Mário de Andrade: cultura brasileira

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Cultura

Brasileira

Um dos intelectuais que melhor textualizou o nosso país, Mário de Andrade esteve na vanguarda do trabalho por um Brasil autônomo e original. Um Brasil que se fizesse conhecido dos brasileiros por Ricardo Schaefer Poucos expoentes da cultura brasileira agruparam tantos e tão variados títulos. Mário de Andrade foi poeta, romancista, contista, cronista, crítico de artes plásticas e literatura, musicólogo, professor, folclorista, etnólogo. Fértil, inesgotável, era revolucionário naquilo que criava. Foi um dos escritores que usou sistematicamente nos seus textos uma língua nacional, formalizando e libertando o estilo literário brasileiro das

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regras gramaticais do idioma lusitano. Mário Raul de Morais Andrade nasceu em 1893, na capital paulista, onde viveu e faleceu em 1945. Cresceu em uma São Paulo que experimentava um surto de desenvolvimento industrial. As primeiras décadas do século XX foram marcadas por um impulso de modernização das principais cidades do país. Imbuído desse espírito, Mário buscou, através da literatura, despertar a consciência dos

brasileiros em relação a esta nação ainda em formação que era o Brasil. “Nós já temos um passado guaçu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente”, expôs o escritor em 1925, em entrevista ao jornal carioca A Noite. Devotou-se apaixonadamente ao país, assumindo o compromisso de


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Um dos intelectuais que melhor textualizou o nosso país, Mário de Andrade esteve na vanguarda do trabalho por um Brasil autônomo e original. Um Brasil que se fizesse conhecido dos brasileiros por Ricardo Schaefer Poucos expoentes da cultura brasileira agruparam tantos e tão variados títulos. Mário de Andrade foi poeta, romancista, contista, cronista, crítico de artes plásticas e literatura, musicólogo, professor, folclorista, etnólogo. Fértil, inesgotável, era revolucionário naquilo que criava. Foi um dos escritores que usou sistematicamente nos seus textos uma língua nacional, formalizando e libertando o estilo literário brasileiro das

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regras gramaticais do idioma lusitano. Mário Raul de Morais Andrade nasceu em 1893, na capital paulista, onde viveu e faleceu em 1945. Cresceu em uma São Paulo que experimentava um surto de desenvolvimento industrial. As primeiras décadas do século XX foram marcadas por um impulso de modernização das principais cidades do país. Imbuído desse espírito, Mário buscou, através da literatura, despertar a consciência dos

brasileiros em relação a esta nação ainda em formação que era o Brasil. “Nós já temos um passado guaçu e bonitão pesando em nossos gestos; o que carece é conquistar a consciência desse peso, sistematizá-lo e tradicionalizá-lo, isto é, referi-lo ao presente”, expôs o escritor em 1925, em entrevista ao jornal carioca A Noite. Devotou-se apaixonadamente ao país, assumindo o compromisso de


Mário buscou, através da literatura, despertar a consciência dos brasileiros em relação a essa nação, ainda em formação, que era o Brasil


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popularizar a cultura e valorizar a arte como condição para o desenvolvimento de uma identidade nacional. Essa busca contribui para que Mário de Andrade se tornasse uma das figuras mais polivalentes do universo intelectual brasileiro. “O teorista sutil de A escrava que não é Isaura é o mesmo contista monolítico, trágico de Belazarte, o desbravamento, a pesquisa, a sistematização do historiador da Música brasileira contrariam o romancista que revelou o ‘herói sem nenhum caráter’, por fim, foi individualista contundente reconhecendo a arte como veículo de socialização”, escreveu Haroldo Mauro na abertura de uma entrevista que Mário de Andrade deu ao periódico O Jornal, 1935.

INFATIGÁVEL PESQUISADOR DO BRASIL Em uma carta a Carlos Drummond de Andrade, de 1924, relatou Mário: “Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrificarei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são para o Brasil. E isso nem sei se tem mérito, porque me dá felicidade”. No seu projeto de renovação cultural, atuou em diversas frentes. Iniciou sua carreira literária em 1917 com a publicação de Há uma gota de sangue em cada poema. Veio a seguir Paulicéia desvairada, primeira obra em que se usou sistematicamente o verso livre no Brasil. Com a Semana de Arte Moderna de 1922, seu nome começou a projetarse nacionalmente. Mário de Andrade foi um dos maiores expoentes do movimento modernista no país, unindo à sua extensa produção literária, estudos sobre a tradição brasileira. A sua pesquisa bibliográfica foi 42

