Revista Pensamento Brasileiro nº1

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Moeda social na cultura Patricia Gouvea e o tempo na fotografia MAM 68: Cultura e Loucura

Sinapse: Braulio Tavares e Fausto Fawcett

Benedito Nunes e Giorgio Agamben por Oswaldo Giac贸ia Jr.

Manuela Carneiro da Cunha por Eduardo Viveiros de Castro

25 anos de IEA por Carlos Guilherme Mota



pensamento brasileiro

O Brasil vive uma vigorosa produção na cultura e no pensamento, que ainda precisa encontrar espaços de reflexão e diálogo na sociedade. Mesmo que as novas tecnologias tenham ajudado a ampliar a execução e a difusão de obras, o excesso de informação e o seu caráter fragmentário conspiram contra sua eficiência na distribuição de conhecimento contemporâneo. Como no conto de Jorge Luis Borges, a ausência de referenciais pode ser um labirinto ainda pior, e as informações correm o risco de se perderem no vazio. O mesmo acontece com a reflexão crítica sobre essa produção. Novos nomes surgiram, alguns com posicões bastante inovadoras. Mas isso não quer dizer que alcancem ressonância para além de um público restrito, mesmo entre os autores que são seus objetos de estudos. A revista Pensamento Brasileiro entra em circuito a partir desta constatação, com o objetivo de ser um espaço de renovação, divulgação e reflexão do que de melhor se produz. Para isso, contaremos com um conselho editorial formado por alguns dos mais ativos jovens pensadores da cultura brasileira contemporânea. Pensamento Brasileiro trará um diálogo aberto entre as diversas áreas da cultura e do conhecimento, estimulando os encontros, apresentando novidades e reavivando memórias. Assim como o programa de largo alcance de mesmo nome do qual faz parte, Pensamento Brasileiro trabalhará sobre quatro principios: mapeamento, apresentação, reflexão e produção da cultura e do pensamento nacional. Para o primeiro número, Pensamento Brasileiro traz um dossiê sobre o uso de moedas complementares, ou sociais, na cultura. A revista promoveu também o encontro dos escritores Braulio Tavares e Fausto Fawcett, numa conversa sobre ficção científica que resvalou para a filosofia, e reproduz trechos inéditos do evento Cultura e Loucura, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1968, com a participação de Helio Oiticica, Rogério Duarte, Lygia Pape, Caetano Veloso, Sergio Lemos e Nuno Veloso – este último, apesar de pouco conhecido, é um personagem tão interessante que mereceu um perfil só seu. Filho de criação de Cartola e ex-presidente da Ala de Compositores da Mangueira, Nuno era doutor em filosofia e foi assistente de Herbert Marcuse. Na segunda parte, Pensamento Brasileiro traz ensaios de Eduardo Viveiros de Castro (sobre Manuela Carneiro da Cunha), Osvaldo Giacoia Junior (sobre Benedito Nunes leitor de Giorgio Agamben), Carlos Guilherme Mota (sobre o Instituto de Estudos Avançados da USP), Sergio Cohn (sobre as fronteiras da poesia contemporânea) e Frederico Coelho (a arte na era da insanidade técnica). Um panorama amplo e diverso. Boa leitura!


Revista Pensamento Brasileiro [janeiro de 2012 | númeo 1] ISSN 2237-9347 Editor Sergio Cohn Imagem da Capa Patricia Gouvea Arte Sergio Cohn e Tiago Gonçalves Conselho Editorial Afonso Luz Alberto Pucheu Cesar Oiticica Filho Daniel Caetano Elisa von Randow Frederico Coelho Graziela Kunsch Guilherme Wisnik Ligia Nobre Mauricio Barros de Castro Pedro Cesarino Programa Pensamento Brasileiro Coordenador Editorial | Sergio Cohn, Azougue Editorial Consultor Acadêmico | Gabriel Cohn, Professor Emérito, USP Pensamento Brasileiro | Azougue Editorial Rua Jardim Botânico, 674 sala 605 Jardim Botânico – Rio de Janeiro - RJ CEP 22461-000 Tel: 21-2259-7712 www.pensamentobrasileiro.com.br


sumário 6 Moeda Social na Cultura | por Helena Aragão, Luana Vilutis e Sergio Cohn 12 O design da moeda | Entrevista com João de Souza Leite 18 Patricia Gouvêa | Imagens posteriores 26 Sinapse | Braulio Tavares e Fausto Fawcett 32 MAM 68 | Cultura e Loucura 42 Memória | Nuno Veloso por Mauricio Barros de Castro 46 Frederico Coelho | A obra de arte na era da insanidade técnica 51 Sergio Cohn | Tempos interessantes: um ensaio em múltiplas vozes 60 Eduardo Viveiros de Castro | Manuela Carneiro da Cunha e a antropologia como política do Entendimento 69 Osvaldo Giacoia Junior | O doce sábio da floresta amazônica 91 Carlos Guilherme Mota | O Instituto de Estudos Avançados: Avançado em quê? (25 anos de vida: 1986-2011) 97 Poema | José Luiz Herencia


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moeda social na cultura

reportagem | por helena aragão, luana vilutis, e sergio cohn “O nosso coletivo, Cubo Mágico, começou com um estúdio de ensaio para as bandas que atuavam na cena musical independente de Cuiabá. Com o tempo, surgiu uma demanda das bandas para se apresentarem, e criamos o Cubo Eventos. Com muita dificuldade começamos a criar oportunidades. Com o Cubo Eventos, começou a aumentar o número de bandas, porque aquele público que ia assistir passou a montar bandas também. Começamos a perceber que era preciso divulgar melhor as bandas, e montamos a Cubo Comunicação. No fim do ano percebemos que as bandas precisavam gravar, e criamos um estúdio de gravação. Em um ano, criamos tudo isso. O que despertou um buxixo de que o Cubo Mágico estava crescendo muito e explorando os artistas que se apresentavam junto a ele. Daí surgiu a necessidade de arranjar uma forma de remuneração para as bandas. Em espécie, a gente não conseguiria pagar. Então pensamos em estabelecer uma troca solidária. A banda poderia se apresentar e depois trocar isso por ensaio, gravação ou assessoria de imprensa. As bandas começaram a receber o Cubo Card em troca dos shows. Com isso, as bandas começaram a entender a lógica do que estávamos fazendo e voltaram a militar com a gente. A partir daí foi um processo de consolidação do sistema”. Assim Pablo Capilé lembra a criação do Cubo Card, em 2003, no Espaço Cubo, em Cuiabá, um marco na utilização de moedas sociais na cultura. Para entender a importância desta iniciativa, é preciso lembrar que grande parte da produção cultural, não apenas no Brasil, possui uma parcela importante de trabalho colaborativo e muitas vezes voluntário. Isso, se permite ações criativas intermitentes, é tradicionalmente um dos grandes dificultadores da sustentabilidade dos projetos independentes. E, nesse processo, o trabalho não é, literalmente, valorizado. Em consequência, os agentes precisam dispersar o

seu tempo em outras atividades para o sustento pessoal e dos projetos. E, na falta de tempo, estes últimos morrem. Uma solução que tem se encontrado para essa questão no Brasil é exatamente a utilização de moedas sociais, baseadas na economia solidária. Isso é potencializado com o uso das ferramentas digitais e das novas tecnologias, tanto para realizar o controle das moedas quanto para expandir o circuito. As moedas sociais são complementares às moedas correntes (no caso brasileiro, o Real), que possuem lastro em bancos comunitários ou circuitos de trocas solidárias. Elas servem, principalmente, para estimular a circulação de serviços e produtos em determinados sistemas, que podem ser caracterizados por localidades (bairros, cidades) ou redes de troca. O lastro é um elemento fundamental desse sistema solidário, é o que garante a base e o fundamento das trocas, o que legitima o valor das moedas. Não apenas traz segurança aos seus usuários, como, ao manter um câmbio paritário com o Real, permite que diferentes moedas sociais integrem o mesmo circuito de trocas. A construção do lastro pode se dar das maneiras mais diversas. O Coletivo Puraqué, Ponto de Cultura de Santarém, no Pará, alavancou sua moeda social, a Muiraquitã, a partir da Feira Cultura Digital dos Bairros e Comunidades, evento que aliou a Economia Solidária à Cultura Digital. A ampliação do lastro foi garantida por meio de uma ação socioambiental, como explica Jader Gama, integrante do coletivo. “Como as pessoas poderiam adquirir a moeda? Como nós faríamos essa moeda ter um valor de troca? Um dos principais problemas das cidades é a questão do resíduo, então fizemos uma campanha incentivando as pessoas a fazerem a coleta seletiva. Conseguimos

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uma parceria com uma recicladora de garrafas pets e as pessoas começaram a trocar conosco. Cada quilo de plástico equivale a um Muiraquitã. Durante os três dias de feira conseguimos 2.200 kg de plástico para reciclagem, e o lançamento da moeda foi um sucesso”. Fabricada com argila, a moeda circula hoje em uma área de cerca de 40 mil habitantes. Ela é utilizada para troca de serviços como oficinas em cultura digital e software livre, manutenção de computadores, cobertura de eventos, dentre outros produtos e serviços oferecidos pela Produtora Colaborativa Livre do Coletivo Puraqué (www.puraque.org.br).

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A questão do lastro é mesmo séria: ela requer um controle da circulação das moedas bastante rígido, para evitar o perigo de perda de credibilidade. O Cubo Card correu riscos nos primórdios justamente por causa disso, como lembra Capilé: “No começo, por sermos desorganizados, sem contato ainda com a economia solidária, não sabíamos o que era lastro – a gente achava que estava tendo uma ideia genial, que talvez não existisse em nenhum outro lugar. Por falta de pesquisa mesmo da nossa parte, no primeiro momento a gente distribuiu muito mais moedas do que poderia. Então, no início de 2004, rolou nosso subprime. Tínhamos 150 mil Cards na rua, e não tínhamos condições de pagar. Tivemos que trazer a iniciativa privada para perto, e aumentar

o número de pessoas. Foi ali que percebemos a importância de trabalhar coletivamente”. A frase de Capilé não é retórica. Depois disso, o Espaço Cubo originou e passou a integrar uma rede colaborativa maior, o Circuito Fora do Eixo – que, bem de acordo com o nome, agrega coletivos de produção cultural independente para trocar tecnologias sociais e ampliar sua participação na cadeia produtiva da cultura. O Circuito já contava com 106 Pontos Fora do Eixo, em 2011 espalhados por praticamente todos os estados brasileiros, e conquistando parceiros em outros países da América do Sul. Dentro dele, o intercâmbio é irrestrito. Envolve inteligência coletiva para preparar festivais, estimular a circulação de bandas em diferentes localidades e, claro, fomentar a troca de experiências sobre o uso de moedas sociais. Para isso, foi criado o Banco Fora do Eixo, núcleo de produção de conhecimento sobre economia solidária, com representantes de todas as moedas do circuito. Além do pioneiro Cubo Card, compõem o núcleo o Goma Card (do Coletivo Goma, de UberlândiaMG), o Marciano (do Massa Coletiva, de São Carlos-SP), a Lumoeda (do Coletivo Lumo, de RecifePE) e a Patativa (da RedeCem, de Fortaleza-CE). A opção de contar com várias moedas diferentes não é à toa: estimula a descentralização do cir-


cuito e o fortalecimento das identidades dos coletivos, fator importante para a consolidação das parcerias e o controle da circulação das moedas. Em geral, as moedas são concebidas de forma coletiva, desde a definição do nome – que muitas vezes remete a personagens, locais ou objetos simbólicos da comunidade – até o seu desenho. No Coletivo Goma, as trocas de serviço já até aconteciam de maneira organizada, através de planilhas virtuais onde eram marcados os escambos. Mas, segundo Débora Bernardes, integrante do grupo, o surgimento do Goma Card em 2009 promoveu uma mudança simbólica no processo. “Com a moeda em papel ficou mais fácil para os colaboradores visualizarem a troca e para novos parceiros compreenderem o sistema”. Além de valorizar o trabalho e difundir a rede, a moeda social também possibilita mensurar o custo real movimentado em uma produção cultural. Décio Coutinho, que enquanto trabalhava como coordenador de cultura do Sebrae de Goiás foi um importante parceiro do Circuito Fora do Eixo (hoje ele está na Secretaria de Cultura de Goiás), explica: “As moedas sociais, além de propiciar a troca, possibilita o acesso aos números de determinados eventos. Por exemplo, se num evento como o Festival Calango, em Cuiabá, ou na Feira da Música em Fortaleza, houve uma circulação de 10 mil Cubo Cards, ou de 10 mil Patativas, com trocas que antes seriam voluntárias e gratuitas, podemos saber que rolou ali 10 mil reais em tro-

cas. É possível medir o PIB daquele evento. Antes, isso era praticamente impossível. Então, se o movimento gerado ali foi feito através de uma moeda, pode-se ter acesso aos números. É óbvio que isso tem um desdobramento: com essa informação, é possível dialogar com o Estado ou uma instituição. Além do valor de troca, do valor de cooperação, do trabalho coletivo, criou-se uma forma de medir, de mensurar o real investimento em torno dos eventos culturais. Isso é algo inédito”. Um exemplo pode ser visto no Sistema Marciano de Trocas, criado pelo Massa Coletiva, na realização do Congresso Regional do Circuito Fora do Eixo em São Carlos (SP), em 2010. O Congresso reuniu 70 pessoas e seus organizadores viabilizaram alimentação, hospedagem, transporte, material, internet e infra-estrutura para todos os participantes. O Massa Coletiva investiu quatro mil reais e 21 mil marcianos no evento. Esse valor em moeda social foi calculado em horas trabalhadas e na troca de serviços com parceiros. “As pessoas recebiam marcianos para gastar no almoço, a partir de uma parceria entre um restaurante e o Departamento de Apoio a Economia Solidária”, conta Rafaela Soldan, participante do Massa Coletiva, ressaltando a criação de uma rede de parceiros e colaboradores a partir da moeda e das trocas. Cidade universitária com vocação para a vida cultural – e incentivo ao trabalho autogestionário,

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dado que seu departamento voltado a economia solidaria existe desde 2001 –, São Carlos tem coletivos, instituições e movimentos com tradição de criação independente que acabaram convergindo interesses comuns por meio do uso de moedas sociais. Além do Massa Coletiva, o Festival Contato, o coletivo Janela Aberta e a Incubadora Regional de Cooperativas Populares (Incoop), entre outros, formaram um grupo de trabalho em 2010 para discutir a viabilidade das moedas solidárias na cidade. O desdobramento foi além do Marciano, e alguns grupos criaram suas próprias moedas: “Achamos isso positivo, quanto mais moedas melhor, todas têm o valor de um real, então não é difícil trocar entre elas”, afirma Rafaela. A parceria entre coletivos independentes e instituições de pesquisa e estímulo à economia solidária ganhou força com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária, vinculada ao Ministério do Trabalho e dirigida pelo economista Paul Singer. “A Senaes foi criada por decisão do Presidente Lula, em fins de 2002, atendendo pedido das principais entidades de economia solidária. Ela tem por função apoiar o desenvolvimento da economia solidária no Brasil mediante o emprego dos recursos políticos e materiais disponíveis ao governo federal”, lembra Singer. Durante o Governo Lula, a Senaes manteve diálogo próximo com o Ministério da Cultura, ajudando na elaboração de políticas de economia solidária na cultura. “A parceria com

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o Ministério da Cultura deu-se principalmente pelo apoio dado aos pontos de cultura, que se organizam sob a forma de empreendimentos de economia solidária, principalmente sob a forma de feiras conjuntas em que pontos de cultura e empreendimentos de economia solidária comercializam seus produtos. As moedas sociais têm papel importante nesses eventos, permitindo uma troca mais ampla de produtos e serviços”. O valor dos serviços pode ser calculado pela quantidade de horas despendidas no seu processo de execução. A criação de um cardápio de produtos e serviços é um mecanismo que favorece a ampliação do sistema de trocas e a apropriação do processo produtivo pelo grupo, que passa a ser considerado um empreendimento econômico e solidário. Os meios digitais podem favorecer a circulação ampla desses saberes. “Criamos um blog com o cardápio”, conta Débora, do Coletivo Goma. “Todo mundo que aceita usar a moeda se cadastra no blog aceitogomacard.blogspot.com, aí pode olhar quanto custam os serviços, as outras pessoas que aceitam etc. Pelos nossos serviços costumamos cobrar menos que o valor de mercado, mas cada parceiro tem a liberdade de cobrar quanto quiser”. Uma visita ao blog mostra que muita gente prefere oferecer serviços em preços “em Gc$”, enquanto outros listam os valores, como cursos de pintura a Gc$ 15 a hora, produção de cenário a Gc$ 150 e até acupuntura a Gc$ 30 a hora.


A ampliação do uso da moeda é um dos principais desafios de todos os grupos. Em geral o desejo – e a necessidade – é que a partir dela a produção cultural se fortaleça junto a outros setores da sociedade. A moeda de argila muiraquitã está mobilizando até consórcio solidário. O coletivo Puraqué tem realizado sorteios mensais de laptops e equipamentos digitais, a partir da compra de um carnê de 50 muiraquitãs. Com isso, cada vez mais a moeda ganha credibilidade junto à população local. “Nosso desafio é fazer com que esse negócio colaborativo aumente seu lastro, que a moeda Muiraquitã vire uma espécie de banco solidário e financie micro-projetos para empreendedores colaborativos”, resume Gama, estudando ainda a criação de cartão de descontos para os usuários da moeda.

No Brasil há atualmente 52 bancos comunitários em todas as regiões do país. São organizações que promovem a inclusão financeira em comunidades onde os bancos convencionais não exis-tem ou não alcançam necessidades especificas. As meninas dos olhos desses empreendimentos são as moedas sociais e o microcrédito. Eles têm a vantagem de concentrar as riquezas geradas na própria comunidade, mas nada impede que um produtor troque moeda social por reais no balcão da instituição. O Banco Palmas, um dos pioneiros da experiência de finanças solidárias, foi criado em Fortaleza em 1998. Para incentivar o uso da moeda, descontos são negociados com comerciantes e produtores da localidade. Como se vê, o sonho de Gama não é impossível.

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o design das moedas entrevista | joão de souza leite

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Como foram as suas experiências na criação de cédulas ao lado do Aloísio Magalhães? Eu tive duas experiências junto com o Aloísio Magalhães de realizar cédulas monetárias. A primeira foi em 1967, com a primeira mudança do padrão monetário para o Cruzeiro Novo, que foi a primeira série produzida no Brasil. As matrizes eram feitas fora, na Europa, e pela primeira vez o Brasil imprimia o seu próprio dinheiro. Naquela época eu era um pirralho trabalhando como assistente dele, e só auxiliei a montagem do trabalho inicial. Depois ele enfrentou como desenvolver aquilo. E é muito interessante esse processo de desenvolvimento porque o Aloísio concebeu as primeiras cédulas do Cruzeiro baseado no moiré, que é o desenho que acontece quando se sobrepõe duas retículas – o que deixa qualquer reprodução fácil de reconhecer. Naquela época os falsificadores fotografavam o dinheiro e reproduziam em offset. O Aloísio já fez a cédula sendo moiré, inviabilizando qualquer cópia – era quase impossível você conseguir reproduzir aquele dinheiro. Era um desenho gerado mecanicamente onde ficavam muito nítidos os raios e as distorções a que ele chegava. Agora, para convencer o pessoal da Suíça, onde se faziam as matrizes, foi muito difícil. Mas eles acabaram reconhecendo que ali havia uma novidade. Era inaceitável para aqueles europeus de nariz empinado que um pernambucano chegasse com uma ideia que era realmente uma novidade no campo do dinheiro. A segunda experiência foi já em 1976, e a questão era outra: fazer as matrizes e o processo inteiro no Brasil, na Casa da Moeda. Esse trabalho foi muito interessante. A experiência que posso ter para falar sobre cédula de dinheiro vem dessa época. Nós tínhamos que pensar uma maneira própria para pensar a tecnologia existente. Se você olhasse o mercado de moedas naquela época, que era um período onde não havia Euro, cada país da Europa

tinha sua própria cédula, era uma coisa muito rica plasticamente e como projeto. Cada país diferente utilizava a tecnologia de uma determinada maneira. Nós tínhamos que achar o modo brasileiro, definir como nós iríamos lidar com a tecnologia e como iríamos trazer um elemento visualmente forte que caracterizasse nossa moeda, para que não fosse exatamente um medalhão ou uma cercadura da figura. E nesse processo o Aloísio pensou a ideia da cabeça espelhada, para não existir uma posição certa, já que o objeto circula por troca gestual. Não havia uma direção formatada da moeda. Isso criou desafios novos para pensar o design da moeda, que acabaram não se efetivando, por falta de tempo, o que foi uma pena. Quais são esses desafios de um design de moeda? O problema de impresso de valor é, antes de tudo, uma questão de se dificultar o máximo o processo de falsificação. Não existe dinheiro não-falsificável. A questão toda é você fazer com que esse processo demore o máximo possível. Um dos fatores que faz com que as cédulas tenham seus desenhos mudados de tempo em tempo é exatamente esse. Você muda quando já deu tempo suficiente para se fazer uma cópia confiável. Uma cédula de dinheiro normalmente envolve pelo menos três tecnologias diferentes de impressão: tipografia para a numeração; off-set com impressão simultânea frente e verso, o que permite algumas áreas de coincidência de imagem, o que era privilegio até alguns anos atrás dos fabricantes de moeda; e o talho doce, ou calcografia, que é um processo de gravura com tinta no sulco de baixo relevo, então quando aquilo é pressionado contra o papel, cria o relevo e a pintura. Isso é uma coisa muito difícil de se fazer em duas operações distintas. Muitas vezes os falsificadores tentam – eles imprimem a tinta e depois fazem um alto-relevo. Mas é fácil de perceber a falsificação. O princípio tecnológico é esse, mas você


tem infinitos outros artifícios para garantir essa irreprodutibilidade. Um dos fatores importantes é a criação de fundos de segurança. Quanto mais delicados e complexos forem esses fundos, quanto mais emaranhados houver de linhas, de cores diferentes, sobretudo de cores claras, existem algumas gamas de cores que são próprias para isso, onde uma máquina de reprodução terá mais dificuldade para copiar, mais segura será a cédula. Pode-se usar também alguns elementos na própria massa do papel, fiapos de várias cores diferentes, marca d’água – que é um desenho na própria polpa do papel –, fitas magnéticas. Tudo isso também pode ser falsificado, mas quanto

mais rica a cédula for de nuances, mais complicado é o processo. Qual sua análise sobre essas questões nas moedas que trouxemos aqui – Cubo Card, Goma e Marciano? Em termos de segurança, uma cédula de moeda social, que não poderia, por uma questão de custo, utilizar todos os recursos tecnológicos, precisa trabalhar em primeiro lugar os fundos. Porque os fundos, qualquer reprodução mais tosca vai empastelar um pouco, ou até vai criar um certo moiré, como eu disse antes. Todas as moedas aqui apresentadas lidam com um fundo, mas num caráter plástico,

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não de segurança. Isso pode virar um problema, se as moedas ganharem um circuito maior. Enquanto elas circulam por grupos restritos, é possível de controlar, mas elas precisam pensar nisso antes de o problema aparecer. E esse problema até é mais grave quando se considera os recursos de reprodução, que hoje tem um avanço tecnológico muito mais rápido do que os recursos de produção mesmo. Coisas que eram feitas manualmente no passado hoje são muito mais acessíveis. Frente ao aparato tecnológico de hoje, o assunto é complicado. Isso não pode indicar que os coletivos tra-balham muito mais na ideia de confiança entre os parceiros, de que não haverá a intenção da cópia? Confiança ou falta de avaliação sobre o alcance dessa questão. Ao meu ver, sobre o ponto de vista da segurança, são moedas razoavelmente simples de reproduzir. E isso obriga as moedas a circularem num espaço exageradamente restrito. São moedas cujos objetos gráficos estão trabalhando muito mais com a simulação de uma moeda, do que efetivamente resolvendo o problema de um impresso de valor. Não há uma preocupação ou atenção para a segurança. Atualmente os custos de impressão abaixaram, antes havia uma disparidade de valor absurda entre impressão de uma cor e de quatro cores, mas agora é possível se pensar essas questões de uma forma mais qualificada. É uma questão muito mais de atenção aos design das moedas do que de tecnologias de impressão.

