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A MITOLOGIA ATRAVÉS DAS ARTES MODERNAS, SEUS DISCURSOS E EFEITOS.

Anthony Moreira Marques Colares

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Introdução:

Desde os primórdios da civilização humana, as esculturas e artes rupestres são algumas das formas de obra de arte mais apreciadas e que evidenciam a longevidade e/ou importância do que está sendo retratado, seja na madeira, pedra ou metal. Sendo produzidas há mais de dois mil anos atrás, continuam em evidência, apesar de algumas mudanças nas suas formas de produção e o que representam, cada uma com um valor histórico e materializando uma determinada ideologia dominante a partir da formação discursiva do artista que é realizada através do corpo da escultura. Estamos cientes, conforme a teoria da Análise do Discurso, das diversas formas que o discurso se propaga dentro do âmbito social, seja conversando com a formação ideológica da época, região, ou influenciando esta e as que estão por vir. Dentro do presente texto, buscaremos analisar algumas destas estátuas produzidas nos anos de início da formação das sociedades modernas que conhecemos hoje, até as mais atuais, e procurar discutir sobre o discurso materializado através do estilo e do contexto de produção de cada uma destas. Lembrando que todos os elementos que influenciam na produção e no significado almejado pelo artista são de suma importância para realizar uma interpretação fundamentada teoricamente nos conceitos da Análise do Discurso, já que é através destas análises que se buscará contemplar criticamente, seja um momento histórico, um símbolo moral ou ético para a sociedade em que aquela obra de arte está localizada. Para estas análises ao decorrer do texto, iremos nos fazer valer de conceitos da análise do discurso como: Discurso; Cultura; Formação cultural; Formação ideológica; Historicidade; Imagem e Materialidade discursiva e político. Todos os conceitos serão, como de costume e de forma indispensável, trabalhados juntamente com as análises para conseguirmos compreender como a arte produz sentidos no corpo em que ela se materializa dentro de uma formação cultural que buscou estes objetos para ser desenvolvida e da formação ideológica que contribui na construção e proliferação das ideologias que representam e do discurso que desejam disseminar. As esculturas que iremos analisar serão observadas juntamente com o contexto de sua produção e os locais onde se encontram, para depois as analisarmos a partir da teoria da AD.

Especificações de alguns termos:

Como neste artigo serão analisadas essencialmente representações humanas históricas e importantes formas de expressão de como a sociedade da época via ou desejava que as gerações futuras vissem tais patrimônios nacionais, desenvolver o conceito: Materialidade discursiva, usado na análise do discurso será importante para contextualizar a expressão do discurso materializado nas figuras analisadas, a historicidade presente em cada um destes objetos, juntamente com o conceito de “ político ”

que se liga com toda e qualquer análise de construção social, direta ou indireta. Por fim, o conceito de Imagem também nos será essencial para os objetos analisados, uma vez que a língua não é o único meio de materialização da ideologia. Começando pelo mais básico, a imagem dentro dos conceitos de AD é, pode-se dizer, a forma como algo se materializa no enunciado do interlocutor, uma vez que é materializada a partir da ideologia e discurso do mesmo, buscando mostrar como algo, por exemplo, uma obra de arte, aborda diferentes questões ligadas a ideologia e historicidade, servindo de projeção de sentidos e discursos, fazendo desse processo discursivo poder ser representado unicamente pelo conceito de imagem, que projeta no discurso a ideologia, historicidade, política etc. tudo isso ligado de forma dependente ao sujeito enunciador, sendo, desta forma, a imagem um conceito sujeito inevitavelmente à opacidade, ou seja, à nãotransparência.

Materialidade significante que dá forma ao discurso, constituindo-se em uma possível formulação para efeitos de sentido. Tanto as formulações imagéticas (ou visuais) quanto as verbais são recuperadas pela memória discursiva e significam quando inscritas em formação discursiva. (FERNANDES, 2020. p. 147).

Já os conceitos teóricos de político/política costumam carregar um significado levemente singular e único para cada linha de pesquisa, sendo na linha da AD um destes casos, já que o conceito de política é um dos que mais implica constituição do sentido e não se pode associar ele unicamente à linguagem, pois é preciso que se tenha consciência do todo que permeia essa palavra e a “ autoridade ” que ela carrega dentro dos textos alinhados à análise do discurso. O político traz para o discurso efeitos da disputa, da contradição que permeia uma formação social. Resulta de práticas políticas que o colocam em constante movimento. É a política que lineariza o político nos processos discursivos. Política e político sofrem afetação concomitante nas práticas discursivas, embora com funções distintas.(DORNELES, 2020. p. 231)

As esculturas:

Enthroned Washington (1840) - Horatio Greenough Começando pela escultura de George Washington (Figura 1), encomendada pelo próprio governo estadunidense para comemorar e simbolizar o centenário da independência e um de seus principais ícones e o primeiro presidente daquela nação, George Washington. Sabe-se que a independência dos Estados Unidos não fora facilmente conquistada e teve uma longa história política e social no seu decorrer que ajudou a solidificar o discurso de patriotismo americano no qual hoje conhecemos e que, de alguma forma, corre pelas formações ideológicas em diversos países da América, não sendo exceção o próprio Brasil.

