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09 Gilberto Stanchack Andrade de Lima

‘TEXTE’ ‘FALANDE’ DE ‘GÊNERE’ ‘NEUTRE’

Gilberto Stanchack Andrade de Lima

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Desde a década passada, a discussão acerca do "gênero neutro ” está em aberto na sociedade. Muito se fala, muito se opina, porém muitos desconhecem questões que precedem a simples criação das formas propostas ou a total rejeição da ideia. A partir de parâmetros essenciais de se ter conhecimento ao se debater - gênero, identidade de gênero, língua, gênero na língua etc. - seja para defender, seja para refutar a ideia, iniciaremos nossa reflexão. Para discussão, precisamos ter claro em nosso entendimento que nossa sociedade muda, nossa língua se transforma, nada é estático (principalmente quando se trata de algo que diz respeito a tantas vivências como é a língua). Língua e sociedade são realidades indissociáveis. Isso se comprova pelo fato de que a língua se modifica por influência da passagem do tempo, da região, até mesmo de um nicho de mercado específico. Há uma pluralidade de fatores que levam uma língua a ser alterada, mas nem toda alteração é igualmente validada na língua. Em 2010, durante a corrida eleitoral para o cargo máximo da nação, Dilma Rousseff passou a referir-se como presidentA, em oposição à presidentE. A mudança foi criticada por parte da imprensa por ser uma forma que “ não existe ” . A suposta explicação seria o termo na forma “ original” , que também significaria o feminino em si, não se fazendo necessário o uso da forma “ presidenta ” . Sabendo que, posteriormente, quando eleita, Dilma foi a primeira mulher da história do Brasil a ocupar a cadeira presidencial, é importante observar o posicionamento ideológico que existe ao passar a utilizar a forma "presidenta" , considerando o contexto, e a historicidade

masculina do cargo, logo, também é importante salientar como se mostra significativo quando se tenta negar a existência da forma em questão. Dilma passando a usar “ presidenta ” é apenas um dos infinitos exemplos de mudança na língua e como a sociedade pode reagir quanto a isso. Mas nem toda mudança na língua é criticada. Os acordos ortográficos assinados por países falantes de português alteraram algumas regras, desde inserir letras no alfabeto até alterar regras de acentuação. Mas, mesmo causando mudanças na nossa língua, a necessidade, ou uma suposta deturpação da língua, não foi colocada sob ameaça da mesma forma que “ presidenta ” . De modo geral, ocorreram diversas ações para a inclusão das mudanças realizadas por conta do acordo (2016 foi o último ano para a adesão as novas regras), mas “ presidenta ” já se fazia presente no dicionário, ao lado do termo “ presidente ” , antes mesmo do brasileiro questionar a legitimidade da palavra em 2010. Logo, nota-se que a língua muda, mas nem toda mudança é encarada da mesma forma.

A mudança na língua existe, independente da nossa opinião sobre a alteração em si. Para a sociolinguística, o uso é que vai ter a palavra final sobre a validação de diferentes formas. Exemplo: o pronome “ vós ” ainda é ensinado em escolas do Brasil, mas pouquíssimos usos são encontrados na língua, até mesmo em ocasiões mais formais, enquanto “ sextou ” é uma gíria usada amplamente na internet, e fora dela, para expressar que chegou a sexta-feira, ou que o indivíduo já começou a executar seu planejamento para o final de semana. Para a sociolinguística, a segunda forma é bastante válida pelo seu uso, independentemente de ser usado de maneira coloquial; o “ vós ” , por outro lado, caiu em desuso, mesmo que ainda seja ensinado em algumas escolas. A partir das reflexões feitas, entramos de fato na chamada “linguagem neutra ” . Buscar descrever algo que não é um consenso, tanto para os que aderiram a proposta, quanto para os que a renegam, não é uma tarefa fácil, mas, por motivo de entendimento do texto, se faz necessário. A questão em debate é uma proposta de se criar uma terceira possibilidade quando se trata de flexão de gênero, abrindo caminho para além do masculino e feminino já conhecidos. O intuito é criar uma alternativa para o pensamento binarizado ao se tratar de gênero, além de questionar a relação entre gênero (masculino e feminino) e língua. A proposta atende uma demanda social daqueles que não se sentem contemplados com as formas vigentes e/ou discordam da ideia de que o masculino já seria a forma sem marcação de gênero. Porém, mesmo entre os que defendem e apoiam a proposta da "linguagem neutra" , não há consenso em um aspecto: a sua forma. Alguns usam “ elx/delx ” , outros “ elu/delu' , também há quem use “ el@/del@” ou "ile/dile' , além de outras várias formas.

A falta de consenso pode ser explicada por conta das formas dos pronomes terem sido criados por diferentes pessoas, em diferentes bolhas sociais, que passaram a usar formas para expressar o gênero neutro de acordo com suas preferências e conhecimentos.