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Tirando a questão da segurança, o que se pode dizer do design dessas moedas sociais? Existe outro valor, além da questão da segurança, que é o valor cultural. Uma cédula é talvez o objeto de comunicação mais reproduzido no mundo, de maior circulação na sociedade. É um grande veículo de cultura. Talvez não exista nenhum outro objeto de comunicação tão abrangente no mundo, que rompe com classes sociais e posições culturais. Nada disso é respeitado pelo dinheiro. O dinheiro circula por todos os segmentos da sociedade. Esse fato dá um poder fantástico a essa imagem e a esse objeto. Olhando as moedas sociais, elas são pensadas como uma família grá-

fica, como um conjunto. Mas são geométricas, ou puramente abstratas. Que oportunidade se perde aqui para utilizar algum elemento que tenha a ver com manifestações culturais brasileiras – sejam tradicionais ou de arte contemporânea, por exemplo. São moedas gráficas, abstratas, que não guardam nenhum grau de representação a não ser o princípio do design. São figuras interessantes, bonitas graficamente, mas perde-se a oportunidade de se utilizar a moeda como um veículo cultural. Quantos artistas nossos trabalharam com elementos gráficos geométricos? É só pensar em Volpi ou nos concretos. É possível dizer que existe nessas moedas a manifestação de um artista gráfico, sem sombra de dúvida. Isso foi feito por alguém que tem consciência do que está fazendo. Há um princípio gráfico em todos eles, o que é positivo. Mas ainda assim carece de ser a afirmação de algum valor cultural mais amplo. E também de se utilizar o espaço da moeda como um veículo como um todo. No caso das moedas sociais mostradas, elas estão trabalhando apenas com uma moldura para uma figura, mas é interessante que todo o espaço seja utilizado graficamente, o que torna o objeto muito mais rico. Para finalizar, fale sobre os desenhos de moedas apresentados na página ao lado... Os trabalhos foram desenvolvidos por dois grupos de alunos do terceiro ano da Escola Superior de Desenho Industrial, em 2009, sob minha orientação. A proposta era a seguinte: desenvolver uma família completa de cédulas para o padrão monetário nacional, considerando todos os aspectos técnicos usuais a este tipo de impresso de valor. O projeto envolveu desde a determinação dos temas a serem tratados até a especificação técnica, sendo discriminadas as diferentes camadas de impressão. Um dos projetos, baseado na Arte Concreta brasileira, foi desenvolvido por Michel Mello, Camila Jordão e Carolina Müller. O outro, concebido como uma oposição entre os conceitos de macro e micro, cultura e natureza, apresenta em cada cédula faces opostas relativas a fenômenos diversos. Este último foi desenvolvido por Nina Paim, Luisa Fosco e Bruno Alves.


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A cultura brasileira na voz de seus protagonistas www.azougue.com.br


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imagens posteriores |

patricia gouvêa

O seu livro, Membrana de luz (Azougue, 2011), pensa sobre o tempo na imagem contemporânea. Como isso é tratado no seu trabalho autoral? Esse questionamento sobre o tempo começou a se delinear como uma questão central no meu trabalho quando eu comecei a fazer os primeiros testes da série “Imagens posteriores”, em 1999. Naquela época eu andava muito incomodada com a ideia de uma fotografia ligada à questão do instante, que é a leitura teórica consagrada no pensamento sobre a fotografia. Uma leitura ontológica, cujo maior ícone talvez seja Roland Barthes. Através de diversas viagens pelo Brasil e América Latina, sempre em veículo em movimento – um carro, um barco, um avião, um ônibus – eu procurei restituir a experiência do tempo na fotografia, usando a paisagem como minha matéria, para ver se conseguia realizar imagens que traduzissem aquela experiência maravilhosa de viajar por muitas horas num veículo, quando a paisagem entra pelo retrovisor, deixa de ser uma geografia externa e é intrenalizada. Esse projeto, ao qual me dediquei por dez anos, foi necessário para poder, ao fim dele, me reconciliar com o instante. Entender que, mesmo no instante, pode haver o que Henri Bergson denominou de experiência da duração. Esse mergulho no tempo que faz com que o corpo tenha experiências sensoriais. E que muitas vezes é detonado por uma vivência da memoria, que volta em blocos e se atualiza no presente. Como isso se espraiou em seus outros projetos? O tempo é sempre o que eu persigo, o que eu tento materializar em imagem. Na serie “Imagem posteriores” talvez ele apareca de forma mais clara porque eu usei recursos como as longas exposições e a mobilidade do meu corpo. Mas mesmo em trabalhos mais recentes, como a serie “Fenda”, este conceito está presente. Mesmo com resultados formais diferentes, os meus traba-lhos falam sempre do tempo. As minhas leituras acabam sendo guiadas para isso – quase todos os meus trabalhos são frutos de insights que eu tenho na literatura. A série à qual estou me dedicando mais agora, “Exercício de arte lúdica”, é uma in-

vestigação sobre o tempo morto, aquele que as pessoas tem aparentemente para não fazer nada – os seus momentos de lazer e descanso. Essa investigação sobre o tempo aconteceu em paralelo à incorporação das novas tecnologias da imagem em movimento na fotografia – dos vídeos em alta definição nos aparelhos fotográficos. Como isso influi no seu trabalho? Esta coincidência foi a possibilidade definitiva de liberdade para trabalhar. E também, um retorno ao início de tudo, pois a minha primeira experiência “artistica” foi com a imagem em movimento. Não posso dizer que eu era uma artista, só tinha 11 anos. Dos 11 aos 17 anos eu filmava tudo o que acontecia na minha vida com uma VHS “tijolão”. Eu passei para a fotografia por uma necessidade de portabilidade. E agora posso de novo filmar com poucos recursos técnicos. Em 2010 editei mais de 12 videos, quase todos para a série “Exercícios de arte lúdica”. Gosto de pensar a imagem como algo híbrido. O que tem de cinema na fotografia e o que tem de fotográfico num vídeo, por exemplo. Quando se hibridi-zam e constróem pontes entre si. Por isso é tão importante o trabalho do tailandês Apichatpong Weerasethakul. Um filme dele é ao mesmo tempo vídeo-arte, narrativa e fotografia expandida. Você indentifica essa mesma preocupação com o tempo em seus contemporâneos? Essa é uma boa pergunta. Quando comecei a pensar sobre a interpretação do tempo, pelo menos no meio dos fotógrafos, ela não era tão bem formulada. Ao menos em comparação a outro conceito primordial à fotografia, que é a luz. Uma vez a revista Fotosite me convidou para enviar perguntas para uma matéria sobre Mario Cravo Neto e seu filho Christian Cravo. Eu perguntei justamente o que eles achavam sobre a noção de tempo na fotografia. As respostas foram evasivas e superficiais. Hoje essa reflexão sobre o tempo na fotografia contemporânea é algo bastante fomentado e em voga. O tempo está na moda!

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acaso e


sinapse braulio tavares fausto fawcett

transcendĂŞncia

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Experimente juntar Fausto Fawcett e Braulio Tavares e imagine que palavras-chave apareceriam em destaque na nuvem de tag gerada pela conversa. No começo de abril, os escritores foram convidados para inaugurar a Sinapse, seção de encontros da Revista Pensamento Brasileiro. Ficção científica, música e cinema foram temas recorrentes, bem de acordo com o gosto dos dois autores. Mas entre outras ramificações possíveis de assuntos – e foram muitas – duas palavras chamaram atenção por voltarem sempre à tona: acaso e transcendência. [Sergio] Atualmente está se vivendo, nas mídias todas, uma volta do realismo. Do Big Brother ao documentário, várias mídias trabalham sobre o conceito de “baseado em uma história real”. Como fica a ficção nisso? [Braulio] Acho que o que existe na verdade é uma fabricação de fatos artificiais. Esses reality shows não são mais do que isso. É real porque, claro, você está trancafiando as pessoas e mostrando o que acontece lá dentro. Isso, evidentemente, é real, mas é um real manipulado. Tão manipulado, na minha opinião, quanto uma novela, um romance ou um filme.

[Braulio] Eles manipulam também. [Fausto] Manipulam, e a coisa mesmo espetacular, que é a imagem de TV. Mesmo quando é A bruxa de Blair ou Big Brother, a sede de realismo passa rapidinho. Ela é suplantada logo por um tédio e um costume, você se habitua àquele negócio e fica sabendo que é roteirizado. Me lembrei de uma brincadeira do começo dos anos 1980, quando vários cineastas advindos da publicidade estavam caprichando nos cenários artificiais. Até o Coppola, que fez aquele filme com a Nastassja Kinski saindo de uma taça, One from the heart. Tinha um cineasta francês que fez A lua na sarjeta, Jean-Jacques Beineix. Bom, estou me lembrando disso porque nessa época apareceu uma comparação dizendo que houve um neorrealismo e eles estavam fazendo um neon realismo... As pessoas, dentro das grandes cidades, já estão acostumadas, nem se tocam, mas já está inserida no cotidiano deles esta imersão em imagens artificiais. Quando você diz que o realismo está voltando é como se fôssemos ter uma surpresa agora. As pessoas estão anestesiadas, estão habituadas. Então o que é um realismo hoje em dia? [Sergio] Vocês acham que a gente está consciente demais das engrenagens do realismo?

[Fausto] Vira uma novela, na verdade.

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[Braulio] Vira uma novela, porque alguém está roteirizando aquilo. Então se você está vendo, por exemplo, um Big Brother e, numa certa noite, está todo mundo vestido de turbante, árabes, odaliscas e tudo mais, não foram eles que escolheram. Aquilo ali é uma festa produzida pelo roteirista, pela direção do programa. [Fausto] As pessoas esquecem que existe um roteirista por trás. E isso é um dado muito importante. O conceito da sociedade do espetáculo, do nosso Guy Debord, fará cinquenta anos e esta cada vez mais atual. Porque estamos completamente imersos em fabricações de shows de realidade patrocinada. Os jornalistas, por mais que eles tenham uma boa intenção, já estão imersos nisso também, já fazem parte de um show.

[Braulio] O espaço do acaso está diminuindo no mundo. Tudo tem que ser previsto, numa lógica mecanicista lucrativa, ou pelo menos uma lógica de espetáculo, estética, um final previsto que tem que ser moldado, e o acaso não pode interferir nisso. Eu gosto do acaso porque ele é como uma bigorna do desenho animado que cai na sua cabeça. [Sergio] Os estudiosos tentavam utilizar o conhecimento para pensar a tecnologia através da ficção científica, como está isso agora com a internet? A FC se tornou mais realista em termos de tecnologia? [Braulio] Não acho que a internet tenha influenciado muito isso, não. A internet influencia na circulação dos livros, na criação de sites, na cir-


culação dos textos, mas não acho que tenha influenciado tanto assim na literatura em si. Existe uma linha forte na ficção científica de hoje que é o que chamam de transhumanismo. A vida pósbiológica. Como é que você pode daqui a alguns anos ter uma maneira de fazer o upload de toda a minha memória biológica para um computador qualquer, por exemplo. [Fausto] Esse transhumanismo está em voga e não é só de agora. Os futuristas tinham isso. Mas hoje você poder superar as limitações corporais, porque digamos que o corpo está obsoleto. Há próteses... O que é interessante nisso é que quando o cara fala em transhumano ele não se refere ao sistema nervoso central, o cérebro não é uma víscera. [Braulio] Ou um computador de carne. [Fausto] Ou um nhoque algoritmo. Nos últimos anos teve o projeto genoma, alguns passos da ciência foram dados para tentar uma mapeada de-

finitiva. No fundo a gente continua com aquela ideia de Fausto, de Goethe, que é querer transcender. É a tara pela transcendência. [Braulio] Além dessa coisa que você sabe que vai morrer de uma hora pra outra. O Greg Egan, um escritor australiano de quem gosto muito, escreveu uma série de contos sobre um artefato implantado na cabeça da criança quando ela nasce, chamado de joia, como se fosse um chip com uma capacidade enorme de informação. E tudo aquilo é ligado aos neurônios, então tudo que aquela criança está pensando, está passando pela joia. Um cérebro auxiliar artificial. E a criança vai crescendo. Quando chega à fase adulta ele ganha uma espécie de independência: eles abrem o crânio, tiram o cérebro de carne e deixam somente a joia lá dentro. E o narrador do conto que deu origem à série diz, que os mais velhos perguntavam se ele não tinha medo de destruir seu cérebro e ficar só com a cópia. E ele dizia que não, porque desde pequeno, quando lhe explicaram o que era a vida, ele se considerava

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o artefato. Aquele negócio de carne em volta é como se fosse um apêndice, você tira e continua vivendo normalmente. Então o eu não era aquele cérebro que podia adoecer, pegar um tumor, ter um AVC, mas a joia é inquebrável. Porque se de uma hora para outra eu tivesse um acidente com o meu corpo, era só pegar aquilo e botar num outro corpo e eu acordava de novo. É um conceito de eu diferente, porque a gente está acostumado a identificar o eu com o corpo. Então existe essa possibilidade, e mesmo que ela não seja científica, o simples fato de ela ser uma possibilidade literária e filosófica diz muito sobre quem nós somos ou gostaríamos de ser. [Fausto] Acho que o grande barato da ficção científica, independente da internet, é que outra vida poderia vir, por caminho genético ou outro. Isso pra mim sempre foi o grande barato, o salto filosófico, que em outras ficções você não achava, porque elas ficavam só no campo das ideias. Acho que isso está até na história em quadrinhos, qualquer super-herói vira outra coisa, a fascinação de ser mais do que é. É como o super-homem

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do Nietzsche e o Super-Homem super-herói mesmo. Os dois em embate. Um vai por valores, sentimentos, para superar as fraquezas, e o outro já é pela mudança fisiológica mesmo. [Sergio] Essa questão é interessante, porque ela passa pelo nosso conceito de identidade, inclusive na cultura. É como se perguntasse se somos a pureza de um corpo ou a soma de arranjos, experiências, criações, situações, encontros? [Fausto] Queria te fazer uma pergunta, Braulio. Sempre reparei que a ficção científica está ligada a catástrofes. A partir da internet, com a banalização (no bom sentido) da informação, com a democratização mercadológica, o transhumanismo está começando a pipocar. Como a imaginação dos escritores vai lidar com isso, tem surpresa ainda? [Braulio] Acho que a ficção científica virou um agregado de subgêneros, ela foi crescendo muito rapidamente em direções diferentes. Você fala em catástrofe, mas por quê? A ficção científica


europeia e norte-americana é popular, não é coisa de intelectual. Ela chegou depois aos intelectuais. Então ela nasceu como forma de melodrama. E no melodrama você nunca fala de sentimentos modestos, e sim de sentimentos gigantescos, exacerbados. Então é engraçado pegar uma capa de revista de ficção científica, um cartaz de filme, e tem assim: “Eles estão tentando salvar o universo”. Não é o planeta Terra, o sistema solar, é todo o universo. É muita ambição gigantesca para o ser humano! Mas é isso. É um pouco a mentalidade adolescente de quem está descobrindo seus superpoderes imaginativos. Sempre que pego um livro de mitologia grega penso que aquilo é a ficção científica da época, tinha Hércules, Perseu e hoje é Wolverine, é Batman. Os heróis ganham a fisionomia do mundo para que o leitor se sinta refletido neles. O Homem-Aranha ficou daquele jeito porque foi picado por uma aranha radioativa. Só de ser radioativa o cara já sente que é do mundo de hoje. Isso é uma coisa legal porque você vê que há uma substituição de mitologia pelo tecnológico, porque o mundo é tecnológico. Você está mexendo nos nervos, na genética, no hardware do ser humano. Mas por outro lado tem a ficção científica utópica. Aquele negócio: vamos inventar a sociedade ideal. E é impossível. E as utopias da FC são sempre uma sociedade presa, fechada, que não admite o acaso, não admite o erro, mas sempre tem um transgressor lá dentro. [Fausto] O mundo já foi totalmente religioso, depois foi muito humanista, e agora é como se estivesse tecnocêntrico. Essas três coisas ficam dentro da gente. A ficção científica tem o papel de cutucar a transcendência. Mas a gente não pode deixar de pensar que todo Jetson tem dentro de si um Flintstone. Vimos hoje com esse episódio [se referindo ao rapaz que assassinou alunos em uma escola em Realengo, no Rio de Janeiro] que ainda somos aqueles primatas. Quem explica essa maluquice que o garoto fez hoje? Dostoiévski, Kafka, esses escritores que foram fundo nessas questões, e em todos os tempos as questões que nos angustiam são mais ou menos as mesmas. [Braulio] O Flintstone é o mesmo.

[Fausto] E o “eu” também. Euzinho, Eguinho e Myselfzinho, os sobrinhos do Patológico. [Braulio] A questão é botar ordem no caos, porque o mundo é o caos. Pergunte a um recém-nascido o que ele acha do mundo. É o caos, aí ele vai aprendendo quem é papai, mamãe, o leite, é tudo narrativa. Tem aquele negócio redondo e o pai diz: chuta. É uma narrativa que o pai vai ensinar, que se chama futebol. Tem uma descrição que acho muito bonita. Tenho amigos que gostam de velejar, vão daqui para a Europa! Pergunto como eles lidam com ondas de 10 metros de altura. Aí eles filosofam, dizem que o mar é a metáfora da vida. Dizem: você controla o mundo? O Rio de Janeiro está se movimentando, um bueiro de Copacabana pode estourar do seu lado. Como você se relaciona com o mar? Não é querendo mandar nele. É observando, conhecendo e negociando com ele. A única maneira de se relacionar com o mar é a mesma de se relacionar com o mundo. É criando o seu roteiro. Você tem que negociar um trajeto no meio desse caos de um jeito que você não desperdice sua vida, se escondendo dela, mas também que não perca ela ao se expor demais. A narrativa para mim é isso. De fato, nossa vida é roteirizada. Então a onda é organizar uma coisa que é caótica e, quando está tudo organizado, abrir uma janela para deixar um pouco de caos entrar. O acaso entrar. Se permitir fazer coisas diferentes. [Sergio] Aliás, quais são os planos para agora? [Braulio] Tenho trabalhado ultimamente com traduções. É uma forma de prostituição onde eu escolho os clientes. Até o fim do ano, lanço uma coletânea de contos meus e duas antologias temáticas de contos fantásticos. [Fausto] A Martins Fontes lançará minha obra, com um inédito, Favelost. Tem um outro livro que se chama Pororoca rave, que não sei ainda por onde vai ser lançado. Tem um seriado, na segunda temporada no Canal Brasil, que se chama Vampiro carioca, onde escrevo e atuo.

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cultura e loucura mam 68

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Na noite do dia 10 de junho de 1968, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sediou o debate intitulado Amostragem da cultura/loucura brasileira. Convidados por Frederico Morais, curador independente, crítico de arte e coordenador de cursos do MAM no período, Hélio Oiticica e Rogério Duarte bolaram o tema e foram os organizadores do evento que entrou para a história simplesmente como Cultura e Loucura. Um mês antes, no dia 23 de maio, o MAM já havia sediado o debate Critério para o julgamento das obras de arte contemporâneas, em que participação de Hélio foi feita através de um texto cujo teor era a provocativa constatação da crise dos valores tradicionais e acadêmicos como critério de julgamento nas artes de seu tempo. Esses dois debates selaram uma parceria de três meses entre Oiticica e Rogério Duarte, iniciada em maio e com seu auge no dia 6 de julho de 1968, com o início do evento Arte no Aterro – um mês de arte pública, realizado no Parque do Flamengo. Nesse mesmo período, o designer morava com Oiticica no Jardim Botânico. Também juntos, participaram das movimentações cariocas dos

compositores tropicalistas e atuaram no filme experimental Câncer, de Glauber Rocha. Vale lembrar que em abril desse mesmo ano Rogério foi preso ao lado de seu irmão e brutalmente torturado pela Ditadura Militar, enquanto Oiticica já bolava sua saída do país a partir de uma exposição planejada para Londres, que só ocorre no ano seguinte, 1969. Os trechos do debate que leremos a seguir, realizado durante a mesa Cultura e Loucura, é portanto mais do que uma conversa datada na história entre artistas, intelectuais e plateia. O que temos aqui nesta transcrição inédita das falas daquele dia de junho no MAM são as vozes de pessoas que estavam no olho do furacão de uma época dramática do Brasil. Os participantes foram, além de Frederico como mediador, Hélio, Rogério, Caetano Veloso, o sociólogo Sérgio Lemos, Lygia Pape e o filósofo e afilhado do sambista Cartola, Nuno Veloso. Entre os nomes convidados, duas ausências: Glauber Rocha e aquele que se tornou um dos principais assuntos da noite, Abelardo Barbosa, ou Chacrinha. E agora, com vocês, Cultura e Loucura.


