que o filho seja poeta. Aí, de uma certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a não ser econômico, no sentido de pensar minha vida economicamente. Pronto, comecei escrevendo alguns poemas, imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, comecei até a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos dez, 11 anos, descobri que tinha sopro no 157
coração. Isso foi minha glória literária! Ia pelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vontade de ser escritor. Você leu esse poema onde? Li num livro da escola do meu irmão mais velho, na época em que tinham aqueles poemas nas gramáticas. Então me deparei com o Bandeira, sempre à sombra da morte. Com 17, 18 anos ele descobriu que era tuberculoso, e o médico disse que ele só tinha alguns anos de vida. Mas ele morreu com 82 anos! Subindo a ladeira de Santa Teresa, não é? Que tuberculoso fuma dois maços de cigarro por dia e sobe a ladeira de Santa Teresa? É meio ficcional essa tuberculose! Tem um crítico literário que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua e disse: “Você é uma fraude! Desde muito tempo você disse que ia morrer e não morre nunca!” Eu gostava muito dessa figura. Meus irmãos iam jogar bola, andar de bicicleta. Eu nunca quis saúde, não. Eu gosto do Bandeira porque ele me doutrinou a ser doente. As pessoas vão atrás de saúde, eu não. Quanto mais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele. Como foi esse começo de vida de escritor? A vivência em Pernambuco, o Manuel Bandeira como referência, e essa vinda para São Paulo? Comecei escrevendo, participando de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas não terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para São Paulo. Eu dizia: “Ah, o que eu vou fazer em São Paulo?” Eu trabalhava em um banco como revisor de textos. Era uma carreira no banco que estava se apresentando. Eu fui office boy, escriturário, revisor. Mas eu disse: “Não quero banco. Cadê o Manuel Bandeira, cadê minha poesia, cadê os escritores desta cidade?” E aí eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores no Recife: Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu procurei conhecer todos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas, poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de ir para São Paulo. Eu já estava meio cansado de Recife e, chegando a São Paulo, descobri que não gostava de sol, de praia. Conte um pouquinho a procura pelos escritores de Recife. 158
Eu queria interlocutores, queria um diálogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro, que não o meu irmão, que não o amigo. E assim que eu saí do banco tinha uma oficina de criação literária, que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foi lá que eu o conheci e outros escritores, que estavam ensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Então era uma necessidade de interlocução mesmo, para não ficar muito sozinho, muito acuado. Nesse sentido eu já fazia teatro também, comecei muito novo, com dez anos de idade. O teatro deu muita força para o meu trabalho, para o meu texto. Eu escrevia peças e também produzia. Com 14, 15, 16 anos, eu montava meu próprio texto e o levava em temporada na escola, em teatros na cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita vontade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do Raimundo Carreiro, buscava encontrar esses interlocutores e saber também o real peso do que eu fazia, ou o fracasso do que eu fazia. Naquele momento você tinha uma voz própria ou estava ainda procurando? Encontrei quando vim para São Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado de tudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque! Isso é um caminho para você descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muita saudade, um banzo imenso da minha família, do barulho da casa. Você começa, de alguma forma, a se agarrar nas suas raízes para poder enfrentar essa cidade, que tem tudo para te atropelar. Então comecei a descobrir que tenho sotaque, que tenho Sertânia dentro de mim, que eu não achava que tivesse. Aí comecei a escrever uns textos. Depois eu verifiquei que os textos que eu publicava no Recife tinham essa voz, mas lá era uma voz costumeira. Uma forma de falar, de escrever, pontuar, de cantar seu texto, muito peculiar do Recife, de quem mora lá. O Joca Reiners Terron, que é um escritor daqui, foi a Recife não tem muito tempo, e voltou dizendo: “Eu encontrei vários ‘Marcelinos’ lá no Recife! Você é igual ao poeta Miró, você imita o poeta Miró!” E eu disse: “Joca, você estava na minha terra. Lá você vai encontrar várias pessoas falando como eu, no mesmo desespero, no mesmo registro de vexame.” O Vincent Carelli, do Vídeo nas Aldeias, diz que o choque cultural é uma experiência fundamental para o artista hoje. Essa ida para São Paulo foi um choque cultural? Você também considera esse choque fundamental? 159
Para mim foi fundamental. Eu só escrevi Angu de sangue, primeiro livro que fiz por uma editora, porque eu vim morar em São Paulo. Um angu que deixou de ser o angu da tradição, um angu de milho, para ser um angu de sangue! Eu sou uma pessoa preguiçosa, mas muito preguiçosa, se me deixassem com um suco de maracujá no Recife, eu ia morrer lá. O que eu quero mais? Suco de maracujá, sol, descanso, família por perto, não é verdade? Então São Paulo foi importante porque me acordou para forças que eu julgava não ter, forças de luta mesmo, de inserção. E também descobri, repito, essas coisas que eu não julgava que eu pudesse ter. Esse mergulho na infância, nas vozes, na geografia sertaneja, nordestina. Você chega em um momento em que a cena literária de São Paulo estava vivendo uma pasmaceira. E é com a sua turma, com a sua geração, que essa cena literária reaparece. Como foi esse processo de perceber que ou vocês construiriam alguma coisa ou nada existiria? De perceber que não viria de fora, que ninguém iria impulsionar vocês a serem escritores, a terem uma vida literária? Eu lembro perfeitamente que a mesma coisa que me impulsionou a sair do banco lá no Recife me impulsionou a, já morando aqui, sair em busca dos escritores da cidade, dos meus contemporâneos. Ouvia falar do Marcelo Mirisola, do Luiz Ruffato, do Nelson de Oliveira, que tinham publicado livros, mas eu não conhecia ninguém. Eu moro na Vila Madalena, e trabalhava como revisor em uma agência de propaganda, vivia correndo de lá pra cá, trabalhando muito, aquela chatice, altas horas da madrugada. Então eu resolvi reservar o sábado e o domingo para passear pelo meu bairro. Andava nas livrarias, tomava um café, ia aos sebos. Tinha uma necessidade de encontrar uma turma, de, mais uma vez, encontrar interlocutores. Um dia, passando pela Teodoro Sampaio, vi um sebo chamado Sagarana. E, se o dono coloca o nome de Sagarana, no mínimo ele gosta de Guimarães Rosa. Então eu entrei e conheci o dono, que é o Evandro Affonso Ferreira. Vi que ele escrevia maravilhosamente bem, e ele me convidou para uma reunião com escritores, uma coisa que eles estavam tentando retomar. Nos encontramos em um café da Benedito Calixto, mas era um lugar muito barulhento, você não conseguia ouvir as pessoas, então me propus a conseguir outro lugar. Nas minhas andanças pela Vila Madalena, conheci o Iuri Pereira, que é um dos donos da Hedra, e então ele falou de um café que tinha no bairro, próximo da sede da 160
Hedra, e ofereceu também o próprio espaço da editora. Assim, acabamos nos reunindo num lugar mais silencioso. O Evandro, como conhecia muita gente por causa do sebo, começou a convidar alguns escritores para que fossem lá tomar um café com a gente. A ideia era que o escritor fosse lá, conversasse um pouco, e depois lesse algumas coisas. Foi lá que eu conheci o Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Glauco Mattoso. Passou por lá também o João Alexandre Barbosa, um grande crítico literário, que era rato de sebo e comprava livros com o Evandro. Ele esteve lá, conheceu um texto meu, disse que tinha gostado muito e me indicou para a Ateliê Editorial. Depois ainda escreveu o prefácio do livro, do Angu de sangue. Foi a partir dessa necessidade de interlocutores que nos reunimos, todos estavam exatamente com a mesma necessidade que a minha. O Ruffato tinha publicado o primeiro livro, o Nelson tinha feito o segundo, o Evandro estava preparando o primeiro, eu também estava preparando o primeiro. Costumamos dizer que foram os livros que se encontraram. Mas tinha um vazio também. O Nelson falava da editora do Joca, a Ciência do Acidente, o Marcelo falava do pessoal da Livros do Mal, uma editora do Rio Grande do Sul, do Daniel Galera e do Daniel Pellizzari, todos fazendo alguma coisa. Então a partir daí resolvemos fazer uma antologia. Uma antologia da geração 90, porque saiu uma antologia dos cem melhores contos brasileiros do século, do Ítalo Moriconi, um trabalho extraordinário, pontual, para trazer o conto de volta à cena, mas quando chegava na geração 90 ficava um vazio. Nesses encontros descobrimos que tinha muita gente escrevendo no Ceará, tinha muita gente boa espalhada pelo Brasil. Foi aí que o Nelson organizou as antologias Manuscritos de computador e Os trangressores. Era essa necessidade de interlocução mesmo. E era uma fase em que você tinha grandes editoras dominando os jornais, e nós éramos de pequenas editoras, era a Ateliê Editorial, Boitempo, Azougue. Mas então de repente eles começaram a ouvir falar dos novos escritores, a se perguntar que escritores eram esses. Onde estava essa geração 90? Você falou de uma certa inquietação, das pequenas editoras, mas como você configura hoje? Quais são as características da geração 90? Eu acho que era exatamente essa coisa de produzir um texto e dizer: “Olha, estou aqui.” Se falava muito pouco da Livros do Mal, da Azougue, da Boitempo, da Ateliê. Nós não nos sentíamos ouvidos ou vistos. Mas para que fôssemos 161
ouvidos e vistos tínhamos que fazer texto, produzir. Tinha gente produzindo muito bem, fazendo texto bom. Tinha que participar também, mas participar fazendo! Por isso fomos fazer nossas antologias. Em 2003 eu e Nelson de Oliveira organizamos a PS:SP, uma revista um pouco tardia para o encontro que havia na Hedra, porque o grupo já não se encontrava tanto, mas foi uma forma de registrar esses escritores. Fizemos a PS:SP, que siginificava o Post Scriptum São Paulo, que vinha depois do que estava escrito em São Paulo. Havia uma brincadeira de fazer no Rio de Janeiro a RJ:JR. Mas nunca saiu do papel. Que pena! Seria genial! Tem uma coisa curiosa: embora vocês falem em geração 90, essa geração já é a 00, não é? Isso causou uma série de confusões. Outra coisa importante é que vocês conseguiram se impor na cena e nos cadernos literários, por conta própria. Foi a última vez que os cadernos literários tiveram uma importância na formação de público e de leitores. Fale um pouco sobre essas questões. Concordo plenamente. O Jornal da Tarde tinha um caderno de literatura muito bom, o Caderno Ideias era maior. Eu lembro que o Angu de sangue foi resenhado em vários cadernos literários. Temos uma fase também da Cult, quando ela pautava, assinava, mostrava o que estava acontecendo na literatura. A primeira grande matéria que eu tive, assinada pelo João Alexandre Barbosa, foi na revista Cult. Depois esses veículos todos, evidente, foram perdendo espaço, e outros cadernos foram crescendo. Veio a internet, a Cronópios, tudo mudou. Hoje, qual é o caminho para a formação de leitores? Agora que os jornais perderam essa capacidade de formação de público, como você vê as possibilidades de divulgação da sua obra? Tem uma coisa que pontua a literatura para uma nova frente de batalha, a FLIP. Ela inspirou muitas outras festas, encontros. A Jornada Literária de Passo Fundo faz isso há 25 anos, com a Tânia Rösing. O escritor está cada vez mais saindo do casulo, está cada vez mais aprendendo a apresentar sua fala em outras mídias. Adaptações para o teatro, vídeos no Youtube, trailers. Tem tantas frentes para tornar a literatura mais dinâmica. Acho que foi a Rosa Monteiro, 162
uma escritora espanhola, que falou na FLIP uma vez: “Eu escrevia porque eu não sabia falar, agora pra continuar escrevendo, tenho que falar.” É isso mesmo, tem que circular bastante. Eu faço isso muito, vou à periferia, e não vou só por ir não, eu enturmo mesmo, porque vem dessa mesma vontade de encontrar esses meus pares, de encontrar quem é que está fazendo literatura e tirando a literatura do casulo, tirando a literatura das academias, tirando a literatura da naftalina. Então eu vou para os saraus da periferia, e conheço o trabalho vigoroso que os poetas fazem lá. Esse agrupamento tira a palavra um pouquinho da gaveta e joga para o outro. Essa é a formação de leitor! É o que o Sérgio Vaz faz no sarau da Cooperifa, há oito anos, toda quarta-feira, faça chuva ou faça sol, tenha jogo do Brasil ou o que seja. E trezentas, quatrocentas pessoas param para ouvir poesia na periferia de São Paulo! Aquilo modificou a geografia daquele lugar. Os moleques leem poesia, e isso muda a maneira como eles encaram a literatura, que muitas vezes é dada de forma chata na escola, de forma burocrática. Nesse sentido, essas festas para a literatura são muito importantes, porque estamos numa fase de muita concorrência com outros apelos. Hoje as pessoas têm iPod, DVD, internet, é muita coisa. Me perguntaram agora há pouco o que eu acho do iPad. Eu tenho que estar, quase mensalmente, respondendo questões sobre essas novas tecnologias. É importante que elas apareçam, o escritor tem que estar discutindo os diretos autorais do iPad. Mas ao mesmo tempo que tem o iPad, tem gente aqui que “ipede” esmola. Ainda estamos formando bibliotecas e temos que ficar respondendo sobre tecnologia. Eu não sei onde isso vai parar, mas vamos embora, o que se pode fazer? Por isso que cada vez mais a literatura tem que estar atuante, porque senão desaparece. Você foi um agitador da literatura em São Paulo também, ajudou não só a formar público, mas reúne escritores. Quando me interessei pelo teatro, descobri que podia ser ator, escrever o texto, produzir e dirigir. Quando estava na escola, eu já pegava almofadas e jarros da casa da minha mãe para poder fazer cenário de peça, para poder produzir alguma coisa, para sair um pouco da impossibilidade. Não era porque eu não tinha dinheiro para o cenário que eu não ia fazer teatro. Minha mãe tinha um jarro, outra pessoa tinha não sei o quê, então eu ia fazendo. E na medida em que eu ia modificando a cena naquela escola, eu ia me sentindo capaz de realizar alguma coisa. Aos 18 anos de idade produzi 163
uma peça chamada A menina que queria dançar, uma peça infantil que eu escrevi aos 14 anos para que a Patrícia França, uma atriz que depois veio a fazer Rede Globo e hoje está na Record, fizesse a personagem principal. Ela conseguiu fazer quando estava com 14 e eu, com 18 anos. Eu queria que essa peça fosse encenada pela primeira vez no principal teatro da cidade, que era o Teatro de Santa Isabel, e as pessoas me perguntavam como eu ia colocar a peça lá, porque era o melhor teatro e não tinha pauta. As pessoas já colocavam um “não” antes mesmo de tentar. Na época eu já trabalhava no banco e fazia esse tráfego entre meu trabalho formal e o que eu queria fazer. Produzi os folhetos na gráfica do banco, fiz um bom programa, um projeto benfeito, chamei fotógrafo, fui muito profissional. De fato, eu pensava sempre mais do que eu poderia fazer, e era pensando assim que eu tirava um pouco da minha pequenez, pensava mais adiante. Aí fui no teatro, consegui a temporada, que foi vitoriosa, linda, e fez a Patrícia ganhar o prêmio de atriz revelação. Mas a partir daí eu abandonei o teatro, queria mesmo a literatura, estava insatisfeito, cansado de Recife, e veio o convite para ir a São Paulo. Mantive a mesma postura quando cheguei na avenida Paulista e vi aqueles prédios imensos, que tinham tudo para me sufocar. Eu vinha de longe e pensava que tinha que ver aqueles prédios de igual para igual. Eu tinha essa força de transformar alguma coisa, que vinha também da minha mãe, que saiu de Sertânia teimosamente. Dizem que a avenida Paulista é o centro da cidade, o centro do Brasil, a principal avenida da América Latina, e eu pensava que não podia estar longe dela, porque longe eu já estava, então eu só procurava trabalho lá, e consegui. Com a literatura foi a mesma coisa. Conversava com Nelson sobre a revista PS:SP, e ele sempre falava que não tínhamos dinheiro, enquanto eu dizia que dinheiro não era problema e instigava para fazer. Mesmo depois de lançar meu segundo livro e estando dentro de uma editora, a Ateliê Editorial, eu não esquecia meu lado amador. Em 2002, na Ateliê, fiz uma coleção chamada 5 Minutinhos, para ser distribuída gratuitamente. Porque as pessoas dizem que não têm tempo para ler, então eu fui fazer a coleção 5 Minutinhos, que você lê no cabeleireiro, enquanto espera o ônibus, e de graça. O Plínio Martins, editor da Ateliê, que é meu amigo até hoje, me ajudou nessa empreitada. Peguei o Manoel de Barros, João Gilberto Noll, Millôr Fernandes, me perguntavam se eles iam aceitar, e eu dizia: “Eu ainda nem perguntei para eles!” É uma teimosia, uma vontade de fazer, de sair da mesmice. 164
Hoje publico pela editora Record, mas fico sempre envolvido em projetos que eu possa começar do zero, em que eu possa me sentir confortável. Tem muita coisa para fazer na literatura, muita coisa para divulgar. Aí eu faço a Balada Literária, que vai para o quinto ano agora em 2010. Eu digo sempre que, enquanto outros fazem eventos com um milhão, eu faço com “hum-milhação”. No sentido humano mesmo, de pedir força e ajuda a essas pessoas. Eu conheço muitos escritores, que são meus amigos e sabem que eu faço coisas para tirar a literatura desse casulo, dessa chatice acadêmica, e transformar em um movimento vivo, que participe da cidade, da geografia da cidade, que modifique tudo ao seu redor, e eles sempre que podem estão dispostos a participar. Se eu colocar dinheiro como primeiro plano, eu não vou fazer nunca! Eu gasto meu dinheiro, e graças a Deus que eu posso gastar. A cada edição da Balada Literária eu fico falido, mas, no entanto, eu encontro parceiros. O Sesc Pinheiros me ligou querendo participar, porque acontece na Vila Madalena e arredores. A Biblioteca Alceu Amoroso Lima, que fica lá também, me procurou querendo participar. Eu desenho uma programação toda com o apoio desses parceiros. Evidentemente que eu sou o curador do evento, mas o Sesc Pinheiros custeia e cuida da programação de lá. Os bares todos que a gente frequenta na Vila Madalena, a Mercearia São Pedro, o Ó do Borogodó, esses bares todos ajudam, e com esses parceiros eu consigo fazer o evento. Tem a parceria dos escritores também, a quem eu digo: “Não tenho dinheiro, pelo amor de Deus”, e eles vão mesmo assim. No ano passado eu encontrei, em Porto Alegre, o Fabiano dos Santos, que cuida da parte de literatura do Ministério da Cultura, e ele falou assim: “Marcelino, eu vi no jornal que vai ter a 4ª edição da Balada Literária, por que você ainda não nos procurou?”. E eu disse: “Fabiano dos Santos, por que você ainda não nos procurou?” Eu acho que o Ministério da Cultura também tem que ter um olhar, não é só “Manda um projeto!”, que inferno da porra! Eu sei que tem que mandar projeto, mas ou eu faço projeto ou eu faço a Balada Literária. Um projeto é uma burocracia danada, e pede documento daqui, pede documento dali, parece um crediário das Casas Bahia, uma pergunta atrás da outra. Tem hora em que é tanta pergunta, tanta papelada no meio do mundo, que eu não aguento. Estou me profissionalizando, mas o ministério tem que ter essa vontade que mostrou, de ir atrás. Agora eu tenho uma pessoa que já está fazendo o projeto, para pelo menos ter um pouco de descanso no sentido de infraestrutura mesmo, e de pagar aos autores, e pagar a todos igualmente. 165
Não dá para ficar submisso ao incentivo público, às políticas públicas. Como fomentar esse agito? Tem que se pensar isso, não é? Tem que se pensar isso. Esse governo, inclusive, abriu muito o diálogo para a literatura. Não lembro de nenhuma outra fase em que eu tenha ido várias vezes a Brasília para responder ou para saber o que está acontecendo. Mas é aquela coisa, tem que mandar o projeto. Eles não estão olhando ainda. As pessoas de Belém do Pará estão produzindo a duras batalhas, e o governo poderia ajudar, perguntar o que eles estão precisando para poder continuar produzindo, o que é importante para a literatura. Eu faço parceiros, amigos. É um jogo de futebol, você joga a bola para o outro, o outro pega, vai, vem. É uma parceria, um exército se armando para sair da mesmice, dessa concorrência desleal com as grandes mídias, com as grandes tecnologias. Eu não faço parte dessa discussão tecnológica no seu extremo. Faço parte, claro, da discussão sobre os direitos autorais. Até então as editoras estão nos escrevendo para discutir como serão os direitos autorais desses livros que estão sendo digitalizados, e eu acho que o que não pode é pagar apenas 10% para os autores. Se pagavam 10% no livro impresso, no livro digitalizado não tem sentido pagar só 10% ao autor. Não tem distribuidor, papel, não tem tinta, não tem transporte, como é que pode o autor só receber 10%? Essas discussões são importantes para mover isso aí. Você lançou dois livros por conta própria e lançou livros por editora. Nessa experiência, como você vê uma nova editora nesse processo de criação, de qualificação do livro em termos de revisão, diálogo de distribuição? Fiz meus primeiros livros por conta própria: Acrústico, de 1995, e EraOdito, de 1998. Depois veio Angu de sangue pelo Ateliê. A editora é importante no sentido do profissional, da capa, de pensar o projeto, de distribuir, ter uma chancela de uma editora, são pessoas que têm armas para trabalhar com isso, conhecimento para trabalhar com isso. Então os dois primeiros livros foram importantes para eu sair da gaveta, para ter uma atitude diante daquilo em que eu acreditava. Para não ficar aquele rancor de achar que o mundo está contra mim. Porque a diferença entre eu e aquelas pessoas que dizem “Como é que aquele Marcelino Freire, que escreve aquelas merdas, consegue que as pessoas falem dele, e eu estou aqui com o meu texto?”, é que eu faço! E isso pra mim é fundamental. Por outro lado, eu cresci muito 166
trabalhando com o Plínio, que é um super-editor, discute capa, distribuição, conversa. E quando você está em uma editora, os livros são recebidos nas redações de forma diferente, não é um livro independente, já passou por uma filtragem. O Angu de sangue saiu pela Ateliê Editorial com um prefácio de João Alexandre Barbosa, isso já era uma filtragem naquelas pilhas e pilhas que os jornais recebem diariamente. Nesse sentido, de recepção do seu trabalho, você vai para um outro patamar. Quando recebi o convite da Luciana Villas-Boas para ir para a Record, conversei com o Plínio e ele falou: “Vai embora, porque a Luciana vai conseguir fazer coisas com você que eu, como pequena editora, não consigo”, e eu fui. Mas quando cheguei para conversar com a Luciana, já tinha esse histórico de diálogo. Eu dizia para ela que a única coisa que eu não queria na editora Record era ficar diluído, porque eles publicam muito, e eu não quero só mais um livro publicado, eu quero, por exemplo, acompanhar a capa, quero ter esse diálogo, essa conversa. Com Rasif foi a mesma coisa, ela me deu carta branca, e eu acompanhei todo o processo, dialogando, sugerindo revisão e outras tantas coisas. Você dialoga com o profissional da área, e isso ajuda muito na continuação da sua trajetória, a continuar amadurecendo naquilo que você faz. Queria que você falasse um pouco sobre o momento da literatura. Como se pode ajudar esses movimentos que estão saindo do casulo? Onde você vê que a produção literária pode ser mais incentivada por políticas públicas ou privadas? Quais as necessidades? Eu quero conhecer quais são os meus vizinhos latinoamericanos e dos países que falam a língua portuguesa, eu quero esse intercâmbio. Eu quero ir para lá e que eles venham para cá, quero antologias; residência dos escritores, isso não rola ainda. O escritor circular pelas universidades do Brasil quando lança um livro, para discutir com os seus leitores. Mas tem que circular com as universidades preparadas para recebê-los, saber quem eles são, o que eles estão fazendo ali. Eu sinto muito a falta dessa integração maior da língua portuguesa. E quando eu digo língua portuguesa ou latinoamericana, é porque tem muita coisa ainda para conhecer dos nossos vizinhos em língua, vizinhos em território. É lógico que também quero conhecer o inglês, o americano, o francês, mas acho que, se começasse numa articulação com essas pessoas que falam a nossa mesma agonia, seria um ponto positivo demais. 167
Coisas também de políticas públicas, de verbas para o setor criativo, são uma briga longa que já venho tendo com o movimento Literatura Urgente. Esse movimento tem o Ademir Assunção, o Ricardo Aleixo, o Sérgio Fantini, e já conseguimos, com um barulhinho, ter essas bolsas de criação que a Petrobrás está dando. Quando se fala em políticas públicas para essa área, se fala muito no livreiro, no editor, no distribuidor, mas e o autor? Estive em Brasília para uma reunião da câmara setorial e conferência nacional, e todos os editores articulados, quando não vão, mandam seus advogados, e eles estão certos. É uma coisa que vai definir uma política de Fundo Nacional de Cultura, de destino de verba. Os livreiros também estão lá, mas os escritores não. Ficava eu lá me esgoelando, mas conseguindo mudar a redação de alguns itens. Tem uma coisa absurda nessas leis de incentivo. Você tem várias áreas, inclusive literatura. Mas dentro de literatura só se fala em fomento à leitura, o que é importantíssimo, a questão das bibliotecas. Mas os autores, que fazem os livros para que vocês leiam, não estão cogitados. Isso porque a gente brigou para colocar literatura na Lei Rouanet, mas o que a gente queria era só literatura, e a partir dela puxar os ganchos para o livreiro, para o editor, para as humanidades. Então é uma briga constante. Agora, repito, isso aí, de fato, é muito pontual, porque nunca um Ministério da Cultura deu essa abertura de diálogo, de ouvir as necessidades. Mas a gente tem que estar o tempo todo cutucando. Tem quem diga que o escritor só precisa de um papel de pão e uma caneta na mão. Mas que visão romântica é essa? Poeta não come, não tem família? Manoel de Barros, poeta matogrossense, disse uma coisa maravilhosa: “Minha poesia não gosta de dinheiro, mas o poeta gosta!” Você precisa viver! Se for pensar uma cadeia produtiva do livro e tudo mais, o autor é essencial, mas ele não integra uma cadeia econômica. Não integra, e temos que ficar o tempo todo dizendo “Estamos aqui!”, e fazendo a duras batalhas. As pessoas acham que é uma transcendência, que é só acender um incenso. Mas e para comprar o incenso? Se bem que não recomendo acender incenso. Eu não quero espantar os demônios, eu não quero espantar os fantasmas, eu quero todos eles lá. É com eles que eu trabalho, então para que eu vou acender incenso? O escritor precisa também ser um empresário da sua própria obra, mobilizar, divulgar, cuidar? 168
Eu publico um livro a cada três anos. Eu não escrevo tanto, mas sou uma pessoa muito inquieta, não sou aquele escritor no casulo. Eu não consigo ficar parado: preciso fazer alguma coisa, não só literatura. Aí vou aprendendo com esses irmãos de batalha, com o que o Ivan Cabral e os Satyros fizeram na praça Roosevelt, o Sérgio Vaz faz com a Cooperifa. Eu aprendo com essas pessoas o que o Glauco Mattoso uma vez me falou, que “é preciso interferir na geografia das coisas”. O Manoel de Barros fala outra coisa que eu acho ótima: “É preciso esfregar pedras na paisagem.” Nesse sentido, acho que tenho um trabalho sim. Eu tenho o criativo, a coisa artística, que é o que me basta como artista, aquilo que quero resolver como sufoco, como agonia, como vingança, eu já resolvo artisticamente. Depois de escrever o meu continho, vamos para a luta, vamos produzir livro, ver quem está escrevendo coisa nova, ver como juntar essas turmas todas para formar esse exército, esse grupo. Não dá para ser aquele escritor ali numa redomazinha. Não sou desse tipo, eu não me aguento. Essa teimosia da minha mãe, que saiu do sertão semianalfabeta, é o que me guia para qualquer coisa. O escritor que não se envolve socialmente, não se articula com as pessoas, está de brincadeira. Ele está achando que é um deus, é um santo? É Vaticano agora? A coisa se resolve é na luta, é no dia a dia.
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Sergio Vaz Poeta e articulador da Cooperifa.