Destaco o fato de que essa proposta partiu de pessoas que não necessariamente estudam a língua como no mundo universitário/acadêmico, se valendo de seus conhecimentos intuitivos de língua, então se torna mais difícil cobrar tanto que exista uma uniformidade de formas, quanto que todas as formas propostas respeitem as regras de como nossa língua funciona, entrando em questões como: de qual maneira seria lida a frase “@s meni@s chegaram cansad@s da escola ” ou sobre como a letra “ o ” está sendo usada para suprimir gênero, sendo que a vogal em questão já é usada hoje para marcar o gênero masculino das palavras? Ressalto ainda como as formas, mesmo que sem grande uniformidade, cumprem a tarefa com certa eficiência, principalmente em textos online que não foram feitos pensando na linguagem oral, como publicações no Twitter, por exemplo.

Em uma proposta com tantas lacunas técnicas para serem preenchidas, a atenção dos que, teoricamente, estariam aptos para, juntamente com a sociedade, estrutura-la e criar uma proposta que atenda a demanda social dentro dos padrões já estabelecidos pela língua é voltada para redundantemente argumentar como a proposta seria infundada e desnecessária, usando como justificativas as lacunas técnicas a serem preenchidas e a suposta neutralidade de gênero na forma masculina. Tomo por exemplo o texto “Por que a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma ” do portal Gazeta Zero Hora Críticas como essas possibilitam a manutenção das lacunas abertas nas formas de uso das pessoas, e continuam a negar a demanda social de novas formas, principalmente por pessoas que não se identificam com o gênero masculino e feminino e/ou não concordam com a maneira como é feita essa distinção atualmente. Curiosidade: Na língua inglesa usase “they/them ” como opção de pronomes para além do masculino e feminino. Lá a forma já se aproxima de um consenso. Até pouco tempo, os termos faziam referência apenas à terceira pessoa do plural (nosso oficializado “ eles/elas ”) no dia a dia. Hoje, através do contexto, descobrese se é um they coletivo ou um they singular, assim como o pronome da segunda pessoa, “ you ” . Mas o uso de maneira singular do pronome já existe nos dicionários do século passado, caindo em desuso e voltando a aparecer na língua.

Para continuar a partir daqui devemos ter mais alguns conceitos claros na nossa mente: gênero social é uma identidade, uma identificação, uma representação criada na sociedade, podendo ser masculino, feminino ou não binária (em algumas sociedades dos povos originários dos EUA, como os Navajos e os Cheyenne, existem “ pessoas de dois espíritos ” , tendo outras identidades de gênero além da masculina e feminina). E, por ser um conceito criado, em cada sociedade haverá alguma particularidade nessas identidades. Paralelamente a isso, existe o gênero gramatical. No português objetos não têm gêneros. Exemplo: “ máquina ” é uma palavra feminina, mas eu posso chamar o mesmo objeto de “ aparelho ” , que é uma palavra masculina. Isso acontece porque o gênero gramatical independe do gênero social, como na palavra “ pessoa ” , que será usada no feminino, independente do gênero da pessoa em questão.

Compreender a diferença entre gênero gramatical e gênero social é extremamente importante ao se tratar do tema do gênero neutro. Caso contrário, aparecerão formas como “ mesa redonde ” , algo que não está na proposta do gênero neutro, já que a proposta se refere ao gênero social. O título escolhido para o presente texto ultrapassa as demarcações entre os dois conceitos em questão, criando de forma proposital estranhamento no leitor já que as palavras “texto ” , “ gênero ” e “ neutro ” , neste contexto, não demandam flexão de gênero social. Em resumo, o gênero neutro está relacionado com palavras que evidenciam o gênero social da(s) pessoa(s) envolvida(s), como, por exemplo, “ que lindO seu cabelO, filhE” . A importância da compreensão do gênero social é tanta que foi usada como justificativa para a desvalidação da proposta logo no título do texto da Gaúcha Zero Hora: porque a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma.

Se contrapondo ao texto do portal Gaúcha Zero Hora, existe a linguista Jana Viscardi. Ela tem um canal no YouTube com o mesmo nome da pesquisadora; o conteúdo do canal é linguístico, geralmente relacionado a algum tema atual. Um de seus vídeos apresenta 07 motivos para usar a linguagem neutra; trarei alguns para enriquecer nossa discussão. O primeiro deles ela chama de “ não cai a língua ” , e consiste em tranquilizar a todos, garantindo que sua língua, tanto o órgão quanto a portuguesa, se manterão bem, mesmo com o uso de novas formas. Ela ressalta em outro ponto que nossos pronomes atuais não sofrerão alteração por conta das novas formas: se seu pronome é “ ele/dele ” ou “ ela/dela ” , as pessoas continuarão podendo te chamar assim. A pesquisadora continua o vídeo e chama atenção para o fato de como as novas formas não impedem o entendimento entre as pessoas, já que entendimento e desentendimento já existem muito antes do debate de gênero neutro surgir. Penso em como a falta de colaboração por parte de linguistas contribui ainda mais com o desentendimento e uso dessas formas. E, por último, destaco o sétimo motivo exibido no vídeo: gênero neutro não é sobre você, singularmente. É sobre um grupo de pessoas, é sobre necessidades coletivas na língua, fazendo-se necessária a participação do grupo de pessoas nas decisões que lhes afetam.