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frederico moraes

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Bom, nesta mesa, estão presentes, da direita para a esquerda: Rogério Duarte, que juntamente com Hélio Oiticica, é o organizador do debate. Ao lado, nós temos Sérgio Lemos, que é um brilhante sociólogo da nova geração, professor de Sociologia do Conhecimento e Sociologia da Vida Cotidiana, e que quando então tem procurado estudar, entre outras questões, o comportamento sexual, e os mitos do consumo de massa. Em seguida, Lygia Pape, artista plástica, participante de um dos mais importantes movimentos da arte brasileira, que foi o neoconcretismo. Em seguida, Hélio Oiticica, também ex-integrante do neoconcretismo, e, além de artista de vanguarda da maior importância, é também um teórico e um escritor de muito talento. Em seguida, Caetano Veloso, que não é preciso apresentação, porque vem revolucionando a música popular no Brasil. E, finalmente, Nuno Veloso, provavelmente, o menos conhecido aqui, neste momento, mas Nuno Veloso, que foi o ex-presidente da ala de compositores da Mangueira, e fez um curso de doutorado livre, na Alemanha, tendo como professor Marcuse, entre outros, exatamente os filósofos aí da moda, né, os filósofos pop. É assistente também da cadeira de Filosofia Alemã, na Universidade Livre, no Instituto da Europa Oriental. E foi um dos professores de Rudi Dutschke – isso é um fato muito importante. Bem, feita a apresentação, nós consideramos agora aberto o debate, e estamos ainda aguardando a presença de Chacrinha, que deverá sentar ao meu lado. Glauber Rocha e Fernando Gabeira não puderam comparecer.

helio oiticica O conceito de gênio foi uma coisa criada pela classe dominante, na Renascença; é uma coisa que pra mim não existe mais. Eu já cansei de dizer, por exemplo: pra mim, a Mirinha da Mangueira, que mal sabe ler, diz coisas muito mais importantes do que qualquer gênio desses da humanidade. Hoje em dia, a tendência é acabar com tudo isso. Esse conceito de gênio não existe mais. É uma coisa


que Lygia Clark define como a precariedade do momento. Quer dizer, cada momento é que é a criação. Agora, eu acho que o Chacrinha, dentro desse negócio, de momento da criação, ele é profundamente criador, porque tudo que ele faz é uma coisa criadora, ele não está lá pra desempenhar um papel. Eu sei que ele é consumo também, sei que ele pode ser um instrumento de domínio da massa, agora, é também uma coisa criadora. Porque nós vivemos numa sociedade capitalista, todas as coisas boas e ruins são instrumentos de domínio, de modo que... Por exemplo, Danny Kaye é um gênio fantástico, um grande comediante, mas também era um instrumento de domínio da cultura americana, para se impor no mundo. Uma coisa não pode ser vista separada da outra. Já a loucura seria o que não é feito. Por exemplo, uma pessoa tem um ataque, arranca os cabelos, isso daí é uma loucura, mas é uma loucura que se manifesta. Então, é um ato criador. É uma coisa que está se manifestando. Agora, a loucura morta mesmo, como uma coisa morta, é o que você não fez, e não manifestou. O que fica na subjetividade e se volta para ela mesma. Isso é que seria a loucura mesmo. Cientificamente explicada, seria isso. Ao passo que todas as outras coisas no mundo, são coisas apreensíveis, e não são coisas loucas. Então, é isso.

rogério duarte Eu gostaria que o Carlos Saldanha viesse aqui falar. Quem é Saldanha? Saldanha é uma pessoa que eu conheço há muitos anos, e que depois viajou, passei quatro anos sem ver, e agora ele aparece, e conta uma porção de coisas novas. Eu comecei a me interessar mais fortemente por Saldanha quando o vi no trabalho, fazendo um filme com o Glauber Rocha, do qual eu participei como ator, com o Hélio Oiticica, chamado Câncer... Então, quando eu o vi no trabalho, eu me surpreendi com um tipo de integração, que me parecia quase impossível, entre uma pessoa e uma ferramenta, no caso, uma máquina moderníssima, que é uma câmera de cinema, de som direto. Depois eu vi, junto com o seu instrumento de trabalho, um caderno de anotações sobre revelação de filme,

sobre curvas, latitude, sobre problemas de som, de eletrônica. Eu suponho que seja isso, porque eu não entendi direito, era um tipo de especulação de cientistas, que eu não me sentia assim, à altura de acompanhar, mas eu pude ver que aquilo era misturado com uma série a de outros tipos de trabalhos, como os trabalhos de Pascal, onde ele questionava uma série de coisas fundamentais, ou mesmo onde ele fundamentava, onde ele nomeava, onde ele tomava a palavra. Eu quero fazer disso a minha resposta, pelo seguinte, me lembrando de uma antiga dificuldade de acompanhar o que o Saldanha sempre chamou de a velocidade dele, e vendo que dessa vez eu estava mais ágil para esse acompanhamento, de repente eu realmente perdi, a partir disso, a noção da diferença entre o processo de criação e a loucura. Porque eu perdi a medida, realmente uma série de medidas. Eu enlouqueci, fiquei embriagado, e me perdi. E eu não sei qual é o meu processo, se eu sou sujeito ou objeto da minha loucura, por exemplo. Eu não sei se a minha obra é criada por mim ou pelos outros. Eu não sei se existe alguma coisa que eu pudesse chamar de obra, entende? A dificuldade se estende, arrodeia o plano do conceitual, porque nos trai na própria matéria do conceito. Eu não sei se isso que eu estou dizendo faz sentido, e também não sei qual o sentido que faz o próprio sentido. E, de repente, as palavras começaram a se comer umas às outras, como num processo de leucemia...

lygia pape Bom, eu vou falar sobre Marcuse, mas isso não significa que eu seja especialista em Marcuse. Qualquer pergunta que vocês queiram fazer sobre ele depois, eu espero que se dirijam ao Nuno, que é especialista nisso. É que há um trecho num livro dele, que me pareceu uma resposta ao problema da loucura,. E então, eu fiz uma pequena síntese, que eu vou ler aqui pra vocês. Marcuse nos fala que o homem animal converte-se em ser humano através de uma transformação de sua natureza. Isto é, do princípio de prazer, o homem passa ao princípio de realidade, onde esse homem desenvolve a função da razão. Torna-se

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um sujeito consciente, e que parte para uma racionalidade que lhe é imposta de fora para dentro, e, logicamente, condicionado por essa cultura. Mas é um modo de atividade mental que está separado ou isolado dessa organização mental nova, a fantasia, que está protegida das alterações culturais. Essa fantasia, que eu chamaria loucura, confunde-se com o sentido de liberdade, e é o elemento deflagrador da criação, da invenção. Toda boa cultura estabelece padrões sociais, morais, políticos, artísticos, etc. Eles são a própria defesa contra qualquer mudança na sua estrutura. O homem enfia-se dentro de uma forma segura, fechada e castradora, mas que ele conhece. A loucura, fantasia e criação propõem estruturas abertas, em que o homem é levado a refletir e desmontar seus critérios de razão, e a ter uma visão dinâmica das coisas. Desconfio sempre do sucesso de qualquer... Bom, isso aqui agora já é a minha opinião. Desconfio sempre do sucesso de qualquer coisa aceita sem reservas, pois algo está errado: ou não foi compreendido ou é uma forma acomodada a essa cultura. Toda agressão supõe uma transformação. É necessário corromper os valores, e para fazer isto, temos coisas novas, que dão estruturas novas, que dão uma linguagem nova, que é a invenção. A criação é uma totalidade, a loucura como ato total. Relembrando: criação, loucura e fantasia são os elementos deflagradores de qualquer invenção. A razão vem depois, como elemento conscientizador, e como degrau para uma nova criação, fantasia, loucura. É um ciclo infinito, é a própria vida. É a loucura que salva o homem. Eu fiz uma colocação sucinta assim, mas a loucura pra mim significa uma abertura, uma liberdade, no sentido de criação e de invenção, isso dentro do meu trabalho, ou dentro de qualquer outra atividade humana.

caetano veloso Eu queria dizer que o meu pensamento flutua. Eu só posso dar um testemunho, fazer uma espécie de confissão sobre o que aconteceu com o meu trabalho. Isso talvez me aproxime realmente de muito do que foi dito nesta mesa. Por exemplo, quando eu falei que o Chacrinha era mais cultura

do que o Flávio Cavalcante, isso implicava necessariamente numa atitude. Eu acho que inclusive alguém, logo depois, disse: “Mesmo porque gostar de Chacrinha agora já é moda”. Eu não tenho muito medo da moda, mas acontece que ficou estranho gostar de Chacrinha, pode ser uma prisão mais fechada do que negar Chacrinha, e apagar, e não considerá-lo como representante da cultura brasileira. Entretanto, a resposta do Hélio Oiticica, quando disse que o Flávio Cavalcante é fascista e o Chacrinha não é fascista, realmente me agradou na hora em que eu ouvi. Eu não tenho muita consciência sobre isso, não é uma consciência imbatível, eu não quero impor o meu pensamento, mas eu gostaria de dizer que realmente, enquanto o trabalho explícito do Sr. Flávio Cavalcante é policiar a criação brasileira, que se dirige ao consumo de massas, o Chacrinha é um elemento criador dessa própria arte de consumo, e o mais genial e criativo de todos. Realmente, ele me oferece elementos para o enriquecimento da minha criação, mas eu não gostaria que as pessoas não viessem a pensar no Chacrinha como o maior pensador sobre a realidade brasileira, mas, sim, que reconhecessem, nessa criação brutal que vai através da televisão de um país subdesenvolvido, alguns elementos de brutalidade mesmo, que me podem ser muito caros. E que a própria inspiração, nesse sentido, já denota um movimento ao qual eu quero... como se diz?... me engajar, sei lá, quer dizer, a um movimento de enlouquecimento da cultura nacional, no sentido de que seja uma intuição brutal, inicial, como a necessidade de uma nova razão.

sérgio lemos Qual é a loucura que terá importância? Será a loucura de não prendermos as nossas limitações da aparência. Fundamentalmente, é isso. A conveniência nossa, da pequeno burguesia, que se choca com o Programa do Chacrinha, deve ser derrubada, porque ela nos impede também de fazermos coisas inconvenientes. A nossa opção contra o sistema é prejudicada, é atrasada, pelo nosso culto à aparência, o nosso culto à conve-


niência. E quando fazemos, será sempre no nível da conveniência, como conveniência, como aparência, para aparentar negar o sistema. A negação real, a revolucionária, ela se torna impossibilitada a nós, pequenos burgueses, por esse culto à aparência. Quebrar a nossa aparência, nos humilhar, não é ruim, é bom. A alienação, a separação entre indivíduo e sociedade, evidentemente que não é irredutível, mas o que nos interessa é valorizar a loucura enquanto protesto, enquanto negação, formulação de novas estruturas. E a luta pela idealização de novas estruturas exige uma descrença, uma desmoralização das estruturas vigentes, através daqueles laços que os prendem a ela, daqueles controles – no caso especificamente do pequeno burguês, a aparência. Vamos dizer que eu não teria coragem de dizer estas coisas, se não tivesse renunciado, durante alguns acessos de loucura há anos atrás, da aparência do homem certinho, direitinho. Eu fui congregado mariano, inclusive, eu vivia do culto da aparência, eu seria incapaz de pensar que realmente pudesse haver o que na época eu chamara injustiça social no Brasil. Porque isso me faria trair aquela aparência do homem certinho, do bom mocinho, direitinho, bonitinho. Houve choques...,vamos dizer, me chocaram, que de algum modo, me humilharam muitas vezes na vida. Eu tive que desistir da aparência pequeno burguesa, e que, realmente, aquilo podia não funcionar, deixou de ser sagrado. É claro que está sempre a cultura de massa, está sempre o sistema reabsorvendo todas as suas negações. Cada vez que for reabsorvido, passamos pra outra. Creio, nesse sentido, que as políticas são um pouco isso.

nuno veloso Eu tenho impressão que a gente pode encontrar fonte de encontros e desencontros em qualquer manifestação da vida. Isso não quer dizer que seja uma novidade, que esteja buscando qualquer coisa de nova, quando se faz uma nova arte. Acho também que a intenção do Hélio, quando foi procurar os morros, não foi criar o Parangolé, eu acho que a vivência nos morros é que levou ele a fazer essa arte, que fala muito bem da des-

coberta do lixo das favelas. Essa arte dele também é social, ainda que muita gente não entenda assim. E depois, eu acredito realmente que haja um certo exagero nele, nesse amor pela Mangueira. Mas eu acho que, na parte histórica da coisa, de toda a criação da arte eminentemente popular, no sentido de samba, e de bordados, e essas coisas todas, começaram com a libertação dos escravos em 1888 aqui no Brasil. E o primeiro núcleo de escravos livres aqui, no Rio de Janeiro, foi justamente de Mangueira, onde hoje em dia chama-se Morro do Telhado – no tempo, Morro Pindura Saia, porque as escravas lavavam suas roupas e penduravam no alto do morro de Mangueira. É também a escola mais antiga. Vai fazer 40 anos, ano que vem. Essa ideia toda, que hoje se chama de burguesia no samba, essa coisa toda, nasceu de um erro de um governo: por volta de 1937, 38, se criou uma coisa chamada Estado Novo, e esse Estado Novo é que exigia, obrigava a escola de samba a manter um enredo que falasse de qualquer ato patriótico, que depois foi modificado para regional ou folclórico, mas era só ato patriótico. Eu, pessoalmente, sou contra isso, mas a ideia... Quando eu passei a morar nos morros, eu consegui mudar esses itens, para levar também o artesanato a essa ideia, quer dizer, contar esse ponto não só para a dança, e para o samba, e a música, mas também para o bordado das bandeiras, o bordado das roupas, que houvesse oportunidade para todo mundo ter a sua expressão cultural, no morro. Agora, se depois disso se desvirtuou, se hoje em dia existem escolas que empregam profissionais para o seu carnaval, isso evidentemente não é culpa do morro, e muito menos na da Mangueira. [Auditório] Você veio aqui falar sobre Marcuse, e agora está falando da Mangueira? [Frederico] Um momentinho. O debate é sobre a amostragem da cultura brasileira; samba e Mangueira fazem parte da cultura brasileira. [Nuno] Quem tem questões sobre Marcuse, pode perguntar. Ninguém? Então, posso continuar. [Hélio] Por que é que Marcuse é bom, e a Mangueira não é? Ah, é muito melhor. [Nuno] Acabou.

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nuno veloso

memória | por mauricio barros de castro

Encontrei com Nuno Linhares Veloso na Escola Superior de Guerra, na Urca, onde ele trabalhava como professor titular de filosofia, em 2001. Ele vestia um terno escuro, tinha olhos azuis e cabelos brancos lisos. Não era o lugar mais comum para se encontrar um sambista, nem a sua estampa batia com a dos bambas do morro da Mangueira, onde morou durante muito tempo em companhia de Cartola e Zica. Mas estas aparentes contradições nada significavam para Nuno. Além de ter sido parceiro de Cartola, lendário sambista mangueirense, também foi assistente de Herbert Marcuse, filósofo alemão que influenciou as mentes revolucionárias da contracultura mundial, nos anos 1960.

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Nuno sempre preferiu estudar do que trabalhar, o que para ele eram coisas distintas. Antes de se aventurar em um doutorado na Alemanha já tinha concluído um mestrado em Filosofia da Arte, na Inglaterra. Paralelamente ocupava a distinta posição de integrante e, depois, presidente da Ala dos Compositores da Estação Primeira. O responsável pela sua dedicação ao estudo e ao samba era o ‘Divino Cartola’, como o chamava Lúcio Rangel. Aliás, foi na casa do jornalista que eles se conheceram. Nessa época, Cartola iniciava um romance com Zica e voltava a Mangueira, de onde estava afastado desde o final dos anos 1940. Nuno não conhecia Cartola pessoalmente, mas já frequentava o morro desde a adolescência.


Descendente de José Linhares, ex-presidente da República, Nuno nasceu em 1930 e perdeu a mãe aos sete anos de idade. O fato de ter perdido os pais muito cedo lhe deu certa liberdade para vagar pela cidade. Nuno estudava como interno no Colégio Pedro II, em São Cristóvão, de onde escapava para Mangueira. Eram poucos os finais de semana que voltava para Laranjeiras, onde morava com um irmão mais velho. Seu destino era o morro, onde encontrava o samba, o ambiente comunitário e o carinho de Zica, que praticamente o adotou. Quando ela e Cartola começaram a namorar, no início dos anos 1950, ele se tornou um filho para os dois. Moraram juntos na Mangueira e em diversos outros lugares, como o casarão da Rua dos Andradas, no centro da cidade, embrião do Zicartola. Nuno foi um dos responsáveis indiretos pela criação da famosa casa de samba de Zica e Cartola, que foi um importante espaço de resistência cultural e política da época. Foi ele quem apresentou o sambista mangueirense a seu primo Eugênio Agostini, jovem empresário que teve a ideia de criar o Zicartola e financiou o empreendimento. A festa da inauguração da casa foi em 1963. O sobrado da Rua da Carioca, também no Centro, endereço do Zicartola, ficou lotado, mas Nuno e Carlos Cachaça não conseguiram chegar, acabaram comemorando num botequim da Central do Brasil. Pouco tempo depois, Nuno partiu para Alemanha para cursar o doutorado em Ciência Política, sob a orientação de Marcuse. Quando voltou, no início dos anos 1970, o Zicartola já tinha fechado as portas, em 1965. Nuno foi o primeiro sambista das escolas a gravar a voz num LP dedicado a sambas-enredo, substituindo ninguém menos do que Jamelão, o principal intérprete da Mangueira. Como afirmou o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, ele era “um branco com voz de negro”. Justamente por isso pôde cantar no conjunto Os Cinco Crioulos,

mas pelo mesmo motivo não apareceu na capa do disco. Era branco e não crioulo. Participou também da primeira versão do grupo A Voz do Morro, ao lado de nomes como Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, entre outros célebres da velha guarda. As composições de Nuno já foram gravadas por Elza Soares, Elton Medeiros e o próprio Cartola, entre outros, mas ele nunca quis se profissionalizar. Nuno se manteve como professor universitário e nunca assinou um contrato de direitos autorais por suas composições, embora precisasse de dinheiro. Tinha um carro velho, morava num apartamento modesto na Lagoa e reclamava da aposentadoria minguada. Casou diversas vezes e sempre que os casamentos acabavam deixava tudo para as mulheres, sem discussão. Afinal, contava que fora feliz com todas as suas esposas. Também gostava de lembrar do tempo em que vagava pelas ruas do Rio, ao lado de Cartola, sem rumo certo, parando nos botequins para beber pau-pereira. Fiquei comovido com a notícia de sua morte, em 2009. Tirando a tristeza, tinha me sentido da mesma forma quando o entrevistei. Comovido. Branco com voz de negro. Intelectual e sambista. Cartola e Marcuse. Nuno não via contradições. Nem eu. Podia ver o sambista por detrás do terno escuro, da pele branca e dos olhos azuis. Principalmente quando cantou, lágrimas nos olhos, um samba que compôs com Cartola, numa pequena sala da Escola Superior de Guerra. A seguir, alguns trechos desta conversa: marcuse e cartola “Acho que comigo, embora nós tivéssemos tanta amizade, estivéssemos juntos em todo lugar, ele foi muito chato. Como não teve muita oportunidade de estudar, ele me obrigava, foi me matricular, me forçou a fazer vestibular, eu tinha que ir e ele ficava lá, esperando. Houve a possibilidade de fazer um Mestrado na Inglaterra, então ele me obrigou a estudar inglês, a me candidatar.

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E eu me perguntava como ia pra lá, então entrei pra marinha mercante, fui pra Inglaterra, fiz o tal Mestrado em Filosofia da Arte, aí voltei e apareceu a oportunidade de fazer Doutorado na Alemanha. Eu tive que aprender outra língua e lá fui eu pro doutorado. – Foi lá que você foi assistente do Marcuse? Foi lá que eu fui assistente do Herbert Marcuse. Eu só podia fazer o doutorado e voltar ao Brasil, a promessa era essa, mas na hora de vir embora, me convidaram pra dar aula em alemão, na Alemanha, e ser assistente do Marcuse, que foi embora pra Califórnia e eu fiquei como professor titular... Cartola dava força, me escrevia toda semana, no carnaval me mandava fantasia da ala dos compositores, que eu fazia parte, e eu chorava como um desesperado, era um débil mental, pior que ainda sou, qualquer coisa eu choro.

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Eu perdi meus pais muito cedo, mas tive sorte porque, de repente, todos eram meus pais e todas eram minhas mães, às vezes não sabia como, mas acordava na casa de um, ficava amigo do outro... Lembro que quando voltei da Alemanha, já Doutor, e eu não tinha pra onde ir, e o Nelson Cavaquinho foi me esperar. Nelson Cavaquinho, o Cartola e o Elton Medeiros, que ficou muito meu amigo... Aí eu disse: “Eu não tenho pra onde ir”, e o Nelson respondeu: “Vai lá pra casa”, eu respondi: “Não quero te atrapalhar, Nelson”, e ele, “O último lugar que eu vou é a minha casa, você pode ir lá, ficar à vontade”. E eu fui, só que a casa dele era longe pra chuchu, lá depois do cemitério do Caju, foi uma casa que ele tinha ganho de um desses prefeitos, eu fui lá, fiquei uns dias, depois acabei voltando pro morro mesmo. O Lúcio Rangel, tio do Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, também ficou muito meu amigo, e eu ia dormir muito na casa dele. Eu ia dormir muito na casa de quem tivesse dando sopa, quem eu encontrasse no bar, porque endereço eu não tinha. Dormi em escritório na cidade, dormi em tudo, mas não tinha muita direção. Eu lembrei do Lúcio Rangel porque uma vez nós estávamos

voltando pra casa e ele viu que uns caras iam nos assaltar e eu não reparei, era perto de uma igreja e ele ajoelhou na porta da igreja, ajoelhei do lado dele, aí os assaltantes passaram direto. Lúcio era esperto, aí ele levantou, eu nem reparei, aí ele falou: “Você não viu?”, eu falei que não. Ele disse: “Os caras iam assaltar a gente”. Aí eu agradeci: “Obrigado por ter esse espírito de ajoelhar na porta da igreja”, uma igreja no Leblon. O sobrinho do Lúcio, o Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, descobriu que o Cartola estava lavando carros ali em Ipanema e o Sérgio perguntou: “Você é o Cartola?”. Ele disse que sim. O Sérgio perguntou: “Mas onde é que você anda, fazendo o quê?” Cartola respondeu: “Trabalhando, lavando carro”. “Mas você não faz mais música?”. “Fazer eu faço, mas...”. Vou contar uma coisa engraçada, consequência do Zicartola. Uma das pessoas que apareceram lá foi a Nara Leão, que gravou um samba do Cartola que fez um sucesso formidável, tem mais de vinte e tantas gravações, e o Cartola achava ruim porque ela mudou, mudou não, ela errou na letra. Mas a música é O Sol nascerá, porque a história acaba, se for meio dia o sol vai nascer, “não, o sol voltará que eu escrevi”, mas ficou conhecido como o sol nascerá. Aí ficou, e ele não podia mudar mais. Aí o fim da tempestade, se for de noite o sol nasce, se for meio-dia o sol não vai nascer nunca. Ele ficou doido de raiva dela ter gravado errado, mas fez um sucesso formidável, então valeu a pena. Bom, mas voltando ao Zicartola, parecia uma coisa muito boa, mas nunca conseguiu dar lucro, nem pagar as despesas da sobrevivência. Uma história engraçada é que o Cartola reclamou que eu e o Carlos Cachaça não fomos na inauguração, e a gente falou: “Como é que não fomos, fomos sim”, e ele perguntou: “E por que vocês não entraram?”, falamos: “Ah não, nós ficamos num boteco ali perto da Central”. Realmente, nós não fomos, mas festejamos. Saltamos do trem e pensamos “vamos tomar uma”, aí ficamos tomando. Quer dizer, fomos na inauguração, não íamos


deixar de ir, o negócio é que ir ao local a gente não foi, mas que festejamos, festejamos. – A inauguração foi depois da casa já estar aberta durante algum tempo? – Foi depois. Com shows e tudo mais. Mas aí como os sócios deles saíram, Zica ficou como única dona, e se já não dava certo no tempo antigo da administração do Eugênio Agostini, com ela sozinha é que não deu, era muito fiado, então acabaram tendo que fechar, mas aí o Cartola já estava ganhando dinheiro com a música... – Quando começou a modernização do samba? – O primeiro desfile de escola de samba foi um macumbeiro que fez, o Zé Espinguela. Mas já havia uma escola de samba à frente das outras, que era o Estácio, tanto que tem um samba do Cartola que diz: “Muito velho, pobre velho/ vem subindo a ladeira/ com uma bengala na mão/ É o Estácio, velho Estácio/ vem visitar a Mangueira e nos dar satisfação/ professor chegaste atento/ pra dizer neste momento o que devemos fazer/ estamos mais animados/ a Mangueira aos seus cuidados/ vai a cidade descer.” Aí tinha um jornal que começou a promover desfiles na Praça Onze. Depois passou a ter desfile na Avenida Rio Branco, onde é a Cinelândia, e depois na Getúlio Vargas. Então fizeram esse sambódromo. Na década de 1930, andar com um violão era igual andar com uma metralhadora hoje, ia preso na hora, era só malandro que tocava violão. Então, eles tinham que se abrigar pra fazer samba de umbigada, dar per-

nada, aquelas coisas. Eles se reuniam perto da Praça Onze, numa balança onde os trens pesavam as cargas. O Cartola até fala disso no samba dele, dos tempos idos em que os malandros iam sambar, perto duma balança. Então, a evolução desse samba marginal até ser aceito realmente começou com os desfiles da Praça Onze, com o Zicartola. O pessoal da Zona Sul começou a ir, e tudo foi se transformando, porque a bossa nova trouxe muito de música americana e o samba foi acelerando estes ritmos todos. Hoje em dia, na música, é quase tudo igual, esse pessoal que está fazendo esses pagodes é quase tudo igual, tem até coisas que eu não vejo muita graça, mas estão na moda. Eu ainda acho mais bonito o tipo de samba que a gente fazia. – Por que você nunca quis ser um sambista profissional? – Ah, nisso eu era igual Cartola, como é que vou comercializar um negócio que vem naturalmente, que Deus me ajuda? Depois convenceram o Cartola de que não era nada disso. Eu nunca quis. Quando eles estavam fazendo discos pra ganhar, todos eles, eu não ia pra assinar contrato, eles botavam meu nome, mas eu não queria, nem direitos autorais, nada disso. Eu não quis, o porquê eu não sei, na verdade eu precisava muito, as minhas duas aposentadorias de faculdade dão menos que dois mil reais, o dinheiro todo que eu ganhei as mulheres acabaram ficando, eu deixava apartamento, as coisas que eu tinha comprado, eu não tinha jeito de discutir, então estas coisas eu aprendi com o Cartola.