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enriquecida pelo contato vivo que teve com o povo de vários cantos do nosso território. Fez três grandes incursões, a que chamava de “viagens etnográficas”, que marcaram a sua obra: às cidades históricas de Minas Gerais, em 1924; ao Amazonas, em 1927; e ao Nordeste, em 1928 e 1929. A pesquisadora Maria Aparecida Silva Ribeiro, na obra Mário de Andrade e a Cultura Popular, ressalta que “todo um programa de trabalho com a cultura brasileira, baseado no respeito à diversidade de nosso povo e numa convivência pacífica e enriquecedora entre popular e erudito, entre tradição e modernidade, chega até nós através de uma arte comovida e utilitária”. Como musicista, com formação e posterior docência no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Mário se direcionou a projetos de nacionalização da música brasileira. “Dedicou-se principalmente, nesse sentido, à crítica e às pesquisas folclóricas, principalmente musicais. Suas obras técnicas mais importantes, como o Ensaio sobre a Música Brasileira, as Modinhas imperiais, o livro de crítica Música, doce Música são francamente orientados nesse sentido da pesquisa da coisa nacional”, escreveu o jornalista Joel Silveira para matéria da revista Vamos ler!, republicada no livro Mário de Andrade: entrevistas e depoimentos, organizado por Telê Porto Ancona Lopez, do qual foram extraídos os demais trechos de materiais jornalísticos sobre o autor aqui relatados. “Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la”, expressou Mário em uma de suas primeiras cartas a Drummond, em 1924, com quem se correspondeu até o final da vida. “É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil”, continuou o escritor paulista.

“Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrificarei. A língua que escrevo, as ilusões que prezo, os modernismos que faço são para o Brasil. E isso nem sei se tem mérito, porque me dá felicidade”

Integrantes do Movimento Modernista de São Paulo


“De que maneira nós podemos concorrer pra grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros, e só brasileiros, a humanidade estará mais rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas”. Essa orientação de valorização nacional, Mário de Andrade carregou como diretor do Departamento de Cultura

da Educação, onde elaborou o plano de uma Enciclopédia Brasileira. De volta à sua amada Paulicéia, dois anos mais tarde, trabalhou no Serviço do Patrimônio Histórico paulista, que ajudara a criar em 1936 com o objetivo da salvaguarda e estudo das riquezas históricas e artísticas brasileiras. Quando, em 1939, foi entrevistado para a revista Vamos ler! e questionado se ele se considerava um nacionalista convicto, respondeu: “Não. Apesar da

de libertar as nossas formas literárias das regras gramaticais do idioma de Portugal. “As poesias de Clã do Jabuti, os contos de Belazarte, a rapsódia romanceada que é Macunaíma – todos estão vazados em linguagem muito verde-amarela, um tanto bizarra, que não se compadece com as normas do português lusitano”, descreve o jornalista Silveira Peixoto em Falam os escritores. Mário procurava propagar uma cultura popular brasileira rica e diversificada,

“Todo o esforço humano na produção do conhecimento deve ter como meta uma realidade mais alta e mais de todos, deve ter na humanidade, seu maior interesse, e para isso são válidos todos os sacrifícios, todos os movimentos” Retratos da dédaca de 30 - BJ Duarte

de São Paulo, órgão que ajudou a criar em 1935. Nesse posto, fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore e realizou o Congresso de Língua Nacional Cantada, do qual participaram alguns dos maiores filólogos, musicólogos e compositores brasileiros. Mudanças políticas forçaram seu afastamento do cargo e, em 1938, resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro. Na então capital brasileira, foi Diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal e lá regeu a cátedra de Filosofia da Arte. Trabalhou no Ministério

Mario retratado por Tarcila do Amaral

minha orientação nacional, não sou um ‘nacionalista’ no sentido apologista desta palavra. Considero-me um cidadão do mundo, e se trabalho a coisa brasileira, é pelo interesse humano que isso tem”.

FALAR E ESCREVER BRASILEIRO Dos escritores brasileiros, Mário de Andrade foi um dos que primeiro usou em suas obras a língua nacional, num ímpeto

cheia de imagens, sons e cores sugestivas. O Clã do Jabuti, por exemplo, “constitui uma espécie de mapeamento dessa variedade cultural, registro virtuosístico de ritmos de coco, toada, moda, tudo escrito em linguagem que buscava, até o exagero, ser marcadamente brasileira”, explica o professor e crítico literário João Luiz Lafetá em Literatura Comentada: Mário de Andrade. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter é uma das obras pilares da nossa cultura. Através de uma narrativa

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fantástica e picaresca, Mário de Andrade reelabora literariamente temas da mitologia e folclore brasileiros, combinando as lendas dos índios da Amazônia com anedotas da história nacional, mesclando a vida cotidiana das cidades do sul com os costumes do Nordeste. No intuito de escrever um livro em todos os linguajares regionais, Mário criou uma antologia do folclore brasileiro. A obra, redigida em uma semana, é fruto de anos de pesquisa de lendas, mitos indígenas e manifestações folclóricas que o autor reuniu utilizando a linguagem popular e oral das várias regiões do Brasil. Em um prefácio que não chegou a publicar com o livro, o autor discorre sobre a sua obra: “O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros.” Nesse sentido, Mário trabalhou incansavelmente para abrasileirar o nosso país. Era organizado, um intelectual que trabalhava com método e levava uma vida inteiramente dedicada ao seu objetivo. Dirigindo-se a Drummond, cuja correspondência completa está reunida no livro Carlos & Mário, escreveu: “Quanto a você começar a se interessar por coisas brasileiras, se lembre que eu não fui nem sou o primeiro nacionalista da nossa literatura. Eu se tenho algum mérito é que em vez de pregar só, fazer idealismo, fazer teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazer regionalismos, tal qual Veríssimo ou Lobato, agi prático, não prego, faço.” Alguns de seus trabalhos explicitaram outro projeto mais amplo, de redescoberta e definição do Brasil, como o anteprojeto de uma Enciclopédia Brasileira, esboços de uma gramatiquinha, seus fichários e índices analíticos. Textualizando 44