O que é o Sarau da Cooperifa? Bom, estou falando da periferia de São Paulo, extremo sul, onde não tem biblioteca, não tem cinema, não tem teatro, não tem museu, e o único espaço público que o Estado deu foi o bar. Então o Sarau da Cooperifa transformou o bar em centro cultural. Há nove anos a gente ouve e fala poesia na comunidade, e hoje, em média, duzentas, trezentas pessoas frequentam o sarau, todas as quartas-feiras. Era um lugar onde as pessoas tinham que mentir, dizer que não moravam lá pra poder arrumar emprego. Então, o que aconteceu foi que a literatura elevou a autoestima da comunidade. E isso não foi nenhuma ONG, não foi o Estado, não foi nenhum tipo de governo, não foi nenhum tipo de político que fez; foi um movimento que surgiu do povo. O sarau acontece no final da ladeira de Piraporinha, no bar do Zé. As pessoas vão chegando de todos os lugares, de todas as cores, de todas as dores. Aí tem a professora Lu, que atende a todos, recebe o nome das pessoas que vão se inscrever para falar. Às nove horas começa o sarau, e a gente vai chamando os poetas. Há noites com trinta, quarenta, já tivemos noites com sessenta poetas. Temos um acordo com a comunidade: começa às nove horas, e precisamos terminar às onze. Então tentamos evitar textos longos, até 171
porque queremos associar a literatura a uma coisa bacana, não a uma coisa enfadonha, uma coisa chata. A pessoa já traz isso consigo, de que literatura é uma arte estranha, é uma arte elitizada, chata. A gente faz com alegria, com entusiasmo, para que a pessoa seja pega mesmo pela literatura. E aí são textos curtos, de no máximo duas páginas. Quando o sarau termina, a conversa continua? O que costuma acontecer? Aí já viu, né: cerveja e o torresminho do Zé Batidão. Isso é uma coisa muito importante, o encontro, a cerveja, a conversa. É quase tão importante quanto o evento, não é? Porque quando você institucionaliza um evento, e tem que tirar tudo isso e tornar o ambiente asséptico, você perde muito. O bar para mim é meio que um reduto, a gente fica lá filosofando as agruras do mundo. No outro dia, volta de novo para falar do mesmo problema. Volta de novo. Daí, na Cooperifa, a gente está refundando a amizade, que é uma outra coisa que anda esquecida. Quando você vai a um restaurante, é cada turma em uma mesa, mas lá as pessoas ficam todas juntas mesmo, então, quando acaba, começam as ideias, as pessoas querem conversar, querem saber o que está acontecendo com as outras. Quem gosta de cinema, fala de cinema, quem gosta de poesia, fala de poesia, depois mistura tudo. O Cooperifa está refundando isso, essa troca de ideias. Ele funciona como um movimento, virou um movimento dos sem-palco. As pessoas curtem ir lá porque há uma novidade no teatro, há uma novidade no Cinema na Laje, há um novo livro para ser lançado. O que é o Cinema na Laje? A Cooperifa é um movimento cultural que, entre outras ações, como o sarau, faz o Cinema na Laje, às segundas-feiras. É quando a gente usa a laje do bar do Zé Batidão para exibir documentários e filmes que estão fora do circuito, para que a comunidade tenha outro olhar sobre o cinema. A gente não reproduz filmes de Hollywood. Passamos os filmes da garotada da quebrada, alguns documentários em que as pessoas possam se reconhecer. E é um dia muito bacana também, porque é louco você conhecer pessoas com cinquenta e poucos anos que nunca tinham ido ao cinema. Se eu fosse do governo, teria vergonha disso. As pessoas ficam maravilhadas de ver uma tela 172
menor do que a do cinema, é uma ilha encantada, uma coisa meio Cinema Paradiso mesmo. As pessoas saem de lá falando: “Puxa vida! Eu nunca tinha ido ao cinema, cara!” E aí vale a existência, vale o trabalho. Quando uma pessoa fica feliz, a gente percebe que é por isso que estamos lá, é por isso que estamos fazendo aquilo. O Rodrigo Garcia Lopes tem um verso que diz que a poesia é a arte da escuta. Como e qual é esse trabalho de formação de leitor? Nós primeiro chegamos à literatura através da palavra, da oralidade. A literatura é um dos códigos da arte mais difíceis pra nós, que somos da periferia, então conseguimos chegar através da palavra falada. A comunidade faz a gentileza de ouvir, e o poeta faz a gentileza de falar. Assim, as pessoas pegam no livro e ele não mais queima em suas mãos. Primeiro tivemos que quebrar esse preconceito que o livro tem com o leitor, e que o leitor tem com o livro. Aproximamos os dois, leitor e livro, usando a palavra, para que ele pudesse ouvir aquilo que está escrito, e então se adaptar. Quando começaram os saraus, eram textos de outros autores, ou eram autores que iam pessoalmente lá, falar seus textos? Na verdade começou como uma reunião de amigos. Enquanto a gente bebia, alguém falava uma poesia. Se chamava Quinta Maldita. E a gente percebeu que era um barato legal. A gente não tinha para quem vender os livros nem para quem falar a poesia. Eu, que nasci ali, até 1988 não sabia nem o que era lançamento de livro. No lançamento do meu primeiro livro, teve frango frito e salada de maionese, só para você ter uma ideia de como era a literatura da periferia dos anos 1970, 1980. Então, quando o sarau começou, eram autorias próprias, porque eram poetas que queriam mostrar o seu trabalho. No início, quando a comunidade começou a se apropriar da poesia, as pessoas queriam desabafar, falar o que sentiam, então passaram a tirar o poema da gaveta. Foram melhorando o poema, e o poema, melhorando a pessoa. Hoje, alguns autores já frequentam o Sarau da Cooperifa, mas, no princípio, era sobre exclusão social, contra o racismo, contra o preconceito, contra tudo que afeta o povo da periferia. Com a continuidade e o crescimento, você viu mudança nos textos, nos temas? 173
A grande riqueza do Sarau da Cooperifa é a diversidade: poetas que recitam cordéis, poemas de amor, poemas falando sobre galáxias, como também tem poetas engajados, panfletários. Mas a gente percebeu o crescimento em vários autores da comunidade, apesar que a Cooperifa não produz novos escritores, ela faz novos leitores. Então, acidentalmente, têm surgido novos poetas de grosso calibre por lá. Fale sobre publicações, fanzines, e circulação da produção poética de vocês. Olha, uma das coisas mais bacanas que a gente fez ao longo desses oito anos foi nunca ter se preocupado muito em criar novos escritores, novos poetas. A gente tinha a ideia de criar novos leitores mesmo, fazer com que a rapaziada lesse, se interessasse por ler. É lógico que todo mundo que treina, quer jogar, né? Aí não teve jeito, foi vindo a demanda. Então fizemos uma antologia chamada Rastilho de pólvora, com 52 autores da comunidade. Depois teve um que já produzia mais, e começamos a arrumar parceiros para poder fazer o livro dele. Já publicamos ali mais de vinte livros. O mais louco é que, para muita gente, que nunca havia lido um livro, o primeiro que leu foi o que escreveu. É com esse tipo de magia que a gente trabalha, é com essa energia de fazer essas coisas sem procurar o novo Jorge Amado, sem procurar o novo Paulo Coelho, sem procurar o novo Jack Kerouac. A nossa ideia é trabalhar a literatura, e já era. E se criam os sucessos internos? Tem alguns textos que viraram grandes sucessos? Olha, tem uma coisa que é louca. Hoje, por conta do Sarau da Cooperifa, existem mais de sessenta saraus acontecendo em São Paulo. Tem poetas no Sarau da Cooperifa que vendem 120 livros quando lançam. É pouco, mas quando você imagina uma pessoa da comunidade trabalhando com livros, é um grande sucesso. E tem um roteiro a seguir, você lança na quarta-feira, no Sarau da Cooperifa, na quinta no Sarau da Fundão, na sexta no Panelafro, sábado no Sarau da Brasa, segunda no Sarau do Binho. Existe todo um circuito: segunda-feira tem o Sarau do Binho, que é no Campo Limpo. Na terça-feira, tem o Sarau do Serginho, no Jardim São Luiz. Na quarta-feira, é o Sarau da Cooperifa. Quinta-feira tem o Sarau Vila Fundão, que é lá no Capão Redondo. Sexta-feira tem o Panelafro. Sábado tem o Sarau Círculo Palmarinos, o Sarau da Brasa, e também o Sarau da Ademar. Entre tantos outros que acontecem. 174
E Cooperifa é cooperativa, no sentido de cooperar com o outro. Não é uma associação, não é? Como vocês sustentam isso? É, cooperar um com o outro. Não se sustenta, mano, a cuia é esmolar. Não tem parceiros. Quer dizer, só temos parceiros em eventos pontuais. Por exemplo, fazemos a Chuva de livros, em agosto, que é quando a gente distribui livros para a comunidade. São quinhentos livros, romances. Então, a gente vai nas editoras, pede, e distribui para os convidados. Temos o Poesia no ar, que é em abril, quando a gente solta as bexigas com as poesias, o que é uma das coisas mais bonitas da história de São Paulo. Quando o Sarau da Cooperifa termina, todas as poesias lidas e poesias da comunidade são soltas em bexigas, para que outras pessoas possam receber um pedaço do sarau. Neste ano foram quinhentas pessoas, quinhentas bexigas. Todo mundo vai para a rua, cada um escreve uma mensagem, e às 11 horas da noite em ponto solta. E tem respostas? A pessoa chega: “Pô! Caiu lá em casa.” Tem, cara. A gente manda o endereço, e-mail e tudo. Tem muita resposta. O meio eletrônico, nessa história, funciona como divulgação do Cooperifa? Eu acho que a tecnologia ajudou muito a gente. Você não precisa da Folha de São Paulo, do Estado de São Paulo, da Veja ou da Rede Globo para divulgar o seu sarau. Ótimo se aparecer, mas a gente não depende disso, criamos uma rede. Por exemplo, a mala direta do Cooperifa tem mais de dez mil nomes. São pessoas que passam por lá, jornalistas, pessoas amigas. E aí, tem o meu blog, tem o blog de outro sarau, de outro. Então, o que acontece na Cooperifa, na quarta, é mencionado em todos os blogs relacionados. Quer dizer, a gente atinge o nosso público. A ideia não é quanto mais, melhor. Todos são bem-vindos, mas é feito para aquilo ali, mano, para gente ficar ali trocando ideia. Não temos o objetivo de dominar o mundo, de dominar o poder. É um bagulho por amor à quebrada, não é nem raiva do centro. É que a gente ama aquele lugar, então, em vez de mudar daquilo, a gente resolveu melhorar. Antigamente, a gente se mudava da periferia, agora a gente quer mudar a periferia. Então, assim, não é um protesto, nem nada, é tudo bagulho louco, bagulho feito de amor. Tem muita raiva, porque a raiva é fundamental, mas é um bagulho feito de amor. É difícil explicar, nem eu sei.
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O pessoal do rap, do hip-hop, frequenta o sarau? Lógico. A gente tem uma puta sintonia com a rapaziada do rap. Porque eu acho que nós, da periferia, da favela, devemos muito ao hip-hop, não é? Essa música é de grande importância, assim como a tropicália foi muito importante, a bossa nova, o Cinema Novo, a Primavera de Praga, a Revolução dos Cravos. Nós estamos vivendo tudo isso junto agora. E essa rapaziada é a que a gente vê todo dia também. É como ir ao Leblon e encontrar artista de novela. Na periferia a gente encontra a rapaziada que batalha por ela. Então, é um relacionamento muito bom, até porque a nossa literatura é revigorada pelo rap. Essa molecada também lê o que a gente escreve. Quando comecei, eu escrevia um tipo de literatura social, era descaradamente panfletário. Só que eu era exótico, porque ninguém queria mais isso. Quando a ditadura acabou, todo mundo queria ir para a Bozolândia. Quer dizer, a miséria continuou, a fome continuou, os pretos continuaram sofrendo racismo, mas todo mundo foi pular o carnaval. Como o Chico falou: “Estou me preparando para quando o carnaval chegar”. E o carnaval chegou, só que apenas para alguns. E logo em seguida vieram os Racionais falando “Não confio na polícia, raça do caralho”. Porra, a gente não podia nem ouvir uma sirene que corria. Então pensamos: “Mano, é por aí que a gente vai”. Quais os poemas emblemáticos que apareceram no Cooperifa, que são repetidos? Tem cara que já recita há tanto tempo a mesma poesia, que todo mundo já acompanha. Quando o Chacal foi lá, ele falou que parecia uma reza. Tem os sucessos regionais, as sete mais. Mas a gente não prega isso. Tem o seu Lourival, por exemplo, que é um cara aposentado e tem um poema super simples, que todo mundo recita junto. Mas a gente se recusa a exercitar a vaidade. Se bater palma para um, tem que bater para todo mundo, para não criar esse tipo de rivalidade. Porque não nos interessa, não é academia, a gente não ganha prêmio no final. É um bagulho para comungar a palavra, comungar a amizade, com respeito. É isso. Fale um pouco sobre a circulação de autores de outros cantos do Brasil na Cooperifa. Puxa, o cara que gosta um pouco de literatura, e tem um olhar um pouco mais amplo, sem esse olhar exótico, chega a São Paulo e quer co176
nhecer. Eu também ia querer conhecer um lugar onde trezentas pessoas ficam em silêncio pra ouvir e falar poesia. Então, por lá já passaram poetas consagrados, como Chacal, Marcelino Freire, Xico Sá, Ademir Assunção, entre tantos outros. Acho legal essa circulação, curto muito essa troca. As pessoas dizem que existe uma divisão, e a gente acaba aceitando. Mas eu gosto de desmistificar isso. A Cooperifa é tipo a nossa Casablanca, falta só o Humphrey Bogart. Acho que é um lugar em que ninguém pode ser preso, é uma embaixada. Às vezes vão uns caras lá que querem mudar o bagulho. Outro dia foi uma jornalista, ela se emocionou, aí me chamou e falou: “Vou ajudar você a melhorar isso aqui.” Aí eu falei: “Você quer ajudar? Então não vem mais.” E a questão do patrocínio? É um perigo também, não é? Olha, a gente não curte muito. Quer dizer, não é que a gente não goste, é que eu, por exemplo, estou à frente, e sou um cara muito contraditório, sou muito bruto, entende? Eu tenho medo de virar um leão de zoológico, aquele cara que tem hora para comer, hora para jantar, e quando alguém cutuca, você faz um barulho que é para a criançada se divertir. Eu quero ser o leão da selva, cara. Quero ser aquele que vai à caça todo dia. O conforto também é muito perigoso. Eu gosto de acordar e não saber se vou almoçar ou não. E a gente trabalha nessa perspectiva assim, a gente não sabe se vai almoçar, não sabe se vai jantar, o que dá uma independência também. É ruim, mas tem o lado bom: a gente pode falar mal de quem a gente quiser. A Cooperifa não é minha, não é de ninguém, é da comunidade. Então, a impressão que eu tenho é que se virar um ponto de cultura, que eu não sou contra, vai ter que botar o gerente, o subgerente, o diretor comercial, em um bagulho que é livre. E aí eu não sei, cara, tenho medo disso. Porque eu também gosto de coisas boas, mas tenho medo dessa coisa do conforto, da segurança, de ficar preguiçoso. Tenho tendência à preguiça, então tenho medo. Essa relação entre poesia e trabalho, como é? Você faz poesia depois do trabalho? Eu sou poeta porque sou vagabundo. Não gosto de trabalhar, nunca gostei. Mesmo quando eu trabalhava, eu nunca gostei de trabalhar. Todo lugar em que eu fui, eu arrumei encrenca. Mas aí, para não trabalhar, tenho que fazer alguma coisa. E ser poeta dá um prestígio, não é? 177
O trabalho atrapalha um pouco quem gosta de escrever compulsivamente. Eu trabalho em outras coisas também, é difícil trabalhar e escrever. É difícil também só escrever. Uma coisa que me fascina na literatura é a vida. Além da literatura, é a vida, cara. Assim, eu curto jogar bola ao domingo, futebol de várzea. Eu sou palmeirense, adoro ir ao Parque Antártica. Gosto de sinuca. Cerveja não precisa nem falar, certo? Sou um cara que gosta de muitas coisas assim. Então, eu tenho uma hora para ler, tenho uma hora para escrever, porque, independente de qualquer coisa, eu quero viver. Perdi muito tempo com a tristeza, a pobreza, e agora eu quero ser uma pessoa normal. Por isso que eu não gosto desse rótulo de liderança, que parece uma coisa de abnegado, né? Pois é, como é isso? É, eu não gosto. É lógico que eu sou porta-voz desse negócio que eu ajudei a criar, isso eu não posso negar, também não vou pagar de falsa humildade. Mas eu não curto esse negócio de agora que eu cheguei a Meca, vou falar com Maomé. E às vezes os caras chegam lá com projetos na mão. Meu irmão, eu não quero que ninguém me siga, eu não sei para onde eu vou, você entendeu? Às vezes o cara chega com livros, querendo editar, aí você tem que explicar para o cara que o negócio é quarta-feira das nove às onze, que cada um fala o que quer, depois cada um vai embora para sua casa, e pensa o que quer também, vota em quem quiser, acredita no que quiser. Não existe um padrão de pensamento. O grande barato da Cooperifa é esse, o cara se liberta sozinho. Então tem lá o evangélico, o cara que é do candomblé, tem católico, tem ateu, tem de tudo. Aí tem o cara que gosta de João Antônio, tem o que gosta de Drummond, o que está lendo muito Alice Ruiz. É essa diversidade. Enfim, eu acho que é isso aí, mas cada um tem que cuidar da sua vida, sabe? Agora, é inevitável que você circule pelo país, falando da experiência. Quando chega quarta-feira e você está fora, dói no coração? É difícil. Eu nunca marco para ser na quarta-feira. Fui agora ao México, aí teve uma quarta-feira, mas é porque era em outro país, eu abri uma exceção porque eu não conhecia lá. Mas quarta-feira é o meu dia, cara. Eu sempre digo que queria gostar de mim como eu gosto de fazer o que eu faço. É o ar que eu respiro, não é uma missão, não é abnegação, não é nada. É prazer mesmo. 178
Você se vê mais como poeta ou mais como produtor cultural? Ou como uma mistura disso? Eu acho que é uma mistura disso. Tem hora em que essa coisa da militância poética, periférica, engole a minha poesia. Às vezes eu fico chateado porque o cara compra o meu livro porque eu sou ativista, e aí ele não lê o livro, não é? É como se fosse um suvenir. Dificilmente encontro alguém que fale do meu trabalho como poeta. É mais a molecada das oficinas que eu faço na FEBEM, nas escolas. Uma molecada que ainda conhece só o poeta. Mas não tem como manter o sarau em pé sem um mínimo de organização. Tem que trabalhar. Por exemplo, ontem, com aquele puta frio, tinha umas trezentas pessoas, são trezentas cabeças, é energia. Sessenta caras querendo falar. Aí tem o cara que chega de fora, tem o político que quer falar, aí você tem que dizer que ali não é lugar, que ele tem que falar no parlamento. Tem o poeta que mora não sei onde, e quer falar mais cedo porque ele tem que ir embora. Ele só quer falar, ele não quer ouvir. Aí você tem que explicar que aquilo é uma cooperação, um coopera com o outro. Se ele não ouvir o cara de lá, não interessa. A Cooperifa assumiu uma postura meio intratável. As pessoas não gostam muito da gente. É quente mesmo, somos meio inóspitos. A gente ri muito, que é para poder comprar fiado, mas na hora do vamos ver mesmo, a gente fica meio intratável. A gente não recebe nada de ninguém também. Tem muita gente que recebe apoio, mas quando a gente põe Cooperifa, nego corre. Sobre a formação de leitores,você percebe procura por outros autores? Há descobertas? A gente montou uma biblioteca dentro do bar, cara. É muito louco, é difícil um cara pegar um livro, começar a ler e não curtir. Só o Estado mesmo que é idiota para acreditar nisso, que o jovem não gosta de ler. Eu faço trabalho na FEBEM. Agora tem sarau acontecendo lá, mas quando eu cheguei, ninguém gostava de poesia. Então, assim, as pessoas gostam de ler sim, é que às vezes o cara recebe Nietzsche como primeiro livro. Por exemplo, o cara chega lá e me pergunta o que ler, pede uma indicação. Eu falo: “Ah, lê o que você quiser. Do que é que você gosta?” “Ah, eu leio Paulo Coelho, mas o Paulo Coelho, o cara falou que não é bom.” Pô, ele falou que não é bom, mas leia, é uma literatura simples. Não sei, cara, as pessoas intelectualizam muito. Me parece que algumas pessoas veem o povo como algo abstrato, que não existe. Mas são pessoas, caramba. 179
Nos anos 1990, o Secretário do Livro e Leitura do Ministério da Cultura, Otaviano de Fiore, foi bastante criticado porque comprou Paulo Coelho para as bibliotecas. E ele falou, “Pô, mas eu aprendi a ler com Sherlock Holmes, é a mesma coisa.” Como se não tivéssemos direito de ler coisas que não são tão boas... É porque tem essa coisa da alta literatura. Mas alta literatura é para quem está no alto escalão da academia, da informação. Se você pegar uma pessoa que nunca leu, e der Desonra, do Coetzee, o que ele vai fazer? Eu cresci na escola lendo Érico Veríssimo, Olhai os lírios do campo. Quem que gosta de ler aquilo com 15 anos, cara? E a sua escrita, sua voz, mudou muito com a experiência? Olha, eu queria ser jogador de futebol, como todo garoto de periferia. E ainda quero, porque sonho é sonho. Mas eu sempre fui um garoto muito triste, meus pais se separaram muito cedo, numa época em que ninguém se separava. Então demorei muito tempo para gostar de viver. Eu achava muito enfadonho viver, não conseguia. Legal é que eu só fui perceber que sofria hoje. Na época eu não sabia, porque a criança até tirava uma chinfra. E a literatura entrou na minha vida como se fosse para me resgatar disso aí. Então, assim, ela mudou totalmente o meu modo de ver, o meu modo de pensar. O que você lia? Comecei a ler os livros dos meus pais. Isso é muito interessante, meu pai era um leitor contumaz. Era uma família muito simples, mas não faltavam livros. E eu lembro que o primeiro livro que eu tentei ler chamava-se Eram os deuses astronautas?, do Erich von Däniken. Meu pai era essa coisa de Rosacruz, ele gostava dessa coisa mística e tal. Aí eu tentei ler, não entendi nada, porra nenhuma. Depois eu vi Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão, e já comecei a me interessar pela história, por aquela coisa toda. Meu pai percebeu isso e teve a sensibilidade de comprar Aladim, Branca de Neve, A ilha perdida, e eu fui passando por essas coisas. Aí que eu fui pegando gosto mesmo. Comecei a gostar de música, curtia os bailes blacks, conhecia música brasileira. Conheci o Chico Buarque, Gonzaguinha, Taiguara. Aí pensei que era isso que queria fazer. Eu li um texto uma vez do Ferreira Gullar que era assim: “Só é justo cantar, quando seu canto arrasta consigo pessoas e coisas que não têm vozes”. Aquilo 180
mudou a minha vida, mudou o meu jeito de pensar a vida. Quer dizer, mudou não, me acordou, porque eu acho que você não muda, você é aquilo que é. E aí eu comecei a ler Pablo Neruda pra caramba, Ferreira Gullar. Aí teve uma época em que eu li os beats, cheguei a ler Baudelaire, mas não curti muito. Eu ouvia falar e queria ler. Do Paul Verlaine eu ouvia falar, achava bonito, mas fui ler e não gostei. E foi assim, fui curtindo. Sempre gostei dos autores latinos, porque tenho essa coisa latina, do trágico, da emoção. Eu gosto dessa coisa superlativa. Já rolou alguma vaia lá no Cooperifa? Não, pior que não. No começo, a gente ficava preocupado, porque às vezes um aplaudia mais o outro. Uma vez um senhor falou para mim que era a primeira vez que ele tinha sido aplaudido na vida. É foda, cara! Isso é do caralho! Mas não é importante uma reação do público? Sim, mas a proposta não é não gostar. É que é solidário, o cara acha legal o vizinho dele fazer poesia, sabe? Não queremos criar uma concorrência. Às vezes o cara leva a família dele, que dá um apoio, e ele já se entusiasma mais. Então é esse barato que a gente queria, que a gente gosta, não essa concorrência. Pô, o cara falar em público é foda. O cara escrever um texto já é foda. O cara falar esse texto é mais ainda. E não tem palco, ali é olho no olho, então pode assustar. E aquilo não é feito para assustar. Mas nunca houve um discurso que fosse discordante? Não no sentido de competição, de ser bom ou ruim, mas uma coisa... A gente cortou o discurso. Porque às vezes o cara ficava 15 minutos falando, para ler um texto de dois minutos, e aí só ele falava. Então aí a gente cortou. O cara vem, fala a poesia, entra outro, e tudo certo. E se o cara não quiser sair? Isso já deve ter acontecido várias vezes. Sai. Na moral, sai. Uma vez uma menina começou a ler um livro, aí neguinho começou a interromper. Ela falou que não tinha terminado, mas aí falaram: “Ah, terminou, sim. Terminou, sim.” Quer dizer, a pessoa que vai a primeira vez não sente o clima, então é assim. Porque há pessoas deselegantes em tudo quanto é lugar. A deselegância é democrática. O cara chega num lugar e não percebe que é assim, que todo mundo tem que falar, e tem que 181
ser ouvido. E às vezes tem o cara também que vem, fala, e vai embora. Aí você busca o cara e fala: “Espera aí, bicho! Nós não estamos aqui presentes pra sua vaidade. Você tem que ouvir os outros também, mano.” E na próxima quartafeira, ele é o último. Lá dentro, por exemplo, é silêncio. Se o cara fala, a gente chama atenção. Tem que aprender a respeitar. É só na quarta-feira, duas horas. E as pessoas lá dentro, como é? Como fica esse espaço? Fale do ambiente mesmo, da construção do ambiente. Tem uma série de regras silenciosas, de jeitos de fazer, de modos de fazer, que transformam o sarau em uma coisa totalmente particular. Essa construção desse ambiente foi coletiva, ou veio muito de você? Bom, eu nasci ali, e esse bar era do meu pai, passei 12 anos ali. Então, eu sempre fui um cara popular, sempre fui um cara de respeito. É diferente também você fazer uma coisa onde a comunidade o respeita, a rapaziada o respeita. E aí nunca tive problema, quer dizer, no começo teve um problema, porque havia um estranhamento daquilo. Lembro até uma vez que o cara quebrou o copo, mandou eu calar a boca e tal. Sabe aquelas ideias? Mas é um ambiente extremamente amistoso, que foi construído também. Não tem briga, não tem discussão. É da hora. A gente precisa aprender um monte de coisa, a gente acha que sabe tudo, não ouve ninguém, não vê nada. E está tudo pronto na televisão, está tudo pronto. A gente precisa parar para ouvir o outro, olhar o outro, tocar o outro, abraçar, trocar um ideia. E por que quarta-feira? Porque quarta-feira era o dia em que a gente acha que o prego não sai de casa. Não colocamos nem sexta, nem sábado, porque é o dia da balada. Caboclo sai mesmo para cantar Martinho da Vila, cantar sertanejo. Então a gente nunca ia concorrer com isso. E é o dia do violão, ninguém pode concorrer com a música, que a música é soberana. E a quarta-feira é o dia mesmo só pra nós, os loucos. Mas é dia de futebol, né? Na época, há dez anos atrás, não era tanto, não tinha essa coisa de televisão assim. Mas então a gente venceu isso também. Quem gosta da poesia, vai no dia. Lógico que você sempre perde um aqui, outro ali. Eu também gosto de futebol, sou louco, mas tem que praticar o que a gente fala, né? É isso. 182
Como realizar sem dinheiro? O sentimento está antes da viabilização? É muito sentimento mesmo, é uma coisa meio quixotesca. Lógico que eu acredito na grana, mas é difícil pensar que vou buscar o recurso e depois vou ver o que fazer. Eu sou um cara emocional, não tenho razão. Eu posso ser o idiota da coisa, eu posso ser o errado. Às vezes eu não acho bonito ser eu, pensar assim. Mas primeiro eu quero fazer as coisas, não adianta ficar pensando que não tenho dinheiro. O cara não escreve o livro porque não tem dinheiro, não faz música porque não tem dinheiro. Então quer dizer que sem dinheiro não existe arte? E outra coisa também, é muito difícil esse negócio de verba, de financiamento, são sempre os mesmos caras, sabe? Quando vai nascer o Cooperifa Futebol Clube? É, nós vamos fazer. Estamos alugando uma quadra aí. Gosto do futebol, acho louco a bola vir, o cara matar no peito, olhar pra um lado, jogar pro outro. Sou fascinado por essa magia, pra mim é poesia pura. Quando você vê o Zico meter aquela bola de falta, Sócrates desengonçado. Só não gosto do Dunga. Por amar futebol, não gosto do Dunga. Ele não estaria na minha seleção, ele é um burocrata. Tem muito Dunga na área da cultura também, né? Muito mesmo, cara! Depois que surgiram esses editais, está aparecendo mais ainda. Porque o cara aprende a escrever o mecanismo, mas nunca mexeu com cultura. Às vezes é um advogado que tem a facilidade, ou um político que é amigo de não sei quem. É engraçado você encontrar alguém que não goste de fazer aquilo que faz. Como é ser um produtor cultural? Eu não sei, cara. Produtor cultural fica muito chique pra mim, eu faço menos que isso. Porque, por exemplo, eu nunca escrevi projeto pra um edital. Eu sou um maluco mesmo, um sonhador. Eu curto produtor cultural, mas acho que sou indigno. Ser produtor é muito maior do que o que eu faço. Parece alguém especialista em alguma coisa, e eu não sou. Sou meio Zé Mané assim, faço dando cabeçada pra tudo quanto é lado.