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a obra de arte na era da insanidade técnica frederico coelho I Em 1904 o poeta parnasiano Olavo Bilac – e intelectual ativo do meio cultural carioca, pouco estudado pelo preconceito que criaram com sua poesia excessivamente pomposa e palavrosa – escrevia profético que “A atividade humana aumenta numa progressão pasmosa. Já os homens de hoje são forçados a pensar e executar, em um minuto, o que seus avós pensavam e executavam em uma hora. A vida moderna é feita de relâmpagos no cérebro e de rufos de febre no sangue".

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No Brasil, durante as duas primeiras décadas do século XX, escritores e intelectuais como Bilac – e João do Rio, Lima Barreto, Coelho Neto, Theo Filho, Ribeiro Couto, Benajmin Costallat, Bastos Tigre, Ronald de Carvalho e muitos outros que quase nunca são lembrados – eram engolidos pelas mudanças tecnológicas (a famosa era da reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin), pelas transformações políticas da mudança de regime (de um Império extemporâneo nas Américas para uma República caótica), pela ascensão de uma nova classe burguesa especuladora das fortunas do café e das brechas de um novo Estado montando sua débil burocracia, pela necessidade pessoal de ter um emprego público para sobreviver como intelectual (isto é, de se aliar a um compadrio que criava uma espécie torta e viciada de mecenato), pela eclosão caótica de filosofias e escolas importadas como o positivismo, o decadentismo, o eugenismo, o comunismo, o liberalismo e o anarquismo e pelo precário e mínimo mercado editorial. A saída era publicar seus textos nos inúmeros – inúmeros! – jornais e revistas semanais da época. E aguardar o resultado grandioso de seu talento ou o comentário camarada do compadrio que confirmava sua mediocridade. Eis que uma geração pressente o cataclisma, recusa os mesmo meios e formas de trabalho do literato e do bacharel Acadêmico da virada dos séculos e abre o Brasil para mundo das ideias não como receptáculo passivo para meros reprodutores/diluidores. Uma geração chega propondo uma práxis inter/nacional, uma forma de se pensar e produzir cultura a partir da língua nacional porém com os pés e as cabeças em outras paragens, pedem para os pintores abraça-


rem a paisagem local de forma radical, pedem para os músicos incorporarem no vocabulário erudito ocidental a sonoridade caótica e inventiva das matas e dos interiores do país. O modernismo – e a semana de arte moderna de 1922 como seu momento-síntese – incorporavam temas e práticas que, no limite, anunciaram as bases para novas formas de produzir e pensar a cultura no Brasil. Não é a toa que dois dos livros mais definitivos sobre a cultura brasileira nascem do amadurecimento deste ímpeto radical de renovação no país: Raízes do Brasil, do modernista Sérgio Buarque de Hollanda e Casa Grande e Senzala, do regionalista-modernista Gilberto Freyre. Mário de Andrade em um ensaio de 1940 diz retroativamente que “O modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as promessas do dia, só que ainda não era o dia”. O dia já chegou? II Entre 1960 e 1967 jovens cineastas espalhados pelo Brasil se reúnem na articulação nacional que a vida na Capital Federal (Guanabara) proporcionava aos que produziam cinema. Após seus primeiros filmes via cooperativas (Barravento), experimentalismo documentais (O poeta do Castelo, Arraial do Cabo, Opinião Pública) e articulações com instituições culturais como o CPC (Cinco vezes favela), essa geração rompe com o modelo vigente de produção e distribuição de filmes brasileiros e, imberbes, fundam duas empresas: A MAPA FILMES, núcleo coletivo de produção cinematográfica e a DIFILM, parceira coletiva de distribuição. Essa geração enfrenta os dilemas financeiros para se fazer cultura no país e revolucionam o mercado nacional, conseguindo ganhar prêmios no exterior e fazer sucessos nacionais como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Cafajestes. Se organizaram coletivamente para repensar como poderiam viver da sua arte, como poderiam viabilizar suas profissões de alto risco: cineastas. Glauber escrevia em 1963 um texto que deveria ser relido por muitos, chamado “Economia e Técnica”. Ali, onde ele expõe todas as mazelas e pro-blemas para um produtor independente fazer cinema no Brasil, ele diz (o texto deveria ser lido/publicado na íntegra, mas é imenso, fecha o livro Revisão do Cinema Brasileiro): “Este é o problema que nós, os produtores independentes, enfrentamos: a distribuição e a concorrência das distribuidoras estrangeiras. Por outro lado, distribuidoras nacionais são mal-aparelhadas e compostas por comerciantes desonestos, que não res-peitam nem cumprem contratos. A história, simples, é a seguinte: quando, depois de sete ou oito meses, o produtor independente rece-

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be a primeira cópia do filme, está geralmente endividado, porque as desorganizações habituais de nossa produção ultrapassam em dobro o tempo normal de filmagem. Com títulos bancários às portas do vencimento-protesto, o produtor independente procura o distribuidor e pede uma data. Via de regra, o cidadão torce o nariz e diz que a fita não presta, não é comercial”. A história sobre os dramas do produtor independente segue e as palavras de um jovem Glauber (tinha 24 anos e já estava se colocando na reta, publicando um clássico da história do cinema nacional e dando nome aos bois no debate cultural do país) mostram que o drama permanente dos que chegam por último no palco da história são, necessariamente, subversivos, desestabilizadores, inventores, questionadores do estabelecido, criadores das NOVAS FORMAS de se viver frente aos novos tempos. Glauber e sua geração tinham que romper com o cinema nacional que estava à sombra das grandes empresas internacionais e dos grandes estúdios brasileiros que não investiam no risco, no cinema de autor, na invenção de novas linguagens e experimentos cinematográficos. Eles pararam de fazer cinema? Eles se recusaram romanticamente a se adaptar à regra vigente e se mataram? Eles aceitaram passivamente a situação posta e abriram mão de seus desejos de criadores? Não. Eles criaram OUTRAS FORMAS DE NEGÓCIO. A MAPA produções foi fruto da reunião profissional de Zelito Vianna, Glauber Rocha, Walter Lima Jr., Paulo César Sarraceni e Raymundo Wanderley Reis e a DIFILM tinha na sua fundação onze sócios – Marcos Faria, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Zelito Viana, Roberto e Rivanides Faria, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr., Paulo César Sarraceni, Glauber. Se alguém vê nessa iniciativa coincidências ou afinidades com crowd fundings e associações coletivas de artistas, é isso mesmo.

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III Em 1965 o cinema nacional não foi somente revolucionário porque era “novo”, assim como o modernismo em 1922 não foi histórico porque era “moderno”. Assim como esses dois momentos, tivemos vários outros em que novos agentes da produção cultural inventaram novas formas ou propostas para realizarem seus trabalhos – desde o grupo Nuvem Cigana até os criadores do Manguebit. Os grupos ao redor do Cinema Novo e do modernismo, marcaram e superaram momentos em que se colocava de forma incontornável o seguinte impasse para o criador cultural: de um lado a possibilidade a partir de novas técnicas e linguagens de fazer de forma livre, inovadora e crítica o seu traba-lho enquanto obra criativa e mercadoria estética; e do outro as várias barreiras para isso aconte-


cer, como a falta de condições e incompreensões conservadores impostas pelos que dominam ou ditam as normas e os dinheiros de uma dada época. E ambos, cineastas autorais cooperativados e escritores e artistas vanguardistas insatisfeitos com o estado conservador e atrasado da cultura brasileira, apresentaram saídas originais e eficazaes, mesmo que temporariamente. Seja na forma, seja na prática. Despejaram manifestos revolucionários, livros experimentais que tornam-se canônicos (Macunaíma), filmes de baixo orçamento, o uso da nova tecnologia de lentes, câmeras e gravação (o revolucionário uso do Nagra), feitos que são discutidos, lidos e vistos até hoje. Tudo isso comprova que em determinados momentos de virada histórica, os momentos dramáticos que envolvem a arte e a técnica, a criação e a remuneração, o artista e o mercado, a obra e o seu consumo, a invenção e a redundância, sempre haverá embates fratricidas entre dois universos que, inicialmente, nunca dialogarão. Um universo que está, que existe em presença inquestionável, que fez as leis, que ditou as normas de controle e saber, que estratificou a revolta e burocratizou a participação pública, que está vendo a banda passar. E outro universo que será, que transborda em possibilidades questionáveis, que alucina visualmente e cognitivamente em outras dimensões, que circula através de telas, que participa, que emancipa, que não vem a passeio. Um não é melhor que o outro. A história não é feita de adjetivos, mas de movimentos, fluxos, potências transtornadas e assim vamos vivendo em conflito permanente contra tudo e todos e inclusive – eis aí a psicanálise para provar – contra nós mesmos. A boa e velha dialética que resolva e de uma síntese para isso tudo. O que vemos hoje no Brasil – hoje mesmo, agora, nesses últimos meses – ao redor dos debates, das brigas e dos rachas sobre políticas da cultura é a possiblidade de repensarmos e reinventarmos, MAIS UMA VEZ, as formas de produzirmos, consumirmos, circularmos, adquirirmos, expandirmos na correnteza do viver a nossa produção estética, intelectual, subjetiva, mercadológica. Sem inocências, sem desvarios radicais, sem pilhérias e desqualificações. Nunca o diálogo se apresentou mais produtivo. Para cada renovação radical, existe alguém passando o bastão entre gerações. Graça Aranha iluminou de certa forma os jovens modernistas. Nelson Pereira dos Santos municiou os jovens do cinema novo. Essas novas formas de produção já estão acontecendo no mundo e aqui, com inúmeras, incontáveis iniciativas de auto-financiamento, moedas solidárias, redes coletivas de serviço e remuneração, barateamento radical dos meios técnicos para produzir e distribuir produtos culturais AUTORAIS e muito mais.

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O século XX, suas empresas, seus governos, suas práticas de mercado e sua burocracia não precisam temer seu aniquilamento, não precisam achar que estão perdidas, pois já perderam. E nem sentiram. Aliás, estão sentindo agora, como um eco, como uma constatação cruel – e por isso, volta e meia soltam sua bílis em jornais, livros e entrevistas. Lembrem do relatório de Matthew Robson, lembrem que os novos milionários são jovens que tiveram uma ideia e a executaram a partir de riscos e senso de oportunidade (alô Zuckerberg!), lembrem que a disseminação do fluxo de conteúdos culturais trocados de forma gratuita não tem volta. A hora de reinventarmos novas formas de sermos produtores e pensadores da cultura (enquanto prática criativa de valores e produtos) – e pensadores da sociedade brasileira por consequência – é essa. Por isso o interesse por Cultura Digital e “open sources”, por isso a valorização fundamental dos Pontos de Cultura e das novas formas de cooperativa de cinema, música, teatro etc, por isso o sucesso do Fora do Eixo e do Cubo Card, por isso a discussão INÉDITA das pessoas sobre a Lei Rouanet, por isso a pressão sobre nomes consagrados para que eles tomem posições – e muitos deles estão tomando. Como nos anos 20, como nos anos 60. O Brasil ainda tem muita lenha pra queimar e estamos no olho do furacão. Isso não é um texto de um desvairado em relação ao futuro, ao contrário. É o texto de uma pessoa que segue os preceitos filosóficos do pai do Paulinho da Viola e sempre canta baxinho “quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado”.

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tempos interessantes: um ensaio em múltiplas vozes sergio cohn

Para lembrar a velha maldição chinesa, a poesia está vivendo tempos interessantes. Não pelas suas crises, mas exatamente pela ausência delas. As novas tecnologias possibilitam aos poetas, sejam eles novos ou consagrados, a circulação de suas produções por meio digital ou impresso. Primeiro, através dos livros por impressão digital, que, ao difundir baixas tiragens, reduziu o custo de edição e permitiu o aumento de títulos no mercado. Depois, pela difusão da internet e das redes sociais e de compartilhamento. O surgimento de editais e bolsas públicas para escritores criou, ainda que timidamente, a impressão de ser uma atividade respeitada e até bem remunerada. A multiplicação de recitais poéticos pelas cidades permitiu a socialização entre os autores. Estamos chegando perigosamente perto de uma zona de conforto. Ainda há, é claro, o inconveniente de não existirem, nem mesmo entre os poetas, leitores ou críticos para essa poesia. Mas não dá para negar que, entre as centenas de autores que “despontaram ao anonimato” nas duas últimas décadas, existam dezenas de escritores de excelente categoria em atividade. Mesmo o crítico mais ranzinza tem que assumir que é um número de bons autores muito acima da média da nossa história. Agora, falar em qualidade do texto poético é uma coisa. Falar da capacidade dessa poesia de agir no mundo, e de explorar as possibilidades atuais de criação, é outra. A poesia brasileira nunca se viu tão recolhida do debate cultural (nem vamos falar do social ou político). E isso é uma questão importante. Basta lembrar que, por praticamente todo o século XX, desde o modernismo brasileiro até a década de 1980, foram poetas que estiveram na linha de frente dos eventos culturais mais importantes. Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Torquato Neto, Waly Salomão, Chacal e Bernardo Vilhena são exemplos claros disso. Hoje, a poesia brasileira não consegue transcender seu papel em branco. Um dos sintomas mais claros disso é o vício da metalinguagem, que a assola há exatos 30 anos.

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Alia-se a isso o fato da poesia brasileira ter se tornado absolutamente livresca, mesmo quando utiliza o suporte digital. É muito raro encontrar uma poesia que explore recursos sonoros, plásticos, audiovisuais, interativos ou de autoria aberta. Costumam ser a simples transposição de versos para a tela do computador ou do leitor digital. Assim como os recitais de poesia são recheados de poemas que utilizam como base uma retórica irreverente, muitas vezes humorística, mas inteiramente baseada no discurso clássico, sem utilizar os efeitos performáticos, sonoros e corporais que já foram adotados pela poesia há um século, desde o dadaísmo. Ou seja, é uma poesia que tem se demonstrado excessivamente tímida em explorar seus potenciais. Para entender esses potenciais, de uma forma mais propositiva do que crítica, conversei com três poetas e pensadores da área, para falar sobre algumas fronteiras importantes a serem exploradas pela poesia hoje: a performance, as artes visuais e o mergulho em outras poéticas, em especial a poesia ameríndia. Seguem os diálogos, para começo de conversa (outras virão): 1) A Poesia Expandida – um diálogo com Renato Rezende O que é poesia expandida? É a poesia que escapa dos seus suportes tradicionais. O Antonio Risério, trabalhando no âmbito do concretismo, chama tais experiências de texto intersemiótico. Para ele, a manutenção da palavra é condição fundamental, mas essa palavra pode ser trabalhada como poesia de forma digital, em computador, em audiovisual, etc. Ou seja, não confundir uma arte com um suporte, um meio, que no caso da poesia se convencionou a ser o livro. É o caso do Poema enterrado do Ferreira Gullar? 52 |

Sim, o Poema enterrado é um exemplo de poema expandido, num contexto específico, o neoconcretismo. A Tropicália, do Hélio Oiticica, pode ser vista como um poema expandido, já que inclui os poemas da Regina Salgado em um contexto ambiental? Sim, poderia. Claro! Então há duas formas de poema expandido possíveis: a que mantém a contemplação, utilizando de outros instrumentos tecnológicos (ou dispositivos) e a que inclui as experiências corporais na poesia?


Sim, essas duas formas que você cita existem, não sei se seriam as únicas. É difícil, e possivelmente desnecessário, tentar definir formas de poemas em um campo expandido. Pensando no binômio invenção/experiência: o movimento concreto e seus autores centralizaram, nas últimas três décadas, o debate sobre o campo da poesia, utilizando o termo poundiano “invenção”. Nesse percurso, não houve a perda de possibilidades de pesquisa, ao restringir a pesquisa de poesia expandida em tensões linguísticas, mais do que em experiências corporais e estéticas? Sim, houve... A grande crítica ao movimento concreto é seu autoritarismo, suas pretensões totalizantes, abrindo guerra contra experiências que fugiam dos aspectos metalinguísticos e espaciais que eles tanto prezavam. Ao contrário dos neoconcretistas, que pregavam o foco na poesia em um ambiente temporal de duração, os concretistas apegaram-se à explorar a poesia/palavra como objeto no espaço (o projeto verbivocovisual foi muito mais visual do que qualquer outra coisa), o que levou a interessantes experiências com poesia digital, poesia em computador, etc, mas que no Brasil podou manifestações poéticas que se mostrariam muito mais ricas, como atestam produções na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, onde meios mais subjetivos, expressivos e orgânicos, como o vídeo e a performance, contaminaram o trabalho dos poetas. As artes visuais e o audiovisual pensaram em formas de quebrar essas fronteiras, trabalhando com ambientes e dispositivos, de uma forma mais constante e radical... As artes visuais, sendo as artes da imagem, tornaram-se dominantes no século passado, e foram se apropriando de outras linguagens. Um poeta, como Marcel Broodthaers, por exemplo, que atravessava essas fronteiras, perdia o nome de poeta e virava artista visual... Quando Michael McClure trabalha com poemas não-semânticos, sonoros, reproduzindo o ruído dos mamíferos, ou Henri Michaux cria poemas a partir de desenhos que remetem a ideogramas e pessoas se movimentando, não estão quebrando a especificidade da palavra na poesia? Libertando-a? Sim, mas é verdade que existe um problema aí... De tanto abrir um campo, podemos perder o poema de vista. O que é um poema? O poema é um objeto de palavras? É a intenção do poema? Existe a poesia, e existe o poema, que é o objeto material resultante do trabalho do poeta. Esses conceitos estão confusos, e

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o bonito não é exatamente discerni-los, mas criar gestos potentes. Neste sentido, uma intenção realizada – uma intenção poética realizada – seria um poema. E como incluir o corpo nela? O modernismo estabeleceu que cada arte deveria trabalhar sua própria especificidade, a poesia ficou restrita à linguagem escrita. Corpo/letra/palavra/fala/ gesto – tudo pode se constituir em algo que poderíamos chamar de poesia, uma emergência de algo novo. Há diversas maneiras de se pensar o corpo inserido no poema, desde uma inscrição no próprio corpo – um risco, um corte, uma mutilação, por exemplo, até a voz, como elemento material, pré-linguagem, o grito, constituindo o poema, até formas mais sutis e conceituais... A total retirada do corpo, por exemplo, pelo uso de máquinas, pode, pela negatividade, agenciar o corpo de forma potente. Por que são tão poucas e erráticas as experiências com a poesia ambiental? Todas essas experiências são interessantes. Não são experiências de vanguarda, pois as vanguardas acabaram, e cumpriram seu papel: abriram novos caminhos, expandiram o horizonte. Um poeta livresco não está, diríamos, atrasado em relação a um poeta que trabalha o vídeo, a performance ou a poesia ambiental... Mas os campos menos tradicionais nem sempre se estabelecem, isso depende muito da cultura e das tecnologias eleitas pela comunidades... Há sempre um mistério em tudo.

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E o cheiro, o tato, o gosto, como incluí-lo na poesia? Isso deve partir da necessidade de cada poeta, de cada artista... Há artistas que experimentam com novos materiais a partir de uma abordagem intelectual, e há aqueles que, seguindo um impulso interior, se apropriam de materiais inusitados, na tentativa de expressar algo novo... Cada poeta deve poder responder a essa pergunta, inclusive para negar a necessidade da inclusão desses elementos... O que eu acredito que seja importante é uma liberdade, e a busca de gestos potentes e talvez até inaugurais. 2) Poesia e performance – uma conversa com Miguel Jost O que é perfomance? Mais do que tudo, é a nossa capacidade de colocar em cena as diversas e múltiplas vozes (ou produções estéticas) que atravessam a nossa possibilidade de criar discurso hoje. Inventar uma escrita em que a produção de presença, a nossa presença, possa ser um traço de diferenciação no discurso.