Como último ponto essencial para o debate de gênero neutro, o masculino como algo genérico, que expressaria a ideia de que as palavras seriam originalmente no masculino com a possibilidade de se flexionarem no feminino, a argumentação é sustentada por vários ao recusar a proposta do gênero neutro, inclusive foi usada no texto da Gaúcha Zero Hora. Jana Viscardi também fala sobre isso em seu canal no YouTube, ressaltando como formas masculinas já carregam o sentido da marcação do gênero; seria impensável ouvir “ esposo ” e imaginar que não se trata de um homem, por exemplo. No vídeo, a linguista argumenta que o masculino como algo genérico é uma ideia criada nos séculos passados, baseando-se no “é porque é” , sendo algo construído socialmente, assim como gêneros. A apresentação do masculino genérico se fundamentou em ideais machistas: da mesma forma que não se fala que um navio foi amarrado a um barco, não falamos que um homem se casou a uma mulher, mas que uma mulher se casou a um homem, logo a forma masculina contemplaria as mulheres mas as formas femininas não contemplam o homem. Observe que em português, mesmo havendo uma turma lotada de meninas, a presença de um menino já nos obriga a usar a forma não marcada de gênero, que seria a masculina. O ponto chave da presente reflexão é nos ousar a tirar nossos olhos e ouvidos desse local de costume e pensar de maneira crítica quanto a isso, relembrando que muitas coisas ditas como arbitrárias na língua foram pensadas e elaboradas socialmente para serem assim, como ressalta Viscardi. Após a reflexão proposta, convido a todos a pensarem em como são poderosas nossas singularidades pessoais e coletivas na língua; fazemos parte da sua constituição assim como ela nos constitui. A proposta de gênero neutro é um exemplo de como essa constituição linguística nos molda assim como a moldamos. A língua nos acompanha por toda nossa vida, e é um dos principais elos do conjunto de pessoas que formam uma sociedade. Individualmente, a língua está presente em construções de identidade.

A partir disso, é indispensável pensar em maneiras de nosso idioma conectar pessoas de maneira que todos se sintam contemplados. Destaco o objetivo de inclusão de novas formas, sem excluir outras formas já conhecidas, sendo inofensivas ao português que conhecemos. O debate entre linguistas e setores da sociedade que reivindicam por novas formas na língua, com o objetivo de estruturar de maneira coesa e sólida novas possibilidades ao se falar português, tem se mostrado como uma possível resolução do embate de argumentos. Caso contrário, manteremos a descentralização e a falta de coesão linguística das formas propostas como justificativa para a deslegitimação de diferentes identidades e possibilidades da língua.

Referências:

7 RAZÕES PARA USAR O GÊNERO NEUTRO | JANA VISCARDI. São Paulo: Jana Viscardi, 2022. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch? v=Os837cT8moM&t=386s&ab _ channel=JanaVisc ardi. Acesso em: 3 dez. 2022. COELHO, Izete; GÖRSKI, Edair; SOUZA, Christiane; MAY, Guilherme. Para conhecer sociolinguística; Editora Contexto. São Paulo, 2015. DOIS espíritos. Diversidade de gênero nas tribos norte-americanas. [S. l.]: Brasil 247, 9 set. 2016. Disponível em: https://www.brasil247.com/oasis/dois-espiritosdiversidade-de-genero-nas-tribos-norteamericanas. Acesso em: 3 dez. 2022. LINGUAGEM e lugar de mulher. In: LINGUAGEM, gênero, sexualidade, clássicos traduzidos. Tradução: ANA CRISTINA OSTERMANN, BEATRIZ FONTANA (São Paulo). 1. ed. São Paulo: Parábola, 2010. v. 1, cap. 2, p. 1331. ISBN 9788579340123. POR QUE a distinção entre gênero social e gramatical na língua portuguesa é necessária ao idioma. Gênero é uma categoria linguística inerente aos substantivos, mas em apenas um subconjunto desses substantivos está relacionado a "sexo" , [s. l.], 12 dez. 2015. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/portoalegre/noticia/2015/12/por-que-a-distincaoentre-genero-social-e-gramatical-na-linguaportuguesa-e-necessaria-ao-idioma4928930.html. Acesso em: 3 dez. 2022.

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