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Rui do Carmo Poeta e articulador do Movimento Literário Extremo Norte.
Rui, fale um pouco da sua trajetória como poeta e agitador cultural. Comecei a trabalhar com produção cultural há pouco tempo. Desde 2002 produzo alguns eventos. Porque na realidade eu sou escritor. A falta de produtores culturais na nossa cidade, no nosso estado, me forçou a me tornar um produtor cultural, a fazer minha própria obra e levar a poesia – de que eu tanto gosto – para o teatro, para as praças e para todos os lugares aonde eu posso. Com isso, notei que há um grande déficit na nossa história, que é o “letramento” do nosso estado, o índice é muito baixo. Não adianta só produzir um livro, você também tem que produzir um público leitor, senão nada acontece. E foi a partir dessa ideia que eu comecei na área de produção cultural. Quanto à história do escritor, vem desde cedo. Desde os meus 14, 15 anos que venho escrevendo, só que ficava tudo dentro da gaveta. Aquela poesia de gaveta que a gente vai guardando, guardando, guardando… Foi quando cometi um crime contra toda essa minha primeira fase de escritor. Eu já estava casado há um tempo e desiludido com a ideia de publicar o que eu escrevi, e queimei tudo. Peguei e queimei tudinho. Depois eu voltei a escrever de novo, e tem um episódio interessante sobre isso. Eu também sou administrador de empresas, e nesse período eu prestava consultoria dentro das faculdades, dando palestras, ainda na época do disquete. Um dia a FEAPA, a Faculdade de 185
Estudos Avançados do Pará, me chamou para dar uma palestra sobre atendimento ao cliente. Eu mandei o disquete para a apresentação e esse disquete não abriu. Aí a professora me telefonou e disse: “Rui, pelo amor de Deus, me manda outro disquete, porque eu tenho que apresentar a sua palestra para o diretor, senão não passa.” E eu disse: “Mas agora eu estou trabalhando, não tenho como…” E ela disse: “Dá um jeito.” Aí falei: “Eu só tenho disquete sujo aqui, serve?” E ela disse: “Serve!” Eu gravei a palestra, e pedi para um colega entregar. Ela, como toda mulher, curiosa, abriu além das palestras as outras pastas que estavam no disquete e viu. “Isso é do Rui, o Rui é poeta!” Pela primeira vez me chamaram de poeta [risos]. “O Rui é poeta, vamos já colocar ele no nosso evento de poesia, o sarau que vai acontecer lá no Colégio Santa Catarina!” E eu entrei nessa. A partir daí bateu a vontade de ver as minhas obras publicadas. Eu fui para dentro de uma faculdade e logo de imediato declamei poesia. Foi assim que começou. Existe uma confusão entre o artista, o escritor e o produtor. A sua poesia mudou depois que você começou a produzir eventos? Ah, sim, com certeza. Para mim a poesia é um estágio de evolução. Se você pega o meu primeiro livro, O canto do Curumim, está lá uma pessoa muito doce, muito amável, ainda com muita relação com a baía – a minha infância foi tomando banho ali na baía do Guajará – e com a floresta amazônica. Minha esposa é marajoara, e eu estava constantemente em Maná, ilha de Marajó, Ponta de Pedra. E desse envolvimento com a floresta saiu o O canto do Curumim. A primeira poesia do livro é em homenagem ao meu pai, e conta a história de que ele enganou a morte, quando criança. E também saiu um outro livro, O anjo marajoara, onde se pode ver que estou muito ligado à floresta, ao Curupira, à Mãe d’Água, ao Boto, e a toda essa literatura que envolve tanta magia. Eu digo que sou possuído por essa floresta, por essa baía, e depois transbordo tudo que ela joga em mim. Na hora de produzir, você se envolve mais. Sente os problemas da floresta, conhece o ribeirinho, conhece suas dificuldades, e vai lá ver o que acontece. E tem muita coisa triste acontecendo. Quando você passa ali no fundo de Jararaca e vê o tráfico de mulheres, que pedem comida nas embarcações. O tráfico humano está passando por ali. Estão levando aquelas moças, as “ribeiríndias”, para fora do Brasil. É um negócio muito triste. E isso ocorre bem perto da gente, e todo esse choque que acontece quando começamos a lidar 186
com o sofrimento humano vai para a poesia. Aí surge o livro Versos pobres, versos pretos, que é o meu clamor social. Tem uma poesia nesse livro de que eu gosto, que relata mais ou menos esse sentimento, que diz o seguinte: Na minha boca, o protesto dos excluídos paridos na dor Nas minhas palavras a navalha que corta e não cala No meu peito a loucura da esperança que não cansa, do corpo que não se entrega, do sangue que gera semente Que faz brotar do campo o clamor de um povo sedento por justiça Que busca em luta heroica, reconquistar a terra grilada. Nas minhas matas matam a Amazônia, envenenando rios, executando seus filho impunemente Nos palácios governamentais a força ruralista oprimindo e enterrando a reforma agrária com a corrupção política. Na mesa do povo brasileiro, o pão eivado de sangue do Jesus do campo Matando nossa fome com sua própria vida. O que é o Movimento Literário do Extremo Norte? É a junção de vários colegas. O movimento surgiu primeiro empiricamente. Éramos um grupo de amantes da poesia, nos juntávamos em casa e declamávamos poesias nossas e de autores nacionais. E esse grupo resolveu ir para as ruas. Começou na praça do Cruzeiro, onde subíamos nos bancos para declamar poesias, e de repente o público estava ali nos rodeando para escutar. Montamos uma tenda, e começamos a levar essa tenda para as praças. Essa tenda literária começou a ganhar força e deu a esse grupo a união necessária para formar o movimento. Recebemos um convite de um grupo cultural que existia em Belém chamado Xibé com Arte, para apresentar a poesia que fazíamos na rua, dentro daquele espaço cultural. E reunimos o grupo de escritores. Nessa época, algumas pessoas que estavam conosco já eram renomadas em Belém, como a Eliana Barriga e a Juraci Siqueira. E tinha a outra turma que acreditava que esse projeto só daria certo dentro do Xibé com Arte se tivéssemos o apoio total da imprensa. Eu não acreditava nisso, achava que podia ser feito sem a imprensa. Vimos uma matéria na revista EntreLivros que dizia que em São Paulo existia uma casa noturna que promovia saraus toda semana. Aí ficamos com aquele encantamento. Então, o movimento Norte começou a ir, pelo menos uma vez por semana, no sarau do Xibé com Arte, 187
e na primeira apresentação tivemos a imprensa, falada e escrita, que foi lá e apoiou. Só que a imprensa tem outros interesses e, a partir dali, não foi mais ao sarau. Aí alguns colegas não participaram mais. No primeiro dia foi lindo: teve exposição de quadros, fantoches, artes cênicas, poesia. Mas depois a turma foi se afastando, querendo a publicidade que nós não tínhamos. Com essas desistências, ficamos só eu e a companheira Izarina Tavares. Alguns dias, ficávamos somente eu e Izarina no Xibé, e dizíamos: “Não, nós não vamos desistir, eles nos abriram um espaço.” Aí, outras pessoas começaram a acreditar no projeto, e começaram a se juntar a nós. Depois de uma batalha de seis meses, nós vimos o Xibé totalmente cheio. Foi emocionante quando eu vi aquele espaço lotado de pessoas que queriam escutar poesia, me afastei e comecei a chorar. Aí a Izarina foi lá e disse: “O que foi, negão?” “Não dá pra aguentar, depois de toda essa luta…!” E era um negócio tão interessante, tão gostoso, que às vezes, quando a declamação atrasava, tinha uns vizinhos que gritavam: “Ué, hoje não vai ter poesia?” [risos]. Aí começamos a ganhar os espaços do estado, os teatros: o Margarida Schivasappa, o Waldemar Henrique, a Estação Gasômetro. A partir daí, nosso trabalho começou a ser reconhecido, e as portas começaram a se abrir. Até que nós chegamos com o MLEN ao primeiro Extremo Norte, o encontro de escritores da Amazônia. Os escritores que se uniram têm uma linguagem comum, ou eles apenas dividem o espaço? É o espaço que se divide. Porque nós resolvemos – para não fechar ninguém – não escolher uma escola literária. Não tem essa coisa do: “Ah não, eu sou do concretismo; Ah, eu sou do romantismo…” Não! Está aberto. Para todos! E o movimento é isso. Não é só de escritores, é de amantes da poesia. Nós temos o doutor João Carlos, por exemplo, que é médico. Ele vai para lá porque gosta de poesia, ele pega seus autores preferidos e vai declamar. O Omar Abraão é engenheiro e também vai lá para declamar poesia. E gosta muito da poesia regional, de vez em quando está declamando Bruno Menezes, Paes Loureiro. E assim vamos levando. Afora o Pará existe uma identidade entre os escritores da região norte? Existe. Quando fizemos o primeiro Extremo Norte, nós conseguimos a participação de pessoas do Amapá, que foi em grande número. Tanto que fui lançar o meu livro Versos pretos, versos pobres em Macapá, e lá montamos 188
um grupo que representa o movimento: Ricardo Pontes, José Pastana, Leão Zaguri, Paulo Tarso. O pessoal de Macapá comprou a bandeira do Extremo Norte e faz a poesia acontecer lá, tanto quanto nós fazemos em Belém. A Carla Nobre, que é uma poeta maravilhosa de Macapá, agita a cidade. E, pelo lado de Roraima, o Eliaquim Rufino. Por Manaus, apareceu para nós um presente da Secretaria de Cultura, que nos trouxe o Thiago de Melo. Fale um pouco sobre a expressão “Extremo Norte”. A expressão “Extremo Norte” surgiu em homenagem a Dalcidio Jurandir. Os três primeiros romances de Dalcídio Jurandir, Marajó, Chove nos campos de cachoeira e Três casas e um rio, deram origem ao Extremo Norte. A obra dele merecia ser divulgada, porque ele é um dos maiores romancistas do Brasil. Essa é a verdade. É uma coisa maravilhosa. O meu primeiro romance, Lourdinha, tem muitas influências do Dalcidio. O Extremo Norte virou um instituto? Ah, sim. Já estávamos atuando na área de produção e chegávamos às Secretarias de Cultura, à Fundação Cultural do Pará, à Funbel em busca de patrocínio, mas eles não podiam nos apoiar porque éramos um movimento e não tínhamos CNPJ. Essa era a desculpa, na época. Aí percebemos que tinha chegado a hora de deixarmos de ser um movimento, para passarmos a ser um instituto. Aí, foi uma outra luta, porque todos os nossos projetos, o “Poeta Enluarado”, o “Poesia na Praça”, o de “Casa em Casa”, eram bancados por nós. Fazíamos um conselho e cada um dava um pouco; para alugar um barco, para pagar o ônibus, o combustível, e assim conseguíamos pagar as despesas. Foi sempre assim. Depois de muita luta, de muitos eventos, conseguimos arrecadar o dinheiro necessário para transformar o movimento em instituto. E fizemos em 2009 o III Extremo Norte, já como Instituto Cultural Extremo Norte, só que o apoio financeiro não veio, e a desculpa foi a crise, que não aconteceu. Não veio apoio de nenhum lugar. Houve cortes imensos na cultura, a Fundação Tancredo Neves quase faliu, porque tiraram todo o dinheiro dos projetos que ela patrocinava, com a desculpa da crise econômica, que não aconteceu. E há pouco tempo decidimos que vamos continuar sem olhar para o governo. Se ele quiser apoiar, vai ser benvindo. Caso contrário, não impede que a nossa canoa siga avante.
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Tem uma pesquisa do Minc, de 2009 que diz que só 6% das cidades da região Norte possui livraria. O que é possível fazer pra reverter esse quadro, e como isso reflete na produção literária? Isso reflete gravemente, porque a exclusão social aumenta a exclusão cultural. Quando uma sociedade lê pouco, ela enfrenta inúmeras barreiras por causa disso. Isso influencia porque quando você tenta publicar um livro através de uma lei e é aprovado, em seguida você tem que procurar uma empresa para patrocinar o livro. Aí acontece uma coisa que eu acho horrível, você cai na questão da renúncia fiscal. A empresa pode patrocinar o seu livro, mas ela também pode patrocinar uma peça de teatro, ou algo semelhante. E aí você vai concorrer com muitos projetos, principalmente na área de esportes e de shows. O empresário logo pergunta: “No lançamento do seu livro irão quantas pessoas?” Aí você responde: “Bem, no máximo umas trezentas pessoas.” E ele: “Tá, e você precisa de quanto?” e você diz: “Para produzir meu livro, para mil exemplares, uma média de R$ 8.500,00.” Aí vem um outro cidadão e diz: “ Vou promover um passeio ciclístico em prol disso aqui, daquilo ali etc..” e o empresário quer saber: “Quantas pessoas vão?”, “Ah, umas 2 mil pessoas.” Aí, já foi o seu dinheiro! Você está fora. Só se consegue patrocínio para coisas que sejam do interesse deles, ou quando conseguir um apadrinhamento. Eu só tive dois livros publicados, pela empresa em que eu trabalho. Aprovei na lei e procurei a diretora da Fundação e ela patrocinou dois livros meus. Para publicar os outros eu tive que correr atrás. Principalmente, Versos pobres, versos pretos, que trata de temas sociais e do qual eu não abriria mão de uma vírgula do que estava escrito ali. A lei diz: 0,02% do orçamento do estado deve ser destinado para cultura. O que daria uma quantia em torno de seiscentos mil reais. Mas aí, tem uma pilha de mil de projetos concorrentes. Desses mil, só 300 são aprovados. E só 40% desses projetos que foram aprovados chega ao público. O restante do dinheiro volta confortavelmente ao cofre do estado. Minha função não é a de fiscal, de ficar pedindo de porta em porta. Eu passei por um crivo de três pessoas, que olharam o meu projeto e deram notas. Se são pessoas consideradas idôneas, pessoas de notável saber dentro daquela área, então por que o estado não libera o dinheiro, já que ele aprovou? E deixa o fiscal ir atrás da arrecadação. O importante também é pensar que fazer o livro não é o fim. Depois que se faz o livro, tem que chegar ao leitor. Como se faz isso? Como pensar 190
um projeto cultural que estimule a leitura, que estimule o consumo de poesia? Aí é uma consciência de todos. Tem que envolver toda a sociedade, desde órgãos governamentais até você e sua família. A leitura é hoje um bem essencial para a entrada no mercado de trabalho, para o exercício da cidadania, para conhecer a si mesmo e ao seu próximo. Só sairemos desse estágio quando nossas escolas estiverem preparadas para atrair o aluno não com a leitura obrigatória, mas com a leitura como um deleite. Não sei se aqui, mas lá são pouquíssimas as bibliotecas que dão ao aluno dignidade e o fazem se sentir bem. Você encontra livros ultrapassados, rasgados, um ambiente completamente sujo, um calor estúpido. Como é que as pessoas podem ficar numa quentura daquela? Tem que ter uma mudança que envolva todo esse cenário. Dentro da escola, no governo, em casa, incentivando seu filho a ler e trazendo literatura. É assim que se forma. Para se ter esse público leitor que compre o livro, você precisa fazer o que hoje estamos fazendo com os nossos projetos; ir às escolas, deixar de ser desconhecido pelos alunos, fazer essa interação com a escola. Sempre que abre uma brecha nós estamos lá na Universidade Estadual do Pará, na Universidade Federal do Pará, em todas as faculdades e em todas as escolas, principalmente as da rede pública. Nós estamos sempre buscando essa aproximação, porque a gente só ama aquilo que a gente conhece. E só defende aquilo que ama. Então você precisa se fazer conhecido e amado para poder ser defendido. Aí sim, você forma um público leitor. É muito difícil entrar com o seu livro nesse universo da escola, porque elas já recebem seus pacotes de livros, prontos, vindos de grandes editoras. Também tem aquele negócio: o professor gosta, já está tudo prontinho. Se você manda um livro que não é didático, não tem aceitação. E deixar de pensar que o escritor é um ser de outro planeta. Vou contar uma coisa que aconteceu numa escola lá em Corassi. Eu estava dando uma palestra, e, na sala, tinha uma gurizada de cinco, seis anos. E eu comecei a falar, fiz umas brincadeiras com elas, e de repente uma me pergunta: “Tio, o senhor está vivo?”. Eu disse: “O quê?” E ela: “É, o senhor está vivo?”. Aí falei “Claro que estou, você não está vendo? Por que está perguntando se eu estou vivo?” E ela respondeu: “Porque toda vez que a mamãe vai me contar uma história e eu pergunto quem é o escritor, ela diz que o escritor já morreu.” (risos) Aí você vê como está a coisa… 191
Só que em compensação o Pará tem a maior concentração de bibliotecas da região Norte… Sim, tem a maior concentração de bibliotecas do Norte, agora em que condições? (suspiro) Tem algumas até razoáveis, mas nenhuma em estado excelente, a maioria está em péssimas condições. Essa é uma realidade que precisa ser dita, não adianta a estatística. Vai olhar a condição da biblioteca, ver se é digna de estar lá. Em que condições estão essas bibliotecas? Essa é a pergunta. A atividade de produção cultural está completamente misturada com a educação. Para você, qual seria a possibilidade de uma política que juntasse isso e criasse um maior grau de leitura no Brasil? Primeiro a gente tem que parar com a hipocrisia. Dizer que está melhorando, e isso e aquilo… Antes de vir para cá nós estávamos no Santo Antônio do Tauapa e lá estava aquele aluno jacaré, sabe qual é? Aquele que não tem onde sentar e se deita no chão para assistir a aula. Então, é brincadeira dizer que está se levando a cultura a sério. Uma criança que tem que sair de bicicleta, não sei quantas horas antes do começo das aulas, ou ir a pé até uma escola, vai amar alguma coisa, algum tipo de cultura? Eles estão cansados demais. Chegam na escola e correm para pegar a sua cadeira. Aquele que conseguiu pegar, senta, o que não conseguiu vai ficar deitado no chão.Quando saímos das estatísticas, vemos que a realidade é outra. Existem grandes problemas, é preciso reciclar o professor. Existe uma lei que introduz nas escolas a história do negro e do índio, que ainda não saiu do papel. Tem algumas manifestações, pouquíssimas. Nós vemos a grande influência que esses povos têm na nossa cultura. A nossa música preferida é o samba, o nosso prato de comida é o feijão. Temos que resgatar essa coisa forte do índio, do negro dentro da nossa escola e mudar essa realidade. Para um escritor ficar conhecido com a voz de lá ele tem que sair para o Sudeste? Tem que sair. Tem que pegar o Ita, que é o antigo navio de lá. Rui, uma pergunta que não pode faltar: Como é fazer produção cultural no Pará? Conta um pouco do seu cotidiano, como é ser um agitador cultural no Pará, o que vocês fazem? 192
É amor. Nada mais. É amar aquilo que você faz. Para fazer produção cultural, você tem que amar e acreditar que você pode contribuir com a sociedade, com o bem-estar do seu povo. É o tipo da coisa que você vai fazer e que não vai te dar um retorno financeiro, mas te faz bem. Para fazer produção cultural no Pará, você tem que gostar, tem que chegar e arregaçar as mangas. Temos um projeto que considero lindo, o Canoa de Sonhos. Nós verificamos que em volta de Belém há um grande número de ilhas que pertencem a Belém: Caratateua, Cumbu, Periquitaquara, Caruaru, a própria ilha de Mosqueiro, que são locais geograficamente excluídos. Então, juntamos um grupo de pessoas, com contadores de histórias, pessoal de fantoches, artes cênicas, músicos, poetas, que passam o dia naquela comunidade, produzindo. E a única coisa que cobramos dessas comunidades, dessas unidades pedagógicas por onde passamos com a Canoa de Sonho, é que mostrem o que a comunidade faz. Qual o tipo de dança praticada lá? Qual o artesanato? E aí a gente vai aprendendo outros ritmos, outros sons. Por que todo Rui tem um rio? Hã? Ah… Porque todo Rui tem um rio? “O rio é o Rui que ri / O Rui é o rio que chora / o rio transborda no Rui / o Rui em rio verso e prosa”. O rio é tudo isso aí, é essa intensidade. A gente não pode pensar pequeno lá, porque lá tudo é grande. As distâncias são imensas, nossos rios são imensos. Eu olhei aqui o Tietê e disse “ei, para com isso!” (risos) Eu comprei agora uma terrinha na ilha das Onças, onde o rio é imenso, dá três Tietês. Às vezes eu digo que tenho a alma verde e o sangue de rio corre nas minhas veias. E isso eu jogo na poesia. Essa influência é muito grande e nos leva a todos esses personagens. “Esse rio é minha rua”, o grande verso do Rui Barata, influencia muito o nosso dia-a-dia.
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Aroldo Pedrosa Compositor, escritor e editor da Revista Vanguarda Cultural.
Aroldo, como se deu seu primeiro envolvimento com a cultura? Deu-se em menino. Sou amapaense nato, nasci no meio da floresta, mas sou filho de nordestino. Meu pai era paraibano e minha mãe, cearense de Juazeiro do Norte. Fui o primeiro filho dele nascido no Amapá. Em Macapá, trabalhei aos doze anos numa loja de discos chamada TopTape. Foi lá que tive meu primeiro contato com o Tropicalismo. Lembro dos discos da Tropicália, lembro do Transa do Caetano (que na época estava voltando do exílio). Aqueles discos foram uma revolução para mim. A partir daquele momento, aquelas canções passaram a me embalar. É da influência da Tropicália que vem o título do seu poema “Uma odisseia nos trópicos”? Sim. Escolhi esse nome porque se trata de uma verdadeira viagem. Para mim, é a coisa mais bonita que já escrevi. Considero o meu Estatuto do Homem. Macapá é uma cidade por onde passa a linha do Equador, e há um verso de “Um índio”, do Caetano, em que se diz que um índio descerá num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Há uma grande coincidência entre essa letra e um poema que escrevi há muito tempo: “Pedrosa, Pedra mais rosa pedra é flor tropical, flor do bem, pedra do mal. Nasci no ponto equidistante, 195
ponto entre o trópico de capricórnio e o trópico de câncer.” Escrevi isso numa sala de aula em Belém, em 1978, pouco antes do disco Bicho, do Caetano. A professora nos deu um tema: “Quem sou eu?”. É um poema chamado “Ciranda-cirandinha”, mesmo nome de um programa da Rede Globo que fazia minha cabeça na época, escrito por intelectuais vindos do Cinema Novo. Foi nesse momento que saí do interior e fui morar em Belém. Muito depois escrevi “Uma odisseia nos trópicos”, que é uma espécie de revezamento de “Cirandacirandinha”: “Nasci num ponto equidistante entre o trópico de Capricórnio e o trópico de Câncer – Macapá/Amapá –, sob um sol de quase quarenta graus... Modéstia à parte! Pelas sábias mãos da divindade, fui moldado com engenho e arte. Porém, pra ser na vida ‘gauche’ como Carlos Drummond de Andrade. Há muito céu, há muito inferno à flor da Terra... Baby, eu quero é viver em paz com a minha guerra!”. Sinto essa influência tropicalista em muito do meu trabalho. É a minha verdadeira escola. O Vanguarda Cultural foi seu primeiro jornal ou chegou a fazer algo antes? Meu pai era garimpeiro e, do Amapá, levou-nos ao oeste do Pará. Fixamo-nos em Itaituba, que era um lugar violentíssimo, a cidade-centro dos garimpos. Nós achávamos isso incrível. Líamos Hamlet para os garimpeiros à luz da lamparina. Mas foi em Itaituba que comecei a me movimentar na música. Ainda estudante, lancei com meu irmão um jornalzinho chamado A Rosa. Como era um jornal questionador, fomos expulsos do colégio logo em seguida. Era uma escola de irmãs, extremamente careta. Nosso primeiro trabalho foi esse jornal. Fizemos também alguns eventos em Itaituba, os quais chamamos Baile da Romaria e Baile da Tropicália. Aconteceram durante cinco anos. O Baile da Romaria recebeu esse nome porque levei o Renato Teixeira de São Paulo para Itaituba. Estes bailes eram encontros? Sim. Bailes funcionam melhor em cidades pequenas, provincianas. Nos intervalos do baile havia o show propriamente dito. O da Romaria acontecia no dia da Nossa Senhora de Santana, padroeira local. Já o Baile da Tropicália acontecia em 23 de setembro, por conta do equinócio do Amapá. É quando o Sol cruza a linha do Equador, o que gera toda uma mística muito bonita.