Ao se pensar a poesia, vemos que a performance consolidada no Brasil nas últimas décadas está muito fortalecida na oralização do discurso, mesmo que irreverente, mais do que na inserção do corpo e radicalização dos limites da linguagem. Talvez isso ocorra pelo fato do poeta hoje estar mais preocupado com o meio, com a viabilização do seu corpo como esse corpo discursivo que você cita, em poder assumir uma performance que o localize como poeta do que buscar um campo ampliado de atuação que o permita alargar seus horizontes de linguagem. Parece faltar a crença, mesmo que idealizada, de que o campo de atuação do poeta deve ter como uma das principais preocupações a imersão do corpo em novas perspectivas, que não necessariamente apresentem prontas conquistas no campo da linguagem, mas que somente pelo fato de imergir já permita uma ação que volte a ser aberta para a experiência do corpo. Ao mesmo tempo, essa performance se consolidou despojada de outros artifícios – dispositivos tecnológicos, cenários, coreografia, figurinos. Uma performance, por assim dizer, desritualizada, cotidiana. Mas em paralelo, quando o inverso ocorre, há grandes riscos de se remeter a uma performance poética que pode parecer datada ou excessivamente referencializada por algumas passagens de nossa tradição poética. Muitos têm medo disso. Mas a performance e a poesia não passam pelo risco? Realizar uma performance poética é sempre colocar o corpo em risco. Mesmo que dentro de um círculo de pausterização que remete à oralidade, como falamos, permanece o risco. Esse risco não é circunscrito artificialmente em um campo de possibilidade, quando se pensa em viabilização mais do que potencialização? Sim. Mas me parece que há um duplo hoje de coragem/medo na afirmação desse corpo do poeta. Muitos dos que se arriscam buscar novos formatos, mais do que inventores de linguagem, o fazem como maneira de escapar de uma responsabilidade pelo fazer poético. Isso também apresenta um perigo. Parece que há uma dificuldade política de colocar a função poesia na carteira de trabalho. Mas a simples afirmação do fazer poético já é meritória? Eu sinceramente acho que sim. Como pensar a presença num mundo ostensivamente virtual?

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A presença virtual é constantemente uma atualização da presença real. Mesmo com as devidas refrações, a performatização dos corpos ainda é produtora de discurso, mesmo que sob novas edificações. O que pode um corpo hoje? Só o corpo pode. Pode ser nascente, manancial, afluente e toda confluência da vida, do rio que é a linguagem hoje. Essa linguagem, portanto, é mais experiencial que narrativa? É impossível um épico de nossos tempos? No momento sim, mas pode ser que volte ao contexto narrativo. Talvez o experiencial não consiga se reverter numa ampliação da matéria/linguagem, o que seria uma pena. E os ascetas da narrativa estão de sempre de plantão para nos impor uma boa história que pacifique e acalme corações. Ao mergulhar nas linguagens não-codificadas dos corpos, como comunicar? Antes de tudo, não buscar essa codificação, que agiria como mais uma docilização dos corpos e da experiência da linguagem. E fazer desse risco uma plataforma política, uma plataforma em aberto para a ação, para o fazer.

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3) Outras poesias – uma conversa com Pedro Cesarino O que é etnopoesia? Uma coisa é aquela etnopoesia pensada pelo Jerome Rothenberg e outros, na América do Norte de 1950, outra é o que podemos fazer hoje em dia com isso. A etnopoesia deveria ser aquela que é feita ou pensada às margens da poesia oficial, acadêmica, marcada pelas instituições de autoria, de mérito, etc. E que, portanto, envolveria formas de criação ou processos, digamos, não metropolitanos. Mas isso acaba sendo um guarda-chuva gigantesco, no qual cabe, se não estou enganado, coisas tão díspares quanto Rimbaud e Han Shan, Blake e algum xamã ameríndio. Ou seja, todos aqueles que, de certa forma, não se enquadravam no cânone. Antonio Risério diz que “etnopoesia” é uma corcunda taxonômica... Como a coisa passou a ser outorgada ou nomeada a partir de um centro específico (o de certo grupo de escritores norte-americanos de um certo período), e se tornando um guarda-chuva por demais genérico, eu tendo a concordar com essa expressão de Risério. Não sei exatamente qual poderia ser o seu poder de classificação ou de identificação hoje.


O que se pode fazer hoje em dia com a etnopoesia? Existe hoje uma oportunidade de levar às últimas consequências a tal da multipolaridade de que tanto se fala: estilhaçar os cânones e o centro, bem como os seus rótulos, e encontrar uma outra multiplicidade de construções de poesia, de realidade e de sentido. Isso é coisa que não cabe dentro de um só rótulo, "etnopoesia", que parece pressupor um outro, "poesia", que permaneceria fixo, central, tal como a imagem da metrópole e das colônias. Nesses tempos regidos pelo signo da "inclusão", como pensar essas poesias no sentido contrário, o da possibilidade de mergulho no outro, no alheio, no estranho? A inclusão não deveria ser feita como uma imposição do consenso (da cultura global que ainda segue a imagem euroamericana hegemônica), mas sim como uma convivência de diferenças, isto é, das multiplicidades de produção de sentido que caracterizam a experiência humana. Em outros termos, a inclusão do ponto de vista das condições sociais, sanitárias ou econômicas (extremamente necessária e suficiente para justificar políticas de ação afirmativa) não deveria, porém, levar a um achatamento da diversidade poética e ontológica em função de uma cultura metropolitana unívoca. O mergulho no alheio ou no estranho, que é a tarefa do tradutor e do transportador de mundos, me parece então crucial nesse processo. É ele que permite instaurar uma experiência da multiplicidade e, simultaneamente, a possibilidade de que a produção de pensamento e de sentido seja simétrica, realizada por uma pluralidade de agentes criadores, e não unilateral. As novas tecnologias de comunicação permitem a quebra da mediação. Assim, povos da floresta podem constituir sua própria ponte com a poesia canônica, sem a necessária intermediação da academia ou dos poetas "consagrados". Como isso muda a questão? O que muda é o "a" anteposto a "poesia". Eu não sei bem o que é “a” poesia, tal como não sei dizer bem o que é “a” natureza, e assim por diante. Com essas quebras de mediação, é provável que novas relações entre palavra e mundo, muitas vezes a partir de velhos parâmetros, possam vir à tona e, assim, reinventar aquilo que o pensamento ocidental tende sempre a fechar em uma unidade, em uma classe, em uma expressão ou discurso. Isso pode trazer um diálogo simétrico entre academia, escritores e outros criadores (da periferia, da floresta, de onde quer que seja). Em outros termos, não se trata de satanizar acadêmicos e poetas/escritores, mas de localizá-los (não foi isso que eles sempre fizeram

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com os "outros", enquanto sempre se consideraram como os porta-vozes do discurso universal?). Ou seja, de considerá-los como outros tantos pontos ou agentes/criadores dentro de uma rede indefinida de posições, na qual não existe mais a possibilidade de um ponto de vista de Sirius. A poesia ameríndia teve uma absorção errática na literatura brasileira. O que ela tem ainda para oferecer como possibilidades novas? O mesmo que Drummond tem (ainda) a oferecer: poesia. Mas poesia em outras chaves, ou seja, outra poesia. Uma poesia que parte de outras configurações ontológicas e que, portanto, instaura outra construção de sentido (para a qual a relação errática da literatura brasileira com os universos indígenas ainda não ofereceu instrumentos necessários de acesso e de compreensão).

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Drummond é o principal nome da segunda geração modernista, menos "heróica" e voltada para o "Brasil profundo", que se consolidou como linguagem central da poesia por ser uma tradução fiel da definitiva virada urbana e moderna do Brasil, com uma linguagem do cotidiano urbano. Nos últimos tempos, há uma nova atenção a esse "Brasil profundo". Isso chegou à poesia? Essa é uma boa questão. O tal Brasil profundo talvez esteja começando a bater nas portas dos poetas, mas ainda é uma marolinha. Começaram a aparecer umas traduções aqui e ali (Alberto Mussa reconstruindo os mitos tupinambá, Sergio Medeiros traduzindo o Popol Vuh, Rosângela de Tugny com os cantos dos maxakali, Douglas Diegues e os poemas guarani), uma ou outra incursão da ficção, algo nos cinemas (Terras, de Maya Da-rin, e outro documentário muito bom sobre quilombolas que chama Terra deu, terra come, de Rodrigo Siqueira), mas nada que ainda de fato implique em um movimento mais sistemático e transformador. Como o Brasil profundo é tão surpreendente quanto uma china, então a força transformadora disso seria mesmo a de um tsunami. E isso, de fato, como você bem apontou, porque essa segunda virada modernista parece mesmo ter congelado a literatura na experiência urbana. Qual a importância do paralelismo nos cantos xamânicos ameríndios? O paralelismo não é só um recurso verbal, é algo que se encontra na música, nas artes visuais, na coreografia. Uma forma de capturar a atenção através da reiteração de um certo padrão estético ou de uma certa saliência (uma linha ou um verso que se reitera ou se transforma ao longo de um canto ou de um poema, uma frase coreográfica ou musical que cria um padrão). Isso é algo universal, mas o fato é que as artes verbais indígenas elaboram o paralelismo de uma maneira especial e com um rendimento ontológico específico (algo próximo,


por mera analogia rápida, da maneira como as reiterações e simetrizações do Tao Te Ching extrapolam o mero recurso estilístico para se transformarem em uma expressão de pensamento). O uso intensivo do paralelismo pelas poéticas indígenas leva a uma articulação entre concisão e transbordamento. Um poema/canto xamanístico pode ser uma intensidade condensada em uma cena. É mesmo como se fosse uma cena verbal (e o paralelismo é, entre outras coisas, isso: um recurso de visualização). Mas, mesmo assim, cada povo tem uma propensão maior para tal ou tal recurso. E as conexões do uso de tal recurso pelas poéticas ameríndias e pelas modernistas não são totalmente claras. Eu diria que o único que de fato parece ter lançado mão de tal recurso em sua construção literária foi Guimarães Rosa, em "Meu tio o Iauaretê". E as demandas visuais dessa poesia? É claro que elas não são obrigadas a se enquadrar nas nossas divisões (verso e prosa) e suas decorrências. A própria literatura moderna já implodiu, aliás, essas divisões e tem um arsenal de recursos para pensar aproximações possíveis. Ou então o "projective verse" do Charles Olson, que também oferece uma outra configuração possível para o poema a ser levada em conta no momento da tradução. Seria necessário também especificar mais os casos, pois as poéticas indígenas são bastante diferentes entre si. Há aquelas que parecem jogos de ecos, que mal cabem no papel e na letra, que não parecem pertencer a esse tipo de mídia, e há outras que são condensadas, profundamente imagéticas tais como os haikais – essas cabem melhor nos versos. Ou outras, ainda, que pressupõem uma multiplicidade de enunciadores e de posições (mortos, espíritos, vivos, xamãs, todos participantes de um mesmo evento) e que demandam uma espacialidade distinta tanto do texto corrido, quanto do verso. A inserção do corpo nessas composições permite uma expansão das nossas próprias possibilidades? Sim, são poéticas do corpo, mesmo que expressas por meio de palavras. Ou seja, não são poéticas da ideia – o que não quer dizer que elas não tenham pensamento. Elas têm o pensamento de um (outro) corpo. Por fim, estamos virando índios? Pelo bem e pelo mal? Oralidade, campos expandidos, mundo metafísico superpovoado, virtualidades... Seria ótimo. Eduardo Viveiros de Castro disse outro dia que é isso ou então virar um replicador do estado. E índio não é aí uma metáfora para a pureza rousseauista, mas justamente para a tal configuração pela multiplicidade que tem se tornado cada vez mais forte, com todos os seus dilemas e qualidades possíveis.

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manuela carneiro da cunha e a antropologia como política do entendimento eduardo viveiros de castro Sem ter mais à mão que uma lista de pontos escritos em uma folha solta, porque a falta de tempo me deixara falto de texto, falei de improviso no encontro de novembro passado em Marília, quando a XII Jornada de Estudo em Ciências Sociais homenageou, em boa hora, minha querida colega Manuela Carneiro da Cunha. Confiava que o gravador ou filmadora presente ao evento iriam permitir um transcrito de minha divagação, para que mais tarde a podasse e arrumasse; falharam, é claro, as máquinas. Graças porém às notas que Mauro Almeida tomou enquanto eu falava – Mauro é capaz de digitar em seu laptop a essência proposicional de qualquer algaravia que ele escuta, em tempo real –, pude me recordar duas ou três coisas das que disse sobre o trabalho de Manuela. O que apresento abaixo é uma retranscrição das notas de Mauro, com poucos ornamentos adicionais. O tom sinóptico tem a deliberação da pressa (o tempo sempre me foi hostil) e a vantagem de ir diretamente à marca que Manuela vai deixando com seu trabalho. ***

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A antropologia de Manuela Carneiro da Cunha se destaca, primeiro que tudo, pela dissolução ou transcendência criativa de certas oposições que organizavam o campo teórico-político da disciplina, na época em que ambos começamos a cultivá-lo. O fato de que elas persistam, a despeito de sua caducidade, como fôrmas ideológicas vazias neste ou naquele grotão acadêmico é uma simples repetição fractal, no interior das superestruturas, do princípio de inércia das mesmas. As forças produtivas teóricas avançaram a passos largos e rápidos, nos últimos, digamos, trinta anos – novos problemas, novos temas, novos objetos, novos parceiros –; as relações de produção epistêmicas seguiram-lhes a reboque – a antropologia não se organiza mais como um processo de extração da mais-valia simbólica do trabalho existencial do nativo, mas como o desenvolvimento (sustentável!) de um pacto de interlocução conceitual com ele –; já a divisão das paróquias e prelazias acadêmicas, as velhas querelas teológicas


com seus anátemas, seus hereges e seus inquisidores, bem, isso vai mudando um pouquinho mais devagar. Volta e meia, surge um retroprofeta, em geral bem “posicionado” na hierarquia oficial, a deblaterar contra alguma blasfêmica pósmoderna. A retaguarda, et pour cause, tem as costas quentes. Mas Manuela esteve sempre à frente. À frente daqueles que inventam e conectam, não daqueles que rotulam e condenam. Sobretudo, ela sempre esteve à frente, melhor ainda, ao lado daqueles que entendem que a missão precípua da antropologia, na luta sem quartel contra toda forma de colonialismo, luta que marca a disciplina desde seus primórdios (mesmo quando esta acreditava, ou temia, estar do outro lado), consiste em uma intervenção nas condições do diálogo conceitual entre a tradição que gerou a antropologia – a tradição da modernidade – e aquelas tradições cuja exclusão foi consubstancial à invenção da primeira. Intervenção, contra-invenção, inversão: deslocar os termos da interlocução antropológica; fazer o vetor analítico oscilar, ricochetear ou refletir sobre sua origem; deixar-se afetar pelo que se decidiu estudar. Aprender não apenas sobre, mas sobretudo com aqueles que se estuda. De um pensar sobre a um pensar com, passando pela vertigem infinitamente fugaz (mas absolutamente necessária enquanto tal) de um pensar como. Para poder, ao fim e ao cabo, reconduzir o pensamento ao seu verdadeiro lugar, o intervalo: o lugar da tradução, da versão, da relação, da transformação entre pensamentos; onde o sobre, o com e o como se condensam na comum essência tradutiva e intercalar do pensamento. Pensar é traduzir; descoagular oposições, fluidificar o trânsito do conceito. Toda antropologia será simétrica, ou não será antropologia. A primeira e talvez maior oposição implantada no imaginário da disciplina que a obra de Manuela se encarregou de perturbar foi aquela entre uma perspectiva “internalista”, voltada para a descrição dos conteúdos culturais tradicionais dos povos indígenas (e voltada portanto para a “preservação” desse passado de plenitude), e uma perspectiva “externalista”, interessada no presente histórico de subordinação sociopolítica dos povos nativos às formações estatais de origem europeia (e interessada portanto na “libertação” futura desses povos). Em suma, tratava-se da velha, e cada vez mais caduca, oposição entre o estudo dos povos indígenas como essências culturais autônomas, que perseverariam em seu próprio ser em algum céu das Ideias Coletivas, e seu estudo enquanto criaturas contingentes do Contato Interétnico, prestes a se dissolverem em sua causa final, a estrutura de classes de um capitalismo às vésperas, sempre espe-

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rançosas, do Milênio. Na época em que Manuela (e eu) entramos na história, essa oposição era fulanizada antagonisticamente em termos de “estruturalistas” (e outros formalistas alienados) versus “marxistas” (ou algo próximo disso). Para que essa oposição, profundamente prejudicial do duplo ponto de vista teórico como político, pudesse ser desfeita, Manuela realizou um duplo movimento, ele mesmo teórico e político. Teoricamente, seu trabalho se encarregou de articular com tantra argúcia quanto minúcia essas duas macroentidades à primeira vista inconciliáveis, a Estrutura e a História. Aluna de Lévi-Strauss, Manuela foi amiga de Jean-Pierre Vernant, o grande helenista que, ao menos assim me parece, foi a maior influência intelectual sobre Manuela. Em Vernant, o estruturalismo lévi-straussiano entra em uma interação fecundíssima com a psicologia histórica de Ignace Meyerson e com a história “maussiana” de Louis Gernet. O trabalho de Manuela, desde seu estudo seminal sobre o mito e o messianismo entre os Canela, passando por seu livro clássico sobre a morte e a pessoa Krahó, até seu artigo perspectivista sobre xamanismo e tradução, dão testemunho desta filiação “vernantiana”: filiação temática, teórica e estilística. Não será por acaso que, mais tarde em sua carreira, Manuela se aproximará de Marshall Sahlins, outro antropólogo que contribuiu decisivamente para reformular a relação entre estrutura e história. Para Manuela como para Sahlins – como para Vernant – isso nunca significou dissolver a consistência específica destes dois conceitos, muito pelo contrário; tratou-se foi de mostrar como, na prática (no duplo ou triplo sentido dessa palavra-mana), estrutura e história se interdeterminam e estão em pressuposição recíproca.

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Não é preciso insistir sobre a importância do trabalho de Manuela enquanto historiadora, ou como praticante de uma autêntica antropologia histórica. Mas quero sim insistir sobre sua ascendência classicamente estruturalista. Insisto nisso porque cuido que foi graças, em larguíssima medida, a Manuela Carneiro da Cunha que a antropologia lévi-straussiana passou a ser “recebida” nos salões de uma academia dominada por posturas intelectuais muito antipáticas a Lévi-Strauss. Especialmente em São Paulo, onde a relação das Ciências Sociais com o estruturalismo, filtrada desde muito pela alfândega filosófica uspianocebrapina, que remete a outras Franças, outros totens e outros mitos, foi marcada por uma quase indiferença, senão por uma aberta hostilidade. (A exceção precoce foi, como para tantas outras coisas, Bento Prado Jr., um grande e livre espírito, que muito fez para atenuar a alergia da alta intelectualidade nativa a Lévi-Strauss.) Manuela literalmente trouxe de volta Lévi-Strauss à antropologia


paulista. Em seguida a ela, o segundo intercessor – no sentido em que Latour ou Deleuze empregam essa palavra – essencial da antropologia lévi-straussiana foi Mauro William Barbosa de Almeida, que fez para a relação entre estrutura e mathesis o que Manuela fizera para a relação entre estrutura e história. Não menos digno de nota, nesse sentido, foi a captura, por Manuela, desse tema aparentemente tão avesso ao estruturalismo como a “etnicidade”. Manuela foi lá nos campos de caça do nominalismo e do instrumentalismo barthianos e mostrou como a etnicidade é uma categoria em perfeita continuidade ontológica – e portanto em rigorosa descontinuidade transformacional – com certas figuras totêmicas da antropologia estrutural, em especial, o totemismo ele próprio. Barth relido por Lévi-Strauss... Seus estudos sobre a etnicidade, na América indígena como na África, tiveram um inestimável valor liberador para o pensamento antropológico. Eles estão na origem, quero crer, dos trabalhos mais recentes de Manuela sobre a cultura-entre-aspas, um conceito muito original, que ainda vai dar pano para manga. Insisto sobre o alinhamento estruturalista de Manuela (e Mauro) porque o segundo movimento de dissolução entre internalismo e externalismo, estruturalismo e sociologismo, foi aquele que chamei “político”, e que consistiu em mostrar como não havia qualquer contradição entre engajamento político e atividade acadêmica, reflexão teórica e advocacia militante, produção de conceitos e representação profissional – bem ao contrário. Manuela mostrou, como outros colegas de nossa geração, que era possível fazer política fora do Estado, e que uma aliança autêntica com o movimento indígena não precisa (com licença do eufemismo) passar por um engajamento na administração indigenista, mas sim por um diálogo diplomático – entre “potências” estrangeiras, quero dizer – com ela. Sobretudo, Manuela mostrou como qualquer compreensão da ação política indígena, e portanto nossa adesão à luta indígena, exige que sejamos capaz de conectar com o pensamento indígena; ela mostrou como o reconhecimento da plena “agência” indígena começa radicalmente pelo reconhecimento de que ainda não sabemos, antes de fazer antropologia, do que o pensamento indígena é capaz. A dissolução dos termos da “escolha” entre internalismo e externalismo, estrutura e história, cosmologia e política, pensamento e ação, não foi apenas, penso eu, uma dissolução teórica, ou, digamos, estrutural. Ela foi uma dissolução prática, isto é histórica. Deu-se no real de seu tempo. O trabalho de Manuela

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reflete a percepção das mudanças históricas que tornaram escolhas como esta acima obsoletas. Mariza Peirano observou famosamente que havia duas maneiras diferentes de se estudar as populações indígenas no Brasil: uma, vendo-as como situadas no Brasil; a outra, vendo-as como parte do Brasil. Se os índios são concebidos como situados no Brasil, tal “situação” constitui uma condição apenas superveniente, não constitutiva: os índios que se estuda estão no Brasil por acaso, no sentido radical da expressão; sua “brasilidade” é contingente. Caso se os veja como parte do Brasil, ao contrário, sua brasilidade é algo necessário; o que os torna objeto legítimo de investigação antropológica é sua participação nas estruturas sociopolíticas nacionais. Escrevi uma longa e famigerada diatribe – que não vejo, diga-se de passagem, nenhum motivo para atenuar, apenas para desenvolver – fortemente radicada nessa distinção de Peirano. Mas eu já então chamava a atenção para o fato de que tal contraste descrevia as fraturas epistemo-políticas existentes em diversos centros acadêmicos da antropologia brasileira, notadamente o Museu Nacional e a UnB (e seus apêndices Brasil afora), mas que ele se aplicava menos bem no contexto paulistano; eu creditava essa dificuldade ao caráter mediativo e sinergizante do trabalho de Manuela.

