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LULA NA CAPA DA "TIME": MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDOS

Aline Reinhardt da Silveira

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Na primeira semana de maio de 2022, a disputa eleitoral pela presidência do Brasil foi tema de capa de ao menos três revistas de grande circulação e projeção nacional e internacional: Piauí, Le Monde Diplomatique Brasil (ambas voltadas ao público brasileiro) e Time (revista norte-americana e com alcance global) estamparam os candidatos que dominavam intenções de voto e manchetes a respeito das eleições, um deles o então presidente, Jair Bolsonaro, e o outro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto o então presidente estampou as capas de Diplomatique e Piauí na forma de ilustrações bastante críticas e até mesmo jocosas, Lula despontou como uma das capas da edição de 23 de maio da revista norteamericana Time, o que rapidamente se tornou pauta de veículos noticiosos tradicionais e assunto dos comentários circulantes nas redes sociais. Se as capas que retrataram o então presidente e seus aliados basearam-se na ilustração, a capa protagonizada por Lula traz uma fotografia do ex-presidente, de autoria da brasileira Luisa Dörr, acompanhada da chamada “Lula ’ s Second Act: Brazil’ s most popular leader seeks a return to the presidency ” , ou, em tradução livre, “O Segundo Ato de Lula: O líder mais popular do Brasil busca um retorno à presidência ” . É nessa capa que nos deteremos neste trabalho, buscando compreender, a partir da fundamentação teórico-metodológica da Análise de Discurso Materialista (AD), os efeitos de sentido possíveis de serem produzidos a partir da emergência dessa capa, observando o contexto brasileiro para tanto, e mobilizando a noção de memória discursiva para empreender essa análise. Para a AD, os sentidos nunca são dados a priori, estão colados às palavras ou até mesmo às imagens. O que temos é a produção de efeitos de sentido possíveis a partir de uma materialidade dada, a partir de uma formação discursiva em relação com uma dominante, em determinadas condições de produção (PÊCHEUX, [1975]2014; ORLANDI [1999]2015). O sentido, assim, sempre pode ser outro, apesar de não poder ser qualquer um - já que é fundamentado em uma materialidade na forma que citamos anteriormente. Ao adotarmos a AD como fundamento teóricometodológico para essa pesquisa, temos em mente a relação do sentido com o social e com o político, com a historicidade constitutiva dos sentidos possíveis de serem produzidos. Como afirma Orlandi ([1999]2015, p. 18),

“ as palavras simples do nosso cotidiano já chegam até nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram e que, no entanto, significam em nós e para nós ” .

A capa da Time

Fernandes (2008) salienta que a leitura de uma capa de revista enquanto materialidade textual se dá de forma diferente da leitura linear de um texto verbal, uma vez que o olhar percorre primeiramente a imagem, ou seja, a linguagem não-verbal, para somente após se deter sobre a linguagem verbal. É por esse motivo que a autora reforça que “ não podemos afirmar que o verbal ‘traduz ’ ou explicita a leitura da imagem como se esta não pro-