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O que é o Troféu Vanguarda? Na verdade, é uma revista. Começou como jornal, mas todo mundo chamava de revista. Eu trabalhei no governo anterior, de João Roberto Capiberibe. Era um governo de tendência socialista, com o qual me identifiquei muito. Capiberibe lutou ao lado da mulher contra a ditadura, quase morreu e teve de se exilar. Quando voltei para Macapá acabei trabalhando neste governo, que foi revolucionário para o lugar. Capiberibe é um homem muito consciente. Entendeu que a nova ordem mundial é o desenvolvimento sustentável e que essa é uma vocação dos povos da floresta. Trabalhei muito a seu lado. Inclusive, no final de seu governo, fui o Assessor de Comunicação escolhido para trabalhar a inauguração do Museu Sacaca, um museu a céu aberto. Jornalistas do mundo inteiro se interessaram pelo museu, o que deu repercussão internacional ao seu governo. Porém, com a mudança de governo – para um de ultradireita, diga-se de passagem – fiquei desempregado e tive de buscar outra solução. Foi então que criei a revista, em 2003. Conseguimos distribuir o primeiro número – que continha uma entrevista com Lô Borges, além de outras coisas – por completo. Você poderia falar um pouco mais sobre o panorama cultural do Amapá? O Amapá é um estado novo. Sua cultura é de raiz, remonta ao começo do mundo. Falo assim porque viajei por todos aqueles rios. São minhas ruas. Capiberibe conseguiu trazer isso à tona de maneira espetacular. As pessoas tinham vergonha de dizer, por exemplo, que o pai tinha uma amassadeira de açaí. Ele realizou um trabalho de construção de autoestima muito significativo. Um bom exemplo desse progresso se encontra na comunidade de Iratapurú, composta basicamente por coletores de produtos da floresta que viviam num regime de semiescravidão. Havia uma família poderosa do Pará que “comprava” as castanhas dos coletores do Iratapurú. Capiberibe conseguiu mexer nisso de tal forma que, hoje em dia, os coletores se transformaram em empresários da castanha. Fábricas foram instaladas na cidade, e a França entrou em parceria com o Amapá. Segundo pesquisas realizadas em Montpellier, o azeite extraído dessa castanha é mais poderoso que o azeite de oliva. O problema é que o governo que assumiu depois não deu continuidade a nada disso. Como o governo de Capiberibe se posicionava com relação à arte? 197
O Amapá é um estado com tradição sambista. Até Joãozinho Trinta se impressionou quando fez uma visita. Pois o Capiberibe construiu um sambódromo, e é incrível como o carnaval de lá se multiplicou. A presença do negro é muito forte lá. Setenta e seis por cento da população é negra. Temos o marabaixo e o batuque, que são ritmos tradicionais. E há a festa do Mazagão, que foi uma cidade transferida da África para o Amapá. Não saberia precisar a data, mas na época da guerra dos mouros com os cristãos na África, os portugueses estavam perdendo terreno e resolveram transferir uma cidade inteira para o Amapá. Famílias inteiras da África vieram para cá e se instalaram, trazendo consigo todos esses ritmos. O Capiberibe, que tem uma visão vanguardista e extremamente respeitosa da sabedoria popular, procurou enfatizar essas manifestações que acabaram se tornando tipicamente amapaenses. Existe uma identidade comum aos povos da floresta da região Norte? Sim, existe. Todas as nossas culturas se misturam um pouco por conta da Amazônia, o que acaba gerando uma identidade comum. O marabaixo, por exemplo, se parece com o carimbó, do Pará. O batuque do Amapá semelha o tambor de crioula do Maranhão. São coisas que vieram de Angola, do Congo, povos que foram se espalhando por ali. Já constataram a existência de quilombos no Amapá. Como surgiu o projeto Navegar Amazônia? O projeto Navegar Amazônia nasceu no governo Capiberibe, que foi quem o concebeu. O projeto era um barco. Nesse barco, havia um laboratório multimídia bolado por Beto Lacerda, que era natural de lá e já tinha grande conhecimento da informática. Este barco-laboratório tinha dez computadores. Nós levávamos essa tecnologia para os lugares mais distantes de Macapá. Nossa meta primordial era a troca. Queríamos trocar com as pessoas dos lugares que visitávamos. Chegávamos e abríamos o barco para a comunidade. As pessoas achavam que era uma espaçonave de outro planeta. Ficavam impressionadas. Por nosso turno, procurávamos ver as manifestações culturais dos lugares, e sempre nos impressionávamos também. Vimos coisas incríveis. Em Abaetetuba, por exemplo, chegamos – com alguma dificuldade, porque o rio era estreito – a uma comunidade quilombola de nome Tauerá-açu. Vimos ali uma apresentação de boi-bumbá única. Todas as pessoas se fantasiavam com palhas de palmeiras. Identificamos Tauerá-açu como ponto de cultura. 198
Aliás, essa era uma função fantástica do Navegar Amazônia: identificar essas comunidades como pontos de cultura. Esse intercâmbio é o grande caminho para uma política cultural dessa região. Mas, infelizmente, nunca mais houve nada do Navegar Amazônia no Amapá. Achei um certo desrespeito, porque o projeto nasceu lá. Conte-nos como é o cotidiano no Navegar Amazônia. É atravessar rios agitados. Estar no meio da floresta, ouvindo o canto dos pássaros. É ver as coisas mais incríveis desde a origem do mundo. Nosso barco era grande, mas mesmo assim era muito agitado. Jorge e Márcia Bodansky, o Jorge Mautner, as pessoas que levamos para esse projeto, sentiam muito isso. Mautner é mais caboclo do que muita gente de lá. Ele é guerreiro e guerrilheiro. Ele conta que o pai dele, quando pequeno, andou pela Amazônia e teve essa identificação. Outras pessoas ficavam muito assustadas e achavam as viagens perigosas. Eu estava bem acostumado, mas não deixava de ser uma aventura, das grandes. E o encontro com as figuras dessas comunidades é sempre impressionante. Nós chegávamos num barco, um trapichezinho, e as pessoas todas iam para a beira do cais. Jorge Bodansky realizou um documentário em que ele convida duas nativas de uma localidade a apresentar sua comunidade. Ele entregou a câmera a elas, explicando como funcionava, e nossa equipe fazia a cobertura. Elas tinham a liberdade de falar sobre qualquer coisa, inclusive apresentar denúncias quanto ao desmatamento. Para o mundo ficar a par desse tipo de problema, só com um projeto desse quilate. O governo construiu uma escola de ensino ambiental no Arquipélago de Bailique, que é o lugar onde o Amazonas se encontra com o mar, engendrando o fenômeno da pororoca. Geralmente, as pessoas saem da área rural e vão para as cidades – a construção dessa escola ocasionou o movimento contrário. A escola – que foi construída pelos próprios moradores da região – deu condições para que as pessoas voltassem. Você poderia falar um pouco mais sobre a chegada do barco às cidades? A chegada é o contato com as pessoas, a apresentação do lugar e a troca de que já falei. O grande barato do projeto Navegar Amazônia era a troca. Depois de sermos apresentados ao lugar, era nossa vez de convidar a comunidade a conhecer o barco. Ganhamos uma antena, inclusive, e tudo isso podia ser acompanhado pelo mundo inteiro. Cheguei a criar um quadro no site do 199
Navegar Amazônia que eu chamava de diário de bordo. Eu dizia que era o Pero Vaz de Caminha do Navegar Amazônia. Artistas continuam indo para lá ou o isolamento aumentou novamente? Há alguma estrutura que permita que shows e filmes alcancem aquela região? Ainda há, de certa forma. Mas no governo de Capiberibe tais iniciativas eram muito mais constantes. Naná Vasconcelos, por exemplo, foi para lá e se impressionou com a percussão de caixas de marabaixo e tambores de batuque. Ele foi para ministrar uma oficina e acabou aprendendo muito também. Marlui Miranda coordenou um projeto muito interessante com Capiberibe, chamado Ponte entre Povos. Neste projeto, há uma convergência entre música indígena e música de câmara, contando com arranjos de Ruriá Duprat, sobrinho de Rogério. Ele apareceu na TV regendo a orquestra do Sesc Pompéia deitado numa rede. Foi espetacular. Voce conseguiu patrocínio para a revista Vanguarda Cultural? Sim, consegui algum patrocínio, mas é sempre difícil. Do dia primeiro de maio de 2003 até hoje, publiquei apenas treze edições. Mesmo sendo pouco, já é uma vitória para a produção cultural no Brasil. Aos que me criticam ou cobram, cito o exemplo da revista Pif-Paf, do Millôr, que só teve oito edições. Faço as revistas com doações e o dinheiro dos shows que produzo. Tornei-me cantor para viabilizá-la. Faço alguns eventos – como o Tropicália na Linha do Equador – onde coloco canções minhas ao lado das grandes canções da Tropicália. Minha mulher, que é atriz, recita Torquato Neto. A última apresentação de nossos shows foi espetacular. E teve um efeito inesperado, também. As provas do vestibular da universidade estadual trouxeram questões sobre o tropicalismo e as pessoas vieram me agradecer pela iniciativa de realizar um show. Você faz um automecenato, então? Não sei se é o caso. A revista é vendida nos shows. Fica na mesa, mas as pessoas sabem que têm de dar uma colaboração. E dentro da revista, conto com anúncios de alguns mecenas de lá. Ademais, quem faz a Vanguarda são artistas. São escritores, poetas, cineastas e artistas que contribuem voluntariamente. Não tenho como pagar esse pessoal, mas quando fazem algum trabalho, eu divulgo. 200
Por motivos de mercado, o tecnobrega conseguiu tornar-se uma grande força no Sudeste. Todavia, o mesmo não se aplica ao marabaixo. Como qualificar esses produtos culturais? Como mostrar que o marabaixo não precisa ser apenas tradição e pode incorporar outras linguagens? As grandes mídias do Brasil se prendem ao produto fácil. O que não quer dizer que lá não existam compositores muito bons – preocupados, inclusive, em estilizar o marabaixo e dar-lhe um diferencial com relação à música totalmente tradicional. Algo que Chico Science fez, sem falar do próprio pessoal da Tropicália. Há lá um grupo chamado Senzalas, que tem um trabalho sofisticado nesse sentido. Chegaram a se apresentar na Alemanha. Recentemente, Zeca Baleiro gravou um poeta que mora no Amapá, uma figura fantástica chamada Joãozinho Gomes. A questão é que são trabalhos mais aprimorados, sem muito apelo popular. Esbarra-se no caráter vendável da obra. E a poesia no Amapá? A poesia no Amapá existe há tempos, mas só começa a pulsar de verdade agora. Nós temos alguns poetas, mas não só a poesia escrita. A poesia do Amapá está muito nas canções. Não somos músicos, mas acabamos encontrando músicos que conseguiram ver melodia em nossas letras. Tenho uma canção que ganhou festivais aqui em São Paulo, em Minas Gerais e Goiás. Chama-se “Valsa de ciranda”, e é uma letra que fiz para minha filha, que está morando em Londres agora. O que é fazer produção cultural na Amazônia? É apaixonante. A cultura está em toda parte. Quando o Gil esteve lá, perguntei a ele sobre o isolamento da Amazônia. Afinal, todos os grandes acontecimentos culturais concentraram-se no eixo Rio-São Paulo, e não tivemos um movimento cultural com a nossa cara. A isso se alia a paixão do amazonense pelo chão. Somos todos índios, não sobrevivemos fora de nosso lugar. Então, perguntei para Gil o que o governo Lula, com sua política de mudanças, tinha para quebrar nosso isolamento. Como ministro, ele foi buscar exemplos conhecidos. Thiago de Mello, no Amazonas; João Donato, no Acre; mais uma porção de grandes artistas no Pará. Mas nada disso aconteceu para identificar a cultura da Amazônia. Temos uma grande barreira. Somos, por vocação, povos da floresta. É difícil sair dali. Então, para trabalhar com a cultura desses lugares, um projeto como o dos Pontos de Cultura é fundamental. 201
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Moraes Moreira Músico e compositor.
Moraes, a guitarra é baiana? Essa é uma discussão interessante. Dodô e Osmar começaram a construir essa história em 1942, porque queriam que seu instrumento fosse mais valorizado. Eles viram um show de um músico chamado Benedito, que vinha do Rio de Janeiro tocar na Bahia, e trazia um violão elétrico que tinha um som maravilhoso, mas o Dodô – que era expert em eletrônica – descobriu que toda vez que se aumentava o volume do violão, criava-se uma microfonia, fenômeno que ele achava desagradável. Então, em 1942 – sem notícia alguma dos Estados Unidos – ele esticou uma corda na bancada de sua oficina, criou um captador e descobriu aquele som seco, maciço. As pessoas dizem: “Naquele tempo já tinha isso ou aquilo na América.” Se teve, foi coincidência. Considero Dodô e Osmar protagonistas nessa história, tanto que fiz a música: “Dodô, Dodô antes do gringo, a guitarra ele inventou / Osmar, Osmar o carnaval veio trieletrizar”. Eles não criaram apenas um instrumento, e sim uma linguagem. Começaram a construir seus instrumentos – o primeiro foi o pau elétrico – e a trieletrizar peças de compositores clássicos como Paganini, Bach, Beethoven. Criaram os instrumentos, a história do caminhão como suporte para o trio e a linguagem musical, ou seja, considerando tudo que vi, tudo que pesquisei por aí, não acho nenhum absurdo dizer que a guitarra é baiana ou pelo menos incluir Dodô e Osmar entre os pioneiros. 203
Conte um pouco sobre a história do carnaval baiano. Antigamente, o carnaval baiano era um evento a que as pessoas assistiam de suas cadeirinhas, ali na avenida Sete. Havia os desfiles promovidos pelos grandes clubes e sociedades, os chamados corsos. Lá por 1950, Dodô e Osmar – que já tinham seus instrumentos e tocavam na Cidade Baixa – foram até a Cidade Alta tocar. Quando eles chegaram, os cavalos dos desfiles começaram a pular, foi uma loucura. Era um espaço da sociedade baiana, e eles provocando tumulto. Isso foi o primeiro sinal. Logo depois, o navio que levava a famosíssima Orquestra Vassourinhas do Recife ao Rio de Janeiro fez uma escala em Salvador. Com a insistência do então governador Otávio Mangabeira, a orquestra fez uma apresentação de cima de um caminhão e o povo enlouqueceu. O carnaval, que era sentado, começou a ir atrás dos músicos, a movimentar-se. Dodô e Osmar viram aquilo e falaram: “Poxa, nós estamos certos. É isso aí. Nós vamos agora tocar o frevo pernambucano, no jeito trieletrizado, e o povo vai para a rua atrás da gente.” Não deu outra. No ano seguinte, eles fizeram o trio. Eram dois caras muito criativos e inteligentes, inventores por natureza. Quando entrei no trio, eles não tocavam na Bahia há dez anos, por motivos familiares. Outros músicos – Orlando do Trio Tapajós, Trio Saborosa – ficaram ali dando continuidade à história do trio elétrico, mas quem tinha o knowhow todo eram Dodô e Osmar. Em 1974, eles voltaram. É a época em que o Caetano Veloso e o Gilberto Gil estão voltando do exílio. Todo mundo sobe no trio com a volta de Dodô e Osmar. É aí que o carnaval da Bahia começa a ter uma projeção nacional. A partir de 1975, já começamos a gravar discos e colocar a obra musical – que é muito importante – dos trios nos discos. Eu entro na história nesse momento. Dali em diante, começo a virar o cantor do trio. O grande problema, no entanto, era justo colocar a voz, já que a música do trio era totalmente feita para ser instrumental. Isso demorou anos, mas, pouco a pouco, conseguimos. Desde então, surgiu toda uma geração de cantores formados na escola de Dodô e Osmar. Como foi a evolução da plataforma do caminhão do trio elétrico? Começou com aquele Ford pequeno, a Fobiquinha. Depois foi crescendo, passou para camionete, depois para caminhão. E foi se criando, na Bahia, toda uma indústria do trio elétrico. O Orlando, do Trio Tapajós, dizia que não há nada 204
que se compre na loja que sirva para o trio elétrico. Tudo precisa ser adaptado. Para você entender o grau de inventividade deles, o Osmar – que era fera em mecânica – chegou a criar uma espécie de elevador, em 1975, para as comemorações do Jubileu de Prata do nascimento do trio elétrico. Fizeram o cálculo estrutural direitinho, e, no auge das celebrações, Dodô e Osmar desceram naquele balde quase até o chão. Depois, foram levados pelo povo até o palanque oficial, onde já estavam o governador e o prefeito. São estruturas criadas por eles, que foram aumentando, aumentando, até os caminhões virarem jamantas. Hoje em dia, cada trio elétrico tem até camarim com ar-condicionado. Funcionam com dois geradores, é energia o suficiente para iluminar uma grande cidade. A tecnologia foi muito a favor do trio. Na minha época, foi um sofrimento colocar voz no trio elétrico. Não existiam os fones de ouvido nem nada. Hoje em dia, quem está lá em cima tem todas as condições. Existe nostalgia por um trio elétrico mais simples? Como você encara essa tecnologia? Acho que é legal. Às vezes, dá vontade de voltar um pouquinho, fazer um triozinho menor, porque tudo ficou tão grande... Às vezes, bate saudade de um trio mais inocente, mas não tem volta. Se você chegar com seu triozinho perto demais de outro, ninguém vai ouvir o que você está fazendo. Lá na Bahia acontece o seguinte: todo mundo é amigo, mas quando chega o carnaval, aparece a competição. Um trio vai tentar apagar o outro se estiver no caminho, entendeu? “Vamos matar esse trio aí. Aumenta o volume da lateral.” A competição é na base do volume do som? É, é na porrada, como chamamos. No trio elétrico, você tem como aumentar o fundo, a lateral e a frente. Se o outro trio estiver o alcançando por trás, você aumenta o fundo e mata no som. É um negócio interessante. O trio elétrico é um instrumento poderosíssimo. Hoje em dia serve para parada gay, comício, casamentos, eventos religiosos. O trio virou algo com 1001 utilidades. Há um momento, no fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980, em que os trios estão no auge, mas também tem a volta dos afoxés ao carnaval baiano... É, principalmente o afoxé Filhos de Gandhi, que estava caído, abandonado, e que Gil ajuda a recuperar. Os Filhos de Gandhi voltam com força. O 205
movimento negro começa a se intensificar na Bahia. A música negra, a dança, o cabelo. A Bahia começa a assumir sua verdadeira identidade. A minha grande alegria era ir para os blocos, ver as danças, a música, a bateria, os ritmos. Eu queria muito incorporar na minha música esses elementos afros, mestiços. Isso começou a ganhar força. Os próprios artistas do axé começaram a adaptar isso comercialmente e fizeram sucesso. Veio o Olodum, o Ilê Aiyê, que são verdadeiras entidades do carnaval da Bahia e que sempre tiveram um trabalho com a comunidade. Aí apareceu o samba-reggae, que foi uma novidade realmente impressionante. Esse sucesso dos blocos afros foi meio que roubado pelo axé, que sistematizava tudo que se passava ali no bruto e transformava em sucesso comercial. E o Armandinho, nessa história, onde é que está? Armandinho é um fenômeno. Costumo dizer que Osmar fez tudo: criou o trio elétrico, o instrumento e ainda fez Armandinho para se tornar o gênio do instrumento. Desde os 12 anos, ele já tinha potencial de virtuose. Um dia Osmar virou para ele e disse: “Vou lhe apresentar uma música.” Era o “Moto perpétuo”, de Paganini, e em três meses Armandinho já estava tocando, de ouvido. Ele foi ao programa Grande Chance, da extinta TV Tupi, e espantou todo mundo. Aquele talento todo, aliado ao conhecimento do pai, que sabia muito de música tanto erudita como popular, tornou Armandinho o grande astro da guitarra baiana. Aliás, naquela época não se chamava guitarra baiana, era cavaquinho elétrico. Depois a gente pôs o nome de guitarra baiana. Tinha guitarra americana, guitarra havaiana, por que não uma guitarra baiana? O Armandinho fez uma música chamada “Guitarra baiana”, aludindo ao jeito baiano de tocar. Enfim, nosso grande desafio era colocar no caminhão uma mistura de blocos. A música negra dos blocos com a música branca do trio. Trabalhei muito nisso. Consegui através de uma música, com parceria do Antônio Risério, que já colocava esses elementos todos na sua letra. Consegui fazer uma batida que sintetizava esse encontro. A gente começou a trabalhar a música do trio, que era baseada no frevo, misturando com os afoxés, com as batucadas. Que música era essa? “Assim pintou Moçambique”. Essa foi a música-emblema. Caetano e Gil chegaram a comentar que eu tinha conseguido fazer algo com que eles sempre 206
sonharam. A partir daí, começou essa coisa de misturar o afoxé com o frevo, mas nós, da escola de Dodô e Osmar, sempre corremos paralelamente, porque nossos discos fizeram muito sucesso até 1983, 1984, quando o axé estoura de tal maneira que abafa todo o resto. O que mais o marcou durante esses anos de carnaval de Salvador? Uma coisa marcante no carnaval da Bahia era a praça Castro Alves. Era a síntese do carnaval baiano. Tudo acontecia ali, no famoso encontro dos trios. Na praça Castro Alves se desenrolava o carnaval mais democrático da Bahia, porque ali cabia tudo: o povão, os intelectuais, os músicos, os cineastas. Tinha o desfile dos travestis, na calçada alta, ali do lado. Era um carnaval super democrático. Todo mundo concentrava ali, os trios iam descendo da praça da Sé, e isso durava horas. Foi Osmar, com sua sabedoria, quem resolveu sistematizar a coisa: cada trio toca uma música, e vai fazendo um rodízio. O folião podia passar nove, dez horas ali vendo trios variados. Às vezes, acabava ao meio-dia da Quarta-feira de Cinzas. E só acabava quando Osmar tocava o Hino do Senhor do Bonfim. Enquanto durava, era fantástico. Subia Caetano, Gil, todo mundo, no trio, os cantores que chegavam à Bahia para assistir ao carnaval. A praça Castro Alves, hoje, está meio que morta. O axé levou o carnaval para o circuito da praia e esvaziou o carnaval do povo. Aí que começa essa história dos abadás e das cordas, essa coisa de construírem condomínio em via pública, como gosto de dizer. Quando eles chegaram, chegaram para arrasar. Tomaram conta da rua, do rádio, tomaram conta de tudo. Queriam, inclusive, fazer os seus blocos só com as garotinhas brancas, bonitinhas. Chegou a acontecer uma CPI, por conta dessa coisa do preconceito. Chegava lá uma moça que não fosse tão bonitinha e branca, não entrava nos blocos. Os blocos foram aumentando, e o carnaval popular, o carnaval dos trios independentes, foi morrendo. Havia um lado bom: os grandes blocos traziam uma estrutura profissional, traziam estúdio, trabalho para os músicos, mas o carnaval da Bahia não podia virar só aquilo. Quanto aos organizadores do carnaval, o raciocínio era mais ou menos este: “Bom, não precisamos mais nos preocupar com trio independente – os blocos chegam aí, fazem o carnaval, e está tudo certo. Os hotéis estão cheios, a indústria de turismo está sendo beneficiada.” Só que a gente foi sendo jogado para escanteio; não tinha mais espaço no rádio, não tinha mais espaço em lugar nenhum. 207
Os trios elétricos independentes funcionavam na base do voluntarismo ou havia alguma remuneração envolvida? No começo era voluntarismo. A gente chegava lá, Osmar dava aquele dinheirinho simbólico. Eu achava maravilhoso. Para mim, aquilo era uma festa. Agora, não. Entraram os patrocinadores... O trio elétrico é um instrumento muito propício à propaganda. Aí a indústria do trio elétrico foi crescendo. O trio elétrico de Dodô e Osmar era quase sempre apoiado pelo governo, pela prefeitura, mas, com a chegada desses trios grandes, os trios independentes ficaram pequenos, não tinha como concorrer. Realmente, foi uma fase muito difícil. Moraes, como se dava essa relação entre os músicos e os políticos? Foi uma época cruel, porque a política cultural se assemelhava aos velhos métodos da política normal, do toma lá, dá cá. Era aquela coisa: “Toca aqui, no meu comício, que eu boto você no São João, que eu boto você no carnaval.” Quando o axé virou sucesso nacional, quando as gravadoras perceberam que aqueles cantores seriam a salvação, é claro que os políticos acompanharam o raciocínio. Aqueles novos ídolos eram os verdadeiros cabos eleitorais. Daí ficou chato, tinha hora em que o carnaval parecia um grande comício. Principalmente em Campo Grande, onde ficavam os políticos, a coisa era certa: cada trio levava 15 minutos só de discurso, rasgando seda para gente como o Antônio Carlos Magalhães. O carnaval estava dominado. O axé foi tomando conta de tudo. Essa oligarquia baiana deu muito poder aos blocos. Alguns chegavam ao extremo de chamar a polícia para tirar os Filhos de Gandhi do caminho. A polícia era muito violenta? Muito. Um dos argumentos que o pessoal do axé usava para conquistar as famílias era a segurança. Dentro da corda, suas filhas estariam fora de perigo, estaria tudo certo. Outra invenção deles foi a figura dos cordeiros, que são os pretos que ficam dando porrada nos pretos pobres que estão do outro lado, “protegendo” o carnaval, evitando confusões. É uma distorção social atrás da outra. E tudo isso respaldado pela oligarquia, que estava lá pontualmente, todo carnaval, esperando seus discursos, suas homenagens. Critiquei isso muito na época, cheguei a me afastar do carnaval da Bahia por conta disso. E agora, por conta da minha volta – estive no carnaval da Bahia em 2010 –, fiz um exame de consciência e agradeci a Deus por nunca ter entrado nessa de ficar rasgando seda para político. 208
Você ficou ausente por uma década, entre 2000 e 2010, certo? Sim. Em 2000, houve a festa dos cinquenta anos da criação do trio elétrico, sem dúvida a coisa mais importante que já aconteceu no carnaval da Bahia. Mas aí, ao mesmo tempo, inventaram os 15 anos do axé. Eram cinquenta anos de carnaval, 15 de axé e quinhentos do Brasil. E sua volta em 2010? Foi maravilhosa. Lembro de encontrar com João Ubaldo Ribeiro aqui em São Paulo e comentar que estava voltando ao carnaval da Bahia. Ele respondeu, com aquela voz grave: “Vai voltar nos braços do povo.” Foi o que aconteceu. Minhas músicas, as músicas que fiz com meus parceiros – Risério, Patinhas, Armandinho, Fausto Nilo, Abel Silva –, ficaram. Toda essa dominação do axé não conseguiu destruir “Pombo-correio”, não conseguiu destruir “Chão da praça”. Essas músicas ficaram no inconsciente do povo. Quando cheguei ao Farol da Barra, onde pus meu trio, uma multidão começou a se formar em torno. Depois, quando segui, os foliões-pipoca começaram a ir junto. “Pipoca” é como se chama aquele folião que é povo mesmo, que não tem abadá, não tem corda, não tem nada. Começou a formar aquela multidão atrás do trio, e eu gritava assim: “Quem disse que o folião-pipoca acabou? Está aqui, ó! É só a Bahia deixar.” Durante os três dias que passei lá, só dava pipoca, tanto no circuito da praia quanto no circuito Campo Grande. As pessoas se emocionaram, sabe? Como se estivessem recuperando parte da história do carnaval baiano. Moraes, um fenômeno incrível aconteceu no Rio de Janeiro nos últimos dez ou 15 anos, que foi a suplantação do carnaval de avenida (o carnaval tradicional, de escolas de samba) pelo carnaval de rua.Você acha possível uma mudança semelhante ocorrer na Bahia agora? Sinto que há vontade, por parte do povo, de reaver esse carnaval que era deles e foi tomado, mas na Bahia o esquema é muito bem estruturado. A verdade é que o pessoal do axé chegou com muita competência, e nós, artistas românticos, ficamos de fora, reclamando. Eles são empresários, organizaram a coisa de maneira tal que, hoje em dia, acho difícil mudar. O que podemos fazer é ir crescendo de ano a ano, até equilibrar um pouco esse jogo. Mas virá-lo de todo... Vai levar um tempo. Deram linha demais àquela pipa. 209
E como você vê a indústria da micareta? Isso é culpa do carnaval da Bahia. A indústria do axé foi tão bem organizada que começou a criar esses “carnavais fora de época”. Eles pegam a coisa da Bahia e põem em outras cidades. Tem Carnatal, tem Fortal, tem Micarecandanga, mas tenho a impressão de que isso está começando a cair. Quanto maior o monopólio, maior o desgaste. As pessoas não aguentam muito tempo, cansam. E quanto às rádios e às emissoras de TV? As rádios continuam sitiadas pelo jabá. Na Bahia, há grupos que acertam pacote para o ano inteiro. Basta mandar que tocam. Há pouco, fiz duas músicas para o carnaval da Bahia, mas não tive ilusão de tocar na rádio. Preferi trabalhar com internet, distribuir os discos pelas barraquinhas. Foi um trabalho de guerrilha, sem a mínima ilusão de que chegaria à rádio. O espaço já está comprado, e o povo não vai ligar pedindo porque nem sequer ouviu. É uma lavagem cerebral mesmo, como no caso do “Rebolation”. As rádios vão massificando, massificando, vira sucesso de verão, de carnaval, mas não é um fenômeno duradouro. Ano que vem, ninguém mais fala nisso. O grande lance das minhas músicas é essa capacidade de resistir. Não são descartáveis. Eu sempre quis fazer músicas que fossem tão duradouras quanto “Mamãe, eu quero”. Ficaram para todos os carnavais as músicas de Braguinha, de Lamartine Babo. É essa a música que sempre me interessou. A praça Castro Alves pode ser revitalizada com esse outro tipo de carnaval? Pode, mas não vai voltar a ser o que era. Não tenho essa nostalgia pelas coisas exatamente como costumavam ser. O que não pode acontecer, no entanto, é a praça Castro Alves perder seu sentido histórico e cultural, afinal, quantas músicas foram feitas para a praça Castro Alves por Caetano, por mim, por tanta gente? Há todo um cancioneiro da praça Castro Alves. É um espaço histórico do carnaval da Bahia que tem de ser revitalizado de alguma maneira. Como você encara a questão do fomento dos trios? Qual a sua opinião sobre o dispêndio de dinheiro público nesse caso específico? Preferia que não tivesse dinheiro público nisso, mas não tem jeito, a coisa do patrocínio ficou desleal. O patrocinador vai querer se aliar a quem está 210
acontecendo: Chiclete com Banana, Ivete Sangalo etc. Acho que deviam implementar algum esquema de contrapartida cultural. A empresa que patrocina o artista do momento tinha que patrocinar também dois blocos afros. Só assim conseguiríamos recapturar aquela diversidade do carnaval baiano. Chamo essa fase atual do carnaval baiano de quarto minguante: começou a virar só para um lado, e aí é covardia. Tinha que haver uma política cultural que também “obrigasse” os patrocinadores a ter uma visão cultural e histórica do carnaval da Bahia, não só comercial.
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Inezita Barroso Cantora e apresentadora de TV.