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Hoje, tendo a pensar que a história recente dos povos indígenas, no continente como no mundo em geral, faz a alternativa apontada por Peirano tornar-se objetivamente menos nítida e menos importante. Em parte porque o local e o global, a aldeia e o mundo, se conectam cada vez mais por cima das fronteiras dos Estados nacionais; mas sobretudo, porque o desafio que se coloca hoje não é mais o de escolher entre os índios no ou do Brasil, entre uma “antropologia dos indígenas no Brasil” ou uma “antropologia do Brasil indígena”, e sim o de abrir espaço para uma antropologia indígena do Brasil, que deriva de uma (virtual, no sentido de ser uma teoria que existe primeiro sob o modo prático) contraantropologia indígena do Ocidente. Pois o desafio, em última instância, é o de construir uma antropologia realmente geral, capaz de incorporar dialógica e dialeticamente as muitas contra-antropologias indígenas do planeta. *** É neste contexto que situo o trabalho mais recente de Manuela, ou pelo menos duas de suas vertentes principais: de um lado, o esforço de pôr em comunicação a ciência e a etnociência – as diversas etnociências, se preferirem, a nossa sendo


uma delas –, os saberes sobre a natureza e o ambiente que são reconhecido pela academia e aqueles ditos tradicionais, populares ou indígenas. A Enciclopédia da Floresta, neste sentido, é exemplar. A ponte entre as ciências ocidentais e indígenas, ao tomar como foco as chamadas ciências naturais ou ambientais, tem como consequência aumentar o trânsito, ou obturar a descontinuidade entre uma cultura que se vê como espelho da natureza e outra que é vista pela primeira como espelho apenas de si mesma, isto é, da natureza humana (no melhor dos casos). Iniciativas como a Enciclopédia da Floresta desestabilizam a aliança entre as fronteiras internas (intraculturais) e externas (interculturais) entre Natureza e Cultura, tendo como pano de fundo um horizonte definido pela fronteira absoluta (intranatural) entre esses dois domínios, a qual começa, precisamente, a se dissolver. O trabalho etnológico de Manuela, em especial sua monografia Os mortos e os outros, foi fundamental para o meu próprio trabalho, como já tive ocasião de registrar mais de uma vez. Além disso, escrevemos juntos um ensaio derivado de um diálogo iniciado em minha tese de doutorado, ensaio que, parece-me, teve sua importância para o desenvolvimento posterior de toda uma linha de investigação dentro do americanismo tropical. Esse texto, aliás, está na origem do meu “O mármore e a murta”, que é quase-apenas a substanciação bibliográfica e o aprofundamento de uma intuição que havíamos desenvolvido nesse trabalho a quatro mãos. Mas, em vista da importância do que a Manuela falou ontem, preferiria eu mesmo falar do que mais me impressiona em Manuela, isto é, daquilo em que, apesar de termos colaborado em mais de uma ocasião, e de coincidirmos em muitas de nossas posições relativas à teoria antropológica, mais nos diferencia. O que nos diferencia é que Manuela é uma diplomata nata. A dissolução do grande dualismo estrutura/história, internalismo/externalismo, cosmologia/ política, envolveu precisamente uma grande habilidade diplomática, no sentido absolutamente não pejorativo do termo. O diplomata é aquele que nunca desiste de negociar, que mostra essa capacidade incansável de negociar contradições, como diria Mauro Almeida (creio que ele disse, hoje). Uma diplomacia que se pode chamar de propriamente cosmopolítica, no sentido de Isabelle Stengers ou Bruno Latour. Outros dualismos, maiores, mais profundos, se perfilam agora como candidatos urgentes à dissolução, ou pelo menos a uma renegociação radical dos termos em que se articulam. Como sabemos, hoje a geopolítica tornou-se cosmopolítica, porque tornou-se imediatamente planetária e portan-

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to cósmica, de um lado, e porque ela hoje envolve uma incerteza radical sobre as fronteiras entre humanos e não-humanos, de outro lado. Vejo o trabalho que Manuela faz hoje, de mediação diplomática sobre a questão da propriedade intelecual, de intervenção nos debates sobre a questão ambiental, de presença nos foros globais de decisão sobre o destino do planeta – vejo tudo isso como um atestado de admirável otimismo. Todo diplomata é um otimista profissional, mas um bom diplomata é um otimista inato. O mundo está desabando, e ele diz: tem que haver uma solução. Negociemos. Negociemos com os podres poderes, os interesses escusos, calculemos e equacionemos os hiperobjetos que escapam à nossa intuição prática, como o aquecimento global (que nos escapam tanto quanto os hipo-objetos escapam à nossa intuição teórica, como as partículas quânticas), encontremos as fórmulas, criemos os precedentes, inventemos um modus vivendi, para que haja um mundo vivível.

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Eu não sou um diplomata. O sentido de urgência da crise me mobiliza de uma maneira muito mais negativa. Ênio Candotti, sentado aqui à nossa frente, é outro diplomata nato. Já eu vivo interpelado e atropelado pelo sentido de urgência, preocupado com a transformação, irônica e sinistra, dos temas do “fim da história” e do “último homem” em simples questões metereológicas – a metafísica finalmente encontrou-se com a física, e o resultado não vai ser agradável para nós. A história do planeta, a história das espécies, e a história da humanidade entraram em ressonância catastrófica. Os paleontólogos começam a falar em uma nova era geológica, o Antropoceno. As mudanças causadas no planeta pelas atividades de nossa espécie são suficientes para definir um novo regime planetário. Isso dá à noção de cosmopolítica um sentido abolutamente literal, e bastante inquietante. É claro que não adianta arrancar os cabelos, nem se atirar no precipício dos programas de aceleração do crescimento. Nesse momento, precisamos mais que tudo de diplomatas, já que é pouco provável a vinda de um novo Messias – um Messias termodinâmico, digamos assim – e de qualquer modo, o aperto em que nos achamos não deve pouco às “filosofias messiânicas” (para falarmos como Oswald de Andrade). *** A palestra de Manuela ontem me fez lembrar de uma palestra que dei em Manaus há alguns anos, a convite do Instituto Socioambiental. Tratava-se de uma palestra para pesquisadores do INPA sobre cosmologias indígenas; seu tema


eram os “pressupostos ontológicos das cosmologias indígenas”. Só que quando cheguei na sala, vi que metade da audiência eram os previsíveis biólogos etc. do INPA, mas que a outra metade era de índios do Noroeste amazônico (Tucano & cia.). Evidentemente, gelei: vou ter que falar de índios para não-índios, na frente dos índios. Virei-me como pude, cozinhei uma versão biologicamente enfeitada do perspectivismo ameríndio (um tema que, espero para o meu bem, não preciso explicar aqui o que é). Ali pelos dez minutos de palestra, comecei a ver que o olhar da plateia “biológica” ia ficando meio embaçado, vidrado. Sua atenção estava longe. Os índios, enquanto isso, mal se continham em seus assentos. Pareciam ansiosos por falar. No final da palestra, uma senhora indígena se levantou e disse aos biólogos: “Vocês precisam prestar atenção ao que o professor aí disse; quando o professor diz que 'durante a piracema os peixes estão dançando no fundo das cachoeiras', é exatamente isso que se passa. Sabem porque eles estão dançando? Porque tomaram muito caxiri, estão fazendo festa. É isso que vocês [biólogos do INPA] têm de compreender, o que o índio vê, como ele vê as coisas.” Naturalmente, os biólogos me viram como um sujeito meio maluco. Porque eu não disse que os índios acreditam que os peixes etc. O que eu disse foi, “os peixes dos Tucano, durante a piracema, dançam nas cachoeiras”. Adotei a tática de não aspear meu discurso com algum marcador de “atitude proposicional” (acreditam que, pensam que, têm certeza que etc.) o que se passa no mundo dos Tucano; eu fiz como se fosse um índio descrevendo para um antropólogo o que se passa efetivamente no mundo subaquático deles. (Vendo que metade da plateia era de Tucano, ilustrei minha exposição com o material etnográfico tucano que eu conhecia. Truque barato.) Os biólogos não devem nem se lembrar dessa palestra. Os índios, talvez. Para mim, foi meu pequeno momento de glória, ou de vingança: os biólogos queriam ouvir sobre os etnoconhecimentos dos índios a respeito da taxonomia, da fisologia ou da etologia dos peixes (digamos), eu dei-lhes essas loucuras sobre as bebedeiras da ictiofauna do Rio Negro... Eles queriam saber o que (se algo) os índios sabiam que eles ainda não sabiam, mas não queriam saber nada sobre como os índios sabiam, sobre as condições de emergência e exercício do saber indígena, e dos pressupostos desse saber. Mas naturalmente a palestra fracassou, pois o antropólogo tem de falar para as duas plateias.Temos que falar com os índios, e temos que falar com os biólogos. E temos que fazer com que o que dizemos repercuta dos dois lados. Acho que a palestra de ontem de Manuela teria conseguido as duas coisas. Como diria La-

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tour, temos de achar o mundo comum, definir o mundo comum possível, possibilitar esse mundo transontológico, um mundo onde peixes antropológicos e peixes zoológicos, feiticeiros mal-intencionados e micróbios darwinianos, pedras inertes de geólogo e pedras semoventes de seringueiros, possam coexistir em um espaço-tempo de negociação perpétua. Tarefa para diplomatas; e os antropólogos, no frigir dos ovos, são exatamente isso, os diplomatas da ciência ocidental, destacados para negociar um mundo comum com outras ciências, outros saberes, e outras antropologias.

[O presente texto faz parte do livro Manuela Carneiro da Cunha – O lugar da cultura e o papel da antropologia, Pensamento Brasileiro, 2012]

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o doce mago da floresta amazônica oswaldo giacoia junior

I – A história, o tempo, a crise O século XXI iniciou-se sob o signo da crise, ou antes sob uma constelação de crises distribuídas em rede pelos mais diversos setores da vida: crise econômica, política, social, familiar; crise de identidade, de paradigma, de gênero; crise estética, religiosa, moral, jurídica. Numa palavra, crise da razão, em suas dimensões especulativa e prática, que se revela tanto mais paradoxal quanto parece crescer, alargar-se e aprofundar-se na ordem inversa das prodigiosas conquistas históricas do tipo de racionalidade sobre a qual o Esclarecimento depositava suas mais exaltadas esperanças. Entre nós, o filósofo Benedito Nunes talvez tenha sido um dos primeiros a remeter o pensamento sobre as perguntas, os desafios, a desorientação que emerge desse panorama de crise permanente à necessidade de reflexão profunda sobre a experiência do tempo que corresponde à modernidade – um tempo histórico do qual, como pretendia Kant, a Aufklãrung se constitui num signo diagnóstico, rememorativo e prospectivo. E uma vez que o historicismo integra essencialmente o programa crítico da Aufklãrung, também ele contribuiu de maneira decisiva para a formação da moderna consciência histórica. Assim, a reflexão sobre a crise da razão se desdobra na pergunta pelo relacionamento entre a história e o tempo na modernidade, relacionamento no interior do qual o problema do sentido da história se conecta subliminarmente com uma experiência do tempo a ser trazida à superfície da auto-reflexão e explicitada filosoficamente. É sob essa ótica que se pode descortinar uma abordagem promissora sobre o entusiasmo tipicamente moderno pela revolução – meio e veículo por excelência para a realização das possibilidades humanas e do sentido da história. A crise acima referida instala-se precisamente nesse novelo de perguntas em busca de respostas, afetando justamente o elemento medular do otimismo ilustrado: a crença na possibilidade de conciliação, na marcha do progresso histórico, entre a liberdade de investigação racional, como uma prerrogativa historicamente consolidada pela razão esclarecida, a que não se pode nem se

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deve renunciar, sob pena de se abismar novamente nas trevas do obscurantismo reacionário e, no pior sentido do termo, fundamentalista, por um lado; e, por outro lado, a proteção da dignidade da vida e da pessoa humana, que, tanto quanto a liberdade de pensamento e expressão, se traduzem em princípios constitucionalmente assegurados pelo moderno Estado liberal, ou Estado de direito. Se, para os patronos do Esclarecimento, uma dessas vertentes promovia naturalmente o fomento da outra, para nós, elas tendem a se apresentar na forma de uma ‘separação fetichista’ entre ética e ciência, que nos impõe, como tarefa histórica, um esforço coletivo para refletir sobre as condições atuais da autonomia e da responsabilidade ética. Equacionado nesses termos, o problema foi antecipado entre nós pela lúcida e premonitória reflexão de Benedito Nunes sobre a experiência de tempo (e de seu sentido) que corresponde à modernidade política e cultural, cujos dois ícones principais se configuram como a doutrina do progresso e a esperança no potencial libertário da revolução. A natureza e a magnitude dos problemas implicados na especificação dessa tarefa, que parece envolver também um paradoxo resultante da própria dinâmica do Esclarecimento, facilmente os deslocam da atmosfera aparentemente abstrata e rarefeita da especulação filosófica para projetá-los sobre o palco mais concreto e prosaico do debate jurídico-político que, em nosso século que ainda engatinha, está profundamente marcado por um trânsito permanente entre a filosofia política e a filosofia do direito.

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Por um lado, tudo se passa como se estivéssemos assegurados quanto às esperanças ético-políticas alimentadas pelo legado cultural do Esclarecimento. Vivemos hoje a mais plena evidência acerca da legitimidade da missão que nos cabe, qual seja a da reconstrução da ordem mundial, pautada pela internacionalização dos direitos humanos, necessidade imposta pela unificação global da sociedade contemporânea e pelo declínio irreversível do formato clássico das soberanias nacionais, na era da comunicação e dos mercados digitais. A hegemonia sem alternativas do ideal de estado democrático de direito, supra nacional e multilateral, aproxima-se decididamente do antigo ideal kantiano do estado cosmopolita, lastreado numa constituição jurídica republicana, sob cuja égide seriam regulados os conflitos efetivos e potenciais entre os diferentes estados organizados nacionais ou pluri-nacionais (os blocos ou organizações supra estatais como a União europeia, por exemplo).


Na outra vertente, o desenvolvimento autonomizado da tecno-ciência, segundo uma lógica e dinâmica que parece escapar efetivamente às possibilidades conhecidas de controle sócio-político racional, transbordando os modelos tradicionais de organização da relações sócio-econômicas e políticas – o fracasso econômico (e ecológico) do assim chamado socialismo real é tomado por muitos como uma prova da vacuidade do ideal marxista de humanização da natureza e da sociedade, de apropriação da natureza humana pelo homem e para o homem, para nada dizer sobre o sistemático engendramento da catástrofe ecológica pelas assim chamadas democracias neo-liberais. Nesse horizonte, o fim das utopias talvez possa ser resumido na sombria convicção de que o progresso cumulativo não implica em abundância de produção de bens de consumo a ser distribuídos com equidade, uma vez revolucionado o modo social de produção e consumo, o regime de propriedade dos bens e meios de produção. Progresso técnico como suporte para a elevação moral e espiritual do gênero humano talvez seja uma ideia tão utópica quanto parece ter-se tornado idílica a possibilidade de transformação total do mundo humano por meio de uma revolução. Nesse sentido, as antropo-técnicas contemporâneas (certamente a bio-genética com o revival do fantasma da eugenia, mas também as tecnologias sociais de planejamento e controle, a política juridicamente colonizada como tecnologia de planejamento e administração das condutas socialmente desejáveis) ameaçam converter em apocalipse o paraíso sonhado pelos Aufklärer. Nesse sentido, deixemos a palavra com um inequívoco e cumulado herdeiro da Ilustração, pois o assombro de Jürgen Habermas em face do futuro da natureza humana talvez seja um dos mais significativos diagnósticos dessa crise. É justamente o espectro supra mencionado da profecia antropo-técnica que escandaliza a consciência moral de Habermas, levando-o a refletir sobre a necessidade de se impor limites éticos à pesquisa científica, quando essa ameaça a ultrapassar as fronteiras da eugenia positiva, possivelmente franqueada pelas pesquisas avançadas no domínio da bio-genética. Para Habermas, as atuais pesquisas bio-técnológicas com embriões e com o genoma poderiam abrir caminho para uma produção tecnológico-mercantil da vida, para além dos limites restritivos, determinados pelo interesse terapêutico de identificar, prevenir e/ou tratar eficazmente patologias geneticamente causadas. Um dos riscos maiores dessa virtual “fabricação” do design genéti-

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co humano seria e a possibilidade, por ela liberada, de submeter o patrimônio genético de seres humanos à lógica e à dinâmica de preferências narcisistas individuais, ao arbítrio de consumidores habilitados para figurar como agentes num mercado virtualmente florescente. Na opinião de Habermas, não se pode oferecer uma resposta normativa satisfatória para tais problemas, recorrendo às proteções e garantias juridicamente estabelecidas nas declarações constitucionais de direitos humanos, ou a argumentos tradicionais, fundados na dignidade da pessoa. Com efeito, “sob as condições do pluralismo de cosmovisões, não podemos atribuir ‘desde o início’ ao embrião a ‘proteção absoluta de vida’, de que gozam pessoas como portadoras de direitos fundamentais.”1 Portanto, uma proteção absoluta, fundada no conceito de dignidade da pessoa como sujeito moral e jurídico, é uma prerrogativa que, sem que se incorra em petições de princípios metafísicos e substancialistas – ou sem recorrer a artigos de fé religiosa –, não pode ser estendida a uma situação e condição existencial de que ainda está ausente a personalidade, no pleno sentido (ético ou jurídico) do termo.

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É por essa razão que, para Habermas, o argumento contrário à instrumentalização da vida humana por uma eugenia liberal não deve ser buscado direta e imediatamente no âmbito jurisdicional, ou constitucional – portanto no plano da proteção assegurada às pessoas –, mas num limiar bem mais recuado e fundamental: no terreno normativo das intuições, sentimentos, convicções e razões que estão na base da moral racional dos direitos humanos. Esse plano, por assim dizer infra-jurídico, o autor denomina auto-compreensão ética da espécie, na medida em que é partilhada por todas as pessoas morais (pp. 72-80, esp. 74) – plano que se encontra inevitavelmente exposto aos efeitos corrosivos da crise contemporânea da razão. A partir dessa perspectiva impõe-se a pergunta sobre se a tecnização da natureza humana altera a auto compreensão ética, própria da espécie, de tal modo que nós não podemos mais nos compreender como seres vivos, livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos. Só com o surgimento 1 J. Habermas, Die Zukunft der menschlichen Natur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?, Frankfurt-M, Suhrkamp Verlag, 2001, p. 78.


imprevisto de alternativas surpreendentes fica abalada a auto evidência de hipóteses de fundo (p. 74). É, portanto, contra esse pano de fundo, em que a moral racional dos direitos humanos se liga a uma auto-compreensão ética, própria da espécie, que ganha legitimidade, para Habermas, a exigência de limitar e subtrair à instrumentalização – por via da normativa - aquilo que, por meio da ciência e da tecnologia, foi tornado disponível (p. 46). Também é a partir daí que Habermas recusa o passo adiante, em relação à pósmodernidade, à ‘pós-humanidade’. A instrumentalização da vida humana pelas novas técnicas de pesquisa genética encontra sua barreira moral na possibilidade de rompimento do plano de simetria e reciprocidade exigido pelo status virtual de futuro participante no circuito do agir comunicativo, portanto de futuro e potencial membro da comunidade moral. Num texto espantosamente lúcido, Benedito Nunes preconizava, em 1993, a tarefa inadiável de reformulação das ideias de progresso e revolução a partir de um apurado senso de finitude. Minada a crença historicista e positivista no progresso, perdida a aura mítica e ideológica da revolução, Nunes constatava que “a crítica a progresso é, indiretamente, uma crítica à utopia, como realização plena das possibilidades humanas”.2 Crise incisiva, aguda, que se instala no plano mais recôndito das possibilidades de realização humana: a experiência do tempo que subjaz ao rompimento do liame entre o presente e o passado que constitui o novum da modernidade cultural e política, a que corresponde uma concepção de história voltada para o futuro, compulsivamente em marcha ao ritmo da necessidade de inovação incessante, numa dinâmica segundo a qual cada nova conquista do progresso científico corresponde uma exigência compulsória de seu aproveitamento industrial. Nessas condições, a marcha progressiva é o ritmo de aceleração da mudança na época moderna, como tempo novo à busca do novo. Esse ritmo cresce no desenvolvimento da técnica, que é realmente progressivo. Tal é a significação que se superpõe à outra. As evidências de melhoria da vida material 2 B. Nunes, “O tempo dividido: cosmos e história”, em B.Nunes (org) A Crise do pensamento. Belém, Ed.Ufpa, 1994, p. 149. Este ensaio foi republicado no livro Crivo de papel (São Paulo, Ática, 1998), com o título “Tempo e história: introdução à crise”.

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insinuam uma paralela e discutível melhoria moral espiritual. Sem cairmos nessa ilusão insinuante que o mitificou, podemos tomar o progresso como a diversificada escalada da técnica e de sua crescente interferência sobre a natureza. Esse é o aspecto efetivo do progresso, agora chamado à ordem pela razão prática: a crescente, desabusada interferência sobre a Natureza. Mas qual a ordem, e em que razão prática se fundamenta o seu apelo? No respeito à Natureza? Não teria que ser este, porém, o complemento da dignidade humana? (p. 149). Tomado por um interesse profundo pela reflexão filosófica sobre a experiência temporal subjacente à configuração contemporânea da relação entre sentido da história, progresso e revolução, Nunes toma a experiência do tempo como fio condutor de sua reflexão a respeito desses problemas; e, nesse sentido, ele a considera como a pergunta filosófica fundamental, como tal reconhecida pelo menos desde o século passado. Curiosamente, nesse contexto, Nunes convoca, o testemunho de um então jovem e desconhecido filósofo italiano, cujo livro Infância e história já naquela época impressionava o pensador do Pará. Mas se a toda “concepção de história corresponde uma experiência do tempo que lhe é inerente, que a condiciona e que pode ser explicitada”, cabe indagar qual é aquela que corresponde ao historicismo e à consciência histórica moderna que o historicismo contribuiu para formar. A indagação pode resumir-se na pergunta: que relacionamento se deu entre a história e o tempo na época moderna? 74 |

Em resposta, pode-se dizer que a crise na experiência contemporânea do tempo arrasta consigo a quase perempção dos ideais de progresso e revolução que a cosmovisão iluminista moderna nutriu e manteve em suspenso como uma perspectiva escatológica para o fim da história. Crise profunda, mas que não paraliza o pensamento, antes o motiva e o impulsiona. Crise e crítica são duas faces da mesma moeda, de modo que crise, para o autêntico filósofo, não é senão o tempo e a ocasião para o aguçamento e o exercício do juízo crítico. “Hoje se nos depara a oportunidade de uma situação embaraçosa em que temos de ajuizar entre conceitos conflitantes, decidindo uma pendência do pensamento” (p. 147).


É justamente nessa situação embaraçosa em que nos encontramos, situação na qual se nos impõe a pesada tarefa de repensar o horizonte de relações entre direito e política que recorro ao tributo e à inspiração de Benedito Nunes. À lucidez e à generosidade silenciosa desse mestre dedico os apontamentos que se seguem, tendo por objeto a intervenção cultural vigorosa do hoje mundialmente célebre Giorgio Agambem, que Nunes frequentava bem antes da celebridade. II – Sobre direito e violência O último capítulo de Profanações se abre com uma referência aos antigos juristas italianos, que sabiam perfeitamente o significado do verbo profanar. Sagradas ou religiosas eram coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais elas eram subtraídas ao livre uso e comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens.3 De um ponto de vista estritamente jurídico, profanar tinha, para os antigos jurisconsultos romanos, o sentido de reverter uma sacratio, devolvendo ao ‘livre’ uso dos homens o que anteriormente fora religiosamente consagrado. Correlativamente, ‘puro’ poderia significar, por exemplo, um “lugar que havia sido desvinculado da sua destinação aos deuses dos mortos e já não era ‘nem sagrado, nem santo, nem religioso, libertado de todos os nomes desse gênero’” (p. 65). Profanado remete, assim como puro, ao que é restituído a um novo uso humano, do qual havia sido separado por consagração. Nessa específica acepção, ‘puro’ não remete a uma primeira natureza impoluta, nem a uma destinação originária desvirtuada, mas a uma relação peculiar entre utilização e profanação, de tal modo que possibilidade do uso é, nesse sentido, uma dimensão a que só se pode ter acesso de modo justamente não-natural, ou seja, através de um ato humano de profanação. 3 G. Agamben, Profanações, trad. S.J.Assmann, São Paulo, Boitempo Editorial, 2007, p. 65.