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o produto de suas pesquisas, Mário de Andrade buscava desenvolver a intelectualidade do povo brasileiro. Em uma caderneta sua nomeada Língua Brasileira, onde reuniu estudos e anotações do projeto de uma Gramatiquinha da Fala Brasileira, encontra-se o apontamento: “Os escritores nacionais célebres têm

“O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros, e só brasileiros, a humanidade estará mais rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas”

às vezes incitado, aconselhado a libertação nossa de Portugal – João Ribeiro, Graça Aranha. Principiam por um erro: opor Brasil a Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa.” O escritor pesquisou e empregou a

língua na forma como é manifestada no Brasil, entendendo-a como algo dotado de vida e dinamismo e que sofre modificações por parte do povo que a usa. No seu romance Amar, verbo intransitivo, por exemplo, empregou “Lhe deu um olhar de confiança” (em vez de “Deu-lhe um olhar de confiança”), “Fraulein não é bonita não” (duplicando a negativa), “Elza viu ele descer” (e não “Elza viu-o descer”), “O criado viria chamá-lo pro almoço” (no lugar de “para o almoço”), “Ia me esquecendo” (com o pronome solto entre os dois verbos), “Não tem tantas mulheres sem perigo por aí” (em vez de “Não há tantas mulheres”). Nesta mesma obra, fez uso de neologismos e expressões bem brasileiras, como “Criou coragem, mas encabulou, encafifado”, “Quedê os elfos da floresta negra?”, “brincabrincando”, “Que nem das outras vezes”. Mário realizava seu trabalho com empenho a partir de uma rigorosa investigação linguística e etnográfica. “Quando empregava ‘me’ começando as frases, não era só pelo gosto de escrever diferente. Eu sabia o que estava fazendo. Para isso, estudei. Procurei honestamente uma maneira de escrever brasileiro. Acho que encontrei este meio. Pelo menos, ajudei a abrir o caminho”, explicou o autor em uma entrevista para a publicação Diretrizes, em 1944.

Um Brasil para a Humanidade “Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil”, redigiu Mário de Andrade em carta a Sérgio Milliet, em 1924. “Nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá riqueza universal.



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“Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil. Nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá riqueza universal”

Portinari, Antônio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco, 1936

Mário de Andrade com crianças no Parque Infantil D. Pedro II, Brás, 1937

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Isso preguei senvergonhamente no meu Noturno de Belo Horizonte e vivo a dizer em quanta carta escrevo e conversa que converso”, acrescentou. Através de uma vasta e ininterrupta correspondência, Mário de Andrade se comunicava com intelectuais e artistas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino, Augusto Meyer, entre outros. Suas cartas conservavam a mesma prosa de suas criações literárias e, de regra, buscavam despertar em seus colegas, jovens mentes brasileiras, o comprometimento com os destinos da arte, conduzindo-os numa direção nacionalizante.

“A luta contra os preconceitos, contra as coisas firmadas pelo academismo inútil que se impunham como uma barreira a qualquer manifestação do verdadeiro talento. Era um líder fervoroso. Movimentou, abriu diretrizes. Inventou exageros e enveredou destemerosamente por eles”, descreveu o jornalista e escritor Carlos Castello Branco em introdução a uma entrevista que Mário de Andrade deu ao periódico de arte e literatura Mensagem, em 1939. O denominado “papa do Modernismo”, ao falar sobre esse movimento em uma entrevista ao jornal paraense Folha da Noite, em 1927, explicitou que “nós só seremos de deveras uma Raça o dia em que nos tradicionalizarmos integralmente e só seremos uma Nação quando enriquecermos a humanidade com um contingente original e nacional de cultura. O Modernismo brasileiro está ajudando a conquista desse dia”. Ao periódico carioca A noite, dois anos antes, relatou a passagem da fase destrutiva à construtiva do movimento modernista no Brasil: “Como primeiro trata-se de destruir, os exageros até são úteis, porém depois carece construir. (...) A gente se excetua apenas o tempo necessário para conquistar mais liberdade e sobretudo visão melhor da torrente humana. Mas depois se reintegra na torrente, porque só mesmo dentro dela pode ser eficiente e fecundo”. Em Mário de Andrade e a Cultura Popular, a autora sintetiza a certeza feliz de Mário de “que todo o esforço humano na produção do conhecimento deve ter como meta uma realidade mais alta e mais de todos, deve ter na humanidade, seu maior interesse, e para isso são válidos todos os sacrifícios, todos os movimentos”.



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