Inezita, como você se apresentaria a um público que não te conhece? Sou Inezita Barroso, nascida no bairro da Barra Funda, em São Paulo, num domingo de carnaval. Na porta da casa onde nasci passava um cordão chamado Camisa Verde. É com muita honra que digo que o primeiro som que ouvi foi musical. Gostei tanto que nem chorei. De lá para cá, a paixão pela música só aumentou. Fiz três cursos de piano, toquei harpa paraguaia. Aprendi vários instrumentos, mas a viola acabou ganhando um papel de destaque na minha vida. Meus tios tinham fazendas de café em vários lugares de São Paulo. Nas férias, os primos se juntavam (eram muitos) e tocávamos para a fazenda de um dos tios. Assim, fiquei conhecendo os estilos musicais de diversas regiões caipiras de São Paulo, todas bem diferentes entre si. Desenvolvi um amor pelo campo, pelo rural. Quando nasci – em 1925 – não havia muito entusiasmo pelo interior. As pessoas tinham o interior como algo esquecido, só lembravam na hora do cafezinho. Mas nós amávamos aquela vida. A fazenda era um mundo totalmente diferente de São Paulo, os animais, os cavalos. Estabelecemos uma ligação muito forte com esse tipo de vida. Muitos dos primos moravam na fazenda e só vinham para São Paulo na hora de estudar. Vinham esperneando, chorando, porque precisavam aprender uma profissão. Mas a paixão começa aí. E havia também minha avó paterna, 213
que tocava muito bem e era contralto, como eu. Inclusive, as parentas dela ficavam muito espantadas da semelhança entre nossas vozes. Você sofreu preconceito por seguir carreira artística? Nesse tempo, em São Paulo, artista era xingamento. Meu pai dizia que eu só podia cantar em festa de aniversário, quermesse e igreja. Subir num palco para cantar como profissional, nem pensar. Isso me dava muita mágoa, porque eu queria. O rádio estava na moda, era o tempo dos grandes cantores. Meu Deus, como eu tinha vontade de fazer rádio! Cheguei a participar de programa infantil quando era menina. Mas fui crescendo, e minha família achava que ser artista era feio depois de mocinha. Sua família é tradicional aqui em São Paulo, não? Sim. Não queriam artista na família. Todos aprenderam música, fizeram o que quiseram em matéria de arte, mas ninguém podia ser profissional. Pode parecer bobo hoje em dia, mas era muito sério naquele tempo. Lembro de uma cena dos meus seis anos de idade. Minha madrinha, irmã da minha mãe, morava com meu avô numa casa de um quarteirão na Conselheiro Botero, aqui em São Paulo. Eram dezoito filhos ao todo, e todos eles precisavam aprender algum instrumento. Essa tia-madrinha tinha aulas de violão à tarde. O violão era meio perseguido, porque era instrumento de vagabundo. Mas como ela estudava na pauta, passava. Naturalmente, eu achava aquele som uma maravilha. Enfim, as aulas se davam na sala de visitas, que era lugar sagrado, onde ficava o gramofone de corda e se recebiam as personalidades. Estava sempre trancado, mas tinha uns janelões que davam para o jardim. Então, quando era dia de aula, eu pulava a janela e me escondia atrás do sofá, para assistir. Minha tia não era muito aplicada, não dava bola para a prática. Quando saía o professor, ela largava o violão em cima do sofá e saía, trancando a porta. Então, eu pegava o violão, pequenininha que era, e tocava tudo que ela tinha aprendido. Um dia fui pular a janela de volta para o jardim e estava fechada. Comecei a gritar. Me pegaram lá dentro e foi um drama. “Meu Deus! Como essa menina fez isso? E está tocando!” Você disse que teve mais contato com a viola nas fazendas de seus tios. Como foi essa aproximação? Eu fugia com meus primos para ver os caipiras. Dizia que estava indo com o Geraldo – primo que tocava violão – ver a vaca nova que tinha chegado, 214
mas ia para a roda de viola. Eles nunca me deixavam tocar, porque eu era mulher. Era muito preconceito, mas eu insistia. De tanto observar, aprendi muita coisa. Era tudo transmissão oral, afinal, era uma verdadeira manifestação folclórica. Mas um dia, primo Geraldo amoleceu um deles. Botaram a viola na minha mão, e eu cantei o “Boi amarelinho” inteiro, com viola. É uma moda comprida, que conta a vida, paixão e morte do boi. “Eu sou aquele boizinho que nasceu no mês de maio, desde que pisei no mundo, foi só pra sofrer trabalho”. A caipirada sempre chora quando você canta, porque o boi acaba no matadouro. Essa foi a primeira canção que eu recolhi. Eu pegava um papelzinho e escrevia a letra. Eles ficaram maravilhados. Tinha um que estava visitando, de Piracicaba, e ficou surpreso de me ver tocar. Contei para ele que era de tanto ver todos tocarem. Daí o de Piracicaba falou que eu era boa o bastante para tocar até no coreto de Piracicaba! Aplaudiram, foi glorioso. Dali em diante, toda hora eu estava lá tocando viola. Você descobriu sua vocação artística, mas foi fazer Biblioteconomia na USP. Como se deu isso? Bom, eu gostava muito de ler livros brasileiros, livros que contassem histórias do Brasil. Eram livros difíceis de encontrar por aí. Então, eu aproveitava a hora de estágio – quando eu tinha que classificar os livros – e chegava um pouco antes para ler. O que você lia? Jorge Amado, Mário de Andrade. Devo ter lido Macunaína umas vinte vezes. Eu amava todos os autores brasileiros. Fazia a fichinha correndo, batia à máquina, punha no lugar e ia embora. O que despertava tanta admiração por Mário de Andrade? Ele foi um grande folclorista também, um grande crítico. Isso é outra historinha. Meus pais deixaram a Barra Funda bem cedo, mas uma tia nossa ficou, morando na Rua Lopes Choves. Mário de Andrade também morava nessa rua, três casas depois de minha tia. Comecei a ler os livros dele bem criança, muito antes de fazer o curso de Biblioteconomia, e admirava muito aquele homem. O modo como ele falava do Brasil, do caipira, era maravilhoso. Minha tia havia sido aluna dele no Colégio São João, e punha Mário no céu. Pois bem, essa tia tinha uma filha da minha idade, que 215
inventou de irmos patinar na porta da casa de Mário. Eu devia ter uns nove anos. Valente, concordei. Ficávamos lá patinando até ele chegar. Às cinco da tarde, ele dobrava a esquina. Altão, grandão, moreno. Eu perdia a fala. Admirava tanto aquele homem que não conseguia falar nada. Ele devia me achar uma chata, fazendo barulho na porta de sua casa. Mas você chegou a conhecê-lo? Não, nunca. Queria dar a mão a ele, desejar-lhe uma boa tarde, mas não tinha a audácia. Tempos depois, quando me casei, meu cunhado Maurício Barroso (ator do TBC) disse que ia realizar esse sonho de me apresentar ao Mário de Andrade. Nossa! Nem dormi naquela noite. Porém, no dia seguinte, Mário ficou doente, e dessa doença ele nunca se recuperaria. Foi uma frustração imensa para mim. Você poderia falar um pouco sobre seu marido? Meu marido era cearense e vinha de uma família muito musical. Certa feita, fizemos uma viagem longa pelo Nordeste, tanto por motivos familiares quanto para recolha de material. Quando conheci os parentes de meu marido, eles pediram pelo amor de Deus para que eu tocasse. Pensei que estivesse sonhando. Afinal, tinha ido meio ressabiada. Não conhecia o Ceará, não conhecia Pernambuco, estava acostumada com o ambiente preconceituoso de São Paulo. Mas toquei muito nesses lugares. Inclusive, quando fomos a Pernambuco, a esposa do então governador Agamenon Magalhães veio me pedir uma apresentação. Eu não tinha nem trazido violão – estava apenas recolhendo material. Além do mais, não era profissional. Mas ela insistiu, queria que eu fizesse um recital no Teatro Santa Isabel. O maior teatro de Pernambuco? Meu Deus! Quase caí desmaiada. Peguei um violão emprestado de alguém e dei o recital. Foi um sucesso. O que você cantou? Cantei umas coisas de Pernambuco, alguns maracatus, “Pregão da ostra”. Mas a maior parte do repertório era do sul. Cantei muita coisa de São Paulo, Rio Grande do Sul, enfim, peças que eles não conheciam. Eles ficaram maravilhados. Tive que dar três recitais, porque não cabia o povo. Foi em Recife que você se profissionalizou? 216
Sim. Pela primeira vez, ganhei dinheiro para tocar. Foi pelas mãos do grande Capiba, diretor da Rádio Clube, que era um pouco fora da cidade. Fiz uma temporadazinha lá. Depois, consegui visitar todo o interior de Pernambuco, de rádio em rádio. Era lindo. A coisa que mais chamava atenção era a presença de tantas mulheres trabalhando como técnicas nas rádios. Isso não acontecia em São Paulo, e eram todas competentíssimas. Enfim, fui a Garanhuns, Caruaru, Campina Grande. O material que trouxe de volta era de primeira. Aí voltei para São Paulo importante. Como eu já estava casada, ninguém chiou mais. O diretor da Rádio Nacional de São Paulo me convidou para cantar lá, e isso cimentou a profissionalização. Mas fiquei relativamente pouco tempo, porque queria mesmo era fazer cinema e televisão. Como você gravou seu primeiro disco? Alguém me convidou para gravar no Rio a Moda da pinga, então fui. A gravação foi no estúdio da RCA Victor, com os remanescentes do regional do Canhoto. Era Menezes, Bola Sete, Chiquinho do Acordeom. Só cobra. Daí o diretor musical perguntou o que tínhamos planejado para o segundo lado do disco. Eu nem sabia que iríamos gravar uma segunda música, achava que era só um teste. Ademais, estava acostumada com aqueles disquinhos de acetato, que só tinham um lado e riscavam por qualquer coisa. De qualquer modo, meu amigo Paulo Vanzolini havia me acompanhado e sugeriu que gravássemos uma canção que ele tinha acabado de compor, chamada Ronda. A letra ainda nem estava pronta. Tivemos que escrever ali, no joelho. Depois falou para o diretor musical que iríamos gravar um samba paulista chamado Ronda. Mas o diretor não gostou, disse que eu estava louca, não existia samba em São Paulo. Aí ficou feio. Mas o regional conseguiu amansar o diretor, e gravamos o disco, que fez muito sucesso. Como foi sua experiência no cinema? Quantos filmes você fez? Sete filmes. O primeiro foi com Ruth de Souza, chamava-se Ângela. O argumento era da mulher do Alberto Cavalcanti. A rodagem foi uma farra. A gente fazia umas noitadas nos estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo. Sempre tinha gente de fora: ingleses, alemães, aquele pessoal que era contratado na Europa para fazer cinema aqui. Por qual filme você ganhou o Prêmio Saci de melhor atriz, concedido pelo jornal O Estado de São Paulo? 217
Foi pelo papel de uma enfermeira bígama em Mulher de verdade, dirigido pelo Alberto Cavalcanti, que queria muito filmar comigo. Foi em 1954, salvo engano. Por conta de um desentendimento com a Vera Cruz, Cavalcanti fundou uma companhia chamada Kino Filmes, e me prometeu o primeiro filme. Esse período coincide com seu trabalho na televisão, não é? Exatamente. Eu estava completando um ano na Rádio Nacional, sob a direção de Costa Lima, quando soube que a Record estava para inaugurar uma emissora de televisão. Eu queria muito fazer televisão, mas tinha obrigações contratuais com a Nacional. Foi quando Eduardo Moreira, que era advogado mas metido com artes, me disse que bastava pagar uma multa na Nacional para sair. Paguei a multa e fui para a Record. Isso está até hoje na minha carteira de trabalho. O programa era dirigido pelo próprio Eduardo, que tinha muito gosto. Eram cinco músicas, e tínhamos grandes patrocinadores, como a Nescafé e a Air France. O programa era muito caprichado, e não era fácil como hoje, fazia-se no peito e na raça, ao vivo. Para cada canção, havia um cenário diferente, a cargo de Manoel Victor Filho. Geralmente era uma canção do norte, outra do sul, outra do oeste etc. O figurino também combinava com as canções. Enquanto eu cantava uma canção, Manoel desenhava o próximo cenário. E Marília, esposa do Moreira, me ajudava com a troca de figurinos de uma canção para outra. Tudo ao vivo, não podia errar. Nós penávamos, mas foi um tempo muito gostoso. Esse programa durou quase sete anos. Naquela época, cada cantora tinha o seu programa: Maysa, Ângela Maria, Isaura Garcia. Um grande time. O problema é que começaram com a moda do programa de auditório, lá no Rio de Janeiro. A televisão começou a querer imitar o rádio, e isso pegou de tal maneira que os programas de cantoras exclusivas perderam espaço. Um dia me danei, desisti da televisão. Como foi sair da TV Record e abraçar um gênero de música que ainda era visto com tanto preconceito? Ainda é visto, não lhe parece? Essas coisas me ocupam muito. Não entendo esse desgosto com a figura do caipira, com o interior. É nossa raiz, nossa vida, nossa terra. Mas brasileiro tem muito disso. Fica na janela olhando a terra dos outros enquanto a própria pega fogo. Enfim, esse foi o período em que tive que abraçar mesmo a viola. Foi difícil, mas abracei com muita alegria. Eu tinha um material muito bom, recolhido durante minhas viagens, mas 218
não despertava nenhum interesse. Certa feita, fiz uma viagem de jeep até o nordeste, só para recolher temas. Fiquei dois meses viajando pelo litoral (na época não existia a Rio-Bahia nem nada). Voltei com um material preciocíssimo, mais para o folclórico, porque o caipira eu já conhecia desde menina. Então, eu tentava oferecer aquele material, propunha um programa, ou um livro. Mas como era folclore, as pessoas torciam o nariz. Então guardei aquilo durante algum tempo, e um dia me enfezei. Acendi a churrasqueira e joguei todas as minhas notas lá dentro. Um livrão bem grosso, todo escrito a lápis, cheio de partituras feitas na hora. Toquei fogo em tudo. Você pôs fogo em toda a sua pesquisa folclórica? Sim. O que tenho hoje em dia está tudo aqui dentro, na cabeça. Se ninguém quer, vou ficar guardando por quê? A Record podia ter me dado uma mão. Como disse, cheguei a propor um programa. Queria experimentar algo exclusivamente folclórico, chamar um pessoal que dança catira, chamar tocadores do Nordeste. Mas não toparam de jeito nenhum. Como ficou sua carreira nesse período pós-Record? Foi amargo durante algum tempo. Mas outros ritmos vieram, a Jovem Guarda, o Iê-Iê-Iê. Roberto Carlos foi como uma estrela de ouro em minha vida, porque meu prédio estava cheio de crianças, e todas queriam aprender a tocar “O calhambeque”. Comecei a dar aula de violão para crianças. Ficava de oito da manhã até meia-noite, se fosse o caso, sentada num banquinho sem encosto. Cheguei a ter mais de sessenta alunos, todos menores de quinze anos. Virei professora de violão para ensinar Roberto Carlos. De qualquer outra maneira, teria afundado. Devo muito a ele. E depois disso, veio o programa Viola, minha viola, não é? Sim. São trinta anos na TV Cultura apresentando o Viola, minha viola. Vocês precisavam ver quantos violeiros tinham na festa de trinta anos. E faltaram muitos. Minha bisneta é alucinada pela viola, estuda feito louca. Meu sobrinho Marcelo também está estudando viola. Achei que nunca fosse ver uma coisa dessas na vida. Só espero durar o bastante para ver um pouco mais, porque é muito gostoso. Viola é um instrumento do povo, e dessa estrada não saio.
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Manoel Salustiano Diretor do Maracatu Piaba de Ouro.
O que é o maracatu? Maracatu é um segmento que se criou dentro das senzalas dos engenhos de cana de açúcar. Existem dois tipos: o baque solto e o baque virado. O maracatu de baque virado é de origem africana, quando os negros começam a sair em procissão e fazer louvor a Nossa Senhora do Rosário, e com o tempo se torna uma irreverência, uma brincadeira de carnaval, mas respeitando o lado religioso. O que predomina nesse maracatu são as alfaias, as baianas, a Corte Real e as coroações de reis de congos. No baque solto, o que predomina é o caboclo de lança. No início, nas senzalas dos engenhos, logo após a suposta libertação dos escravos, eles se juntavam para bater o mulungu, cantar, brincar ao redor de uma fogueira, que era usada para esticar o couro do mulungu até chegar numa afinação, e depois saíam em cortejo. Esse maracatu se define pela sua pancada solta, feita por uma orquestra de cinco instrumentos: bombinho, caixa, ganzá, gonguê e cuíca. No começo eram só três, o bombo, a caixa e o gonguê, e com tempo foram incluídos a cuíca e o ganzá. Nos anos 1960, cresce o movimento dos maracatus de baque solto, e para se adaptar ao concurso da Federação Carnavalesca, o rei, a rainha e a dama passam a ser incluídos no maracatu. Nessa época, a mulher passa a poder brincar também. Antes, até 1962, só brincavam homens. O maracatu 221
de baque solto é uma cultura indígena. Nós falamos “cultura afro-indígena”, mas é totalmente indígena. Os cultos são baseados no ritual da Jurema, que cultuam os caboclos da mata, enquanto o baque virado tem origem no ritual Nagô e cultua os orixás. O que é o cavalo-marinho? Cavalo-marinho é uma dança, um tipo de teatro de rua, que se faz nos terreiros. Ela tem oito horas de espetáculo, com 63 personagens, dividido em 63 partes. Começa às nove da noite e vai até seis horas da manhã, quando o sol vai raiando e o boi vai se levantando. É um espetáculo que não repete cena, e ao qual você não cansa de assistir, porque a todo momento tem versos, músicas e dança. É uma história muito interessante, que se passa num terreiro de engenho, tendo como personagens Mateo, Catirina, Bastião e outros. É mais ou menos isso. Conta um pouco da história do seu pai, que envolve a história do maracatu. Para começar a falar do meu pai, tenho que falar um pouco do meu avô. Ele era apaixonado por cavalo-marinho, como meu pai, participava da brincadeira, e queria aprender a tocar rabeca. Um dia, na casa de um amigo, ele viu uma rabeca faltando uma corda e propôs trocar por um cinturão. Como no interior ninguém tem tempo para ficar estudando música, ele ia tocando enquanto ia fazendo as coisas. Se tinha que buscar uma cabra, ele prendia o animal nele, por uma corda, e ia tocando. Foi assim que ele aprendeu. E não tocava só cavalo-marinho, tocava forró, valsa. Tudo ele aprendeu de ouvido. E aí então ensinou para o meu pai, que dominou a coisa de um jeito incrível. Ele sabia tocar, cantar e fazer as peças. Aprendeu a executar o cavalo-marinho do começo ao fim. O problema é que ele era cortador de cana, analfabeto, e como passava a noite acordado brincando de cavalo-marinho, sempre chegava atrasado no engenho, e acabava perdendo o emprego. Quando ele completou dezoito anos, pegou um saco, colocou as roupas dentro e disse que ia para Recife, para ser artista. Todo mundo riu da cara dele, mas ele foi. Em Recife, começou a vender picolé, fez um cavalo-marinho, um caboclinho, e depois, em 1977, fez um maracatu chamado Piaba de Ouro. Um tempo depois já estava sendo chamado de Mestre Salustiano. E ele começou a educar os filhos, cada um em uma área: um para ser líder, outro para ser dançarino, outro 222
para ser artesão, outro para ser músico. Ele passou para os filhos o que sabia, para que eles cuidassem do que ele estava fazendo. Em 1989, o maracatu de baque solto estava se acabando, e ele teve a ideia de criar uma associação de maracatu de baque solto. Os onze maracatus em atividade em Pernambuco tinham uma rivalidade fortíssima, brigavam uns com os outros, então ele juntou todos eles e acabou com as brigas. Depois ele começou a pensar em registrar esses maracatus, para que deixassem de ser pessoa física e passassem a ser pessoa jurídica. Em 1990, ele fez o primeiro encontro de maracatus, com os onze grupos e sem qualquer apoio. Ele vendeu uma caminhonete velha que tinha, pagou os grupos e fez o encontro. Era um camarada teimoso, acreditava naquilo que ninguém acreditava. Dois anos depois, o prefeito de Itaquitinga, na Zona da Mata norte de Pernambuco, propôs que o encontro fosse realizado lá. A partir disso, apareceram outros prefeitos interessados, entrou o governo estadual, o governo federal, e o evento passou a fazer parte do calendário do Carnaval de Pernambuco, como o Encontro Estadual de Maracatus de Baque Solto. Então, se em 1989 eram onze maracatus em atividade, hoje são 108 maracatus em Pernambuco, com doze mil pessoas brincando. O Mestre Salustiano não sabia o que estava fazendo, ele apenas agia com o amor que tinha à cultura. Qual o sentido de se registrar um CNPJ para os maracatus? Era uma questão de permanência? É que, com o passar do tempo, sentimos que a burocracia aumentou em relação à cultura. Antes o prefeito metia a mão no bolso e dava para o dono do maracatu. Agora, com a lei de responsabilidade fiscal, se você não tiver CNPJ não pode entrar nesse processo. E antes, o maracatu saía dos engenhos, dos sítios, e a população dava dinheiro. Ele não dependia de repartição pública. Nessa época a gente era feliz, porque a repartição pública tem um lado bom, mas tem um lado ruim também. O lado bom é que abre portas, e o ruim é que, antes, a gente fazia cultura sem precisar de dinheiro. Quando você começa a sentir necessidade de dinheiro, que foi o que aprendemos com a repartição pública, a coisa fica difícil. E se você não tiver o cuidado na divisão desse dinheiro, na aplicação desse dinheiro, a cultura vai se acabar. É uma coisa boa, mas tem que ter responsabilidade. Há pouco tempo atrás, na semana de carnaval, o caboclo ia para a mata, levava uma oferenda de frutas para pedir proteção para o carnaval, tomava o azougue, que é uma bebida 223
preparada à base de cachaça, limão e mel, e passava três dias à base de frutas. Existia um ritual, o cara ficava azougado, anestesiado, e saía três dias pelo meio do mundo, andando vinte, trinta quilômetros. Hoje isso está mudando, as oferendas estão sendo esquecidas, porque as fantasias mudaram, o que era três guizos no passado, hoje são nove chocalhos. Uma fantasia que tinha oito quilos, hoje chega a quarenta. E isso aconteceu por causa da repartição pública, porque as pessoas querem se exibir. Deixaram de fazer o que faziam no seu território, para fazer show para turistas. Se pensassem, em primeiro lugar, no terreiro, a coisa seria diferente. O que seria pensar o terreiro em primeiro lugar? É que se você vai ao engenho, você vê o maracatu, mas ninguém nunca levou uma escola parar ver uma apresentação de maracatu no terreiro, que é seu espaço de brincadeira. Quando fazem, é para gravar uma entrevista, e nunca se paga por isso. Mas a partir do momento que isso acontecer, os filhos e as pessoas daquela comunidade vão se sentir importantes, porque chegou um ônibus da escola, um ônibus de turistas para conhecer o maracatu. O terreiro é que é o lugar bom de se apresentar, quando você começa a diminuir o grupo para subir num palco, para ir para o Recife, você tem que cuidar da fantasia e esquece o ritual do seu terreiro. Como são as fantasias de maracatu? Como se faz? Para a indumentária do caboclo de lança, a primeira coisa é conseguir quatro chocalhos. Tem caboclo que bota até nove, mas é um camarada que tem coragem. Então você pega os chocalhos, uma madeira, faz um quadrado para prender, coloca uma espuma, pega o couro, que pode ser uma pele de carneiro, de bode ou o tapete acrílico, que a gente compra hoje, e cobre. Isso é o surrão. Depois a gente vai na mata, tora uma vara boa, que não se quebre fácil, de mais ou menos dois metros, dependendo da altura do caboclo, faz uma ponta nela, tipo uma lança mesmo, e enfeita de fita de cetim lisa. Tudo tem ue ser feito artesanalmente, na mão. Depois de fazer tudo isso, vem o chapéu. Antigamente, ele era trabalhado com papel de seda, depois mudou para papel crepom e papel celofane. A gente cortava umas tirinhas fininhas e saía colando. Hoje não, tem um material que se chama chicotinho, que é um tipo de uma fita metálica bem fininha, que se cola na armação. Depois vem a gola, que é a parte mais demorada e que é aquela manta que o caboclo 224
usa. Antes ela era feita de espelhos, depois passou para canutilho, mas pesava muito, aí foi substituído pelas lantejoulas. Pra fazer a gola, você leva trinta dias, se for bom de bordado. Depois disso tudo, está pronta a arrumação do caboclo. A arrumação é chapéu, gola, guiada e surrão, só que por baixo disso tem que ter uma calça comprida e por cima da calça, uma bermuda. Tem que ter também uma camisa de manga comprida estampada, usar óculos escuros e estar maquiado com o que a gente chama de melado, que é urucum, mas como a gente não encontra isso na cidade, usamos batom vermelho. Os óculos escuros são usados para camuflar, porque os caboclos andavam no engenho e sua fantasia era feita escondida, então ele só era reconhecido pela pancada da sua matinada, do surrão. Os caboclos não se reconhecem pela fantasia, só pela matinada. Os antigos mestres estão parados, foram substituídos por outros? Os mestres aos poucos estão se acabando. Existe hoje, dentro da Associação de Maracatus de Baque Solto, uma preocupação em trazer os filhos, para que eles não deixem essa cultura se acabar. Você pode achar estranho porque, se eram onze maracatus e agora são 108, não deve correr risco de acabar. Mas os rituais, as sambadas, correm risco de acabar sim. A grande brincadeira, a grande força do maracatu de baque solto está nas sambadas, na dança. Quando você chega no terreiro, vê homens de oitenta anos dando pinote, caindo no chão, dançando uma mistura de capoeira com frevo, cavalo-marinho, caboclinho. É uma dança que se estende a noite toda no terreiro, e quem é da capital não vê, não conhece. Pensa que maracatu é aquilo que ele vê, um caboclo correndo atrás do outro, vestido com aquela fantasia. No carnaval a gente se exibe, mas a brincadeira mesmo está no terreiro, que é uma coisa que ninguém quer ver, porque são apenas pessoas com camisas estampadas, e o povo quer ver a beleza das fantasias. É nesse sentido que falo da questão do poder público, que paga para ver a fantasia, mas nunca pagou para fazer uma sambada de terreiro. E não é possível fazer uma sambada dentro de um teatro ou em cima de um palco. A sambada só pode funcionar em um terreiro. É preciso prestar mais atenção em questões como a origem do maracatu, o que ele faz, em que momento ele está trabalhando, em que momento está dançando, qual o momento para cuidar do ritual. Sobre essa questão do poder público, como é ter um Ponto de Cultura? 225
Eu tenho um Ponto de Cultura, que é o Piaba de Ouro, e que foi implementado pelo Ministério da Cultura. A gente já fazia cultura, e não sofremos em relação à burocracia, não tivemos que parar nossas atividades. Aquilo foi um complemento, um título. Mas eu não concordo com a burocracia, porque acho que transforma o mestre em produtor. Eu achava que com o selo Ponto de Cultura teríamos pessoas competentes para fiscalizar as atividades e orientar como fazer, mas dentro daquele segmento. Acho que o poder público tem que abrir os olhos nesse sentido, porque a maioria dos mestres que faz cultura popular são analfabetos, muitos deles só sabem assinar o nome, então precisam de um intermediário. E quando encontram uma pessoa séria, vão de vento em popa. Mas quando não encontram, ficam inadimplentes, e aí param de fazer as atividades, não conseguem mais captar recursos. Tem uma enxurrada de dinheiro sendo colocado na cultura hoje, e as pessoas têm boa intenção. Mas quem está por fora, que é mais esperto, está acabando com os mestres. E aí tem aquela questão da qualificação. Mas como qualificar? Eu tenho que me qualificar dentro da minha cultura, e o poder público tem que fiscalizar se eu estou fazendo aquilo que eles querem. De modo geral, não só na área de cultura, o Estado brasileiro é pouquíssimo preparado para dar dinheiro para os mais pobres, analfabetos. E quem faz cultura popular é pobre e analfabeto. Agora, a Associação de Maracatus de Baque Solto em Pernambuco vive outra situação. A gente se inscreveu no edital do Ponto de Cultura, que é pelo estado, pela Fundape, e aí sim eles formaram uma equipe de competência, sempre estão orientando a gente em relação à prestação de contas, em relação a fiscalização. São muito bons. Nós criamos um projeto de bordado, música e inclusão digital, com a intenção de cooptar os filhos dos mestres que tem vergonha de dançar o maracatu e que vivem em lan houses. Pegamos esses meninos, fazemos uma oficina de inclusão digital, qualificamos eles e depois damos uma oficina de elaboração de projetos. Então um menino de quatorze anos pode inscrever um projeto do pai em um edital e possibilitar o trabalho dele. E ainda terá orgulho de ter ajudado o pai. Com esse projeto passamos por três cidades, e agora estamos trabalhando em Olinda. Compramos dez computadores com dinheiro do Ponto de Cultura, e a ideia é que, se está difícil levar esses garotos para o terreiro, ao menos podemos ensinar uma forma com a qual ele possa contribuir para aquela cultura e sinta orgulho daquilo. Ao ajudar o pai, o tio, 226
o avô, ele pode perceber que a cultura tem valor, e quem sabe, um dia, tomar gosto pela coisa. Então, essa ideia do Ponto de Cultura é perfeita, porque dá uma visibilidade maior. A preocupação é com essa questão da burocracia. Isso tem que ser cuidado, porque o mestre não tem que se preocupar com prestação de contas, edital. Deveria haver um acompanhamento, um levantamento de necessidades, para valorizar aquele terreiro e fazer com que a comunidade tenha orgulho daquele artista. Conte um pouco do que acontece em Olinda e do que acontece em Recife. Quais são as diferenças? O carnaval de Recife ganhou outra dimensão nos últimos anos. É uma grande produção. Isso é bom, mas também vejo um lado negativo, porque ele colocou uma diversidade de artistas nacionais e deu aquela misturada. Eu acho que deveria ter espaço para as pessoas verem apenas as coisas autênticas de Pernambuco, que se conseguisse convencer a mídia a ver aquilo ali. Quem vem São Paulo, vê somente o show que está acontecendo no palco, não vê o maracatu, não vê o boi. Já em Olinda, é aquela coisa da rua. É um carnaval espontâneo, tudo aquilo é mágico, aquelas ladeiras são maravilhosas. Mas é uma coisa que só acontece no carnaval. Olinda é só carnaval, mas essa coisa deveria ser melhor explorada depois desse período de festa, para que as pessoas pudessem ver os maracatus, os clubes, as troças. Como é o cotidiano de um terreiro? Como são as festas, quando são os encontros? Quando termina o carnaval, passamos dois meses descansando, porque a luta é grande. A partir de maio, a gente começa a se preparar, a confeccionar as fantasias, o que é um processo demorado. A gente vai elaborando as ideias, bordando. A partir de setembro, começam as sambadas, que geralmente acontecem no primeiro sábado de cada mês. Chamamos dois maracatus, um recebendo o outro, com todas as pessoas de camisa estampada, de manga comprida, com um pedaço de pau, que a gente chama de cacete, e que é usado como se fosse a guiada, para fazer manobras no terreiro. Fazemos dois cordões de caboclo, sem a fantasia, dois cordões de baianas, também à paisana, mais a orquestra, o mestre, os arreia-mar. Montamos o maracatu e começamos a dançar no terreiro, esperando o outro maracatu, depois começamos com a sambada. No terreiro se veem coisas que nem se imagina, como 227
um camarada dando rasteira, pulo, a noite toda. A gente bebe a noite toda, mas com responsabilidade. O dono do maracatu, ou o presidente, fica de olho em todo mundo, porque ali está o seu povo, a sua nação, que é como se fosse a sua família. Hoje a situação está difícil, geralmente a gente samba sozinho, porque o gasto é bem menor. Convidamos só o mestre de outro maracatu. Antes a gente fazia, entre setembro e janeiro, em torno de quatro sambadas, hoje conseguimos fazer no máximo duas. Quer dizer, estamos perdendo a verdadeira brincadeira, o verdadeiro samba do maracatu. Uma vez você falou que o maracatu era uma história de luta e de resistência... O maior exemplo que eu tenho é de seu Zé Miguel, lá de Carpina, ou do Neguinho do Imbé, como ele é conhecido. Esse homem cria porco para botar o maracatu na rua. A casa dele não tem banheiro, as pessoas sentam em um pedaço de madeira, mas no domingo de carnaval, o maracatu dele é a coisa mais linda. Foi aí que comecei a entender que esses homens do maracatu de baque solto são guerreiros, são muito fortes. E a partir daí, entendi também porque isso não se acabava. Se você é um simples cortador de cana, as pessoas não o enxergam. Mas dentro do maracatu você é um rei. Eu passo despercebido na rua, mas dentro do maracatu todo mundo me enxerga, sou um guerreiro. O maracatu é um mundo de guerreiros, de homens que não se entregam por nada. Como você vê a história da escravidão hoje, dentro dos terreiros? O que vejo hoje é que ela ainda existe, porque muitos homens trabalham para comer. E o maracatu de baque solto tem origem nos escravos índios, então tem essa marca também. A nossa dança, e até nosso corrupio, são indígenas, é como se estivéssemos fazendo uma festa de índios. Mas a escravidão indígena é tão séria que poucas pessoas falam que baque solto é cultura indígena, eles misturam com a cultura africana. Ainda continuam escravizando o índio, porque escondem a sua cultura. É uma escravidão cultural. Devíamos olhar com mais carinho para essa questão da cultura indígena. O maracatu, no começo, foi associado à violência... No passado, quando o maracatu saía na rua, o dinheiro ficava pendurado no broche da bandeira, e aí os outros maracatus furavam a bandeira para pegar o dinheiro. Isso fez com que surgissem muitas rivalidades e confusões, 228
lá pelos anos 1940, 1950. Os caras brigavam a ponto de acontecer até mortes. Quando as mulheres começaram a entrar no maracatu, isso foi diminuindo, e zerou depois da criação da Associação de Maracatus de Baque Solto. Como se deu a entrada da mulher no maracatu, e como é a participação delas? Em 1962, o seu João Lianda tinha um bloco de carnaval que muitos caboclos acompanhavam. Então ele resolveu fazer um maracatu, criou o Leão das Flores, e trouxe as mulheres para brincarem também. O maracatu ficou tão bonito que outros grupos começaram a introduzir mulheres. É difícil ter mulheres dentro do maracatu, é um veneno, a gente tem que ter muito cuidado para não quebrar nossa abstinência, nossas regras. Então temos todo um ritual para isso, todo um cuidado. Sete dias antes do carnaval o caboclo para de ter relações com a mulher, e dependendo do que ela preparou, nem comida feita por ela ele pode comer. Mas as mulheres cuidam melhor das fantasias, é perceptível a melhora, e elas trouxeram beleza e paz para o maracatu. O Guimarães Rosa tem uma frase que diz “mestre não é só o que ensina, mas o que de repente aprende”. Como se faz um mestre? O mestre tem que viver. Não adianta pegar um livro, ler e ir para um terreiro dançar. Tem que viver! Não adianta usar uma camisa estampada, chapéu e ir para o terreiro de bengala e achar que é mestre. Para ser mestre, é preciso estar todo dia aprendendo e ensinando. Eu tenho quarenta anos, sou filho de um mestre, e muitas vezes as pessoas querem me chamar de mestre. Mas eu não aceito, porque acho que tenho muito para aprender. Está começando a haver uma banalização nesse sentido, muita gente acha que é mestre. Ser mestre é ter respeito. O respeito você vai adquirindo, é uma coisa natural. Não é a pessoa que se autointitula chefe, nem é uma pessoa só que dá esse título a alguém, é a comunidade. E não é só ter conhecimento, tem que ter liderança, reconhecimento e o dom de repassar. Além de ter que saber para quem passar o conhecimento. Tem coisas que acontecem no nosso terreiro que nem todo mundo pode saber. Nós somos muito místicos, temos muitos segredos. Certo dia eu estava em uma mesa, falando sobre cultura, e um certo pesquisador fez uma pergunta. Eu então respondi que era segredo, não podia falar, e ele disse que era por isso que as culturas estavam acabando. Mas é engraçado porque o baque solto tem duzentos anos e nunca acabou. 229
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GOG Rapper.