duzisse sentidos. [...] Antes mesmo do leitor se deter na leitura do verbal, a imagem já está lá, desencadeando sentidos, significando sem precisar de uma legenda que a explique. ” (FERNANDES, 2008, p. 96). É considerando o exposto que observamos a capa da Time que Lula protagoniza. Há, primeiramente, uma chamada ao olhar para o texto não-verbal, com o texto verbal da materialidade ocupando até mesmo um segundo plano de interesse. Corrobora esse argumento o fato de mesmo pessoas que não leem em inglês serem capazes de identificar Lula na capa de uma prestigiosa revista e produzir sentidos a respeito disso, deixando de lado a textualidade verbal presente. Neste trabalho, procuramos considerar ambas, linguagem verbal e não-verbal como o todo de uma materialidade. Para efeitos de clareza de nossas formulações, eventualmente poderá ser necessário tratá-las como partes separadas; entretanto, convidamos quem nos lê a manter atenção ao fato de que imagem e língua produzem sentido como um todo a ser interpretado. A capa da Time traz sua tradicional borda vermelha, a qual é acompanhada de uma borda branca menos espessa. Ao centro, vemos a imagem de Lula sobre um fundo escuro avermelhado. Ele veste terno azul escuro, camisa azul-claro sóbria e gravata listrada de azulmarinho, verde, amarelo e branco, remetendo às cores da bandeira do país. Lula mantém um semblante sereno, com as mãos em frente ao torso. Uma aliança é vista no dedo anelar da mão direita. Há um sombreamento da mão esquerda, cujo dedo mínimo está cortado, não ficando em destaque essa marca de um acidente de trabalho sofrido anos atrás. As letras do nome da revista são parcialmente escondidas pela cabeça do fotografado, e os letreiros laterais com a chamada da capa estão diagramados sobre o braço esquerdo de Lula. Os créditos das autoras da matéria e da fotografia também estão presentes. Não há qualquer outro tipo de intervenção gráfica, como ilustração ou inserção de outras fotos ou elementos. Lula é o único assunto dessa capa e sua foto produz o efeito de um retrato como os retratos oficiais ou históricos que costumamos ver. Como efeito de sentido, temos uma pose que nos remete à imagem de um verdadeiro estadista, e se assim é possível interpretar é porque há uma memória discursiva da qual nos valemos a cada novo gesto de interpretação realizado. Esse efeito de sentido possível se torna ainda mais premente nas condições de produção em que essa capa circula, às vésperas da campanha eleitoral oficial para as eleições presidenciais de 2022, em um momento que Lula despontava como um dos favoritos a vencedor. Podemos assim afirmar, pois há uma memória que se difere de uma memória social, coletiva e histórica, que atua na produção de sentidos ao nos depararmos com uma capa como essa, e essa memória é discursiva. Afirmamos juntamente com Fernandes (2020, p. 213) que

“ em síntese, a memória discursiva é o que dá acesso aos sentidos ” . Essa noção diz respeito, confor-

Figura 1: Capa da revista Time, edição dupla de 23 de maio de 2022. Foto de Luisa Dörr.

Fonte: Revista Time.

me Courtine (2009), à existência histórica do enunciado em questão no interior de práticas discursivas (as quais são, por sua vez, regradas por Aparelhos Ideológicos), seja esse enunciado verbal ou, como em nosso caso, imagético. É o que nos remete ao que foi dito antes, em outro lugar, mas do qual esquecemos e cremos ser novo - de novo. É uma repetição que aparece não em extensão, ipsis literis, mas sim uma repetição vertical, sujeita a falhas, deslizamentos, lacunas, nãosabidos e não-reconhecidos que, ao mesmo tempo, parece-nos estranhamente familiar. Assim é a imagem de Lula na capa da Time, que recupera, de forma “ estranhamente familiar ” outras formulações de capas e retratos oficiais de outros presidentes e outros estadistas, produzindo um efeito de apoio à sua candidatura por meio do espaço privilegiado de circulação de sentidos de um veículo de imprensa com alcance global.

Fig. 2 Ronald Reagan - edição de 21 de setembro de 1981 Fig. 3 Emmanuel Macron - edição de 20 de novembro de 2017

Fonte ; Time

Nas figuras 2 e 3, fotos posadas de presidentes, sendo esses alguns dos retratos de líderes mundiais que foram tema de capas da Time.

A gravata de Lula

A memória discursiva se fricciona à memória coletiva quando nosso olhar se demora sobre a gravata azul profundo, verde e amarelo usada por Lula ao ser fotografado para a revista. O adereço não se faz presente ao acaso: para além de ser item que imprime formalidade ao traje escolhido, e de remeter às cores da bandeira de nosso país e em contraste ao vermelho associado ao Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual Lula é filiado e foi fundador. Essa gravata em específico é associada ao petista por seu uso em momentos-chave dos dois mandatos como presidente do Brasil. Foi a gravata usada por ele em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no anúncio da descoberta do Pré-Sal, no anúncio do Brasil como país-sede dos Jogos Olímpicos de 2016, assim como em entrevistas coletivas em momentos de crise de seu governo como no Mensalão, e ao depor no inquérito da Lava Jato ao então juiz federal Sérgio Moro. O acessório é tão identificado com o ex-presidente que uma busca no Google pela expressão “ gravata do Lula ” retorna inúmeras imagens do ex-presidente utilizando a referida gravata, e até mesmo indicações de como comprar uma igual aparecem entre os primeiros resultados.