Figura 1- Enthroned Washington

Fonte : Wikipédia, 2022.

Os primeiros comentários que podemos tecer a respeito dessa escultura, é como ela parece desalinhada com seu período de produção, já que se assemelha mais a uma escultura grega antiga do que uma do século XIX. Baseando-se na própria escultura de Zeus em Olímpia, feita por Fídias, podemos especular a respeito dos ideais e qualidades que o autor da estátua de Washington teve em esculpi-la tão semelhante a uma das sete maravilhas do mundo antigo. Altivez, nobreza, importância histórica e valor podem ser alguns destes sentidos produzidos pelo artista, no entanto, nossa preocupação está em mostrar qual ideologia está materializada dentro desta obra e como ela poderia contribuir para a formação cultural daquela população. Talvez o artista tenha escolhido este aspecto por conta da grandiosidade do antigo mundo para imbuir excelência em sua obra, mas de que forma isso afeta o discurso e a ideologia ali presentes? Como já assinalado, Washington foi um pilar da revolução americana, mas sua representação na obra está longe de ser fiel, não há nele poderes divinos ou sequer alguma ascendência de qualquer panteão antigo. Talvez, possamos apontar o exagero da representação, mas esse exagero não é mero capricho, provavelmente o intuito era o de proliferar um discurso de admiração e patriotismo a respeito do indivíduo, essa exaltação está presente não só na vestimenta e na posição da figura, que está sentada, padrão de esculturas de governantes desde os tempos antigos, mas no local que está atualmente alocado (Museu Nacional da História Americana) e na data de comemoração a que foi dedicado o centenário da independência americana. Podemos dizer que ele se tornou uma figura da criação da nação, quase como um criador divino, como a própria estátua sugere, um deus vindo do próprio Olimpo. Os Estados Unidos é provavelmente a nação que mais contribuiu para o conceito de patriotismo e que tal aspecto político muito ajudou a construir uma ideologia de adoração política a figuras públicas que auxiliaram na construção da nação em questão. Dessa forma, se mostrando, provavelmente, o local que mais contribuiu para a formação ideológica que hoje colabora determinando várias sociedades no mundo, inclusive no Brasil. Essa obra é uma das materialidades do discurso em questão, pois ambiciona reforçar uma adoração por um humano e pelo que ele representa sóciohistoricamente, por todo discurso que ele transmitiu e que suas representações materiais ainda influenciam na formação ideológica e cultural, não restrita aos limites espaciais de onde se originaram. Pode-se concluir que, embora a estátua faça uma representação a uma figura de sujeito político, ela tem mais força ideológica e discursiva do que uma homenagem por si só, já que como ela é feita, onde se encontra e seu significado trabalham conjuntamente para pôr em movimento um discurso que reforça certas ideologias políticas e que faz parte de uma formação ideológica bem difundida, independente dos fins da mesma serem bons ou ruins, o fato é que lhe contribui a materialização e reforça seu discurso.

Medusa - Luciano Garbati Esta escultura, mais moderna, teve um propósito bem diferente, ainda que essencialmente ligada à questões políticas, já que veio a se tornar uma arte do movimento #MeToo. Como a anterior, tem uma relação com o passado, em virtude de ser uma inversão de papéis da escultura de Perseu com a cabeça da Medusa do escultor renascentista Benvenuto Cellini, já que nessa escultura do século XXI é Medusa quem segura a cabeça de Perseu.

Essa escultura é uma perfeita materialização do discurso contra as injustiças, já que o mito de Perseu e Medusa é provavelmente o feito heroico de cunho mais duvidoso e questionável entre todos os mitos gregos. A saber: Medusa foi amaldiçoada a se tornar uma górgona pela deusa Atena, a jovem foi perseguida pelo deus Poseidon até o templo de Atena e lá estuprada pelo deus, o que não faz sentido nenhum o seu castigo, já que fora a vítima, porém, não era isso que os gregos da época pensavam. Não obstante, sua má sorte tornou-se o degrau na ascendência de Perseu como herói, que foi mandado para matá-la por ter sido amaldiçoada e se tornado um monstro, apesar da origem dos fatos que levaram a isso. Medusa é a única inocente dentre todos os personagens envolvidos no mito e, por isso, a estátua representa pontualmente este fato, pois fora algo ignorado pela sociedade há eras, até que se tornou um dos principais problemas em boa parte da população feminina do século XXI, que após séculos de silenciamento, teve finalmente voz e leis que asseguram a execução da justiça e a punição dos culpados, ainda que não aconteça sempre e que com certeza não é algo que se concretizou sem muita luta por todo mundo.