Como você começou a trabalhar com cultura? A culpada de tudo é a dona Sebastiana, minha mãe, que é professora. Mesmo sendo morador de periferia, mesmo sendo fruto da África, passando pelo Nordeste, nascendo na periferia de Brasília, esse ponto da educação foi fundamental na minha história. Minha mãe, apesar das dificuldades, me alfabetizou aos cinco anos já com crônicas de Cecília Meireles. Meu pai reforçava: quando eu tinha cinco anos, ele me levava para a feira e eu fazia apresentações para as pessoas, dizendo as capitais do mundo. Também foram importantes as competições de ditado. Meu pai me colocava para disputar com meninos bem mais velhos, e eu ganhava nas palavras difíceis, com dois esses ou cedilha, como “necessário”, “necessidade”. Isso foi estruturante na minha caminhada. Mesmo tendo estudado a vida inteira em escola pública, aos 17 anos consegui ingressar na faculdade de economia. Só que meu hábitat natural, a periferia, me aproximava de uma geração James Brown. A gente costuma dizer que são duas gerações: a geração Beatles e a geração James Brown. Eu pertenço à geração James Brown. Meus primos usavam saltos plataforma, cabelão black e ouviam as músicas de Cassiano, Tim Maia, Hyldon, Paulo Sérgio, Evaldo Braga. Tudo isso fazia parte da minha vida, tudo já estava ali colocado, e eu não conseguia perceber que aquilo já era cultura. 231
Comecei a dançar aos 12 anos; passei pelo soul, pelo funk. Veio o break, no início dos anos 1980, e só depois fui descobrir que se tratava de um elemento da cultura hip-hop. Comecei a vivenciar o hip-hop como cultura. Até então, a palavra “cultura” me vinha como uma entidade distante, institucionalizada, engessada. Aos poucos, fui descobrindo porque o hip-hop era uma cultura. O hip-hop abrange mais três elementos além do break: o DJ, o grafite e o MC, que é o rapper, ou seja, o texto, o canto falado. A terminologia de rap vem de ritmo e poesia, o que significa que ambos têm que estar ali, brigando lado a lado. E o rap dos anos 1980 traz o texto para o campo sociopolítico. Desde cedo eu já tinha descoberto que, para escrever, era preciso ter uma coisa chamada argumento. É preciso toda uma estrutura para escrever: um assunto bem delimitado, bem desenvolvido, bem acabado. E eu trouxe isso para a minha música, um conhecimento praticamente científico. Tanto a ciência quanto a música nascem da observação. Daí que vem a minha provocação em relação à propriedade intelectual na música. Claro que é uma colcha de muitos retalhos, mas, no caso do hip-hop, no caso da minha música, não teria escrito nada se não fosse a observação do que está de fora. Então, a partir do momento que está fora, será que é meu? A quem pertence? De repente, um olhar aqui vai me inspirar a escrever uma música, fazer um texto, e vou lucrar muito com isso. Para se debater a questão da propriedade intelectual, principalmente na música, penso que é necessário ter essa percepção. Pensar a composição também como um diálogo? Sim. E esse diálogo tem que ser maduro, não pode ser permeado apenas por uma visão, mas a visão do empresário também não pode predominar, porque o empresário, a princípio, não é um autor. Ele é alguém que gerencia, cujo trabalho é assessorar o autor. Essa parceria tinha tudo para dar certo, se ao menos fosse mais planificada. Acima de tudo, acho que é um tipo de parceria que dá certo e tem longevidade se as duas partes estiverem abertas também a novas tecnologias, se as partes estiverem abertas a essa mobilidade do espaço humano. Você criou uma gravadora em 1993, e é artista. Em outras palavras, você esteve em ambos os lados do balcão. Como você vê essas relações? A Só Balanço existe até hoje. Ela caminha: lanço meus trabalhos e os de muitos artistas de hip-hop por ela. No universo do hip-hop, a palavra vale mais 232
do que o contrato. O contrato só o lembra de um compromisso radicado na palavra. Então, conversamos bastante, firmamos bem os pontos, redigimos. Na Só Balanço, o artista só fica enquanto estiver satisfeito, não existe multa contratual. Se quiser ir embora, pode ir, com o meu respeito. Eu tento desconstruir a relação patrão-empregado. O artista contratado também é responsável pelo bom nome da gravadora. Se ele precisar de algo que a gravadora não pode fornecer naquele momento, a gente explica, conversa, dialoga. A Só Balanço surgiu porque ninguém queria gravar a gente. Ninguém queria gravar o GOG, o Câmbio Negro, o DJ Jamaika. Bem antes da indústria fonográfica descobrir o hip-hop, as periferias de Brasília e São Paulo já tinham essa efervescência. Faltou percepção às gravadoras. Os olheiros das gravadoras estavam fixos no que havia de mais raso no oceano cultural. Não se aprofundaram, não foram aonde o hip-hop estava. Enquanto a indústria cultural tachava Brasília de capital do rock, o hip-hop já estava forte nas periferias. A gente já chamava mais público do que as bandas de rock no plano piloto. O que é o movimento hip-hop no Brasil? Costumo dizer que o movimento hip-hop é uma boa nova. As periferias jamais serão as mesmas depois dele. É principalmente uma didática da autoestima. Não é segredo dizer que mais da metade da nossa população se declara negra, mas onde estão os negros? Temos uma parcela ainda maior de pessoas que moram nas periferias. Faltava um dialeto à periferia, faltava colocar o dia a dia da periferia na cultura. Logo percebi que periferia é periferia em qualquer lugar. Para todo grande centro, há uma periferia igualmente grande trabalhando. É uma lógica capitalista. É disso que o capitalismo vive, na verdade. Mas é preciso ter consciência de que o capitalismo é um gigante com pés de barro, consciência que colocamos no rap. Não adianta você reclamar de tal empresa, de tal postura do sistema, se você está patrocinando o sistema. Não adianta pedir democratização dos meios de comunicação se você está aliado a certas emissoras que não trabalham, por exemplo, a questão do negro, a questão das cotas, a questão da saúde da população negra. E como surgiu essa história? Um dos maiores mitos acerca do movimento no Brasil é de que ele nasceu em São Paulo. Isso é uma inverdade. Na realidade, o movimento hip-hop pipoca em vários estados. Por exemplo, nós começamos um movimento forte 233
em Brasília a partir de 1981. Thaíde e DJ Hum foram a Brasília pela primeira vez no fim da década de 1980. Nós já tínhamos discos gravados e criado todo um movimento, com todos os seus elementos interagindo. Foi uma surpresa para nós quando descobrimos que algo semelhante também existia em São Paulo. Grande parte da literatura que historia o movimento apresenta essa versão paulista. Claro que São Paulo é o pulmão do hip-hop, mas acho que Brasília é um pouco como seu coração, ou cérebro. Tivemos, na primeira geração de Brasília, uma escola importante, produtores de primeira linha como DJ Raffa, DJ Leandronic. O hip-hop passou por várias fases. Tivemos a fase do movimento negro, o Geledés da saudosa Sueli Carneiro, que ajudou nessa estruturação do hip-hop. Os próprios Racionais tiveram muita referência do Sistema Negro. Aí passamos dessa fase. Quando Genival Oliveira Gonçalves – o GOG, que por acaso sou eu – chega ao hip-hop juntamente, por exemplo, com Thaíde, já tínhamos uma linha que falava não só do movimento negro, mas de política em geral. Colocávamos a necessidade da educação, abrindo um leque de caminhadas e de ações para que o hip-hop fosse trabalhando. Foi um movimento muito importante e que acabou definindo regiões. Por exemplo, São Paulo viveu toda uma amplitude devido aos Racionais, mas o hip-hop não pode ser só gueto, e para ir além do gueto temos que encontrar novas formas de diálogo. E isso resulta num movimento mais composto. No caso de São Paulo, há o Facção Central, que é outro estilo, mais pesado, que alguns qualificam de gangsta, e também vem a geração mais nova, que, depois de ouvir Racionais, GOG e outros, diz: “Nós queremos contar que na periferia também tem festa, e que a gente vai para o centro encontrar com as meninas que a gente quer namorar”, o que eu acho perigoso, porque o hip-hop brasileiro não pode deixar de ter um foco social. Não dá para você colocar a mulher como mero objeto de desejo só porque está compondo uma música de festa. Não dá para você ficar dizendo que vai encher a cara, porque você exerce uma influência sobre quem o escuta. O movimento tem várias feições, mas ainda precisa se ouvir mais, se olhar mais. Existe diferença entre o hip-hop brasileiro e o norte-americano? Existe, e passa pela economia e pela política. No hip-hop americano, vê-se uma ação muito grande por parte da indústria fonográfica, quanto à comercialização e à industrialização. Grupos como Public Enemy deixaram 234
de ter importância midiática. Durante um tempo tiveram, mas foram um pouco escondidos. Faltou o apoio da divulgação. Aí você percebe o quanto a indústria atua. O hip-hop brasileiro é diferente. Espero que não trilhe esse caminho da “arte pela arte”. O saudoso Preto Ghóez, um dos integrantes do movimento, falava: “Arte pela arte nunca.” Então, é claro que o hip-hop norteamericano é referência, mas nós temos que nos abrasileirar. Com o samba foi assim, com o forró foi assim. A própria bossa nova, com a influência do jazz. É por isso que fico meio impaciente com o maestro Júlio Medaglia, quando ele descarta o hip-hop; é preciso dar tempo para o hip-hop crescer, amadurecer. E como surgiu o hip-hop em Brasília? No caso do hip-hop de Brasília, éramos duas, três, quatro pessoas que se conheceram e descobriram que curtiam break. Aí a gente se encontrava, um ia até a cidade satélite do outro. As coisas foram crescendo, surgiu o primeiro baile, o primeiro som. Hoje, Brasília está tomada. É o que falei e reforço: Brasília há muito tempo não é a capital do rock. Respeitamos Legião Urbana, Capital Inicial, Raimundos, são todos meus amigos pessoais, parceiros do dia a dia em Brasília, mas precisamos contar que, fora do avião, o caldeirão é bem mais criativo e tem muita feijoada cultural gostosa lá, coisa que as pessoas em geral desconhecem. Como você vê as novas mídias digitais, como forma de difusão, de gravação, de profissionalização, de remuneração? Desde 2007, com o lançamento do DVD Cartão Postal Bomba!, liberei todas as minhas obras. Completo agora dez discos, sem contar com dezenas de participações, e todas as minhas obras foram liberadas para download gratuito. As pessoas contribuíam com quanto achavam que o trabalho merecia. Se não colocamos o produto à prova das pessoas, nunca saberemos realmente o que estamos fazendo. É como um modem: você manda um sinal de cá, tem que ter um sinal de lá. Acho que a tecnologia torna esse sinal possível. Minhas músicas tiveram, depois dessa caminhada de dois anos, mais de quatrocentos mil downloads. Tivemos contribuição de um real, tivemos contribuição de cinquenta. Tem gente que não pode pagar, mas me escreve dizendo que está apertado esse mês, paga quando puder. Essa interação, esse diálogo posterior, é muito importante. O artista que trabalha com o povo, a partir de sua diversidade cultural, não pode se distanciar. Quanto à mídia 235
física, as pessoas não pararam de comprar meus CDs e DVDs. Afinal, essa pessoa que baixou a música, mas não pôde contribuir financeiramente, é a mesma pessoa que chega numa roda de amigos e diz: “Vocês já ouviram o GOG?” É a mesma pessoa que vai ao show e leva os amigos. Será que estou realmente perdendo ao liberar minha obra? O artista independente é o mais dependente de todos, precisa se relacionar o tempo inteiro. É assim que acaba conhecendo o parceiro que faz a capa, a fotógrafa que faz as fotos do encarte. A independência é utopia, ninguém é independente. Agora, creio que tanto o artista quanto as gravadoras e os produtores fonográficos terão de se adaptar conforme as mutações do mercado. Se esse processo for bem conduzido, mais empregos serão gerados, o que é essencial para o Brasil. O que não pode acontecer novamente é a tecnologia se tornar privilégio de poucos, o que resultará na reinvenção da ditadura musical. O Bernardo Vilhena sempre fala isto: “Toda nova mídia é pirata, mas a tendência natural é a acomodação ao mercado.” Se ninguém tomar conta, é claro que o mercado vai tomar. Como você disse pouco antes da entrevista, um espaço não ocupado é um espaço que outro ocupará. Sim, e pode ocupar com ideologias que não são exatamente as que gostaríamos de ver aplicadas. Se não tomarmos cuidado, todas essas vias de acesso ficam a perigo. Por exemplo, a Lei Azeredo, que as pessoas já estão chamando de AI-5 digital; a criminalização do download, a abertura de e-mails: quem realmente ganha com isso? Quanto custa, mais ou menos, fazer um disco de hip-hop? Quanto é o investimento, em termos práticos? A essência do hip-hop é o loop. Muitas pessoas acham que a evolução do hip-hop é a banda, quando, na realidade, é o toca-discos. Foi ele que popularizou o hip-hop. Hoje em dia tenho minha banda, a MPB Black, que é maravilhosa, mas, se eu dependesse totalmente de uma banda, não seria cantor de rap. Portanto, no caso específico do hip-hop, o custo não é tão grande, embora a qualidade da música seja comparável a grandes produções. Hoje em dia temos os estúdios caseiros. Todo mundo tem o Soundforge, isso já reduz um bocado o custo de estúdio. Não estou colocando que a música seja fácil, que se pode fazer de qualquer jeito, mas hoje em dia você pega um bom microfone, trata o ambiente minimamente, coloca a voz, escolhe os 236
plug-ins e, se tiver talento, fará uma boa música. É claro que o maestro Júlio Medaglia não vai adorar, mas, na quebrada lá, o pessoal quer saber é se tem suingue, se tem ritmo. E no caso específico da Só Balanço? Quanto custa fazer um disco? Sem contar a prensagem, algo entre R$ 5 mil e R$ 8 mil. É possível sobreviver disso, então? Sim. Algumas letras minhas – por exemplo, “Brasil com P”, “A ponte” – são utilizadas em livros didáticos, em universidades, em provas de vestibular. Toda hora tem uma palestra referente a algum tema que abordei numa letra. Tudo isso, quando você soma, gera uma renda tranquila. No fim das contas, cabe ao artista perceber a matemática dos custos e entender que tudo isso provém de sua criação musical. Não estou perdendo com essa abertura, não estou perdendo ao liberar meus textos. Sou muito emotivo nesse ponto. Para mim, não há prêmio maior para um artista independente do que ver as pessoas cantando junto. O BNegão, que foi pioneiro ao disponibilizar suas músicas on-line, me contou uma história linda. Chamaram ele para tocar na França, e no dia do show a fila dava voltas no quarteirão. Ele não entendeu aquele monte de gente, achou que alguém mais famoso iria tocar também. Mas não, era só ele. O povo cantou as músicas de ponta a ponta, e ele não tinha um disco lançado na Europa. Lindo, não é? Isso é uma vitória muito grande para o artista, e uma vitória maior ainda para a cultura. Alguns produtores musicais acham que tanto o artista que libera quanto a pessoa que baixa são uns estúpidos, mas esses produtores são pessoas que vivem do dinheiro do bolso, trabalhando a cultura dos outros. Música não é bolsa de valores. Você pode falar um pouco sobre os artistas que estão em presídios? Temos vários parceiros que estão privados de sua liberdade no momento, mas a maior detenção é aqui fora, essa detenção sem muros. Esse sistema que, com suas promessas, acaba gerando uma matemática sádica. Dos parceiros que estão encarcerados, há dois bastante notórios: o Gato Preto, do grupo A Família, e o Dexter, que eu considero o Mandela brasileiro. Dexter completa 12 anos de reclusão. Progrediu para o regime semiaberto e casou-se há pouco. Além de ser uma pessoa maravilhosa, o Dexter é um grande instrumento de estudo, porque lança disco todo ano, mesmo privado da sua liberdade. Eu fiz 237
uma participação maravilhosa num disco dele, uma das músicas que mais gostei de fazer, que foi “Salve-se quem puder”. Nós fizemos aquilo no Presídio São Vicente. Gravei dentro de uma cela na cadeia e, como eu gosto muito de escrever na emoção, acredito na poesia, na emoção da poesia, escrevi a letra lá. Ei, aqui se realiza um sonho antigo Uma aliança entre fãs que hoje são amigos Eu sei, percebo é de Deus que vem, provém a chance Provei e não senti o gosto amargo, eu vou avante, adiante Abraçar, representar, tô aqui Fruto nordestino, maduro, do sul do Piauí Não caí... Vou te falar, relatar, o que vi Deselegante foi a cena, mas eu não sorri Sou latino, peregrino, desprovido de dinheiro, grilado Uma pá de proliferado puteiro, que se dá De várias formas não só na cama Sente o drama Lamentável a cena, o algoz e a primeira dama Não sei se vou pro céu, sou fiel, sou Fidel, sou cruel Mas não tenho o coração de papel Pisou na bola, olha minha sola, o calcanhar de Aquiles Mas aí GOG, se o Bin Laden pega, hummm, Fica ruim pro Alexandre Pires Falhou, sujou, a bandeira brasileira Envergonhando a América Latina inteira Inocência, oportunismo, ignorância da história Chorou nos braços de quem tem fama sem glória Bush... É preciso ter cérebro, coordenação motora Pra não cair na armação da maldita gravadora Pra não financiar via Coca-Cola a metralhadora E nem desonrar África, nossa genitora. Foi lindo. Eu tinha que cantar. Foi a emoção, foi uma coisa escrita em 15 minutos, porque o diretor já estava querendo encerrar as atividades, para o 238
bom andamento do presídio, mas, por conta daqueles 15 minutos, a periferia lucrou, e hoje cantam isso nos quatro cantos do país. Embora tenhamos um “governo popular”, quando procuramos o PRONASCI e a Secretaria de Justiça para colocar que o Dexter é um parceiro recuperado, alguém que poderia estar aqui fora servindo de exemplo, não conseguimos nada. O Estado não quis que o Dexter falasse. Qual é o próximo passo? O próximo passo é continuar de pé, velho. Se equilibrar, porque hip-hop não pode ser mais só gueto. O mundo tem que ser o gueto. Nós temos uma tarefa muito grande de popularizar nossa música. Não queremos o título de MPB, até porque esse título já é de todos. A música popular brasileira não pode se restringir só a Lenine, Maria Rita, João Gilberto, tropicália, Caetano Veloso, Gilberto Gil. Não. Amado Batista é música brasileira. O Tchan é música brasileira. Fantasmão, GOG, Racionais MC, MV Bill, tudo isso é música popular brasileira. Temos que discutir muita coisa. Até o nome da fachada que a gente tem. Precisamos dar uma geral nessa casa chamada cultura brasileira. Por mais que tenhamos governos propensos a nos ajudar com essa tarefa, não podemos esquecer que essa luta é nossa, porque governos passam e o povo e a cultura ficam.
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Kim Marques Compositor e cantor de tecnobrega.