Fig.4: Tela de resultados para a busca

“ gravata do Lula ” no Google. Acesso em 20 de setembro de 2022.

Fonte: autora.

A gravata de Lula, portanto, se inscreve em uma tessitura discursiva ao recuperar uma memória e ser o estranhamente familiar que ressurge na fotografia que estampa a capa da Time. É um mesmo Lula, agora mais velho e experiente, em busca de uma segunda era como presidente do país, mas que o faz calcado nas memórias e nos feitos comemorados - inclusive com o uso da gravata verde-amarela , buscando essa nova oportunidade. O uso da mesma gravata vai para além de uma repetição que apoia a estabilização de sentidos e faz discurso, e para discorrermos sobre isso precisamos nos debruçar sobre qual modalidade de discurso aquele produzido pela mídia se inscreve. Mariani (1998) compreende o discurso jornalístico como uma modalidade do discurso sobre, um discurso que se configura como um intermediário entre um discurso de (alguém) e aquele que lê, ouve ou vê. Segundo a autora, tais discursos intermediários têm como efeito imediato de tornar objeto aquilo sobre o que se fala, criando um efeito de distanciamento entre o sujeito enunciador com relação ao que é falado. Entretanto, Indursky (2021) nos chama a atenção para como discurso de e discurso sobre se imbricam de forma a não ser possível separá-los quando observamos o discurso da imprensa. Ao mesmo tempo que a imprensa vai produzir um discurso sobre alguém, ela recorre ao discurso desse alguém ou algo para produzi-lo - na forma de uma entrevista, da recuperação de falas públicas e até mesmo de uma fotografia. O discurso da imprensa se enquadraria, portanto, em uma modalidade de discurso de/sobre, assim imbricada e inseparável. E é a partir disso que cremos ser possível afirmar que estamos diante de uma modalidade de discurso de/sobre Lula quando observamos a capa da Time. Assim sendo, a capa da Time produz um discurso de/sobre Lula: sobre Lula ao tomá-lo editorialmente como assunto de pauta jornalística; discurso de Lula pois é ele, o próprio retratado, junto com sua equipe, quem define, de certa forma, sua vestimenta e pose para ser retratado, expressão de seu discurso. A escolha editorial e a materialidade que se apresenta imbrica, assim, tanto o discurso de quem é retratado como o discurso sobre quem é retratado, ao retratálo. Essa imbricação dos discursos de/sobre nos permite compreender materialidades em que as posiçõessujeito em que se inscrevem o discurso da mídia e o discurso de quem a mídia está relatando sejam diferentes, e até mesmo divergentes, como são os casos analisados por Indursky (2021) a respeito do discurso do MST.