Assim como a escultura anterior, esta também apela para traços culturais da Grécia antiga, pois se trata de um mito que lá surgiu e se popularizou pelo mundo todo. Neste caso, estes traços estão aqui para reivindicar a justiça que foi ignorada nesse mito tão antigo, que não apenas culpabiliza a mulher de sofrer o próprio assédio, um discurso do qual muito já se ouviu falar das mais variadas formas na atualidade (“Estava com roupa curta, quem mandou sair sozinha à noite?” etc.), Fig. 2: Medusa com a cabeça de Perseu

Fonte: DASartes, 2020.

mas que também reforça a posição de inferioridade a que as mulheres foram colocadas durante séculos e as violências que sofreram ao decorrer da história sociocultural, seja em acontecimentos reais como em outros mitos. Diferente do primeiro objeto de análise, vemos neste um discurso de resistência à opressão, violência e ao machismo estrutural e histórico, que, mesmo nos dias atuais, faz inúmeras vítimas pelo mundo. Assim como a outra escultura, a materialidade discursiva evidencia o mito original, da contradição presente em toda ideologia que ele ajudou a formar e que agora, através desta obra de arte e resistência, ajuda a combater uma formação ideológica e cultural que marca presença em todos os ambientes e faz vítimas de todas as idades, raças e etnias.

A forma material da escultura mostrou-se ainda mais facilmente interpretável quando essa estátua foi colocada em frente a um tribunal de Nova Iorque que tem seus julgamentos focados em casos de assédio sexual e estupro, um ato político que conversa perfeitamente com a ideia da escultura, se alinhando com o tipo de ideologia e cultura questionada por ela e que estava na frente de um lugar que julgava dezenas de casos como este todos os dias,

conduzindo, dessa forma, um discurso contra as inúmeras injustiças e principalmente contra a própria cultura do estupro. Um mito do passado muito glorificado que deveria passar a ser estudado e questionado, pois contribuiu e ainda o faz, com um discurso que está ligado diretamente com as formações ideológicas e culturais, pois se apoia em fatos sócio-históricos que, por muito tempo, foram exaltados e nunca questionados.

Considerações:

O que podemos retirar dessas análises se baseia em um conceito bem chave da sociedade atual e das que nos precederam, a própria formação ideológica disseminada através de seus discursos verbais e não-verbais. Podemos dissertar sobre as diferentes ideologias demonstradas pelas esculturas, uma pregando uma ideologia e discursos que predominaram nas sociedades durante boa parte da existência humana, e outra que visa combater esse discurso, expondo os danos que tais discursos, instaurados por culturas que muitas vezes reforçam esse discurso conservador. Um fator que evidencia isso de forma mais clara, mas que não é determinante, é o momento em que as esculturas foram desenvolvidas, uma no século XIX e outra no século XXI, considerando que esse salto temporal para o discurso materializado de uma obra para outra tenha se desenvolvido largamente dentro de mais de cem anos.

Principalmente se falando das grandes conquistas alcançadas pelas mulheres, sendo em sua maioria conquistadas no século XX, oportunizando não só mais espaço na sociedade, mas também, com o passar do tempo, dando lugar para que muitas injustiças fossem sendo reveladas na vida das mulheres, o que foi progredindo até chegarmos atualmente, em que temos instituições jurídicas para julgar casos específicos de mulheres, como o tribunal onde foi alocada a estátua de Medusa com a cabeça de Perseu. Essa estátua não só é um símbolo artístico que visa combater os discursos machistas que se propagaram, mas também mostrar um dos maiores propósitos da arte moderna, questionar as ideologias e as formações ideológicas instigadas por discursos seculares que danificaram tão largamente a vida da sociedade como um todo. Podemos considerar que as análises são de obras que têm objetivos diferentes. De um lado temos a glorificação de um homem mortal, com características de deus grego, o que acentua uma característica heroica. De outro, o inverso de uma estátua grega antiga, que visa combater as ações e discursos de uma cultura patriarcal e essencialmente machista, invertendo os papéis e materializando uma vítima que sofreu abuso e castigada injustamente e que se defende de seu agressor, que foi ordenado a matá-la simplesmente por ter se tornado um monstro como castigo por ter sido violentada em um templo sagrado, como se fosse culpa dela. Atualmente, o discurso materializado através dessa escultura nos traz uma mensagem de resistência contra uma cultura predominantemente violenta, em vários níveis. Dentro da segunda figura, vemos que a mulher representada de forma monstruosa consegue se voltar contra a injustiça e seu agressor, mas é evidenciada como um ser horrendo.

Talvez o discurso que caiba seja a forma que a mulher precisa tomar para viver contrária ao sistema, e como ela acaba sendo vista por este mesmo, especialmente pelos esforços que ela tem que fazer para se desprender de um sistema que a aprisiona de formas físicas e psicológicas.

Esse movimento discursivo de resistência dentro da arte só tende a crescer atualmente, e podemos esperar muitos mais daqui pra frente, especialmente se com o combate à violência, estas obras de artes auxiliarem na produção de uma formação ideológica e discursiva que esteja isenta de preconceitos tão danosos para a sociedade.

Referências:

A intrigante estátua de Medusa em homenagem ao movimento MeToo em Nova York. BBC News Brasil, 20 nov. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional54669548. Acesso em 21 de nov. 2022.

FERREIRA, M. C. L. Glossário de termos do discurso. Campinas, SP : Pontes Editores, 2020.

George Washington (estátua). Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/George _ Washington _ (estátua). Acesso em 21 de nov. 2022.

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