Quais são as suas influências? Basicamente caribenha. Na região em que eu nasci, baixo Tocantins, no estado do Pará, nós ouvimos muito, quando criança, as músicas do Caribe. Naquela época, a música chegava até nós através da Rádio Nacional ou das rádios de outros países, inclusive do Japão. Quando criança, eu e meu pai ficávamos procurando sucessos, músicas que poderiam tocar lá em Cametá. Então começamos a escutar muito merengue, muita cumbia, salsa, calipso. Você ouvia muito esses ritmos através das rádios. Meu pai era promotor de eventos e trabalhava com um grande amigo nosso, o mestre Cupijó, um grande artista, saxofonista. Quando Cupijó lançou o seu primeiro LP e começou a fazer sucesso, ele passou a ser nossa principal referência. Eu já tinha oito ou nove anos e comecei a olhar para a música já querendo participar, querendo ser um músico. Quando tinha dez ou 11 anos, conheci os filhos, os netos e os sobrinhos do mestre Cupijó, e começamos a aprender instrumentos juntos. Passamos basicamente três anos ensaiando e tocando as músicas que nós ouvíamos no rádio, merengue, cumbia e o calipso, principalmente. O calipso que nós, do Pará, conhecíamos com o nome de brega. Então alguns artistas, como Carlos Santos, Alípio Martins, Ted Max, Mauro Cota, Luiz Guilherme e Miriam Cunha, começaram a fazer sucesso. E 241
coincidiu com o momento em que começamos a primeira banda, que chamava The Castros. Sempre buscando fazer aquela música que a gente ouvia, desde criança, no rádio. Sempre buscando acertar o caminho do sucesso, fazer uma música que nos fizesse ter sucesso dentro daquele nosso mundo, que era o Baixo Tocantins. Foi fácil adaptar o calipso para a língua portuguesa? O Carlos Santos começou a gravar já fazendo as versões. Ele pegava as melodias caribenhas, os merengues, e transformava. E deu muito certo, basicamente porque o povo do interior já tinha um conhecimento muito grande da música. Principalmente lá em Cametá, onde nasci, a música já era divulgada através dos bailes e das festas. Fala um pouco sobre o que é o carimbó, o que é a guitarrada, o que é a síria e o que é a marujada. O carimbó, basicamente, é resultante do merengue, mas nós fomos bombardeados por ritmos afro, bastante instrumentais. A minha região tem o samba de cacete, o bambaê, o sambaê e o olodum, que já é derivado de outra zona, a Bragantina. O carimbó é instrumental, percussivo. O samba de cacete, originariamente, são dois curimbós, dois instrumentos que você toca em cima, batendo na pele, com outras duas pessoas na traseira, tocando com um pau. Nós inclusive fizemos uma música em cima dessa levada do samba de cacete, com os ritmos de levada de guitarra, levada de teclado, essas coisas. Essa é a grande sacada do carimbó. O Pinduca já trouxe o carimbó mais para o lado da guitarra, mas mantendo a base rústica, com os afoxés. Ele inseriu os instrumentos de sopro também, quer dizer, uma flautinha, não um trio de metal. O carimbó é isso. E a trajetória? Nos anos 1980, você tocava na The Castros, teve algum sucesso? Não. Nós mudamos para Belém em 1990, e foi aí que começamos a conhecer pessoas com a mesma mentalidade que a nossa. Na verdade, nós tínhamos sonhos, sonhos que no futuro iriam se tornar realidade, porque nós éramos muito isolados pela região. Era o que a gente mais conversava e se perguntava, como fazer uma música que rompesse as barreiras e chegasse em rede nacional. Porque tudo que nós ouvíamos vinha de fora. A gente ouvia 242
as músicas que tocavam em Salvador, no Rio e em São Paulo. Principalmente nos anos 1980, quando o rock nacional explodiu no Brasil e fomos bombardeados de Paralamas do Sucesso e outras bandas. A nossa música mesmo circulava muito pouco. Ela não era ouvida em outros estados, mesmo que fizesse sucesso em Belém do Pará. Esse rock dos anos 1980 foi também uma influência? E a jovem guarda? De certa forma, vocês são herdeiros da jovem guarda. Muito, tanto que algumas músicas nossas têm base no rock. Viraram calipso, mas vieram basicamente do rock nacional, porque nós começamos a misturar a história, misturar tudo mesmo. Sobre a jovem guarda, eu mesmo cantei muito Fevers, Renato e seus Blue Caps. Nós fazíamos muitos bailes de interior, e no interior você tinha que tocar o que tocava a nível nacional, o que estava tocando em todos os lugares, como continua até hoje. Vocês conseguiram gravar suas músicas ou era mais em shows? Como era a produção? Quando cheguei a Belém, eu tinha pouca influência. Fui para lá fazer vocal. Formei um grupo com mais duas amigas, e passamos a participar das gravações de outros artistas que estavam lá, que faziam o que a gente chama de “brega”. Foi muito legal aquele momento, tinha muito trabalho para nós. Foi quando surgiu o Beto Barbosa. Quer dizer, quando cheguei a Belém, ele já não estava mais, mas ele fazia parte desse grupo de artistas que saiu de lá cantando brega. Todos os estúdios em Belém funcionavam muito, muito mesmo, de manhã, de tarde e de noite. Surgiu a Gravasom, do Carlos Santos, uma gravadora que tinha um acordo com uma empresa aqui de São Paulo. Então eles faziam os produtos lá em Belém e mandavam para o Sudeste. Também tinha gravadoras de São Paulo que faziam investimentos lá, mas basicamente os artistas eram de uma safra nova. O Carlos Santos foi um cara importante, não é? Muito! Além de ele ter a rádio Marajoara, que era uma maneira de a gente divulgar nossas músicas, ele tinha um estúdio, que era onde nós gravávamos. Isso foi de suma importância para todos os artistas. Fale um pouco sobre tecnologia. O que são as aparelhagens? 243
Hoje as aparelhagens do Belém do Pará são realmente uma referência em tecnologia. Tudo que você tem no mundo tem hoje no Belém do Pará, em termos de aparelhagens. Temos equipamentos de show que nem artistas de alto nível têm. Hoje bandas como Aviões do Forró, Calcinha Preta, de Fortaleza e de Recife, quando fazem show no Belém do Pará, alugam equipamento de aparelhagem. Foi uma evolução muito grande, foi uma grande maneira de chegar ao público. Hoje um evento de aparelhagem tem um público de quarenta, cinquenta mil pessoas. Não precisa ser em uma temporada certa, não é só em grandes eventos, na festa do Ver o Peso. É todo final de semana. Com todos os equipamentos que você imaginar, como o LED, que é a grande revolução em termos de tecnologia. Você tem LED de alta fidelidade, não apenas LED com efeitos. O LED na verdade veio substituir os telões e televisores. Antigamente, as aparelhagens, por exemplo... O Ruby e o Tupinambá, que eram as duas de maior poder, usavam televisores. Elas conquistavam o público com grandes paredes de trinta televisores. Cada uma em um canal diferente ou passando vídeos. Tudo para chamar a atenção. Eles já tinham essa ideia de chamar a atenção, isso em 1985. Os cantores e as aparelhagens andam muito juntos. Somos parceiros, nós fazemos as músicas e as aparelhagens tocam as músicas. Nós cantamos as músicas, e a aparelhagem faz o papel de tocar a gente. O que é fazer música por encomenda? Em 1996, eu conheci Júnior e Betinho, da PopSom, que na época era uma aparelhagem que queria ser grande, queria fazer parte do cenário, porque eles não conseguiam, ficavam somente naquele bairrozinho. Foi aí que eles me chamaram para fazer uma música para eles. Queriam que falasse o nome da aparelhagem, valorizasse, para colocar para tocar. Aí eu fiz: “É o PopSom considerado do povão. Fim de semana arrastando multidão.” Eles iam falando, eu ia anotando, e a gente ia fazendo a música. E ficava repetindo: “PopSom, PopSom, que ensina a galera a dançar”. Foi daí que outros artistas amigos nossos também começaram a fazer música para as aparelhagens, para Ruby, Príncipe Negro, que é uma aparelhagem nova, com grande sucesso em Belém, e também para a Tupinambá, que já era uma das grandes antigas. Isso até hoje continua, e os artistas fazem música por encomenda para as aparelhagens. Há competição ou amizade entre elas? 244
As aparelhagens para nós, no Belém do Pará, têm mais força que o rádio. Tenho músicas tocando na Liberal, que é a maior expressão de rádio lá no Pará, mas não é a força. Força é você tocar no Tupinambá, no Ruby e no PopSom. Então tocar uma música para essas aparelhagens é fazer com que ela se torne objeto fácil em todas as aparelhagens. Toca em todas. O Ruby toca a do Tupinambá, que toca a da PopSom. Não tem isso de uma música tocar só em uma aparelhagem. Eu fiz, inclusive, um grande sucesso para o Ruby que toca até hoje. Foi feita em 1997. É assim: “Quando ela chega numa festa e ouve o som do Ruby, ele é o poderoso tocando pra mim e pra ti. Ruby, Ruby.” São umas letras tranquilas, mas dentro de um ritmo legal, que apaixona o povo. Então a música acaba levando a aparelhagem, e a aparelhagem leva a gente junto. Aparelhagens são acima de tudo produtores? Sempre. As aparelhagens são os gigantes empresários que fazem a música paraense hoje. Elas constroem tendências. Em 1995, quando Roberto Villar estourou em Belém com “Profissional papudinho”, só ele tocava o brega no Pará. Ele parou de fazer um brega mais parecido com o do Reginaldo Rossi e se aproximou do calipso, que era mais acelerado. Então as aparelhagens pegaram aquele ritmo e tocaram na noite. Por dois anos, ele ficou sozinho, só ele fazia esse tipo de música. Até que eu lancei o nosso disco em 1997, muita gente foi lançando, a Banda Calypso apareceu com o primeiro CD, em 1999, ou seja, nesse ponto a aparelhagem é nossa irmã. Eles perceberam que tinha outra linha vindo para o mercado, o tecnobrega, que era um som menos carregado de produção. É um ritmo basicamente sustentado pelo teclado. As aparelhagens adotaram esse ritmo, e o calipso deu uma diminuída. Depois as aparelhagens passaram a tocar o melody, trouxeram de volta o ritmo, colocaram a voz bem alta, e o tecnobrega deu uma caidinha. Ou seja, a aparelhagem tem muita influência na música paraense. Ela centraliza a produção? Como funciona? Ela financia os estúdios, financia os músicos, paga os compositores? Não, existe uma parceria. A tecnologia avançou muito, então eu tenho um computador em casa e já saio com uma música mais ou menos pronta de lá. Existe essa facilidade, que é muito importante para todos os compositores, para todos os artistas de lá, principalmente para a música que a aparelhagem 245
quer tocar, porque hoje ela toca uma música com muito pouca informação. É para o DJ pegar aquela música e fazer a parte dele, porque se você enche a música de muitos detalhes e de muita complicação o DJ não vai ter espaço, entendeu? Ou seja, existe uma troca, uma colaboração. Eles não fazem o investimento diretamente, mas acabam investindo quando tocam as músicas e fazem com que elas fiquem em primeiro lugar nas rádios. Então você passa a fazer grandes shows. Pirataria é crime? É. Muito. É um crime, mas de que não se faz queixa. Você não vai na delegacia, não faz ocorrência. Então a pirataria existe, você sabe que seu produto está 100% pirateado e você não tem como culpar ninguém. Quando eu comecei a trabalhar com direitos autorais, quando comecei a receber direitos autorais, eu via aquilo como uma aposentadoria. Tem muitas bandas no Pará gravando minhas músicas. Eu fazia questão de que uma banda gravasse a minha música. Até que eu descobri que direitos autorais são uma coisa muito distante daquele sonho de aposentadoria que eu tinha. É muito difícil, porque você faz shows para vinte mil pessoas, manda um e-mail para a associação e ela encaminha pro ECAD, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, tudo normalzão. Mas dificilmente você tem domínio sobre isso. Você não sabe onde os seus 25% foram parar nisso tudo. É muito difícil para quem é compositor e faz música de aparelhagem, porque sua música toca para trinta ou quarenta mil pessoas em um fim de semana. E esses direitos todos ficam perdidos, porque não são recolhidos, ninguém sabe para onde vão, ou seja, hoje eu não sei como falar de direitos autorais de maneira positiva. A gente vê que não funciona. Por outro lado, a grande circulação de CDs garante a produção de shows, não é? Garante. A grande sacada da pirataria é essa para os artistas que são donos do seu produto, porque hoje é difícil você arranjar um parceiro para o seu produto, já que ele não vende. Hoje nós sabemos que fazemos cinquenta mil CDs e cinquenta mil DVDs para distribuir, para divulgação. Ficam mil numa rádio, cinco mil em outra, dez mil no show. Isso é uma cultura já muito feita no Nordeste.
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Você falou que com a aparelhagem a música ficou a mais simples possível, para que o DJ possa entrar. Mas e os músicos, os estúdios e os músicos de estúdio, como ficaram? Acabaram todos. A Gravasom fechou, a RJ fechou, a Gravodisc fechou. Agora cada músico tem seu próprio estúdio caseiro, ou sua produtora. As meninas que faziam parte do grupo vocal comigo eram da igreja, então continuam fazendo vocal dentro do contexto da Igreja Evangélica. A aparelhagem influencia muito as mudanças na música. Antes as gravadoras centralizavam esse poder de transformação.Você acha que houve uma mudança muito grande entre a centralização feita pelas gravadoras e a feita pela aparelhagem? A aparelhagem traz mais abertura para diferenças? Mudou. A aparelhagem é 100% aberta. Você chega em Belém para qualquer DJ, para qualquer dono de aparelhagem e eles estão lá realmente querendo material. Como toca todo final de semana, também vira descartável. É um sucesso de três meses. A música chega no topo e fica refém disso, porque a rádio começa a tocar o que vira sucesso nas aparelhagens. A música passa a tocar tanto na aparelhagem e nos carros-shows que andam pela rua, que você acaba ouvindo depois na rádio. O ouvinte da rádio liga dizendo que quer ouvir aquela música. Aí a rádio acaba virando refém dessa aparelhagem. Eu queria entender um pouco mais essa cadeia de produção da aparelhagem. Você investe em seu estúdio, faz uma música que toca, passa a fazer shows e então recebe de volta os recursos. A divulgação da música pela aparelhagem não dá dinheiro, certo? O grosso do dinheiro vai para os produtores da aparelhagem? Basicamente, só os shows dão dinheiro. O grosso fica com os produtores da aparelhagem, tanto que tem grandes empresas por trás disso hoje, investindo na aparelhagem, em eventos de aparelhagem. Existe uma marca de cerveja que investe nesse segmento porque tem resultado. O público é certo. Você falou em tendências. Como surgem essas tendências? As tendências surgem a partir do que você ouve na aparelhagem, do que você quer ouvir na sua casa. Para você ter uma ideia, atrás da aparelhagem do Ruby existe uma estrutura com um computador que copia CD. O reper247
tório daquela noite você leva para a sua casa na hora. Terminou de tocar e você já tem um CD pronto. Isso funciona lá todo o dia e toda a noite. Então, quando você sai no seu carro de volta para casa, já vai ouvindo o repertório que tocou naquela noite. Inclusive o vídeo também! Tem DVDs do tipo “gravado na casa tal em Belém”. Tem grandes eventos em Belém do Pará, grandes espetáculos, que viram CDs clássicos. Tipo Grande encontro: pela primeira vez Ruby e Cheiro Verde. Esse foi um grande show, saiu do palco o Cheiro Verde e entrou Ruby. Isso funcionava muito antigamente, a banda e o artista tocavam com a aparelhagem. Hoje funciona aparelhagem com aparelhagem, “Pela primeira vez Ruby e PopSom’’, os dois tocando juntos. Isso acontece muito. Você se recorda de alguma aparelhagem marcante? Sim. Fazia um ano que eu estava viajando pelo Brasil, aí quando cheguei a Belém fui assistir ao PopSom. Vi a performance do Juninho, a águia subindo, fogos de artifício, muita luz, algo extraordinário. Aí eu pensei: “Não tem para onde ir mais.” Chegaram a um nível tão alto que eu não sei o que eles vão inventar no futuro. E outros estão indo pelo mesmo caminho, mas o PopSom, para mim, é a aparelhagem. Quando a banda baiana DejaVu gravou o sucesso “Ruby”, muita gente protestou, diziam que o brega é paraense e não baiano. Queria que você comentasse esse caso. Uma banda paraense, chamada Raveli, gravou uma coletânea com os maiores sucessos do momento, as músicas mais tocadas em Belém do Pará, e foi fazer show na Bahia. Começou a fazer shows, na verdade. Foi para Tocantins, entrou no Piauí, Fortaleza e chegou ao sul da Bahia. Depois disso, surgiu a banda DejaVu, feita por empresários baianos, com músicos baianos, mas tocando a música paraense, divulgando em rede nacional como sendo dona das músicas. Isso virou uma grande briga, porque imagine a situação: eu, compositor em Belém do Pará, e minha música tocando já em outro estado como se fosse de um outro dono. Música, letra, melodia, tudo! É plágio! É uma loucura, na verdade. Pegaram o CD todo, não só uma música, entendeu? Isso foi repertório de conversa em todos os cantos, em todas as esquinas. Eles conseguiram ganhar uma graninha. Está rolando um processo atrás deles, mas até agora não deu em nada. Eles continuam fazendo shows, em alguns 248
lugares de São Paulo. Esse foi um fato que abriu os olhos dos empresários paraenses, mostrou que nossa música tem uma aceitação muito grande no Brasil. Aliás, a Banda Calypso é uma prova disso: ela viaja o Brasil todo, inclusive o exterior, com músicas nossas, de compositores paraenses e de nossos parceiros de Recife. A própria DejaVu provou que pode ser sucesso, mas roubando, pirateando. Faz vinte anos que o axé tem grande sucesso, e isso é resultado de toda uma estrutura. Existem rádios,trios elétricos, sucursais do mesmo trio elétrico.Você acha que isso pode acontecer com a aparelhagem também? Você acha que a Ruby pode ter sucursais em vários lugares? Em Belém, as aparelhagens já possuem programas de rádio. Entre 11 horas e duas horas da tarde, em todas as FMs de Belém, você escuta os programas de quem toca nas aparelhagens. Isso é uma coisa que já acontece naturalmente. Mas o quanto há de autoral nisso? Dá para ter dois Rubys tocando no mesmo dia? Sim. Existe o Ruby que é o todo-poderoso, o que faz o bailão, o Ruby Saudade, que toca só aquele gênero de saudade, existe o Ruby Light agora, que é o mais tranquilo. A mesma coisa com o PopSom. Existe o PopSom Saudade, o PopSom Águia de Fogo, que é a estrutura geral. É uma cultura, as coisas surgem, viram uma mania rápida, e o povo assimila isso de uma forma. Essa questão da saudade como música surgiu porque a aparelhagem, o tecnobrega e os DJs atraem muito a juventude. O público do PopSom é da faixa dos vinte anos, no máximo 25. É um público muito jovem. Daí a necessidade de vir o saudade, porque aquele público mais maduro estava deixando de ter lugar para dançar. Fale um pouco da influência indígena. Nós temos um vínculo muito forte com a cultura indígena. Para todo lugar que você olha, para todo canto que você vai, a cultura indígena é muito presente e muito importante. A minha região mesmo, o lugar onde nasci, tem origens indígenas, dos índios camutás, dos quais sou descendente. Se você pega o melody e o banguê tocando ao mesmo tempo, você vai perceber que é um mesmo quatro por quatro. Na dança, você vai ver a mesma cena, com os 249
mesmos passos. A mesma levada de braço, a mesma rodada de mão. A mesma sensibilidade. Eu descobri isso em um momento muito legal, num pesqueiro em Marajó. Eu fiz um show no Festival do Búfalo e no outro dia fui ver uma apresentação de banguê. Aí a moça entrou e foi fazendo a dança com todas as levadas que eu tinha visto na noite anterior, no show, só que desacelerado, ou seja, baixou o compasso e a coisa ficou muito linda, sensual. Acelerou, virou o nosso brega, o nosso tecnobrega, o nosso melody, a junção de tudo, entendeu? Naquele dia, eu fiz uma canção que chama “Brega carimbó”, que começa com um solo de flauta, que era a mesma música que estava tocando lá no momento, e que conta a história de todo o ritual. “Ela coloca a mão na cabecinha e vai descendo, ela bota a mão na cinturinha e vai girando, e sai dizendo que esse meu brega é carimbó.” Ou seja, a música acaba sendo a mesma. O brega é carimbó, e o carimbó é brega. Então essa influência dos batuques e da dança indígena acaba chegando com força. Eu pelo menos gosto muito de olhar assim. É por isso que eu viajo. Eu não costumo perder show em lugar nenhum. Como é o seu show? Onde você toca? Você compete com as aparelhagens? Normalmente, nós somos parceiros. Para o show, eu levo quatro bailarinos, duas moças e dois rapazes, a banda completa, com seis músicos no palco, toda uma estrutura de luz, e levamos LED também. Vocês são muito criticados? Como são as críticas? Muito! São valores diferenciados. Eu costumo falar dessa forma. E é o ângulo de que você olha. Eu olho a música da maneira que aprendi a olhar, da maneira que nasci olhando. Eu só fui entender o que era o funk no Rio de Janeiro quando eu fui chegando no show da Calypso e vi o DJ tocando e o povo dançando. Ali eu entendi. Existe um preconceito com a música. As pessoas vão a Belém, mas não se permitem ir à Pororoca, ir às casas de shows. Então é a maneira com que você olha. O brega para o Brasil é algo horrível, para nós é música. A música paraense não conseguia tocar nas rádios brasileiras, nem mesmo nas de Belém. Reginaldo Rossi tocava em todo canto, mas as músicas do Pará não. Depois que o Roberto Villar lançou o primeiro disco, todo mundo foi lançando depois, então fizemos um movimento e conseguimos furar um pouco isso, mas até hoje continua a resistência. Nós conseguimos muita coisa, mas o preconceito continua. 250
Quais são os grandes artistas paraenses antes de vocês? Teddy Max, Alípio Martins e o Beto Barbosa. Na primeira era, de 1980 a 1990. De 1990 para cá, já tem a Banda Calypso. Outras bandas andaram pelo Brasil, mas não fizeram tanto sucesso como Calypso. Fora Fafá de Belém, que foi nossa representante. Eu conheço a Fafá muito bem, adoro ela, sou fã. Ela é uma pessoa divertidíssima. Onde ela chega ganha espaço. Nada fica no lugar onde ela chega. E eu acho isso muito lindo, ela vende o Pará. E ela sempre vendeu a música. Só que ela tem uma linha musical que é mais para o lado da MPB, o que chamam de MPB. Não é muito vinculado com o povão mesmo, com a periferia. Você vive em um dos estados com maior grau de violência, inclusive violência política. Como você vê isso, essa realidade? Quando a gente anda no sul do Pará, São Félix do Xingu, Eldorado dos Carajás, a gente fica triste porque a coisa continua do mesmo jeito. Continuo vendo a BR-151 daquela mesma maneira. Tem um povo muito carente, a maioria é imigrante mesmo, do Nordeste. Você sente um clima muito pesado, como se você estivesse em outro Pará. Daí a ideia de dividir o Pará em três, o estado Carajás, o estado Tapajós e o do Pará em si. É um estado muito grande, então você vê essa diferença, inclusive musical. O ritmo muda quando você chega a Redenção: ele vira sertanejo. Em Conceição do Araguaia, a influência já é de Goiás. Nas cidades em Baixo Tocantins, como Tucuruí, você já vê a influência da musicalidade paraense, central. Os ritmos aparelhados não vão a Redenção. E a estrada é muito ruim, violenta, tem assalto à noite. Eu faço show muito à noite, e a gente acaba sendo refém dessa política que não existe. Vocês se posicionam politicamente enquanto artistas? Pela primeira vez, nós estamos entrando mais diretamente na história, assumindo um caráter político, porque nós sempre participamos da campanha fazendo shows, mas nunca dando opinião. Tem um artista amigo nosso que está colocando sua cara a tapa agora: é candidato a deputado estadual. Porque quando você faz show de campanha não tem uma entrada muito forte. O compositor tem de ser músico, cantor e produtor também? 251
É importante ser. O próprio SEBRAE está dando curso para isso. Existe essa necessidade de ser compositor, produtor, técnico. Você precisa mixar, remasterizar e fazer todas as partes de um projeto artístico, porque ficou muito difícil encontrar parceiros que financiem essas atividades. Acho que é uma problema nacional. Vemos isso por todos os lugares que passamos. As empresas não querem vincular sua marca com o artista popularzão mesmo, com o estilo de música que ele faz. A Vale do Rio Doce dá dinheiro para Salvador, mas não dá para o estado do Pará. O artista do Pará tem dificuldade em se promover. Para você ter uma ideia, o maior empresário que está investindo em aparelhagem hoje não é paraense, é do Paraná. Ele veio de outro estado, viu que aquilo era um nicho e acabou transformando isso em dinheiro. Quantos discos e DVDs você fez? Tenho nove discos e um DVD. Estou indo para o décimo agora. Nove em quanto tempo? De 1996 para cá. Sempre doando o dia para estúdio, compondo, fazendo os vocais, viajando os finais de semana. Normalmente, viajando sexta, sábado e domingo. Quando fazemos shows em Santarém, a coisa aperta. Viajamos sempre de barco. É mais caro ir para Santarém do que ir para São Paulo. Uma viagem de barco dura três dias. Já vamos compondo no caminho. “Beija-flor”, “Tua boca”, entre outras músicas, saíram nas viagens para Santarém Quanto investimento tem por disco? O investimento é só seu ou tem alguém que invista? Está dando para viver assim? O investimento é 100% nosso. Dá para viver. Eu costumo dizer que vou viver da música, mas não vou ficar rico, porque eu tenho um olhar diferente da música. Se for para compor música só para fazer sucesso, eu não faço. Eu tento levar a música para o povo, para aquele determinado público, para ver a alegria das pessoas. Se for um sucesso nacional, é coisa de Deus. A gente não busca falar das cores do Flamengo só porque o Flamengo vai ser campeão. Uma coisa que não pode faltar: fale do rio Amazonas. O rio Amazonas é um caminho. Nós chamamos de rua. Esse rio é a minha rua. É por lá que a gente faz tudo. É por lá que a gente navega, é por lá que a 252
gente caminha. Na última música minha, eu digo: “Um beijo nos braços do rio”, é o que eu dou todas as vezes que saio de Belém, porque, em cada lugar que o barco vai parando, a gente vai tomando banho. O rio Amazonas é a nossa vida. É de lá que nós tiramos tudo. É lá que vamos fazer nossos shows. O nosso peixe vem de lá. As grandes histórias vêm de lá. É vida pura. Não tem como falar de outra maneira. É o nosso braço à distância.
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MC Leonardo Compositor e cantor de funk carioca.