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Se sacrare remete etimologicamente a separação, consagrar significa subtrair, juridicamente (por direito humano ou divino), ao livre uso e comércio. Apoiado nessas raízes, Agamben sustenta sua à primeira vista desconcertante interpretação religio como derivando não de religare, da ligação e aproximação entre as esferas do humano e do divino, mas de relegere, indicando precisamente o contrário – ou seja, a distância, o escrúpulo, a observância de formas e fórmulas. Religio não é o que une os homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a credulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” – ou seja, desvinculada da religio das normas – diante das coisas e do seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. [Em contraposição a isso], profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular (p. 66). Ora, sacrare, tornar religiosamente sagrado, realiza-se por meio, ou instrumentalidade de uma operação ritual sempre minuciosamente estabelecida em seus procedimentos – o sacrifício. Entre consagração e sacrifício subsiste um vínculo antropologicamente indissolúvel: o rito sacrificial, ou seja, o conjunto de procedimentos cultuais diferenciados de acordo com a variedade das culturas, através dos quais opera-se a passagem da esfera do humano para a do divino, do profano para o sagrado, sendo o sacrifício o limiar entre essas distintas esferas; a zona de transitus que a vítima deve necessariamente percorrer para que se opere a separação religiosa.

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É nessa perspectiva que pretendo tratar criticamente o direito – num horizonte formado pela constelação entre sacralidade, profanação e uso, da qual não se pode separar o elemento violência. Como é evidente, a noção intuitiva de uso remete à relação instrumental ou mediática; afinal, usar significa dispor de meios pretensamente adequados para alcançar metas ou finalidades desejadas. Se pensarmos o direito nessas coordenadas, o jurídico seria determinado principalmente como medium. Basicamente, o direito é meio tanto para a realização da justiça, para o estabelecimento da paz, para delimitar e promover a organização institucional da sociedade política, pela via da constituição (jurídica). Como direito divino, ele é também o meio de assegurar a separação (violenta) entre as esferas do religioso e do profano.


Em outras palavras, o direito seria sempre o medium adequado para assegurar eficazmente uma separação – e, nessa função de meio operador da separação, ele conserva um traço essencialmente religioso. Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que regula a separação é o sacrifício (p. 65 sg). O que pretendo sugerir com isso é também, e sobretudo, uma interpretação rigorosamente sacrificial do direito, como dispositivo que opera e assegura as separações que efetuam e constituem um dominium originário – a esfera sagrada do político. Sendo assim, há um elo indissociável entre a sacralidade do político e instrumentalidade sacrificial do jurídico, sendo o direito o meio pelo qual se constitui o espaço político, separado como um âmbito próprio da existência humana, não natural, propriamente cultural. Ora, se podemos entender, nesse sentido, sacrificialmente o direito, então podemos também estender ao jurídico a vinculação indissolúvel que une o sacrifício, o sagrado e a violência, pois – como uma constante antropológica – todo transitus sacrificial é inteiramente pervadido, desde as origens míticas, pela violência. A esse respeito, é pertinente a observação de René Girard: Em numerosos rituais, o sacrifício apresenta-se de duas maneiras opostas: ou como ‘algo muito sagrado’, do qual não seria possível abster-se sem negligência grave, ou, ao contrário, como uma espécie de crime, impossível de ser cometido sem expor-se a riscos igualmente graves. É criminoso matar a vítima, pois ela é sagrada... Mas a vítima não seria sagrada se não fosse morta. Existe aqui um círculo que receberá um pouco mais tarde, conservando-o até hoje, o sonoro nome de ambivalência.4 O direito promove e garante, de acordo com a interpretação que ora se propõe, a instituição dessa esfera ambivalente para a qual transitam sacrificialmente os súditos sob a insígnia do soberano, transição que não pode ser pensada se4 R. Girard, A Violência e o Sagrado, trad. M.Gambini, São Paulo, Ed. Unesp, 1990, p. 13.

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não por meio da institucionalização da violência. Nesse sentido, instituição do dispositivo jurídico cumpriria a mesma função arcaica do sacrifício, ou seja, a neutralização eficaz da violência. No final das contas, o sistema judiciário e o sacrifício têm a mesma função, mas o sistema judiciário é infinitamente mais eficaz. Só pode existir se associado a um poder político realmente forte. Como qualquer outro progresso técnico, ele constitui uma arma de dois gumes, servindo tanto à opressão quanto à libertação. É sob este aspecto que ele se mostra aos primitivos que, neste ponto, têm sem dúvida um olhar bem mais objetivo que o nosso. Por mais imponente que seja, o aparelho que dissimula a identidade real entre a violência ilegal e a violência legal sempre acaba por perder seu verniz, por se fender e finalmente por desmoronar. A verdade subjacente aflora e a reciprocidade das represálias ressurge, não apenas de forma teórica, como uma verdade simplesmente intelectual que se mostraria aos eruditos, mas como uma realidade sinistra, um círculo vicioso do qual se pensava ter escapado, e que reafirma seu poder (p. 37).

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Esse vínculo ancestral entre violência, sacrifício e direito abre um campo fecundo de indagação, no interior do qual pretendo refletir sobre a releitura feita por Agamben do mito fundador da soberania, que refaz inteiramente a interpretação hegemônica, na filosofia política e do direito, do clássico mitologema hobbesiano do contrato originário. Nesse contexto, adquire especial relevância e fecundidade, para a reflexão atual, a retomada crítica da relação entre a teologia e a política, das raízes teológicas da filosofia política, tal como foram problematizadas, entre outros, por Kelsen, Schmitt e Benjamin, e que Agamben revisita. Para tanto, Agamben re-atualiza a erudição jurídica, levando a efeito um escrupuloso estudo das fontes, de que testemunha sua re-leitura do estatuto da proscrição no direito germânico arcaico, feita por Rudolph von Jhering (aliás, talvez seguindo uma pista genealógica primeiramente encontrável em Nietzsche). Von Jhering a vincula à sacratio no direito antigo direito romano, de modo a associar o sacer romano e o friedlos germânico, ambos condenados a viver em estado de proscrição religiosa e civil, excluídos da comunidade humana e sujeitos à vingança divina.


O ancestral do sacer romano, o banido era um inimigo da paz, um ser nocivo a quem se “arremessava da comunidade dos homens às bestas feras, podendo julgar-se feliz se se encontrava com alguem que não considerasse, como ato meritório, tirar-lhe a vida”5. Ser sacer significava estar proscrito tanto da comunidade religiosa como da civil, razão pela qual sua morte nem poderia ser considerada expiação ou sacrifício, portanto nem como parte legítima do culto ritual (o que o situaria no âmbito sagrado do direito divino), nem do direito penal, na medida em que poderia ser morto pelo primeiro que assim o decidisse, sem que isso tipificasse homicídio. O perfeito caráter da pena sacer esse indica que não nasceu no sólo de uma ordem jurídica regulada, mas remonta ao período da vida pré-social, como um fragmento da vida primitiva dos povos indo-germânicos. Não indagaremos se a palavra grega enchges [um homem que se torna impuro, maldito, execrável] tem alguma analogia com esse estado; mas a antiguidade germânica escandinava mostra, sem dúvida alguma, que o banido, ou forasteiro, é irmão do homo sacer (warges, varg, lobo; e no sentido religioso, lobo santo, varg i veum). Esta semelhança histórica, que até aqui não foi feita por ninguém, que saibamos, é de um valor inestimável para a compreensão exata do sacer romano. É opinião generalizada que ninguém se convertia em sacer por consequência imediata do delito, e sim por uma condenação, ou pelo menos, que se comprovasse o fato (…) Isso prova, com efeito, que o que se considerava como impossível para a antiguidade romana, isto é, o homicídio do proscrito sem razão e sem direito, foi de indiscutível realidade na antiguidade germânica (Von Jhering, p. 203). | 79

O Bann (banido) resulta, pois, de uma transposição da matriz jurídico-obrigacional do débito e do crédito, ampliando, aprofundando e desenvolvendo o sentimento primitivo de justiça como equivalência. O significado da palavra remete a bandido, mas também a banido – excluído – do mesmo modo que, em alemão, os termos Bande e Bann designam tanto a expulsão da comunidade quanto a insígnia de governo do soberano. Tal como se encontra explicitamente mencionado na obra de Rudolph von Jhering O Espírito do Direito Romano, o termo Bann guarda relação com a sacratio romana arcaica, designando o fora 5 R. Von Jhering, O espírito do Direito Romano, trad. R.Benaion, Rio de Janeiro, Ed. Alba, 1942, p. 201s.


da lei, proscrito e banido da proteção do ordenamento primitivo, que, enquanto tal, poderia ser morto independentemente de um juízo e fora do direito. A figura do banido era, na antiguidade germânica, o Friedlos, o ‘sem paz’, teria seu fundamento na paz (Fried) assegurada na comunidade, da qual a proscrição o excluía. Tratava-se, pois, de um caso de exclusão includente, ao qual o ordenamento jurídico se aplica integralmente, por meio de sua própria suspensão – a instituição do bando mantém o proscrito capturado fora do ordenamento, na medida em que a aplicação (incidência) da decisão soberana consiste precisamente na exclusão e suspensão da lei e da paz, fazendo coincidir, num mesmo ato, suspensão (exclusão) e aplicação (inclusão). A mesma paradoxia se encontra presente no termo Ausschliessung (afastamento, exclusão, exclusão), formado a partir de aus (ex) e schliessen (fechar, trancar, encerrar) e Ausnehmen-Ausnahme (ex-capere).

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Se a nossa hipótese está correta, a sacralidade é, sobretudo, a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, e o sintagma homo sacer nomeia algo como a relação ‘política’ originária, ou seja, a vida enquanto, na inclusão exclusiva, serve como referente à decisão soberana. Sacra é a vida apenas na medida em que está presa à decisão soberana, e ter tomado um fenômeno jurídico-político (a insacrificável matabilidade do homo sacer) por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos equívocos que marcaram no nosso tempo tantos os estudos sobre sacro como aqueles sobre a soberania. Sacer esto não é uma fórmula de maldição religiosa, que sanciona o caráter unheimlich, isto é, simultaneamente augusto e abjeto, de algo: ela é, ao contrário, a formulação política original da imposição do vínculo soberano.6 Vemos, portanto, que é na esfera do direito que se opera a inclusão da vida nua na esfera da eminentemente jurídico-política da decisão soberana: “A violência soberana não é, na verdade, fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua no Estado. E como o referente primeiro e imediato do poder soberano é, neste sentido, aquela vida matável e insacrificável que tem no homo sacer o seu paradigma, assim também, na pessoa do soberano, o lobisomem, o homem lobo do homem, habita estavelmente na cidade” (p. 113). 6 G. Agamben, Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I, trad.H.Burigo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, p. 92s.


Interpretar o ato político originário como contrato social, e não como exceptio e Bann constitui o equivoco que impede pensar uma política emancipada de sua relação com o Estado, ou seja, com a sobernia jurídico-política tradicional. É nesse sentido que se pode plausivelmente reportar tanto o direito penal quanto o fenômeno jurídico em seu conjunto, ao âmbito religioso do sacrifício ritual, de modo que o homo sacer adquire a significação de sacralização da vida, como uma figura de separação e seqüestro da vida no campo de decisão da soberania, conservando a memória da exclusão-includente que constitui assim a dimensão originária da política. O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção, como uma excrecência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera (p. 90 sg). Essa crítica radical da modernidade política, que opera por um retorno reflexivo às origens míticas do direito, transforma em alvo privilegiado de seus ataques a hipótese da origem contratual da sociedade e do Estado – como se sabe um dos ícones da moderna racionalidade política – denunciando operação ideológica de ‘racionalização’ que consiste em descrever a gênese do espaço político a partir do ‘mitologema’ do contrato, por encobrimento de sua dimensão religioso-sacrificial. É preciso dispensar sem reservas todas as representações do ato político originário como um contrato ou convenção, que assinalaria de modo pontual e definido a passagem da natureza ao Estado. Existe aqui, ao invés, uma bem mais complexa zona de indiscernibilidade entre nómos e physis, na qual o liame estatal, tendo a forma do banido, é também desde sempre não estatalidade e pseudo-natureza, e a natureza apresenta-se desde sempre como nómos e estado de exceção (p. 116sg). Desse modo, a violência do estado de natureza nunca é um estágio superado, uma ameaça removida nos primóridos da vida política: antes pelo contrário,

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ela é constitutiva da polis como seu princípio interno, de modo que se mantém presente como possibilidade permanente da decisão soberana sobre o estado de exceção: É somente sob esta luz que o mitologema hobbesiano do estado de natureza adquire seu sentido próprio. Como vimos que o estado de natureza não é uma época real, cronologicamente anterior à fundação da Cidade, mas um princípio interno desta, que aparece no momento em que se considera a Cidade tanquam dissoluta (portanto, algo como um estado de exceção), assim, quando Hobbes funda a soberania através da remissão ao homo hominis lupus, no lobo é necessário saber distinguir o eco do wargus e do caput lupinum das leis de Eduardo o Confessor: não simplesmente besta fera natural, mas, sobretudo zona de indistinção entre humano e ferino, lobisomem, homem que se transforma em lobo e lobo que torna-se homem: vale dizer, banido, homo sacer (p. 112). Nesse horizonte, gostaria de situar a preocupação medular de Agamben, particularmente em Homo Sacer I e no Estado de exceção: pensar a política em novos quadros conceituais, separá-la de sua vinculação sempiterna com o Estado e com o Direito. Para dizê-lo em outros termos, a preocupação se volta para uma liberação da vida nua do seu abandono ao poder soberano, para dissolver o vínculo mítico e ancestral entre Direito e uso instrumental da violência. É por essa razão que o ensaio de Walter Benjamin: “Crítica da violência – crítica do poder” assume uma função diretriz no programa crítico denominado Homo Sacer.

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Haver exposto, sem reservas, o nexo irredutível que une violência e direito faz da Crítica benjaminiana a premissa necessária, e ainda hoje insuperada, de todo estudo sobre a soberania. Na análise de Benjamin, esse nexo se mostra como uma oscilação dialética entre violência que põe o direito e violência que o conserva. Daí a necessidade de uma terceira figura, que rompa a dialética circular entre essas duas formas de violência (p. 71). A singularidade da Crítica de Benjamin e seu valor único para a reflexão de Agamben justificam-se à luz do que o filósofo italiano entende como a neces-


sidade de uma terceira figura, que rompa a dialética circular entre a violência que funda, institui, o direito (poder constituinte originário), e a violência que o assegura, sob a forma dos dispositivos que operam nos aparelhos de Estado (poder constituinte derivado). O elemento talvez mais fecundo desse ensaio de Benjamin se encontra na distinção de um tipo especial de violência – a violência divina-, que não institui (põe, setzt) nem conserva o direito, senão que o depõe (entsetzt), dissolvendo o vínculo entre direito e violência. No ensaio a respeito da crítica da violência e do poder, o objetivo de Benjamin seria, de acordo com a interpretação de Agamben, garantir a possibilidade de uma violência (o termo alemão Gewalt significa também simplesmente “poder”) absolutamente “fora” (ausserhalb) e “além” (jenseits) do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre violência que funda o direito e violência que o conserva (rechtsetzende und rechtserhaltende Gewalt). Benjamin chama essa outra figura da violência de “pura” (reine Gewalt) ou de “divina” e, na esfera humana, de “revolucionária”. O que o direito não pode tolerar de modo algum, o que sente como uma ameaça contra a qual é impossível transigir, é a exigência de uma violência for a do direito; não porque os fins de tal violência sejam incompatíveis com o direito, mas ‘pelo simples fato de sua existência fora do direito’ (p. 84sg). Justamente os efeitos dessa crítica que se esforça por provar a efetividade de uma ‘violência pura’ são intoleráveis para um jusfilósofo como Carl Schmitt, cuja teoria do estado de exceção constituiria, a ver de Agamben, num esforço para capturar a ideia benjaminiana de violência pura na figura de uma anomia inscrita no coração do nomos, sendo a exceção uma modalidade de aplicação do ordenamento jurídico justo por meio de sua suspensão, uma situação excepcional em que a lei se aplica, ao suspender-se, num estado de pura vigência, por auto-suspensão decidida e instaurada pela vontade soberana. Todavia, Benjamin não define essa violência divina, mas num limiar em que se anuncia essa definição, seu ensaio transita para uma figura que é suporte e portadora do nexo entre direito e violência, cuja importância decisiva não teria recebido até hoje, segundo Agamben a devida atenção do pensamento, a

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‘vida nua’. É ela, segundo Agamben, sustenta o nexo essencial entre a vida nua e a violência jurídica. Não somente o domínio do direito sobre o vivente é coextensivo à vida nua e cessa com esta, mas também a dissolução da violência jurídica, que é em um certo sentido o objetivo do ensaio, ‘remonta à culpabilidade da vida nua natural, a qual entrega o vivente, inocente e infeliz, à pena, que expia (sühnt) a sua culpa e purifica (entsühnt) também o culpado, não porém de uma culpa, e sim do direito (p. 73). O que gostaria de empreender agora é uma aproximação que não me parece desautorizada pelo texto do próprio Agamben, a saber entre vida nua e vida sacra. E minha aproximação toma apoio tanto na ausência de uma definição explícita e num uso diferenciado desse termo no Homo Sacer, como também pela recusa de Agamben em determinar – a exemplo do que fez Benjamin com a ideia de uma violência divina – com traços mais distintos, o que seria uma política inteiramente emancipada do princípio jurídico-político da soberania, entendida como violência que funda o Direito. O elemento de ligação é dado pela sacralidade, que institui algo da ordem de uma cumplicidade entre a vida nua e o poder do direito. Aqui Agamben recorre novamente a Benjamin, para quem em “toda tentativa de colocar em questionamento o domínio do direito sobre o vivente não é de nenhuma utilidade o princípio do caráter sagrado da vida, que nosso tempo refere à vida humana e, até mesmo, à vida animal em geral” (p. 73sg).

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A instituição, como princípio, de um caráter sagrado da vida, todavia, seria de datação recente, embora se nos tenha tornado tão familiar que nos faz esquecer da total ausência do mesmo entre as categorias fundamentais da filosofia éticopolítica e jurídica da Grécia, que, na distinção entre a mera vida biológica (zoé) e as formas qualificadas de vida (bios) não reconhecia nenhum privilégio ou sacralidade da vida enquanto tal. Tais elementos fornecem uma interessante perspectiva, talvez inusitada, para a reflexão atual a respeito dos direitos humanos – precisamente nos termos propostos por Giorgio Agamben, pois é corrente o entendimento dos mesmos como direitos ‘sagrados e inalienáveis’ do homem, o que lhes confere o estatuto


de princípios cardinais das declarações de direitos nas constituições dos modernos estados liberais. Evidentemente, não se trata, de modo algum, de questionar a importância fundamental das declarações de direitos como garantia das liberdades públicas, sua função histórica de emancipação e resistência ao arbítrio e à tirania, seu papel decisivo na história do constitucionalismo moderno. Pretendo apenas apontar o caráter bifronte que nelas se pode reconhecer, como em todo e qualquer acontecimento de efetiva relevância histórica e política. E, nesse sentido, aquilo que talvez falte no debate atual sobre direitos humanos e direitos fundamentais seja precisamente uma consciência mais apurada no tocante a essa relação entre direito e violência, soberania e estado de exceção. Quero dizer que, ao lado da função emancipatória, seria também indispensável perceber que as declarações de direito integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos de poder, mantendo-a excepcionada pelo bando soberano. Seria preciso, então, deixar de considerar as modernas declarações de direitos fundamentais como proclamações de valores eternos metajurídicos, para poder fazer justiça à sua função histórica real no surgimento das modernos Estados-Nação. Como escreve Agambem (p. 134), as declarações dos direitos representam aquela figura original da inscrição da vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação. Aquela vida nua natural que, no antigo regime, era politicamente indiferente e pertencia, como fruto da criação, a Deus, e no mundo clássico era (ao menos em aparência) claramente distinta como zoé da vida política (bios) entra agora em primeiro plano na estrutura do Estado e torna-se aliás o fundamento terreno de sua legitimidade soberana. Desse modo, prossegue Giorgio Agamben, as modernas declarações dos direitos devem então ser vistas como o local em que se efetua uma passagem da forma clássica da soberania régia, de origem divina, à nova figura histórica da soberania nacional. As declarações de direitos asseguram a exceptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien régime. Que, através dela, o ‘súdito’ se transforme, como foi observado, em ‘cidadão’, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui pela primeira vez (com uma transformação cujas

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consequências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania. O princípio da natividade e o princípio da soberania, separados no antigo regime (onde o nascimento dava direito somente ao sujet, ao súdito), unem-se agora irrevogavelmente no corpo EstadoNação. Não é possível compreender o desenvolvimento e a vocação ‘nacional’ e biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem como sujeito político livre e consciente, mas, antes de tudo, a sua vida nua, o simples nascimento que, na passagem do súdito ao cidadão, é investido como tal pelo princípio da soberania. A ficção aqui implícita é a de que o nascimento torne-se imediatamente nação, de modo que entre os dois termos não possa haver resíduo algum. Os direitos são atribuídos ao homem (ou brotam dele) somente na medida em que ele é o fundamento imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do cidadão (p. 135). Referi-me acima a uma perspectiva inusitada para o debate atual sobre o direito e a política. Aquilo a que gostaria de me referir seria a um desvio eventual da rota dominante atualmente nesse debate. Ao invés de persistir no tema da constitucionalização do direito, pela via dos direitos fundamentais, ou da juridicização da política, talvez se pudesse pensar numa neutralização possível da violência jurídica, que tem a forma moderna do monopólio estatal da força, a partir de uma fundamentação filosófica que concebe o estado como organização jurídica da sociedade política.