A autora explica que no discurso do/sobre o MST praticado pela Folha de S.Paulo e por ela analisado, posições-sujeitos diferentes são encontradas, filtradas pela posição sujeito do veículo, permitindo assim formular a noção de discurso de/sobre. Tal noção nos permite compreender as torções discursivas provocadas por posições-sujeito em tensão em um mesmo discurso praticado pela mídia. Há um imbricamento indissolúvel entre aquilo que é dito por e aquilo que é relatado sobre o que foi dito. Em nosso caso, poderíamos dizer que há um imbricamento indissolúvel entre a pose adotada e o retrato resultante escolhido editorialmente para compor a capa da edição. A fotógrafa, autora da imagem, certamente dirigiu o fotografado, fez escolhas das quais Lula não participou, bem como não fez parte das escolhas editoriais que levam em conta os efeitos de sentido que se pretende provocar ao compor uma capa de revista, como qual foto utilizar, a diagramação dessa foto em relação ao texto verbal, e a formulação verbal que irá compor esse texto verbo-visual que entendemos como uma capa de revista. Queremos nos deter à parte verbal desse texto verbo-visual em análise. Como dito anteriormente, lemos na capa “Lula ’ s Second Act: Brazil’ s most popular leader seeks a return to the presidency ” , ou, em tradução livre, “O Segundo Ato de Lula: O líder mais popular do Brasil busca um retorno à presidência ” . Há também a indicação da autora e de quando a fotografia foi tirada. O efeito de sentido de um estadista é corroborado pela indicação de que se trata de um líder, ao qual a revista qualifica como o mais popular do país. Entre os efeitos de sentido possível de produzirmos, o trecho “ segundo ato ” remete-nos a uma memória erudita, do teatro, do segundo ato de uma peça ou uma performance, em que os dois mandatos de Lula como presidente nos anos 2000 diriam respeito ao primeiro ato. Logo em seguida, a linha de apoio à chamada principal encaminha para um sentido oposto ao do erudito, destacando Lula como um líder popular. Popular por popularidade, mas que também poderia relacionar-se à palavra “ povo ” e à origem popular de Lula e tendo esse recorte demográfico como seu principal apoio em uma disputa política. Juntamente à gravata nas cores da bandeira, é possível produzir o efeito de sentido de que ele é um representante do povo brasileiro. Levando em consideração tanto os segmentos visuais quanto verbais dessa sequência discursiva composta pela capa da Time, cremos poder afirmar que a revista se identifica com a posição-sujeito próeleição de Lula em um novo mandato, o qual seria o “ segundo ato ” , a segunda parte de um todo a ser cumprido ou performado após um intervalo. Tal afirmação é possível não apenas pelo segmento verbal analisado, mas sim por sua combinação com a fotografia que produz efeito de sentido de um estadista, a qual assim pudemos analisar a partir da noção de memória discursiva.

A Time para o Brasil

Não poderíamos negligenciar o fato de que as condições de produção de sentidos variam se tomarmos como ponto de vista o Brasil ou os Estados Unidos, local original da publicação. No Brasil, às vésperas da corrida eleitoral, a recepção de uma capa como a aqui analisada foi motivo não só de interpretação, mas de tensão e até mesmo de disputas. Uma delas foi objeto de desmentida pela verificação de fatos do jornal Estadão, o qual esclareceu em contato com a própria revista Time o porquê de existirem outras

O vídeo que contestava a veracidade da presença de Lula na capa da edição foi julgado como falso, portanto, pela verificação desse veículo de imprensa. A Time explicou que, por vezes, diferentes capas são produzidas e distribuídas em diferentes regiões para assinantes e nas bancas, como foi o caso dessa edição. Entretanto, isso não impediu que circulassem versões alegando que a capa seria falsa, apesar de amplamente noticiada pela imprensa brasileira.

Figura 5: Imagem de Estadão Verifica sobre vídeo viral que contestava a veracidade da capa com Lula.

Fonte: Estadão.com.br. Acesso em 31 de agosto de 2022. Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/estada o-verifica/lula-capa-revista-time/

Essa disputa em torno da veracidade da capa corrobora nosso argumento de que sentidos de prestígio, reconhecimento, construção de imagem de estadista, entre outros, são possíveis de serem produzidos a partir da capa da Time. Retomamos a compreensão apresentada de que assim é possível, pois há uma memória discursiva em funcionamento a qual é recuperada a partir do universo de coisas ditas e possíveis de serem ditas ao qual nomeamos em AD como interdiscurso. Essa memória funcionando na produção de sentidos se tece a partir de um discurso de tipo de/sobre, conforme dito anteriormente, em que o discurso do retratado e o discurso sobre esse retratado se imbricam de forma indissociável, constituindo o discurso praticado pela mídia tal como visto na capa da revista Time.

Referências:

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso

político: o discurso comunista endereçado aos

cristãos. São Carlos: EdUFSCar, 2009. FERNANDES, Carolina. O imaginário de Veja sobre "Os Lulas Presidenciáveis" . Dissertação (Mestrado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, p. 169. 2008. ______ . Memória. In: LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina. Glossário de termos do discurso. Campinas: Pontes Editores, 2020.

INDURSKY, Freda. O discurso do/sobre o MST: movimento social, sujeito, mídia. Campinas: Pontes Editores, 2021.

MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: Os comunistas no imaginário dos jornais (1922 - 1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: Editora da Unicamp, 1998. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2015[1999]. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.Campinas: Editora da Unicamp, 2014[1975].

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