Leonardo, você é filho de repentista? Sim. Meu pai chegou a gravar com Jackson do Pandeiro. Como você chegou ao funk? Até os dez anos, minha trilha sonora era esta: coco, xaxado, embolada, baião, forró. Em 1985, com a explosão do samba do Cacique de Ramos, comecei a escutar pagode também. Foi no final de 1989 que chegou às minhas mãos o Funk Brasil, coletânea de “melôs” produzida pelo DJ Marlboro. Em 1992, fui a um baile funk pela primeira vez – na segunda, já fui para cantar. Se a Bahia deu régua e compasso a Gil, a Rocinha me deu a papelaria toda. Aquela batida me dava condições de pôr tudo para fora. Assim, comecei uma dupla com meu irmão: Júnior e Leonardo. No dia 2 de outubro de 2010, fizemos 18 anos de carreira. Devo ao funk tudo que tenho, e por todo esse tempo tenho lutado por um olhar diferenciado da política no Rio de Janeiro, que sempre colocou nas mãos da Secretaria de Segurança Pública os assuntos voltados ao funk. Em setembro do ano passo, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro aprovou (com unanimidade) o projeto que eleva o funk a movimento cultural. O estado finalmente passou a reconhecer o funk como cultura carioca, tanto em caráter artístico quanto pedagógico. 255
Você pode falar um pouco sobre a história do baile funk? Cara, o primeiro baile funk registrado aqui no Rio foi, se não me engano, dia 17 de julho de1969. Na época, eram chamados bailes black. As equipes de som no Rio de Janeiro tinham muita dificuldade para trabalhar, por conta do peso dos equipamentos. Portanto, cada área no Rio de Janeiro passou a ter sua própria equipe de som: o morro do Cantagalo tinha a Curtisom Rio, lá em Niterói tinha a Duda’s e a People’s, a Furacão 2000 era da zona Norte da cidade, da Baixada Fluminense, e assim ficou por um bom tempo. O DJ Marlboro, por não ter equipe e ser uma pessoa altamente visionária, começou a fazer produção no final dos anos 1980 e conseguiu colocar o funk em outros lugares, inclusive na boate Skala. Em 1995, eu e Júnior gravamos o De baile em baile, o primeiro disco de uma dupla de MCs gravado por uma multinacional. Gravamos o primeiro clipe de funk, o “Rap das armas”, na TV Zero. Isso tudo foi muito bom, no sentido de garantir tratamento de artista para o MC, mas eu costumo dizer que o funk é da maneira que é por ser espontâneo, democrático, e se colocou à disposição da favela. O funk cabe no bolso do favelado. A entrada no tradicional baile funk do Rio de Janeiro custa só R$ 6,00, sendo que mulheres, até meia-noite, não pagam. Depois de meia-noite, pagam só R$ 3,00. É uma cultura que não tem por que acabar. É igual ao Sol, onde tem espaço o funk entra! Por conta disso, o funk sempre foi condenado. Colocaram tanta coisa na conta do funk que, em alguns lugares, os bailes foram totalmente inviabilizados. Quando os problemas com a polícia começaram? Sempre houve, mas pioraram no auge do funk, quando o governo constatou que os bailes só perdiam para as praias em termos de frequência – e isso no verão! O baile ganhava e ainda ganha do futebol, por exemplo. O governo devia ter se aproximado, visto o que poderia fazer para que a cidade lucrasse, mas isso não aconteceu. Por ser um ritmo jovem, negro e pobre, ele paga um preço muito caro. Costumo dizer que, de cada quatro shows que fiz na vida, três foram de graça. Cantamos muito em favela de graça e seguimos cantando. Hoje em dia, temos feito alguns trabalhos em presídios, em universidades, em colégios, mas principalmente dentro das favelas, para mostrar às pessoas que o funk tem que continuar como está. Só falta a classe se unir mais. Só falta o setor se unir, para discutirmos questões relacionadas ao funk: de que maneira podemos levar a efeito nossas produções, que responsabilidades 256
devem ser observadas nas letras, nos estilos, na própria estética do funk. Sabemos que toda sociedade, grupo ou instituição que não tinha regras para respeitar acabou se autodestruindo. Não queremos isso para o funk. Nós, que somos da época em que o funk cresceu, entendemos a responsabilidade que vem junto com o microfone. Agora, o moleque da favela não sabe. Ele não sabe as responsabilidades que tem – não sabe nem dos próprios direitos! O cara que há 25 anos está pintando faixa anunciando “Show de Fulano” é um propagador de cultura, mas não sabe nem o que é um edital. O que é a APA Funk? A questão não é só reunir a classe para reclamar, é abordar o governo já com soluções em mente. Por isso fundei a APA Funk – Associação de Profissionais e Amigos do Funk, a qual presido até hoje. Consegui chamar a atenção da juventude carioca, dos gremistas, da galera dos DCEs. Passei a escrever para a revista Caros Amigos, o que deu visibilidade ainda maior à associação. Como funciona, em linhas gerais, o mercado do funk? No Rio de Janeiro, temos duas rádios grandes que trabalham com funk: a do DJ Marlboro e a do Rômulo Costa. Se eu quiser tocar na do DJ Marlboro, não negocio no escuro. Ele fica com 96%, eu fico com 2%, meu irmão, com 2%. E tudo no papel, assinado. Se eu quiser fazer com o Rômulo Costa, ele não paga o fonograma, é 100% para ele. Aí não quero. Estou lutando por melhores condições de trabalho, e sabia que, para tanto, eu teria que brigar pela legalidade do funk primeiro. Agora que conseguimos isso, vamos em busca de informação. Temos uma cartilha, um passo a passo em quadrinhos que ensina a molecada o que fazer depois que a música fica pronta: o que é fonograma, o que é editora, o que é gravadora, o que é copyright. Tudo para o garoto não ir assinando qualquer papel, mas, por enquanto, o mercado do funk é este aí: fonograma não é negociável. E de onde se tira o dinheiro? Das festas, dos bailes? No caso do MC, tem a editora, que funciona normalmente: 25% para a editora e 75% para o artista, e o show, só, mas eu me nego a fazer parte desse mercado, porque sei que o show é imediatista, música é para a vida toda. Você consegue saber o valor de uma casa, de um carro, de uma roupa – de música você não sabe. Só agora estamos tomando conhecimento das questões do 257
direito autoral. De execução e direito autoral, temos recebido do mundo todo. São quase quarenta países que estão tocando o “Rap das armas”. Você pode falar um pouco a respeito do “Rap das armas” e sua mensagem? O “Rap das armas” é uma homenagem à Rocinha. Começamos com “Morro da Rocinha, área de lazer / Onde você sobe e não quer mais descer/ Do alto vê o visual / Só não dá pra ver nosso vizinho Vidigal / Vê Copacabana, Leme, Arpoador / Vê Pão de Açúcar e o Cristo Redentor / Niterói, Ipanema, Gávea e Leblon / Parque da Cidade, Pavãozinho e o Pavão / Vê o Cantagalo, Morro do Corcovado / Pedra da Gávea, Favelinha e São Conrado / Do Clube do Flamengo vê uma boa parte / Lagoa, Golf Cub, Jóckey, Tivoly Park...” Era uma brincadeira. Cantamos isso uma vez no alto do morro do Vidigal, e um moleque chamado Geleia virou para mim e falou: “Cara, agora bota umas armas nessa música, que a melodia está muito legal.” E colocamos, mas como crítica. Aí ficou: “Meu Brasil é um país tropical / A terra do funk e a terra do carnaval / O meu Rio de Janeiro é um cartão-postal / Mas eu vou falar de um problema nacional / parapapapapapapapapapa”. Logo depois, como é costume no funk, as pessoas pegaram a melodia e começaram a cantar outras coisas. O Cidinho e o Doca pegaram a melodia e o refrão e fizeram a versão do “morro do Dendê é ruim de invadir”. Surgiu o tal “Proibidão”, que nada mais é do que um fantasma. O proibidão é reflexo do que aconteceu com o funk nesse tempo todo. O funk foi segregado. Cobrar puritanismo do funk é uma hipocrisia. Quem é puro? Cobrar que o funk seja politicamente correto e, o que é pior, cobrar que o funk tenha responsabilidade social: mas qual é o ritmo hoje em dia no Brasil que tem responsabilidade social? Você vai cobrar responsabilidade social de uma classe que nem sabe o que é isso? Sem nenhuma ajuda do governo, sem nenhuma influência ou política favorável, o funk se tornou uma indústria que movimenta de R$ 10 a 12 milhões de reais por mês, segundo pesquisa feita pela Fundação Getúlio Vargas. Como incentivar ainda mais seu crescimento? É só olhar um pouco mais de perto e ver que o funk não precisa lá de muita coisa. Quando teve a Red Bull Funk-se, em comemoração aos quarenta anos do primeiro baile black, tomei conhecimento de que os bailes cariocas são os eventos onde mais se consome Red Bull no mundo. E o consumo de Halls? Os números estão na FGV – nenhuma outra marca se aproxima. Ninguém dá 258
essa olhada mais de perto porque o movimento está criminalizado, ponto. O cara sabe que o produto dele vende lá, mas não quer vê-lo oficialmente associado a eventos suspeitos. A favela é cercada pelo crime, mas ela não é responsável por ele. A favela sorri, a favela chora, a favela fica tensa, porque a favela é todo mundo junto. Costumo dizer que a gente corta a cebola e é o vizinho que chora, de tão colados. Existe um sistema de vivência, de aceitação do próximo e de participação na vida alheia. O funk beneficia a todos na favela, todo o comércio lucra com ele. Agora, é preciso ensinar ao pessoal o que é incentivo, e isso significa atuar no campo das políticas públicas. O cara faz o projeto, mas para quem tem que apresentar? Ele precisa entender o papel do Ministério da Cultura, entender a diferença entre secretaria e ministério, deputado e senador. Tem que reunir todo mundo, todo o setor. Sei que o funk é grande demais para caber numa só associação, mas a APA Funk é um ponto de partida. Essa pesquisa da FGV que você citou oferece outro dado surpreendente: quem mais fatura na cadeia produtiva do funk, ganhando em média R$ 4.140,00 mensais, é o MC. Muitos achavam que era o dono da que equipe de som. Como você vê isso? Discordo dessa média. Não levaram alguns fatores importantes em consideração. Para chegar a um número mais ou menos razoável, a pesquisa devia ter durado só três meses. O MC que mais vendia shows na época, por exemplo, cobrava R$ 35 mil por apresentação. Hoje não é o caso. Essa quantia que você falou, por exemplo, eu não ganho. Os bailes no Rio de Janeiro têm a coisa das editoras e das gravadoras... O cara que toca a minha música na rádio é o mesmo cara que é o dono da editora, que é o dono da gravadora, e que vai vender o meu show: é o produtor. Isso está errado. O artista fica preso a uma série de contratos-padrão, negocia-se arte como se fosse um telefone celular. Não é só o show, não é só a entrada do baile, tem todo um processo por trás. Até os donos das equipes de som estão à beira do abismo. Para você entender o grau de exclusão, outro dia fui pedir o e-mail de um deles e o cara respondeu: “Não tenho.” O que é a “roda de funk”? A roda de funk é uma invenção nossa. A gente chega e monta duas caixinhas de som na Central do Brasil, reúne duas mil pessoas em vinte minutos. Dura mais 259
ou menos quatro horas, e a única regra é não repetir música. Dá para virar a noite fácil, só cantando primeira estrofe e refrão. Estamos até negociando um programa na Rádio Nacional agora, só falta resolver umas coisas burocráticas. Como você encara a questão da sexualidade nas letras de funk? A sensualidade é um traço muito forte do funk carioca, mas muitas vezes alguns artistas rompem a barreira da ética. Os caras começam a falar muito palavrão, aí fica proibitivo. Não pode ouvir muito alto, que a vizinha reclama, sua namorada se ofende, mas é importante ressaltar que o funk não é só isso. Há uma quantidade imensa de MCs do Rio de Janeiro que falam de tudo: da dengue, da chuva, do barraco que está quase caindo, da menina bonitinha que ele está a fim de namorar. As músicas românticas dos MCs cariocas são muito bonitas! Enfim, as pessoas têm que entender que cabe tudo no funk. Você consegue colocar o Hino Nacional, Bolero de Ravel, a Sexta Sinfonia, tudo. Essa é a riqueza do ritmo. E ele se doa muito bem a outros gêneros – como o rock. Gravamos com o Tihuana no ano passado, por exemplo, e foi muito louco cantar o “Rap das armas” em cima de bateria e guitarra e tudo mais. Gravamos com Fernanda Abreu, gravamos uma participação no show do Lulu Santos. Qual a projeção do funk fora do Rio de Janeiro? Tem um mercado em Porto Alegre, uma molecadinha lá fazendo show. Acho isso do caramba. Brasília tem uns MCs, mas não pagam os meninos direito. Se a gente quisesse arrumar um segundo Rio de Janeiro, teria de ser Santos. Em terceiro lugar, vem o Espírito Santo, onde se enxerga um movimento bem nitidamente. Tem um pessoal em Minas – Juiz de Fora, Belo Horizonte, há muito MCs lá. E tem diferença de som entre eles? Não, não tem muita diferença, não. Eles ficam sempre muito ligados no que se passa no Rio de Janeiro. Um rapaz que tem feito muito sucesso agora no Rio, chamado Romeu, teve uma trajetória interessante: começou aqui, não conseguiu arrumar nada, e rumou para Juiz de Fora, onde fez um público considerável. Conseguiu produzir sua música lá e hoje é primeiro lugar em rádio carioca. Ele conta a história de um rapaz que larga o crime por amor. Uma história com início, meio e fim, como não se vê há um tempo no funk carioca. 260
E Norte e Nordeste? Seguem firmes, comprando muitos shows. Fizemos oito cidades no ano passado. Coisa engraçada foi descer em Cruzeiro do Sul, no Acre, sem saber se alguém naquele lugar gostava de funk. Era uma cidade de vinte mil habitantes, e conseguimos colocar quatro mil num clube. É caso de pensar – o funk está na Oktoberfest, em Barretos, em tudo quanto é festa. Como é que ainda insistem em dizer que não é cultura? Não me ofendo se dizem que é feio, não me ofendo se dizem que é pobre, mas fico muito ofendido quando negam o estatuto de cultura ao funk. Está em todos os lugares, em todos os locais. E a ligação do funk com o rap paulista, como é? Temos uma ligação muito forte com o Mano Brown. O pessoal dos Racionais já foi a alguns shows nossos. Em geral, somos sempre muito bem recebidos. Se há algum tipo de rixa entre o hip-hop e o funk, não conheço. E, se existe de verdade, farei tudo que puder para acabar com isso. O hip-hop está aí há muito tempo, tem muito prestígio e não tem lugar para tocar. A gente vai para São Paulo e vê que o pessoal não tem lugar como a gente tem. Mesmo que tenha sido depois de muita briga, depois de muito polícia atirar em caixa de som, conseguimos um espaço nosso. Tiro em caixa de som? Sim, a polícia chega para invadir a favela e dá tiro nas caixas de som. Mesmo que o evento seja patrocinado pelo crime, não tem que dar tiro em caixa de som. Ninguém toca em boca de fumo porque quer, é uma questão de sobrevivência. E mesmo essa questão do patrocínio... não é bem assim. O tráfico não precisa custear o baile. Uma equipe de som custa R$ 4 mil. Se cada morador contribuir com R$ 3,00, temos um baile. Ninguém se recusa a contribuir. Como você se posiciona quanto à ocupação da Cidade de Deus, e consequente proibição dos bailes funks? A Cidade de Deus tinha quatro bailes todo final de semana há mais de vinte anos. Vem a polícia e ocupa. A UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro é uma ocupação militar dentro da favela. A polícia tem que estar na favela como parte de um programa, ela não pode ser o programa. Quando ela é o programa, não existe cultura para a comunidade. Estamos nos organi261
zando, com a ajuda do deputado Marcelo Freixo, que endossou essa lei que eleva o funk a movimento cultural. Ele me apresentou o procurador geral da justiça do Rio de Janeiro, e vamos levar isso ao Ministério Público. Da maneira que a legislação está, a favela não vai conseguir se enquadrar. Por exemplo, a obrigatoriedade do estacionamento para cem carros – não temos condições. O funk deixará de ser democrático. Qualquer diretor de gravadora está mais preocupado em vender gente bonitinha do que música. Isso não acontece com o funk. O funk não exige que eu tenha todos os dentes da boca, não exige que eu seja bonito, sarado, novo, velho, branco, preto. Por conta disso, há um leque bem diverso de artistas no movimento. Isso não pode acabar, não pode elitizar. Hoje, se o moleque da Cidade de Deus quiser ouvir funk, a opção mais próxima é o São Nunca, na Barra da Tijuca, onde a entrada custa R$ 100,00, a long neck custa R$ 14,00. Tem que ter R$ 400,00 no bolso para curtir a noite, é isso mesmo? Não, melhor ficar em casa. A ocupação policial, a UPP, está lá para promover a paz, mas é paz mesmo. Sem pagode, sem funk, sem festa, sem nada. É paz dentro de casa. Leonardo, fale um pouco sobre as letras que, na sua opinião, compõem a história do funk carioca? Primeiro o de Acari: “Numa loja da cidade eu fui comprar um fogão / Mas me assustei com o preço”, que era um funk que saiu no Funk Brasil N.º 1. Depois veio o “Rap do pirão” com D’Eddy: “Ô alô pirão / alô alô Boa Vistão”, que deu início a essa galera toda aí. Logo depois, veio o MC Galo: “Ô lelê”, lá da Rocinha, “Ô lalá”. Comecei a cantar por causa dele, mas não foi tanto uma questão de influência musical. Creio que, se tivesse nascido na Paraíba, teria me tornado vocalista de banda de forró. É a música que me emociona, música de protesto. Um dos ritmos que mais protestou nesse país foi o forró. Sempre me identifiquei muito com aquela maneira do Luiz Gonzaga falar, de mostrar para o mundo como era o pau de arara, a seca, a fome. O funk segue a mesma lógica: o moleque da favela estava ali, explicando seu contexto para o Brasil. Tanto que existia uma maneira muito particular de se fazer rap no Rio de Janeiro: o MC chegava e falava: “Eu moro na favela, que é o melhor lugar do mundo etc.” No final, ele dizia: “Eu sou MC Fulano”, e o rap acabava. Era um método, uma fórmula. E, claro, tem o grande “Rap da felicidade’’, internacionalmente conhecido, feito por um capoeirista e uma mulher lá da Cidade de Deus, a Kátia e o Rasta, falecido há pouco com problemas de saúde. 262
Você pode falar um pouco sobre o “Rap da felicidade’’? Cantar um trecho? “Mas eu só quero é ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci / E poder me orgulhar / E ter a consciência que o pobre tem o seu lugar / Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer / Com tanta violência eu sinto medo de morrer / Eu moro na favela e sou muito desrespeitado / A tristeza e a alegria que caminham lado a lado / Eu faço uma oração para uma santa protetora / Mas sou interrompido a tiro de metralhadora...” Enfim... tem gente que fala que essa música condena o cara a ser favelado para sempre. Esse conceito de que a favela tem que acabar é uma utopia. A favela não vai continuar? Vai para onde, então? Me avisa que eu vou atrás! As favelas sempre foram encaradas como um problema no Rio de Janeiro, quando, na verdade, são uma solução. Era a única solução urbanística possível para aquelas pessoas que ajudaram a construir a cidade mas não tinham onde morar. Foi assim que os nordestinos e os negros recém-alforriados encontraram moradia. E foi numa dessas que nasci, num barraco de madeira na Rocinha. Ali dentro não tem dinheiro do Banco do Brasil, do BNDES, da Caixa Econômica, não tem. No começo dos anos 1980 houve até uma melhoria, mas tudo muito precário. Por isso que torço tanto para que o projeto do PAC do Rio de Janeiro dê certo. E “dar certo” significa aparelhar as favelas com instituições de ensino superior, inaugurar uma Universidade Federal da Rocinha, uma Universidade Federal da Maré. É o voluntariado chegar junto: dentistas, advogados, professores. A favela está muito carente de coisas hoje. Não podemos depender só de projetos a longo prazo.
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Regina Barbosa Articuladora da ONG Ideário.
O que veio antes, a produção cultural ou a Ideário? Eu diria que foi a criação cultural. Já fazíamos outras coisas antes, mas aí foi surgindo a necessidade de se profissionalizar. A Ideário surgiu como um canal para desaguar algumas das nossas produções – já percebíamos que precisávamos não só produzir, mas criar vias de acesso ao público. Quem são as pessoas que fundaram? Eu fundei e carreguei o piano por muito tempo, junto com mais algumas pessoas mais ativas na época, como o Hermano Figueiredo, meu marido, na área cinema, e a Marise, que é uma pedagoga que trabalhava com incentivo à leitura. Depois foram surgindo outras pessoas, as quais entravam como estagiários em alguns projetos. As pessoas que estão lá hoje são as que trabalharam em algum projeto e fazem agora coisas que, há oito anos atrás, fundadores faziam. Como era esse ambiente cultural em Maceió quando vocês começaram? Eu diria que era muito mais precário. Em termos de produção cultural, só existiam aquelas pessoas que faziam o trabalho de mercado. Então, tanto na produção cultural, como no trabalho enquanto ONG, fomos nós que come265
çamos essa discussão na área da cultura. A Ideário que começou a reivindicar uma lei de incentivo à cultura, a fazer os primeiros projetos, a ficar antenado com o que estava acontecendo lá fora e a falar de uma série de coisas que não estavam sendo faladas na época. Quais foram as ideias que deram origem à Ideário? A ideia era de produzir conhecimentos, principalmente na área de literatura e audiovisual, e de difundir esses conhecimentos, porque já tínhamos vivido situações de produzir livros e filmes e não ter como escoar essa produção, fazer chegar ao público. Até hoje, nosso trabalho está muito pautado em fazer nossa produção chegar até o povo. Para fazer o público ter acesso a produção, não basta fazê-la chegar à sala de exibição, ou na livraria, é preciso fazê-lo chegar até o produto. Como vocês pensam isso? Como estamos localizados em um dos estados com os piores índices de desenvolvimento humano, não interessa fazer com que a produção chegue apenas para as pessoas que já tem facilidade de acesso. Muitos de nossos projetos têm esse caráter de, por exemplo, levar o cinema para locais onde a população nunca teve acesso a salas de projeção. O Acenda uma vela é um dos nossos projetos mais emblemáticos. É um trabalho superbonito e superpoético, no qual a tela passa a ser a vela das embarcações da comunidade de pescadores. O projeto é feito de forma muito gostosa, todo mundo curte muito, e há uma interação muito grande com os pescadores. Nosso trabalho se dá também em cima da conversa e interação com a comunidade. Trabalhamos com muito equipamento, com uma equipe bem legal, mas não é uma superprodução. No início, fazíamos praticamente sem grana nenhuma, eram duas ou três pessoas que botavam o equipamento dentro de um carro, falavam com um pescador, pegavam sua jangada e passavam o filme. Hoje temos recursos, somos apoiados por instituições e até já ganhamos prêmios. Estamos em outro estágio, mas mantemos as mesmas características de quando começamos. Fazemos uma pré-produção, escolhemos o local, checamos a tábua de marés, além das etapas anteriores, de seleção de filmes. Hoje trabalhamos com um amplo leque de realizadores, com o pessoal da ABD, a Associação Brasileira de Documentaristas, e o pessoal ligado à animação. Cada filme exibido é discutido e conversado com a comunidade, e prioriza266
mos a exibição de curtas-metragens, já que, através deles, a interação com o público se dá mais facilmente. Trabalhamos também a questão da população desligar a televisão, sair de casa, ir para praça, para beira da praia, do rio. O Hermano, que idealizou o projeto, sempre diz que esse é o melhor cinema do Brasil, porque a tela é uma vela, o chão é a areia e o teto são as estrelas... O projeto já entrou na agenda da cidade? Alagoas não tem nenhum festival de cinema, essa é a mostra de cinema mais importante da região e que acontece de forma mais regular. Além disso, a mostra acontece em várias cidades e, por incrível que pareça, não recebemos apoio do Governo do Estado ou das prefeituras. O evento sempre corre o risco de acabar se, em um ano ou dois, não tivermos mais o apoio do Governo Federal. Por mais que o evento tenha força, tenha importância, ele corre esse risco. Infelizmente, Alagoas é um estado com uma política cultural muito precária. Não temos, até hoje, uma lei de incentivo à cultura realmente efetivada. Em um estado com esse tipo de precariedade, como criar agendas culturais, promover a permanência de projetos? Desde o início da Ideário nos preocupamos muito com isso e nos envolvemos bastante, inclusive na militância, para tentar dar mais sustentabilidade a alguns projetos, e fomentar o trabalho cultural. Mas esse é um trabalho muito árduo, exatamente por causa da visão precária sobre a produção cultural local. Hoje até melhorou bastante, talvez forçado pela política federal. O próprio Ministério da Cultura, ao fazer as parcerias com os governos locais, incentiva outro tipo de política. Os discursos hoje são bem diferentes do que eu ouvia há dez anos. Mas, na prática, a gente ainda não tem tantas mudanças. É uma luta árdua. Como fazer com que as pessoas possam viver de produção cultural, que ela se torne profissional e deixe de ser voluntarismo? A minha principal preocupação, e minha principal crítica, é que já não basta mais só trabalhar na cultura, nós precisamos ter realmente condição de ser um trabalhador da cultura e ter qualidade de vida. E aí vai dando uma sensação de desencanto. Trabalha-se muito, batalha-se muito e não se vê os resultados. Continua-se sem condição financeira de sobreviver disso. Conheço muitas pessoas que partem para a produção, mas que, na verdade, são artistas. 267
Eu, por exemplo, sou escritora, trabalho na área de literatura, e para conseguir criar e ver os trabalhos sendo realizados, comecei a produzir, assumindo vários compromissos novos. E de repente, me vi sem tempo para criação artística. O modelo em que o artista cria, o produtor produz e o gestor gere talvez funcione de forma muito bacana para os artistas que já estão estabelecidos, que já têm um nome e uma equipe com que possam trabalhar. Mas pra quem não tem essa infraestrutura, fazer isso tudo não é fácil, as coisas vão se confundindo e o artista acaba se vendo sem tempo para cuidar da própria obra. Muitas pessoas caem de paraquedas na produção, sem fazer um curso específico, e aprendem na prática, na marra. A produção cultural foi se multiplicando nos últimos anos, envolvendo vários grupos que, na verdade, não se profissionalizaram. Acredito que o fato de as pessoas aprenderem na marra é reflexo de que a cultura nunca foi encarada como uma economia importante. Agora isso está mudando. Há 10 ou 20 anos, em diversos lugares do país, esse tema era uma grande novidade, ou praticamente não existia, nem nas salas de aula, nem nas universidades. Hoje vivemos outra realidade. Em diversas cidades do interior, existem muitas pessoas produzindo, com vontade de fazer e aprender. Ainda não existem cursos o suficiente, é claro, mas a demanda está crescendo. Quais dicas você daria para um jovem que está pensando em ser produtor cultural? É preciso ter muita noção de planejamento. O imediatismo realmente não ajuda. A questão é planejar e ter a capacidade de gerir, de saber cada passo que será dado. E, principalmente, entender que se está gerindo uma equipe, um recurso. Não é só o resultado que importa, tem que saber lidar com o grupo, ouvir um grupo. Enfim, a sinergia de um grupo faz muita diferença no resultado de um trabalho. O imediatismo é muito recorrente na área de cultura. É preciso saber dizer não, mesmo para uma ideia muito boa. Uma das questões em debate agora é a de pagar ou não o produtor cultural. Já vivemos muito esse dilema. Muitas vezes precisávamos de equipe para fazer determinadas coisas e envolvíamos pessoas que estavam fazendo pela paixão, que se comprometiam a ir, mas que não iam. Quer dizer, quando não se tem pagamento, o compromisso não é tão sério. Na medida em que não 268
se estabelece esses vínculos, as pessoas vão se desgastando muito. O que acontece também é de empresas e instituições nos chamarem para desenvolver trabalhos em datas determinadas e, muitas vezes, não termos equipes disponíveis. Isso gera um conflito, porque as pessoas acham que, por sermos uma ONG, temos que prestar esse serviço na hora que elas bem entenderem, e sem cobrar nada. Isso enquanto enfrentamos uma dificuldade muito grande para nos manter, para pagar as contas e ter uma equipe mínima para realizar os nossos compromissos já firmados. Por que vocês optaram por uma ONG em vez de um coletivo, uma empresa? Na época não tínhamos muita noção, só sabíamos que não dava para ser uma empresa, porque já vínhamos de uma experiência de mercado, e em Alagoas, o mercado era muito restrito. Na verdade, estar no terceiro setor criava uma relação com ideias que não se encaixavam no mercado e, para dar conta dos trabalhos que queríamos, fazia mais sentido. Como você vê a relação com o ponto de cultura? Desde o início, participei bastante do programa Cultura Viva. É uma iniciativa extremamente interessante, muito bacana do ponto de vista do conceito, principalmente pela ousadia de envolver tantos grupos. Mas, na verdade, acho que não temos estrutura estatal para abarcar essa quantidade toda. Além disso, tem toda a burocracia, a forma como os grupos tiveram que lidar com recursos públicos sem estar preparados e sem saber a loucura que era fazer convênio com o Governo Federal. O Fundo Nacional de Cultura (FNC) é extremamente rígido, complexo. Muita gente foi entrando nessa sem refletir, sem entender exatamente quais eram os compromissos que estavam assumindo. Depois houve algumas mudanças bacanas no programa e chegaram a um ponto interessante. Na verdade, foi um risco que se correu, mas que mexeu muito, mostrou muita coisa boa que tem nesse país. E a principal crítica é que a estrutura do Governo Federal para trabalhar com os grupos culturais precisa mudar. O Ministério da Cultura, por exemplo, faz o mesmo convênio com o Governo de São Paulo, que tem uma ótima estrutura administrativa, e com o ponto de cultura de uma tribo indígena. É muito desigual e precisa mudar. É preciso uma legislação mais flexível, como parâmetros diferenciados. A grande questão é que, se esses grupos conseguem provar que estão executando seus trabalhos, se eles possuem um reconhecimento 269
público, não precisam arcar com toda essa burocracia contábil, porque ela gera uma camisa de força terrível. E gera um desvio do esforço... Exatamente. Eu acompanhei a agonia de muitos grupos culturais, de muitas figuras maravilhosas que, de vez em quando, eu ia socorrer. Figuras que tinham um trabalho maravilhoso e que não eram para estar ali, quebrando cabeça para fechar uma planilha de prestação de contas. Muitas pessoas se perguntam por que esses grupos fazem o convênio. Mas, para um folguedo tradicional, que se apresenta anualmente há 10 ou 20 anos e que faz um sacrifício enorme para conseguir recurso para comprar roupas, instrumentos, quando aparece o convênio e a possibilidade de ter um recurso, as pessoas ficam muito animadas. Essa questão é complicada, teria que separar o joio do trigo, porque tem muita gente que pega recurso público e não faz um bom uso. Então, é claro que teria que existir um controle do Estado. Eu sou a favor da total transparência, tem que ter o controle, a comprovação de que o recurso foi usado para fins interessantes. As pessoas têm que ter consciência de que, quando se pega um recurso público, é preciso usá-lo da forma mais correta. Com toda essa experiência acumulada a partir do trabalho em Alagoas, você nunca teve vontade de virar gestora? Não. É exatamente isso que não quero. Prefiro estar mais na ponta mesmo. A produção ainda me seduz, porque, no dia a dia, você está mais próximo do trabalho artístico. A política cultural é como uma cachaça, a gente se envolve, se mobiliza. Mas a gestão vai afastando você cada vez mais da própria criação e, atualmente, eu quero atentar para esse lado. Ao mesmo tempo, quando se faz produção cultural, você traz um monte de informação nova para sua obra. Você se vê num mundo muito rico e isso acaba influenciando a obra, não é? Pode ser. Hoje eu não vejo o artista como uma pessoa especial, que não tem nenhuma relação com o mundo real. Nós somos trabalhadores como outros quaisquer. E viver esse mundo real, com todas essas dificuldades, encarar todos os desafios que a produção nos obriga a encarar, gera um amadurecimento interessante. É claro que tem uns exageros que são ruins, principalmente quando se vai entrando numa coisa muito mecânica, em uma pauleira muito 270
grande, de muito estresse, de muita correria, mas se não tiver esse exagero, produzir é muito bom para o amadurecimento, para abrir a cabeça, ter uma visão inclusive mais lúcida da realidade e conviver com pessoas diferentes. No meu trabalho com a Ideário, o principal ganho foi construir essa relação com o povo, chegar onde eles estão, conversar, entender mais da sabedoria popular. Isso foi um saldo bem positivo. Entender o sistema como um todo, como uma coisa complexa, e que todos fazem parte da cadeia produtiva, seria importante pro artista também, não é? Exato. É importante perceber que todos fazem parte dessa cadeia e que cada um está fazendo a sua parte para a coisa acontecer. Uma das coisas mais legais de se trabalhar em grupo é que cada um faz o que é sua expertise, o que gosta, e aí não gera uma relação de desconfiança. Todo mundo torce para que o outro faça bem feito. Na Ideário nem sempre a gente conseguiu isso de uma forma bacana, plena, porque muitas vezes a grana era pouca e as pessoas tinham que acumular funções. Então os conflitos existiam, mas sempre com diálogo, porque ninguém ali estava pegando dinheiro do outro, não existia essa relação de lucro. A grana às vezes gera relações muito complicadas de valores, qual trabalho ganha mais, qual vale menos. A Ideário sentiu o impacto da cultura digital nesse processo? Sim, até porque fomos aos poucos usando as linguagens digitais, usando o processo colaborativo, tendo uma visão de direito público, trabalhando a questão do direito autoral, entendendo o conhecimento como uma coisa cada vez mais aberta. Além de usar a linguagem digital para facilitar a produção, para produzir mais. Todas essas possibilidades tornam mais simples o processo. É mais fácil se fazer esse tipo de relação de grupo, colaborativa, horizontal. Inclusive, nesse sentido, é possível fazer muita coisa com pouca grana, a partir das condições que o digital oferece.
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