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A partir da postura crítica de Benjamin e Agamben, talvez estejamos colocados perante a tarefa indeclinável de uma profanação do direito como condição prévia para uma renovação dos quadros conceituais da política, para uma liberação da política de seu confisco no interior dos limites fixados pela organização jurídica do Estado; trata-se de uma tentativa de desativação de procedimentos e comportamentos cristalizados, atrelados de forma rígida a uma finalidade inveterada, liberando-os para a invenção, necessariamente coletiva (vale dizer, política) de novos usos. A atividade que daí resulta torna-se dessa forma um puro meio, ou seja, uma prática que, embora conserve tenazmente


sua natureza de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esqueceu alegremente seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal, como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante (p. 74sg). Essa desativação pode ser obtida por meio do brincar, da dissolução da seriedade e gravidade da política jurídico-estatal por meio de jogos diversos - jogo de mobilização e ação (ludus) e jogo discursivo, de palavras (jocus). E talvez, nesse cruzamento entre ludus e jocus esteja implicada nossa especial vocação acadêmica, como estudiosos do direito e da política. Esse seria o sentido político de um estudo atual do direito, parodicamente sério: fazer do estudo, não da prática do direito, uma porta de acesso à justiça – essa seria uma profanação correspondente ao que Benjamin pensava como deposição do direito pela violência pura, que o liberaria para um novo uso, para exibição de sua pura condição medial, ser apenas a porta de acesso à justiça. O sentido de um direito que sobreviveria, desse modo, à sua propria deposição, sendo profanado para um novo uso seria, segundo Agamben, comparável ao que acontece à lei após sua deposição messiânica, à forma direito numa sociedade sem classes – para citar os exemplos históricos do Cristianismo paulino e do marxismo. Não se trata, evidentemente, de uma fase de transição que nunca chega ao fim a que deveria levar, menos ainda a um processo de desconstrução infinita que, mantendo o direito numa vida espectral, não consegue dar conta dele. O importante aqui é que o direito – não mais praticado, mas estudado – não é a justiça, mas só a porta que leva a ela. O que abre a porta para a justiça não é a anulação, mas a destivação e a inatividade do direito – ou seja, um outro uso dele (p. 97sg). Conclusão Para concluir, retomo novamente o texto abundantemente citado de Benedito Nunes. Numa passagem que evoca a célebre tese marxiana da totalização da História pelo advento da sociedade sem classes, revolucionando uma história que, até então, não fora senão o longo e penoso processo pré-histórico da sociedade humana, Nunes pondera sobre essa forma de utopia de novos tempos,

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de superação do passado, sobre a crise como destruição do velho tempo trágico da pré-história universal: Deixemos de lado o que há de paradoxal nesse horizonte utópico, em que retorna o mito da Idade de Ouro; deixemos também de lado, como aspecto recessivo da secularização no pensamento moderno, o retorno do messianismo hebraico (a mediação do proletariado) ou da escatologia cristã – os novissima tempora e o fim dos tempos do Novo Testamento – e voltemo-nos para o que o progresso e a revolução, robustecidos pela transformação acrescida às matrizes historicistas, revelam à consciência histórica moderna que afeiçoaram e de sua experiência temporal implícita.7 Um pouco acima, referi-me, não por acaso, à deposição histórica ou escatológica da lei e da forma-direito no Cristianismo e no advento (marxiano) da sociedade sem Estado. Meu alvo, com isso, era evocar um traço anárquico-messiânico na crítica de Agamben que, na esteira de Benjamin, remonta a Marx – como, talvez melhor do que nenhum outro, o tenha demonstrado Jacob Taubes.8 Trata-se aqui, com grande probabilidade, de um messianismo que não reedita o mito da Idade de Oura, nem se apresenta como um aspecto recessivo da secularização, tampouco se confunde com a instauração (mesmo revolucionária) de um reinado milenarista na Terra. Um messianismo que, como escreve Gagnebin,

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só virá no momento em que tiver conseguido tornar-se dispensável. Tal Messias não vem para instaurar seu Reino, ao mesmo tempo consecutivo ao reino terrestre e diferente dele. Ele vem justamente ‘quando já não se precisa dele, virá um dia depois de sua chegada, não virá no último dia, mas no derradeiro’, como escreve também Kafka. O Messias chega, portanto, quando sua vinda se realizou tão integralmente que o mundo já não é profano nem sagrado, mas liberto, liberto sobretudo da separação entre o profano e o sagrado. Cabe lem7 B. Nunes, “O tempo dividido: cosmos e história”, p. 146. 8 Chamo a atenção aqui para a importante obra de G.Agamben, Il tempo che resta, Torino, Bollati Boringuieri, 2000. Esse livro contém preleções de Agamben sobre a Carta aos Romanos, de São Paulo. Nele, a reflexão teológicopolítica sobre o messianismo paulino oferece preciosas diretrizes sobre as próprias posições jusfilosóficas e políticas de Agamben.


brar aqui que os termos Erlösung, erlösen, Erlöser remetem ao radical lös (no grego antigo luein, livrar ou desatar como o faz Dionisios, o lusos, que desasta os laços na ordem sexual ou familiar), indica a dissolução, o desfecho, a resolução ou solução de um problema, por exemplo por seu desaparecimento bem-vindo.9 Nessa chave, evocaria também nossa própria klésis ou Beruf, como acadêmicos, uma vez que klésis indica a particular transformação que todo estado jurídico e toda condição mundana sofrem pelo fato de ser posta em relação com o evento messiânico. Não é de indiferença escatológica que se trata aqui, mas de uma mutação, quase do íntimo empostamento de toda condição mundana singular em virtude de seu ser “convocada”.10 Talvez seja essa a seriedade de nosso jogo, no qual brincaremos com o direito como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original e que precederia o direito, mas um uso novo, que só nasce depois dele. Também o uso, que se contaminou com o direito, deve ser libertado de seu próprio valor. Essa libertação é tarefa do estudo, ou do jogo. E esse jogo estudioso é a passagem que permite ter acesso àquela justiça que um fragmento póstumo de Benjamin define como um estado do mundo em que este aparece como um bem absolutamente não passível de ser apropriado ou submetido à ordem jurídica.11 No entanto, talvez isso não seja tão novo assim, talvez isso seja, no fundo, apenas um convite para revisitar o direito e a lei que, desaplicados e desativados, confundem-se inteiramente com a vida. Quem sabe se isso não seria o sentido profundo de uma profanação do direito e da própria política, contaminada por seu enquadramento no dispositivo jurídico-estatal da violência organizada como poder institucionalizado. Quem sabe se esse novo uso de bios como 9 J.M. Gagnebin, Teologia e messianismo no pensamento de W. Benjamin, em Estudos Avançados 13 (37), 1999, p. 198. 10 G. Agamben, Il tempo che resta, p. 28. 11 G. Agamben, G. Estado de exceção. Homo Sacer II, p. 98.

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forma qualificada de vida produza também novos desdobramentos, que nos resgate a motivação política da própria filosofia. O problema que deve afrontar a nova política é precisamente esse: como uma política que seria voltada à completa fruição da vida é possível nesse mundo? Mas não é esse precisamente, olhando bem, o objetivo mesmo da filosofia? E quando um pensamento político moderno nasce com Marcílio de Pádua, este não se define com a retomada com fins políticos do conceito averroísta de ‘vida suficiente’ e de bene vivere? Benjamin, ele também, no Fragmento Teológico-Político, não deixa nenhuma dúvida quanto ao fato de que ‘a ordem do profano deve ser orientada em direção à ideia de felicidade’. A definição do conceito de ‘vida feliz’ (que, em verdade, não deve ser separado da ontologia, porque do ‘ser nós não temos outra experiência senão viver’) permanece uma das tarefas essenciais do pensamento que vem.12

[O presente texto faz parte do livro Benedito Nunes – O pensamento poético, Pensamento Brasileiro, 2012]

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12 G. Agamben, “Note sulla politica”, em Mezzi senza fine, Note sulla politica. Bollati Boringhieri, Torino, 1996, pp. 87-93 (91).


o instituto de estudos avançados: avançado em quê? (25 anos de vida – 1986-2011) carlos guilherme mota

“Avançado em quê, é este instituto?”, perguntou ironicamente o professor Florestan Fernandes, cassado pela ditadura, ao retornar ao campus e entrar pela primeira vez na Sala do Conselho Universitário para proferir, a convite do recém-criado Instituto de Estudos Avançados, conferência sobre os descaminhos da democracia em nosso país. Respondi-lhe, sorrindo, que era para que mestres como ele pudessem ter um fórum aberto ao pensamento crítico, bem no cerne da USP... Ora, a eleição do físico José Goldemberg para a Reitoria da USP em 1986 tornara-se desde logo acontecimento marcante na história da universidade brasileira. Após anos de mediocridade e sedação do pensamento crítico na cúpula da instituição, desidratada à sombra do regime civil-militar de 1964, assistiu-se, por decisiva pressão da comunidade, a amplo debate entre candidatos e seus projetos para o futuro da universidade, sobretudo os que se dedicassem aos graves problemas desta sociedade. Uma certa ideia de IEA já vinha sendo aventada antes da gestão Goldemberg, animada por colegas da ADUSP – Jeremias, Rocha Barros, Amelinha e Ernesto Hamburger, Pavan, entre outros – e por eminentes pesquisadores que frequentavam institutos congêneres no Exterior, como Erney Camargo. Vencedor, o novo Reitor, que disputara a eleição com Dalmo Dallari, Jacques Marcovitch, Antônio Ferri e outros, logo deu a partida a uma série de projetos amplos. A criação de um IEA foi um dos primeiros a ser implementados. Habilmente, ele fez passar a proposta no Conselho Universitário, praticamente sem consultá-lo (“se eu levar à votação, podemos perder..”, disse-me), enquanto outros colegas legitimaram o projeto em assembleia da ADUSP, com o saudoso físico e humanista Rocha Barros à frente. Também lançado candidato à reitoria por iniciativa de membros da comunidade, sobretudo funcionários e alunos, eu defendera em meu programa a eleição direta para o mais alto posto universitário, uma reforma que abolisse

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os departamentos, a criação de um Centro de Estudos do Terceiro Mundo, de um Instituto de Estudos Avançados e de uma abertura da USP para o mundo contemporâneo. Logo notei que minha chance era mínima, e passei a apoiar as candidaturas e Dalmo Dallari, Caio Dantas e Goldemberg. O físico, eleito, logo pinçou as três últimas propostas de meu programa, convidando-me para coordenar o processo que levaria à implantação desses dois novos centros e à recriação da Comissão de Cooperação Internacional (a CCInt, com ativa participação de Celso Lafer, Milton Santos, Ruy Leme, entre outros). O Centro de Estudos do Terceiro Mundo também teve boa partida e contou com nomes como os de Milton Santos, Antonio Candido, Amayo-Zevallos, William Saad Hossne (médico, ex-Diretor Científico da FAPESP e ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos, eleito pela comunidade), Cremilda Medina, Darcy Ribeiro e outros; chegamos a organizar na sala do Conselho Universitário um impactante colóquio com três grupos distintos de africanistas da USP, envolvendo escritores e jornalistas africanos de peso, sobretudo dos países de língua oficial portuguesa. Fixamos nossas conclusões numa Carta de São Paulo, publicada em cartaz com Amílcar Cabral (“Cultura, fator de libertação? Não. Libertação, fator de cultura”). Estabelecemos pontes com militantes “do lado de lá”, porém, dado o escasso respaldo da comunidade, nosso projeto fracassou: a USP nunca se pensou terceiromundista.

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Já a ideia de um IEA “pegou” logo. A reitoria nomeou uma comissão multidisciplinar, integrada pelo professor de Literatura e escritor Alfredo Bosi, o médico Alberto Carvalho da Silva (um dos criadores da FAPESP), o economista Paul Singer, os físicos Moysés Nussensveig e Roberto Leal Lobo, o fisiologista Gehrard Malnic, e por mim, coordenador, atuando o jovem e intenso historiador Edgard Luís de Barros como secretário acadêmico. “Mas, perguntei ao Reitor, por que eu para presidir tal comissão” (logo transformada em Conselho Diretor, com alguns acréscimos)? O professor Goldemberg respondeu cum granum salis que, “no momento, o país e a universidade andavam necessitando mais de historiadores do que de físicos”... Aceitei, com temor mas entusiasmo, aquele que seria meu mais importante desafio intelectual, profissional-existencial e político. E aprendi muito. Para chegarmos aos nomes do primeiro Conselho foram consultados dezenas de colegas, nas diversas áreas co conhecimento, em um processo em que aprofundávamos nossas discussões sobre a vocação e sentido do novo instituto, sobre os convites iniciais a serem feitos a especialistas nacionais


e estrangeiros, sobre nossa forma de organização acadêmico-administrativa, atividades, publicações e assim por diante. Como vários departamentos da USP estavam fechados em sí mesmos, burocratizados, “desidratados” de ideias, inúmeros colegas-pesquisadores, neles e por eles marginalizados porém cheios de vontade criativa, acorreram ao novo Instituto, dado seu proclamado caráter desburocratizante e vocação transdisciplinar. Vieram eles e elas prontamente participar, sugerir caminhos, confrontar posições de espírito e linhas de pesquisa, sem preocupação com postos, pro labore ou benefícios imediatistas. A novidade é que tantos colegas tão competentes não se sentiram excluídos do “núcleo duro” do IEA, ou seja, de seu Conselho Diretor, pois ficara claro que todos teríamos voz nos seus rumos: chegamos a constituir, após reunião ampla com cerca de 50 professores na modesta sede do IEA, no prédio da Antiga Reitoria, uma espécie de “senado invisível”, ou seja, um colegiado informal cujos membros teriam sempre suas opiniões debatidas, e em geral implementadas pelo Conselho Diretor. Criamos desse modo um modelo novo, sem cátedras, departamentos, sem alunos, sem biblioteca, sem os requisitos da titulocracia, porém com muita consulta e conexões com alguns departamentos e algumas bibliotecas e laboratórios existentes na USP. Enfim, um projeto por assim dizer coletivo. Por sugestão de Rocha Barros, que aliás não fazia parte do CD mas era muitíssimo presente e “influente”, tivemos apenas uma Enciclopédia Britânica e dicionários em nossa sede, mesas e um pequeno armário, sendo que os membros da diretoria, pesquisadores visitantes e associados eram convidados a prover de bebidas para memoráveis e densas sessões de discussão na happy-hour... Para alcançarmos tal modelo, estudamos vários regimentos, estatutos e hábitos de outros centros de pesquisa, como o Institute for Advanced Study de Princeton, o Collège de France, a Casa de las Américas de Cuba, o Instituto de Estudos Avançados de Berlim, o Wilson Center (com o qual faríamos memorável congresso na USP, Resocialing Economics, em coordenação com o historiador Richard Morse), o Colegio de México, a École des Hautes Études de Paris. Ou seja, de cada uma dessas experiências retiramos algo para construir coletivamente a nossa, conseguindo desse modo cravar no coração da USP, na praça central do Relógio, um centro de reflexão e pesquisa de alto nível, mercê de seus participantes, todos pesquisadores ou escritores com postura e experiência multidisciplinar. Única condição: que não trouxessem para nosso IEA as mazelas de seus departamentos e Faculdades. Como advertiu o jurista-historiador Ray-

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mundo Faoro, ao ser o primeiro convidado para inaugurar com densa conferência (“Existe um pensamento político no Brasil?”, publicada no nº 1 da revista Estudos Avançados) nossas atividades na sala do Conselho Universitário, apresentado por Antonio Candido: “Para dar certo, o Instituto deve evitar os chatos. Mas cuidado, porque você convida alguém que não é chato para participar, mas ele sempre pode trazer alguém que o é, e estraga o clima”... Com tais precauções, o projeto foi dando certo, encontrando seu caminho, contando com uma reitoria extremamente aberta, dinâmica, e com simpatizantes de todos os quadrantes que desejavam viver uma experiência franca e desintoxicadamente universitária, mas também com aliados internos como Erney Camargo, coordenador generoso do BID para a USP, ou apoiadores externos, como o discreto José Mindlin, com a Fundação Vitae. Do nosso Conselho Diretor também participaram sempre, por Estatuto, representantes da chamada sociedade civil, alguns extremamente operosos e críticos como Geraldo F. Forbes e Fernando Leça.

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Além dos grupos de estudo interdiciplinar sobre temas ou áreas fundamentais do conhecimento, as Conferências do Mês (bem pagas então, vale dizer, gravadas e publicadas na revista) sinalizavam o padrão que desejávamos estabelecer no campus. Também colóquios e outras iniciativas deram vida ao Instituto. Algumas delas foram memoráveis, desde os primeiros meses, como a vinda do economista e diplomata John Kenneth Galbraith, para falar sobre a corrida armamentista, de Boaventura de Sousa Santos, sobre a ciência pósmoderna (produziu no IEA importante livro sobre o tema), dos saudosos historiadores Manuel Moreno Fraginals, cubano, quando ainda não tínhamos relações diplomáticas com Cuba e Warren Dean, abridor de veredas no campo da historiografia do meio-ambiente. Mais concorridas, as conferências de Jürgen Habermas e de Paulo Autran mobilizaram a USP de então. Mencionem-se vários outros notáveis historiadores como Marc Ferro, Michel Vovelle, Warren Dean, Carlo Ginzburg, Eric Hobsbawm, Christopher Hill e Kenneth Maxwell. Richard Morse, agitador de ideias, atuou alguns meses como Pesquisador Visitante. No IEA, debateram conosco escritores como José Saramago (antes do Prêmio Nobel) e o angolano Luandino Vieira, indagando sobre a existência de uma Cultura lusoafro-brasileira, além dos muitos professores, intelectuais de variados campos e cientistas críticos que deixaram seus traços, pensamentos e produção na insti-


tuição, desde Marlyse Meyer e Leyla Perrone-Moysés a Dalmo de Abreu Dallari, Alberto da Costa e Silva, Francisco Iglésias, Eduardo Portella, Anibal Quijano, Florestan, Eunice Durham, Celso Lafer, Joaquim Falcão, Michel Debrun, Ecléa Bosi, Octávio Ianni, Goldemberg (que não atuou apenas como reitor), os maestros e compositores Koellreuter e Olivier Toni, Leonor Alvim, Ana e António Pedro Vicente, Ruth Cardoso, Sábato Magaldi, Paulo Sérgio Pinheiro, Joaquim Falcão, Fernando Novais, Tundisi, Joseph Love, Thomas Skidmore, Nestor Goulart Reis. E dos (então) mais novos como Gabriel Cohn, José Eduardo Faria, Renato Janine Ribeiro, Brasílio Sallum Júnior e dos saudosos Eduardo Kugelmas e Bento Prado Júnior... Arrolamento quase impossível de ser completo, tantos os colaboradores prestigiosos que se alinharam nesse esforço deveras coletivo! Impressionante foi, por exemplo, a qualidade do labor de um José Paulo Paes, trazido ao Instituto pelas mãos de Bosi, sobretudo de sua tradução do poeta norte-americano William Carlos Williams, publicada com êxito. Figuras da alta política nacional e internacional também atuaram aqui, como o então senador e intelectual Giorgio Napolitano, atual presidente da Itália (ciceroneado pelo jornalista Mino Carta), além do senador Severo Gomes, muito ativo na busca do seu “projeto nacional”, e os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva. Jornalistas e diplomatas – como Rubens Barbosa e Paulo Nogueira Batista, e eventualmente Ítalo Zappa – passaram a frequentar e atuar no IEA, ampliando o sentido de uma... universidade. Vale registrar o fato de que alguns professores da própria USP, aposentados, escolheram o ambiente propício, o “clima” desta Casa para desenvolver atividade própria às suas competências e maturidade, como foi o caso dos professores Ruy Coelho e Alberto Carvalho da Silva, e é o caso do ativíssimo mestre Aziz Ab’Saber. Algumas personalidades circularam ou atuaram decisivamente no Instituto, a exemplo do historiador Jacó Gorender, ou do jornalista Marco Antônio Coelho, que muito ajudou a dar impulso à nossa revista Estudos Avançados, superiormente dirigida por Alfredo Bosi. Para o sucesso da revista, uma das principais publicações universitárias nacionais e internacionais da atualidade, houve muitas colaborações, mas é principalmente ao cauto e vigiante professor Bosi e sua equipe que se deve o alto padrão alcançado. Mencione-se ainda a presença e o papel do IEA na criação de outros centros de cultura e pesquisa, como o Memorial da América Latina (por solicitação de Darcy

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Ribeiro e Antonio Candido), do Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca (com decisiva participação do historiador José Manuel Santos Perez e do então reitor Ignacio Berdugo), da Cátedra Jaime Cortesão (no IEA, com decisiva participação de António Pedro Vicente, Fernando Catroga e outros, após intensas atividades foi transferida para a Faculdade de Filosofia da USP). Enfim, muito difícil enumerar tantas e tão variadas intervenções nas quais atuaram empenhadamente tantos professores, pesquisadores, esscritores, cientistas, além do próprio Reitor Goldemberg (bem como os dois reitores que o sucederam, Jacques Marcovitch e Roberto Leal Lobo) e de uma equipe excepcional de funcionários e colaboradores. Importa entretanto registrar, caso raro na universidade brasileira, que quase tudo o que pretendíamos e sonhamos, nós que participamos da fundação, foi sendo muito bem cumprido pelos sucessivos diretores, conselhos diretores e por um staff crítico e atento. E, claro, pelos participantes dos grupos de pesquisa. Ou seja, criou-se no coração da USP uma unidade que cultiva, transdisciplinar e empenhadamente, os valores de uma instituição voltada para a construção de uma democracia moderna neste país. Uma verdadeira democracia, que ainda não é a atual, mas que há de vir. Atingida a maioridade, já se pode comemorar a promessa do atual Magnífico Reitor, professor João Grandino Rodas, da retomada, em breve, da construção da nova, mais adequada e definitiva sede do IEA, em edifício próprio no campus da nossa USP. Pois o Instituto, a USP e a sociedade brasileira bem o merecem!

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ladeira da memória josé luis herencia

encostei a barriga no balcão de fórmica do bar ao lado da entrada do terminal de ônibus da praça das bandeiras, bebi uma dose reforçada de fogo paulista e fiquei pensando vergonhosamente pensando na vida e na delícia quase infantil de uma menina que sorriu antes de desaparecer para sempre por detrás dos azulejos (azuis) da ladeira da memória em direção ao vale do anhangabaú da minha triste (triste, triste, triste e feliz) cidade

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Braulio Tavares é escritor, tradutor e compositor. Autor das antologias Contros fantásticos no labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2007) e Páginas de sombras – contos fantásticos brasileiros (Casa da Palavra, 2007), entre outros livros. Carlos Guilherme Mota é historiador e presidiu o IEA-USP na sua primeira fase. É autor dos livros Ideologia da cultura brasileira (1976, segunda edição da Editora 34, 2009) e História do Brasil (em co-autoria com Adriana Lopez, Senac, 2010), entre outros. Eduardo Viveiros de Castro é antropólogo e professor do Museu Nacional. Autor dos livros Inconstância da alma selvagem (Cosac Naify, 2002) e Eduardo Viveiros de Castro – Encontros (Azougue, 2009), entre outros. Fausto Fawcett é escritor e compositor. Autor dos livros Santa Clara Poltergeist (1990) e Favelost (2011), entre outros. Frederico Coelho é ensaísta. Autor dos livros Eu, brasileiro, confesso, minha culpa e meu pecado (Record, 2010) e Livro ou Livro-me – os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (UERJ, 2010). Helena Aragão é jornalista. Foi editora da revista Overmundo. João de Souza Leite é designer gráfico e professor da ESDI-RJ. José Luis Herencia é poeta e gestor cultural. Autor de Água furtada (Azougue, 2011) Luana Vilutis é socióloga. Como pesquisadora do IPEA, realizou a avaliação do Progama Cultura Viva (2010-2011). Mauricio Barros de Castro é historiador e poeta. Autor do livro Zicartola (2003, segunda edição Azougue Editorial, 2012) e organizador de Capoeira – Encontros (Azougue, 2009). Osvaldo Giacóia Junior é filósofo. Autor de Nietzsche (Publifolha, 2000), entre outros livros. Patricia Gouvea é fotógrafa e diretora do Ateliê da Imagem. Autora do livro Membranas de Luz (Azougue, 2011). Sergio Cohn é poeta e editor.


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